Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
123/14.9TBRSD
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: NEGÓCIO JURÍDICO
VALIDADE
LEI APLICÁVEL
CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
COISA IMÓVEL
ABUSO DO DIREITO
PREÇO
PAGAMENTO
TRANSMISSÃO DA POSSE
POSSE DE BOA FÉ
FRUTOS
PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 02/27/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / TEMPO E A SUA REPERCUSSÃO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS / PRESCRIÇÃO – DIREITO DAS COISAS / POSSE / AQUISIÇÃO E PERDA DA POSSE.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS N.º 304.º, N.ºS 1 E 2 E 1270.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 628.º.
Sumário :
I - A validade dos negócios afere-se à luz da lei vigente à data em que foram celebrados.
II - A modificação do valor de um prédio, objecto de um contrato-promessa de compra e venda celebrado em 1990, por alteração de circunstâncias, não constitui fundamento de invalidade desse negócio, ou da compra e venda definitiva outorgada em 2012.
III - A invocação, em 2014, pela vendedora, da invalidade daqueles negócios, que voluntariamente celebrou, configura abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, matéria do conhecimento oficioso do tribunal.
IV - O recebimento integral do preço em 1990, data a partir da qual a promitente-vendedora se desinteressou do prédio e as promitente-compradoras se passaram a comportar como sendo suas proprietárias e como possuidoras, transmitindo por contrato-promessa de 2003 a posse a uma ré que, por sua vez, de boa fé, passou a receber de outra ré uma renda pela ocupação do prédio, encontra-se legitimada ao abrigo do disposto no art. 1270.º do CC.
V - Da prescrição da obrigação de celebrar o contrato definitivo não decorre o dever de a não cumprir – art. 304.º do CC.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. União das Freguesias de ... e ... propos contra AA, BB, CC, DD, EE, FF e GG, SA acção declarativa com processo comum, pedindo, a título principal:
1. Se declarasse a nulidade do contrato-promessa de compra e venda e do contrato de compra e venda celebrados com a ré HH, relativos ao prédio rústico sito no lugar do ..., concelho de ...., actualmente inscrito sob o artigo 2467 (anterior 1256) e descrito sob o n.º 363/Feirão e se ordenasse o cancelamento do registo correspondente à Ap. 2272 de 16 de Maio de 2012, referente ao identificado prédio;
2. Se condenassem as rés FF e GG, SA a pagar à autora a quantia de € 59 066,98, acrescida dos juros vincendos à taxa legal;

Para o caso de não serem declarados nulos os referidos contratos, pediu:
1. A condenação solidária dos réus AA, BB, CC a pagar à autora a quantia de 122 007,21 euros, acrescida dos juros vincendos à taxa legal; 
2. A condenação das rés FF e GG, SA, a pagar à autora a quantia de € 59 066,98, acrescida dos juros vincendos à taxa legal.

2. O processo prosseguiu os seus termos e após a audiência final foi proferida sentença que julgou improcedente a acção.

3. A autora não se conformou com a sentença e interpôs recurso de apelação, pedindo a título principal:
1. Se revogasse/anulasse a sentença, determinando-se a alteração da decisão de facto; declarando-se a nulidade do contrato de compra e venda e ordenando-se o cancelamento do registo correspondente à AP 2272 de 2012/05/16; e se condenasse a 6.ª e a 7.ª ré (rés FF e GG, SA) a pagar à autora a quantia de € 59 066,98, acrescida dos juros vincendos à taxa legal; 
2. Caso se não considerasse nulo o contrato de compra e venda, pediu a revogação/anulação da sentença e a substituição dela por decisão que determinasse a alteração da matéria de facto e a condenação dos 1.ºs, 2.º e 3.º réus, a pagarem à autora a quantia de 108 590, 00 euros, acrescida de juros à taxa legal e se condenasse se condenasse a 6.ª e a 7.ª ré (rés FF e GG, SA) a pagar à autora a quantia de € 59 066,98, acrescida dos juros vincendos à taxa legal.

Os réus AA, BB, CC e FF responderem, pedindo se negasse provimento ao recurso e se confirmasse a decisão recorrida.

4. O tribunal da Relação de Coimbra apreciou o recurso julgando-o improcedente e, em consequência, manteve a decisão recorrida.

Novamente inconformada, dele interpôs recurso de revista a União das Freguesias de ...e....

5. Nas conclusões do recurso a recorrente indica as seguintes conclusões (transcrição):

               “1.ª – A 10 de Maio de 2012 a junta de freguesia vendeu por € 3.000,00 (três mil euros) um imóvel que, nessa data tinha o valor de € 111.590,00 (cento e onze mil, quinhentos e noventa euros).

                         2.ª – A ora Autora, ora Recorrente, entende que tal contrato de compra e venda viola a ordem pública – violando, nomeadamente os princípios da boa administração e da proteção dos bens públicos – pelo que tal negócio está ferido de nulidade, nos termos do n.º 2, do artigo 280.º do Código Civil.

                         3.ª – Não podemos concordar com o Tribunal a quo, quando sustenta que um negócio enormemente prejudicial para a entidade pública que o celebrou não é um negócio contrário à ordem pública.

                         4.ª – Apesar de a Doutrina se ter debruçado sobre o conceito de “ordem pública”, o mesmo não está definido legalmente, sendo que, na Jurisprudência, a análise de tal conceito é escassa.

                        5.ª – Assim, a questão de saber se a venda de um imóvel do domínio privado de uma autarquia local por um preço enormemente abaixo do respetivo valor de mercado é contrária à ordem pública – violando os princípios da boa administração e na proteção dos bens públicos – sendo tal compra e venda nula nos termos do n.º 2, do artigo 280.º, do Código Civil, constitui uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

                        6.ª – Por outro lado, a boa administração e a proteção dos bens imóveis (que por natureza têm grande valor económico) das autarquias locais, principalmente estando em causa a sua alienação por valor bastante inferior ao respetivo valor de mercado, são interesses de particular relevância social.

                        7.ª – Acrescendo que, na atual conjuntura socioeconómica – em que a população revela um sentimento de descontentamento generalizado com a classe politica e com as escolhas realizadas pelos titulares de órgãos políticos, que são, frequentemente, colocadas em causa por não terem em vista o bem comum – a resposta a tal questão torna-se ainda mais relevante, não só por ser necessária para uma melhor aplicação do Direito, mas também por estarem em causa interesses de particular relevância social que importa evidenciar e acautelar. Devendo, assim, o presente recurso de revista excecional ser admitido, conforme previsto nas alíneas a) e b), do n.º 1, do artigo 672.º, do CPC.

                        8.ª – Dois dos princípios imanentes do nosso ordenamento jurídico, alicerçantes da ordem económica e social, são os princípios da boa administração e da proteção dos bens públicos.

                        9.ª – Princípios que, naturalmente, também são aplicáveis aos bens pertencentes ao domínio privado das Autarquias Locais, que são entidades públicas.

                        10.ª – Conforme exposto pela Doutrina e Jurisprudência supra citados, o interesse superior da coletividade na boa administração e na proteção dos bens públicos não pode ser, fortemente, sacrificado em benefício de interesses particulares.

                        11.ª – Ora, a venda realizada por uma entidade pública de um imóvel pelo preço de € 3.000,00 quando esse imóvel tem o valor de € 111.590,00 é um negócio que sacrifica enormemente o interesse superior da coletividade na boa administração e na proteção dos bens públicos que não podem ser sacrificados de tal forma em benefício de interesses particulares.

                         12.ª – O objeto do contrato de compra e venda não é apenas constituído pelo efeito da transmissão da propriedade do imóvel, mas também (e não só) pela obrigação de pagamento do preço, conforme resulta da alínea c), do artigo 879.º do Código Civil.

                        13.ª – Aquilo que a Ré sustenta não é que a transmissão da propriedade viola a ordem pública. O que a Ré entende violar a ordem pública é que essa transmissão de propriedade tenha sido realizada mediante o pagamento de um preço que corresponde a apenas 2,69% do valor de mercado do imóvel transmitido.

                        14.ª – Conforme esclarece José de Oliveira Ascensão “a ordem pública funciona em concreto. Pressupõe já realizada a interpretação das fontes e busca apurar se, na aplicação ao caso concreto, se chega a um resultado que é inadmissível perante os princípios fundamentais da ordem jurídica portuguesa” – in op. cit., página 357 [destaque nosso].

                        15.ª – Ora, o referido contrato de compra e venda de imóvel da Junta de Freguesia, por um preço que corresponde a apenas 2,69% do respetivo valor de mercado, é um ato que viola frontalmente o interesse superior da coletividade na boa administração e na proteção dos bens públicos. Chegando-se a um resultado que é inadmissível perante os princípios fundamentais da ordem jurídica portuguesa.

                         16.ª – Com todo o respeito, no Acórdão de que ora se recorre, o Tribunal a quo não analisou, nem tomou em devida conta, a desproporção enorme entre o valor de mercado do imóvel e o preço pelo qual o mesmo foi vendido.

                         17.ª – Aliás, tendo em conta o valor pago (preço) e o valor do imóvel transmitido pode-se até questionar se o negócio celebrado, in casu, foi um negócio oneroso (uma compra e venda), ou se tal negócio está mais próximo de se qualificar como um negócio gratuito. O que, também, implicaria a nulidade do negócio em questão.

                        18.ª – Não podendo a Autora concordar que a existência de um contrato promessa celebrado a 15/10/1990, possa tirar relevância à disparidade entre o preço de venda e o valor do imóvel.

                        19.ª – Até porque, qualquer obrigação que resultasse para a Junta de tal contrato celebrado em 15/10/1990 já estava prescrita em 10/05/2012 (conforme foi expressamente invocado nos artigos 90.º e 91.º da petição inicial).

                       20.ª – Por outro lado, os poderes que a assembleia de freguesia tivesse conferido à Junta, por deliberação realizada há mais de 20 anos (ou seja, a 02/10/1990), também já se haviam extinguido por prescrição, nos termos do n.º 1, do artigo 298.º e do artigo 309.º ambos do Código Civil (conforme foi expressamente invocado nos artigos 90.º e 91.º da petição inicial).

                        21.ª – Aliás, a deliberação do plenário da freguesia de Feirão, constante da ata n.º 29 de 02/10/1990, atribuiu poderes ao então Presidente da junta, II, ao secretário JJ e ao tesoureiro LL. Sendo que o contrato de compra e venda foi celebrado mais de vinte anos depois por representantes da junta diferentes.

                       22.ª – Na realidade, a alienação do imóvel em questão passados mais de vinte anos da deliberação realizada a 02/10/1990, carecia de ser precedida de deliberação da assembleia de freguesia de ...., que autorização tal alienação.

                        23.ª – Conforme resulta da alínea h), do n.º 1, do artigo 34.º e da alínea i), do n.º 2, do artigo 17.º da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro (que estava em vigor a 10/05/2012) – a venda de imóvel de valor superior a € 75.521,60 só pode ser realizada mediante prévia autorização da Assembleia de Freguesia.

                         24.ª – Contudo, tal nunca aconteceu. O que, salvo melhor entendimento, também implica a nulidade da compra e venda identificada no ponto 6 dos factos dados como provados.

                        25.ª – Por outro lado, é manifestamente incongruente, com a versão dos Réus, que a alienação seja, formalmente, realizada tendo MM como compradora quando esta (a 05/05/2004) já havia cedido a sua posição contratual a FF, que, inclusive já vinha recebendo as rendas refentes ao terreno desde Janeiro de 2005.

                       26.ª – Uma vez que, a 10/05/2012, a Ré FF seria titular da posição contratual de promitente-compradora (que teria recebido por cessão a 05/05/2004) e, inclusive, já vinha recebendo as rendas referentes ao imóvel desde Janeiro de 2005 (cfr. ponto 40 da matéria de facto), não se percebe porque é que o contrato de compra e venda não foi celebrado com ela, tendo antes sido celebrado com a Ré MM.

                        27.ª – Em suma: a venda descrita no ponto 6 da matéria de facto de um imóvel da junta de freguesia de ... pelo preço de € 3.000,00 quando o imóvel em questão tinha o valor de mercado de € 111.590,00 (cfr. ponto 43 da matéria de facto) é nula, nos termos do n.º 2, do artigo 280.º, do Código Civil, por ser contrária à ordem pública, violando, nomeadamente, os princípios da boa administração e na proteção dos bens públicos.

                        28.ª – No âmbito do Direito Civil português, o direito a receber rendas de determinado prédio pertence ao seu proprietário pleno, ou ao seu usufrutuário.

                         29.ª – In casu, está provado que, pelo menos até 10 de Maio de 2012, a Autora era proprietária plena do imóvel em questão, ou seja, que a Ré FF não era nem proprietária ou sequer usufrutuária do imóvel em questão.

                        30.ª – Até 10 de Maio de 2012, a Ré FF não tinha qualquer título que lhe conferisse a posse enquanto proprietária ou usufrutuária. Pelo que, a Ré FF se presume possuidora de má-fé.
                         31.ª – Se alguém recebe rendas de um prédio de que não é proprietário ou usufrutuário, naturalmente, que sabe que está a prejudicar a pessoa que tem o direito a receber tais rendas, ou seja, o respetivo proprietário ou usufrutuário.

                       32.ª – Aliás, se a Ré FF era uma possuidora de boa-fé, que exercia a sua posse à vista de todos e na convicção de que não ofendia direitos de terceiro, porque é que, a 10 de Maio de 2012, o contrato de compra e venda não foi realizado tendo a mesma como compradora?

                       33.ª – Na realidade, uma vez que a Ré não alegou que adquiriu o prédio por usucapião, (ou a qualquer outro título) para que a mesma pudesse provar que se considerava possuidora, de boa-fé, do terreno como de seu bem se tratasse, implicaria a existência nos presentes autos de escritura pública de compra e venda, ou de usufruto, a favor de FF. Ou seja, a Ré FF teria que alegar e comprovar porque é que se considerava proprietária do imóvel. Até porque nos presentes autos consta escritura pública de justificação, bem como descrição do registo predial que comprovam que a Autora era proprietária do imóvel.

                        34.ª – Pelo que, o Tribunal a quo não poderia ter incluído no ponto 32 dos factos dados como provados que a partir de 8 de Setembro de 2003 a Ré passou a tomar conta do prédio “à vista de toda a gente e como se de seu bem se tratasse, e na convicção de que não ofendia direitos de terceiro”. Devendo a parte “à vista de toda a gente e como se de seu bem se tratasse, e na convicção de que não ofendia direitos de terceiro” do ponto 32 ser dada como não provada, nos termos do n.º 3, do artigo 674.º do CPC.

                        35.ª – Por outro lado, o argumento de que a junta de Feirão consentiu o recebimento da renda por parte de FF é bastante questionável.

                       36.ª – Atente-se que entre 1989 e 2013, a Junta de Freguesia de ... foi presidida, por II e seguidamente pelo Réu AA– pai e irmão da Ré FF. Até que nas eleições autárquicas de Setembro de 2013 foi eleito presidente da junta NN. E, a realização da compra e venda bem como o recebimento das rendas foi colocada imediatamente em questão (cfr. pontos 39 e 44 da matéria de facto dada como provada).

                        37.ª – Na realidade, com todo o respeito, tendo em conta princípios da boa administração e na proteção dos bens públicos, não seria admissível que uma junta de freguesia pudesse autorizar alguém (neste caso a filha do presidente da junta) a receber rendas que, nos termos legais, seriam da titularidade da junta de freguesia enquanto proprietária do imóvel.

                        38.ª – Conforme supra exposto, a escritura de compra e venda realizada é nula, pelo que não só a Ré FF violou o direito de propriedade da Autora, ao receber indevidamente rendas no valor de € 43.478,52, como tais rendas sempre foram recebidas sem causa justificativa, enriquecendo a Ré à custa da Autora.

                        39.ª – Subsidiariamente sempre se expõe que, caso não se considere nula a escritura de compra e venda realizada (o que ora se coloca por mera hipótese de Direito) a Ré FF violou o direito de propriedade da Autora, ao receber indevidamente as rendas no valor de € 31.975,43 até 10 de Maio de 2012, sendo ainda que tais rendas foram recebidas sem causa justificativa, enriquecendo a Ré à custa da Autora.

                         40.ª – Tendo em conta a matéria factual dada como provada nos pontos 35, 36 e 40, percebe-se que, pelo menos desde janeiro de 2005, a 6.ª e a 7.ª Rés se locupletaram injustificadamente à custa do património da Autora, ou seja, do imóvel descrito no ponto 1 dos factos dados como provados. Locupletamento, sem causa, que está quantificado no ponto 40 dos factos dados como provados, no valor de € 43.478,52.

                       41.ª – Constatando-se que a 7.ª Ré violou o direito de propriedade da Autora sobre o referido imóvel, no qual realizou construções sem a sua autorização.

                        42.ª – Pelo que, deverá revogar-se/anular-se o douto Acórdão proferido pelo Tribunal a quo e a douta sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, substituindo-os por decisão que condene a 6.ª e a 7.ª Rés a pagar, solidariamente, à Autora a quantia de € 43.478,52 acrescida dos respetivos juros à taxa legal.

                        43.ª – Ou, subsidiariamente, caso não se considere nula a escritura de compra e venda realizada (o que ora se coloca por mera hipótese de Direito), deverá revogar-se/anular-se o douto Acórdão proferido pelo Tribunal a quo e a douta sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, substituindo-os por decisão que que condene a 6.ª e a 7.ª Rés a pagar, solidariamente, à Autora a quantia de € 31.975,43 acrescida dos respetivos juros à taxa legal.

                        44.ª – No Acórdão recorrido, o Tribunal a quo debruçou-se sobre o preenchimento dos elementos do tipo criminal de participação económica em negócio (previstos no n.º 1, do artigo 23.º, da Lei n.º 34/287, de 16 de Julho) quando o que está em causa nos presentes autos não é a responsabilidade penal, mas apenas a responsabilidade civil.

                        45.ª – Sendo que, enquanto para efeitos de preenchimento dos elementos subjetivos do tipo criminal de participação económica em negócio se exige o dolo específico da intenção de obter para eles ou para terceiro uma vantagem económica ilícita, no que se refere à responsabilidade civil dos titulares de órgãos políticos, a mesma verifica-se quando (estando preenchidos os restantes pressupostos) estes tenham agido com dolo ou com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se encontravam obrigados em razão do cargo.

                         46.ª – Ainda que se considere que a Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, não seria aplicável in casu, a responsabilidade dos três primeiros Réus, sempre resultaria do regime geral de responsabilidade civil.

                        47.ª – O facto de o âmbito do Decreto-Lei n.º 280/2007, de 07 de Agosto não abranger os imóveis do domínio privado de autarquias, não significa que tais imóveis possam ser vendidos por valores manifestamente inferiores ao seu valor de mercado, sem que ocorra qualquer consequência, nomeadamente a título de responsabilidade civil, para quem celebra tais negócios ruinosos para a causa pública.
                         48.ª – Conforme exposto no artigo 149.º da PI, aos 1.º, 2.º e 3,º Réus competia, no mínimo, a avaliação independente e isenta do imóvel a vender em 2012, de forma a lhe ser atribuído um valor comercial, tendo em conta o rendimento anual superior a € 5.000,00.

                         49.ª – Sendo, que ao vender o imóvel pelo valor que o fizeram, os 1.º, 2.º e 3,º Réus provocaram à Autora um dano correspondente à diferença entre o valor comercial do imóvel (€ 111.590,00), à data da venda, e o valor pelo qual os 1.º, 2.º e 3,º Réus venderam o mesmo (€ 3.000,00), ou seja de € 108.590,00.

                         50.ª – Assim, caso não se considere que a compra e venda contante do ponto 6 dos factos dados como provados é nula (o que ora se coloca por mera hipótese de Direito), deverá revogar-se/anular-se o douto Acórdão ora recorrido e a douta sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, substituindo-os por decisão que condene os 1.º, 2.º e 3,º Réus a pagarem à Autora a quantia de € 108.590,00 acrescida dos respetivos juros à taxa legal.  

Nestes termos e nos mais de Direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser considerado procedente, revogando-se/anulando-se o Acórdão ora recorrido e a sentença proferida em 1.ª instância, substituindo-os por decisão que declare a nulidade do contrato de compra e venda em questão, identificado no ponto 6 dos factos dados como provados, e ordenando-se o cancelamento do registo correspondente à Ap. 2272 de 2012/05/16; e, cumulativamente, serem as 6.ª e 7.ª Rés condenadas a pagar à Autora a quantia de € 43.478,52, acrescida dos juros vincendos à taxa legal; ou

Subsidiariamente, caso não se considere que o referido contrato de compra e venda é nulo, deverá revogar-se/anular-se o Acórdão ora recorrido e a sentença proferida em 1.ª instância, substituindo-os por decisão que, nos termos supra referidos, condene os 1.º, 2.º e 3,º Réus a pagarem à Autora a quantia de € 108.590,00 acrescida dos respetivos juros à taxa legal, e, cumulativamente, condene as 6.ª e 7.ª Rés a pagar à Autora a quantia de € 31.975,43, acrescida dos juros vincendos à taxa legal, sempre se fazendo JUSTIÇA.”

6. A matéria de facto provada, tal como resulta da reapreciação da prova realizada pelo Tribunal da Relação, é a seguinte:
1. Pelo menos desde 20 de Dezembro de 2010 e até 15 de Maio de 2012 encontrava-se descrito na Conservatória do Registo Predial da antiga freguesia de ....,..., área desta comarca de Viseu, sob o no 368... e inscrito a favor da Autora, na matriz predial rústica da ex-Freguesia de ... com o artigo 1256 (actualmente artigo 2467) o prédio denominado de Monte de Lavradio, com a área de 30.000 m2, sito no Lugar de ..., a confrontar do norte com herdeiros de OO, do sul com ..., do nascente com bens da Autora e do poente PP, QQ, RR e outros, com a inscrição matricial reportada a 1996.
2. Tal prédio, antes de desanexado, fazia parte do prédio rústico inscrito na respectiva matriz sob o artigo 833, mato e terra incultivável, sito no Lugar ...., a confrontar do norte com OO e herdeiros, RR e outros, do nascente com SS, TT e herdeiros de UU e do sul com caminho de ligação de .... e poente PP, VV, QQ, RR e outros, não descrito na Conservatória do Registo Predial.
3. O referido prédio foi comprado pela Autora, verbalmente, a XX e YY, no estado de viúva, em meados dos anos 70 do século passado, não tendo então sido outorgada a escritura de compra e venda, nem a podendo outorgar no ano de 2002, por a vendedora ter falecido.
4. Para suprir esta impossibilidade em 18 de Setembro de 2002, no Cartório Notarial de ... o Presidente da Junta de Freguesia de ..., II, o respectivo Secretário, BB, e ainda o seu Tesoureiro, LL, declararam que adquiriram o prédio em questão por usucapião, declaração que foi confirmada pelas testemunhas ZZ, AAA
5. A 10 de Maio de 2012 o Presidente da Junta de Freguesia de ... apresentou no Cartório Notarial da Dra. BBB uma acta da reunião extraordinária da Junta de Freguesia de ..., realizada a 27 de Abril de 2012, onde ou quando reuniram o Presidente AA, o Secretário BB e o Tesoureiro CC e decidiram dando cumprimento ao deliberado na acta n.o 29 do Plenário da Freguesia de ... de 02 de Outubro de 1990, pelo valor já pago de €3.000,00 (três mil euros), dar plenos poderes a AA para outorgar a escritura de venda a CCC.
6. E no dia 10 de Maio de 2012, os Réus AA, BB e CC outorgaram escritura pública de compra em que, na qualidade de membros da qualidade de membros da Junta da Freguesia de ..., declaram vender o prédio identificado em 1 a CCC, pelo preço de €3.000,00 (três mil euros).
7. A Autora e os seus ante possuidores utilizaram o referido prédio desde a data da dita aquisição verbal até 1990, na totalidade da sua área, nele cortando o mato, vedando com cerca, fazendo benfeitorias, abrindo caminhos de acesso e pagando os impostos, à vista de toda a gente, em especial, das pessoas da freguesia, sem a oposição de quem quer que seja, ininterruptamente, na convicção de que era proprietária.
8. Na acta n.º 29 que documentou a reunião do Plenário da Freguesia de ..., realizado a 2 de Outubro de 1990, que foi presidida pelo então Presidente da Junta de Freguesia de ... II (pai do ora Réu), foi deliberado proceder à venda de 30.000 m2 de monte do prédio rústico do Lugar ..., da ex-freguesia de ..., concelho de ..., a destacar da inscrição matricial com o então artigo 833 e bem assim conceder poderes aos elementos da Junta de Freguesia (Presidente – II; Secretário – JJ e Tesoureiro – LL) para assinarem o contrato promessa.
9. Esta deliberação foi tomada pelo Plenário da Freguesia da Autora, aprovada pela quase totalidade dos 112 eleitores que dele participaram, no caso 108 votos favoráveis e 4 abstenções.
10. Ainda o Plenário em causa concedeu à Junta de Freguesia do ... poderes para, nomeadamente, proceder "...à consequente venda, a quem entenderem e pelo preço que tiverem por conveniente...assinando para o efeito tudo o que se torne necessário".
11. A venda em causa foi deliberada para "...obter meios financeiros para continuar as obras do CENTRO CÍVICO DE ..., nesta freguesia, que estão em curso e em que a freguesia se encontra muito empenhada, dada a sua necessidade para responder a inúmeras carências locais".
12. Ainda não concluído por insuficiência de recursos, o Centro Cívico de ... encontra-se construído na povoação de ... ao nível do primeiro piso, afectado à satisfação de carências das populações locais da freguesia.
13. A 15 de Outubro de 1990, todos os elementos da Junta de Freguesia de ... (Presidente – II; Secretário – JJ; e Tesoureiro – LL) assinaram contrato-promessa de compra e venda do citado prédio a favor de DDD e sua irmã CCC promessa de venda pelo preço de €2.992,79 (no correspondente valor de seiscentos mil escudos).
14. Com a celebração do contrato de promessa de compra e venda referido no anterior artigo a Autora recebeu logo 500.000$00 e, apesar de o pagamento dos restantes Escs. 100.000$00 haver sido reservado para a escritura do contrato prometido, reconhecendo as promitentes compradoras a necessidade premente da Junta de Freguesia por se encontrar "muito empenhada na construção do seu Centro Cívico", anteciparam o pagamento dos restantes Escs. 100.000$00 que entregaram em 28 de Abril de 1991.
15. A 28 de Abril de 1991, reuniu a Junta de Freguesia (Presidente – II; Secretário – JJ e Tesoureiro – LL) e anunciou a celebração do contrato-promessa supra identificado e de que a outorga da escritura seria feita quando as promitentes compradoras assim o desejassem e fosse possível, tudo nos termos da acta no.º 33.
16. Ao tempo o prédio constituía um "terreno rochoso incultivável", do qual não era possível extrair qualquer rendimento para além da recolha de matos e erva.
17. Logo após a celebração do contrato-promessa com a Junta de Freguesia em 13 de Outubro de 1990, as rés, representadas por sua mãe, EEE, procederam com a Junta à autonomização dos 30 000 m2 de terreno que haviam sido prometidos vender da parte restante do prédio, através da colocação de marcos em madeira;
18. A Junta, após ter recebido a totalidade do preço, o que aconteceu em 28 de Abril de 1991, passou a considerar que o prédio pertencia às promitentes compradoras, não mais se interessou pela sua exploração e quem passou a tomar conta dele foram as rés, através da sua mãe.
19. As Rés DDD e CCC, aquando da outorga do contrato promessa, visavam no futuro aí construir uma casa de fim-de-semana.
20. Posteriormente a Ré DDD orientou a sua vida profissional e pessoal para o Porto, onde exerce clínica.
21. Decorridos mais de dez anos - cerca de finais de 2001 - com a expansão da indústria da produção de energia eléctrica a partir de energias renováveis e por processos de co-geração a Junta de Freguesia de ... foi abordada para a "colocação de aerogeradores" em terrenos por si administrados.
22. Ulteriormente a Junta de Freguesia de ... cedeu terrenos para a implantação de torres eólicas, nomeadamente na área sobrante do prédio então inscrito na matriz rústica sob o arto 833°, de que foi destacada a área de 30.000 m2 para a formação do artº 1.256°, objecto do contrato de promessa e do contrato prometido.
23. No prédio alienado ainda hoje não se encontra instalada qualquer torre eólica e ele, após o seu destaque, foi objecto de avaliação fiscal a qual, realizada em 1996, aquando da sua inscrição, atribuiu-lhe um valor de € 29,93.
24. Por instrumento notarialmente reconhecido a co-Ré DDD declarou em 24 de Abril de 2012 "prescindir em favor de sua irmã, a co-Ré CCC, na compra do terreno rústico que fez à Junta de Freguesia de ..., concelho de ..., no ano de 1990, por não ter qualquer interesse no respectivo terreno", sendo que por documento revestido de idêntica dignidade o marido da co-Ré DDD, FFF, com ela consorciado na comunhão de bens adquiridos, declarou na mesma data prescindir da compra a favor da co-Ré CCC nos termos idênticos à da sua Mulher.
25. A Ré FF, a partir de meados da década de noventa do século passado dedicou-se à actividade da exploração pecuária, na modalidade de produção de leite, para o que tomou de arrendamento rural a terceiros um conjunto de diversos prédios rústicos situados na freguesia de ....
26. Ainda esta Ré em 23 de Abril de 1998 celebrou com o então IFADAP um contrato de investimento de apoio àquela exploração, denominado de “ajudas ao investimento nas explorações Agrícolas-jovens Agricultores”.
27. Posteriormente, realizado aquele investimento, celebrou em Setembro de 2001 novo contrato de investimento com o mesmo Organismo, que lhe concedeu incentivo financeiro como jovem agricultora, no âmbito de um processo denominado “contrato de atribuição de ajuda ao abrigo do programa agro-medida 1”.
28. Tendo em vista rentabilizar o investimento a Ré FF ampliou ulteriormente a área disponível para apascentar o seu gado.
29. Por escritura de 11 de Setembro de 2003, lavrada no Cartório Notarial de ..., ainda a Ré FF adquiriu às co-Rés DDD e CCC, representadas por sua Mãe, a Dra. EEE, o prédio rústico sito ao lugar de ..., na freguesia de ..., então inscrito na respectiva matriz sob o arto 815°, pelo preço de €2.500,00.
30. Por contrato celebrado em 8 de Setembro de 2003 as mesmas co-Rés, também representadas por aquela procuradora prometeram vender à Ré FF - que àquelas prometeu comprar -o prédio ora reivindicado pela Autora e identificado em 1, pelo preço de €3.000,00, por conta do qual logo foi pago o sinal de €1.000,00, devendo o restante ser liquidado na data da escritura definitiva de compra e venda, a ser outorgada logo que a promitente compradora o desejasse e fosse possível obter os documentos necessários para o efeito.
31. Em 28 de Abril de 2004, titulado por cheque de ..., a Ré FF pagou os restantes €2.000,00
32. A partir da celebração do contrato-promessa entre EEE, na qualidade de procuradora das rés DDD e CCC, e FF, na qualidade de promitente-compradora, em 8 de Setembro de 2003, foi esta quem passou a tomar conta do prédio, à vista de toda a gente e sem qualquer oposição, como se de seu bem se tratasse, e na convicção de que não ofendia direitos de terceiro.
33. Em 5 de Maio de 2004 as promitentes compradoras cederam a sua posição contratual no referido contrato promessa à Ré FF.
34. No dia 12 de Agosto de 2004 a Ré FF celebrou com a Co-Ré GG, SA um contrato denominado de “promessa de cessão de utilização de espaço para fins industriais”, incidindo sobre o descrito imóvel, sendo que na ocasião foi explicado a esta que a escritura definitiva ainda não havia sido outorgada por ser necessário proceder à desanexação da parcela de 30.000 m2 do artigo 833.º.
35. Em data não apurada em concreto mas posterior à indicada no anterior artigo, a Ré GG, SA construiu no imóvel em causa caminhos de acesso que ocupa uma parte do mesmo, sem contactar com a Autora.
36. Tais caminhos de acesso ainda hoje se mantêm implantados e em funcionamento, no descrito imóvel, retirando benefícios económicos do referido prédio.
37. Em 13 de Março de 2007 foi celebrado entre as partes um aditamento ao contrato junto a fls 199, então com o prédio já desanexado.
38. A partir de 2005 aquela Ré - FF - passou a receber as rendas pagas por aquela sociedade, sendo que a Ré GG SA nunca pagou qualquer renda à Ré HH, incluindo em 2013 e 2014.
39. Com data de 20 de Maio de 2014 a Autora enviou carta registada com aviso de recepção à Ré FF, a exigir que até 30 de Maio de 2014, entregasse a quantia de €57.652,23, correspondente às rendas por si abusivamente recebidas e aos juros vencidos (€ 14.173,71) com o seguinte conteúdo: “Assunto: devolução das rendas ilegalmente recebidas Exma. Senhora: Os nossos cumprimentos. No seguimento da reorganização das autarquias e das eleições para os seus órgãos, como é do seu conhecimento, fomos desde Setembro último, eleitos representantes do Povo e dos interesses da população da União das Freguesia de ...e... – concelho de Resende. Acontece que, tomamos agora conhecimento de que não obstante a anterior Junta de ..., a 10 de Maio de 2012, ter celebrado uma escritura de venda do prédio rústico, denominado de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.o 368/Feirão e actualmente inscrito sob o artigo 815, V. Exa., não obstante saber que é a Junta proprietária deste terreno, criou o “negócio” para abusivamente receber as rendas pagas pela sociedade GG, SA.. Desde 2005 que V. Exa. recebeu, sem motivo ou justificação, as rendas que pertenciam e pertencem à Junta de Freguesia e por inerência ao Povo de Feirão, a saber: a) 01 de Janeiro de 2005 - 576,00 € (período de estudos do projecto); b) 01 de Janeiro de 2006 - 589,00 € (período de estudos do projecto); c) 01 de Janeiro de 2007 - 5.062,50 €; d) 01 de Janeiro de 2008 - 5.184,50 €; e) 01 de Janeiro de 2009 - 4.324,40 €; f) 01 de Janeiro de 2010 - 5.276,50 €; g) 01 de Janeiro de 2011 - 5.383,00 €; h) 01 de Janeiro de 2012 - 5.579,50 €; i) 01 de Janeiro de 2013 - 5.741,70 €; e j) 01 de Janeiro de 2014 - 5.761,42 €. Valores a que acrescem os juros vencidos desde cada pagamento e que se computam hoje em 14.173,71 €. A que terá de somar mais 56,59 € por cada dia até ao dia em que V. Exa. devolver o dinheiro. Sucede que não aceitamos este esbulho à Junta de Freguesia, para mais quando V. Exa. é irmã do ex-Presidente da Junta e filha do anterior Presidente da Junta. Por isso, melhor conhecimento tinha de que este rendimento era, e é, do Povo de .... Vimos pela presente e por uma única oportunidade permitir que no prazo de 8 dias, a legalidade seja reposta, ou seja, V. Exa. Entregue na Junta de Freguesia o dinheiro indevidamente recebido e que o aparente negócio seja desfeito (até ao final do corrente mês de Maio). Caso assim não proceda, informamos que iremos proceder criminalmente, participar à Polícia Judiciária e aos serviços de Finanças, o que também trará consequências para a D.a DD, para o Sr. FFF e para a D.a CCC. Aguardamos que até 30 de Maio de 2014 proceda à entrega nesta Junta da importância de 57.652,23 € (cinquenta e sete mil seiscentos cinquenta e dois euros e vinte e três cêntimos). Com os melhores cumprimentos, Atenciosamente”.
40. Por via da ocupação/utilização do imóvel identificado em 1 a Ré FF, nascida em 3 de Setembro de 1974, recebeu as seguintes importâncias sempre da Ré GG SA: - Janeiro de 2005: €576,00 (período de estudos do projecto do parque eólico); - Janeiro de 2006: €589,00 (período de estudos do projecto do parque eólico); - Janeiro de 2007: €5.062,50; - Janeiro de 2008: €5.184,50; - Janeiro de 2009: €4.324,40; - Janeiro de 2010: €5.276,50; - Janeiro de 2011: €5.383,00; - Janeiro de 2012: €5.579,50; - Janeiro de 2013: €5.741,70; - Janeiro de 2014: €5.761,42.
41. Até à data a Ré FF não respondeu à Autora nem devolveu o dinheiro recebido.
42. Ao prédio em questão, objecto de avaliação em Julho de 2015, por reporte a 1990, foi fixado o valor comercial de €7.432,43 (sete mil, quatrocentos e trinta e dois euros, quarenta e três cêntimos).
43. Em 10 de Maio de 2012, data da celebração da escritura de compra e venda, o imóvel descrito no ponto n.º 1 dos factos provados tinha o valor de mercado de 111 590,00, considerando um rendimento médio anual de € 5 579,50, pelo prazo mínimo de 20 anos.
44. O actual executivo da Junta de Freguesia foi eleito nas eleições autárquicas ocorridas em Setembro de 2013 e apenas depois desta data tomou conhecimento dos factos relacionados com a conduta da Ré FF.

 

Não foram considerados provados os factos constantes das fls. 571 a572 dos autos, que se dão aqui por reproduzidos.

II. Fundamentação

7. Considerando as conclusões do recurso da A., as questões colocadas no presente recurso são as seguintes:

a) Saber se deve julgar-se nulo o contrato de compra e venda por violação da ordem pública e se deve condenar-se a 6.ª e o 7.º réu no pagamento da quantia de € 43 478,52;

b) Saber se, no caso de não ser declarada a nulidade do contrato de compra e venda, devem os 3 primeiros réus ser condenados a pagar o montante de 108 590 euros e se as 6.º e 7.º rés o pagamento da quantia de € 43 478,52.

Estas questões são as mesmas que haviam sido suscitadas no recurso de apelação, com a diferença que naquele recurso também se pedia a reapreciação da matéria de facto – o que se volta a pedir, indevidamente em algumas partes do recurso, pelo menos de forma indirecta.

É de salientar que, no presente recurso, tal como na apelação, não se contesta a decisão da 1ª instância que julgou improcedentes os pedidos de nulidade do contrato-promessa e do contrato de compra e venda com fundamento em simulação, segmentos decisórios que foram já considerados como transitados em julgado, por aplicação do disposto no artigo 628.º do CPC, não obstante as conclusões 16.ª e 17.ª da recorrente fazerem alusão indirecta a esses assuntos (“16.ª – Com todo o respeito, no Acórdão de que ora se recorre, o Tribunal a quo não analisou, nem tomou em devida conta, a desproporção enorme entre o valor de mercado do imóvel e o preço pelo qual o mesmo foi vendido; 17.ª – Aliás, tendo em conta o valor pago (preço) e o valor do imóvel transmitido pode-se até questionar se o negócio celebrado, in casu, foi um negócio oneroso (uma compra e venda), ou se tal negócio está mais próximo de se qualificar como um negócio gratuito. O que, também, implicaria a nulidade do negócio em questão)”. Sobre o ponto nada há a dizer.

8. À semelhança do que sucedeu com a apelação, no recurso de revista, vem contestada a decisão do Tribunal da Relação que:

i) confirmou a sentença ao julgar improcedente o pedido de declaração de nulidade do contrato de compra e venda, como fundamento em violação da ordem pública, com inerente improcedência do pedido de cancelamento do registo da apresentação 2272 de 16/05/2012, relativa ao prédio;

ii) confirmou a sentença ao julgar improcedente o pedido de condenação das rés FF e Empreendimentos Eólicos no pagamento da quantia de 59 066,98 euros;

iii) confirmou a sentença ao julgar improcedente o pedido de condenação dos 3 primeiros réus no pagamento da quantia de € 122 007,21.

9. Sobre a possível ofensa à ordem pública –  n.º 2 do artigo 280.º do Código Civil – disse o Tribunal da Relação, para contestar os argumentos da recorrente, baseados nos factos invocados [i) de que à data da celebração da escritura de compra e venda o imóvel alienado tinha o valor de mercado de € 111 590,00; ii) que o valor recebido por uma só renda anual que a sociedade GG SA paga equivale sensivelmente ao dobro do valor pelo qual se prometeu vender e vendeu o referido imóvel, € 3000,00; iii) que a Junta, ao vender o prédio numa altura em que já estava prescrita a obrigação de o vender, por um preço muito inferior ao valor de mercado dele, prejudicando enormemente os interesses da Junta e favorecendo enormemente os interesses de quem comprou, tornava evidente e que o negócio era nulo, por violação da ordem pública nos termos do n.º 2 do artigo 280.º do Código Civil] que “a pretensão da recorrente não tem amparo no n.º 2 do artigo 280.º do Código Civil. Este preceito estabelece, no que interessa para o caso, que «é nulo o negócio contrário à ordem pública». Como se vê pela epígrafe do artigo – requisitos do objecto negocial – o elemento do negócio cuja conformidade é sujeita ao teste da ordem pública é o objecto do negócio (…) compreende tanto negócios celebrados entre pessoas privadas, como negócios celebrados entre pessoas públicas, como os celebrados entre pessoas privadas e públicas. (…) Quanto ao conceito de ordem pública, a lei também não dá a noção de ordem pública nem dá exemplos de negócios contrários à ordem pública. Tem sido a doutrina e a jurisprudência quem têm definido o conceito. Socorrendo-nos mais uma vez da lição dos autores, páginas 557 e 558 por esta noção deve entender-se “o conjunto de princípios fundamentais, subjacentes ao sistema jurídico, que o Estado e a sociedade estão substancialmente interessados em que prevaleçam e que têm uma acuidade tão forte que devem prevalecer sobre as convenções privadas”. (…) Segue-se do exposto que o negócio contrário à ordem pública não se confunde com negócio celebrado por entidade pública com prejuízo (grande ou pequeno) para os interesses patrimoniais desta entidade, como não se confunde com o negócio cujo fim é contrário à ordem público, como resulta do confronto do n.º 2 do artigo 280.º com o disposto no artigo 281.º do Código Civil. Interpretando o n.º 2 do artigo 280.º do Código Civil, na parte em que se refere ao “negócio contrário à ordem pública” com o sentido que vem sendo exposto, o negócio em causa nos autos seria contrária à ordem pública se o respectivo objecto fosse contrário a algum princípio imperativo. É seguro afirmar-se que esta condição não está verificada.”

A posição jurídica firmada apoiou-se na interpretação da lei – civil e constitucional – tendo sido ponderados os contornos do caso concreto submetido à apreciação do Tribunal.

Do ponto de vista da lei constitucional foi explicitamente focada a disposição do art.º84.º da CRP, sobre os bens do domínio público das autarquias locais, tendo-se afastado a qualificação do prédio objecto dos contratos em discussão como sendo um bem integrante do domínio público. Por se tratar de bem integrante do domínio privado da autarquia foi referida a conclusão jurídica nos termos da qual a alienação do prédio não obedece ao regime jurídico do Decreto-lei n.º 280/2007, de 7 de Agosto, tendo-se assim por correcta a conclusão de que estes negócios de alienação estão apenas sujeitos ao regime do CC, muito em particular, ao art.º 879.º

O tribunal também teve oportunidade de analisar o processo decisório da autarquia local que permitiu a realização dos negócios em causa – quer o contrato promessa, quer o contrato definitivo – com base nos doc.s juntos aos autos, em especial as diversas actas dos diferentes órgãos, à luz dos poderes e competências que a lei atribui a cada órgão da Freguesia, tendo aqui concluído que “a venda de um bem imóvel do domínio privado de uma autarquia local cabe dentro dos seus poderes”.

10. A recorrente contesta a boa administração da justiça decorrente do acórdão proferido, invocando que assim não se respeitam “os dois dos princípios imanentes do nosso ordenamento jurídico, alicerçantes da ordem económica e social, que são os princípios da boa administração e da proteção dos bens públicos, também são aplicáveis aos bens pertencentes ao domínio privado das Autarquias Locais, que são entidades públicas, não se aceitando que o interesse superior da coletividade na boa administração e na proteção dos bens públicos possa ser, fortemente, sacrificado em benefício de interesses particulares.”

Os princípios invocados pelo recorrente patenteiam um conjunto de valores que a colectividade aceita como padrões de actuação referencial fundamentais.

O tribunal da Relação não contesta esses valores, nem tão-pouco os coloca em causa na sua pronúncia.

Porém, o Tribunal da Relação contextualiza os negócios questionados no tempo em que os mesmos foram praticados. Atende às particularidades do caso concreto. Pondera o regime legal aplicável. E conclui pela aplicação do Direito (geral e abstracto) ao caso sob julgamento. A sua conclusão é, assim, no nosso entender correcta, pelos motivos indicados na pronúncia.

11. Considerando que o recorrente insiste na sua argumentação no sentido da invalidade do “contrato de compra e venda de imóvel da Junta de Freguesia, por um preço que corresponde a apenas 2,69% do respetivo valor de mercado”, por ser um “um ato que viola frontalmente o interesse superior da coletividade na boa administração e na proteção dos bens públicos. Chegando-se a um resultado que é inadmissível perante os princípios fundamentais da ordem jurídica portuguesa”, fazendo incidir a sua argumentação sobre a diferença de preço versus valor do bem, colocando dúvidas sobre a correcção do comportamento dos representantes da autarquia e das partes envolvidas nos contratos, em termos que podem suscitar algum alarme na comunidade – dado o sentimento evidenciado pela comunicação social de desconfiança generalizada nos políticos (e de que aqui não se tratará, por não ser a sede própria, nem caber nas atribuições do tribunal) – sempre se justificará colocar em destaque os elementos objectivos com base nos quais se desenvolve o pensamento jurídico que conduz à solução concreta.

Tais elementos são provenientes exclusivamente da prova produzida nos autos – de acordo com as pretensões formuladas pelas partes e segundo aquilo que foi possível demonstrar (a verdade do processo) – que é a matéria-prima com que se trabalha no sistema judicial.

Assim, ficou demonstrado no processo que o prédio em questão foi objecto de promessa de alienação realizada no ano de 1990, pelo valor de 3.000 euros, recebidos uma parte nessa data e o remanescente em 1992, num momento em que o valor apurado do prédio era, em termos matriciais muitíssimo baixo, e em termos de valor de mercado, apurado na actualidade por referência à data da promessa, um pouco superior ao dobro do valor do negócio acordado, sendo que o prédio era apenas terreno rochoso incultivável e que o valor do negócio foi considerado pela autarquia como útil para a realização de uma obra de interesse comunitário – centro cívico.

Os factos provados correspondentes são, nomeadamente, os seguintes:
N.6 - E no dia 10 de Maio de 2012, os Réus AA, BB e CC outorgaram escritura pública de compra em que, na qualidade de membros da Junta da Freguesia de ..., declaram vender o prédio identificado em 1 a EE, pelo preço de €3.000,00 (três mil euros).
N.º8 - Na acta n.º 29 que documentou a reunião do Plenário da Freguesia de Feirão, realizado a 2 de Outubro de 1990, que foi presidida pelo então Presidente da Junta de Freguesia de ... II (pai do ora Réu), foi deliberado proceder à venda de 30.000 m2 de monte do prédio rústico do Lugar ...
, da ex-freguesia de Feirão, concelho de Resende, a destacar da inscrição matricial com o então artigo 833 e bem assim conceder poderes aos elementos da Junta de Freguesia (Presidente –II; Secretário – JJ e Tesoureiro – LL) para assinarem o contrato promessa.
N.º9 - Esta deliberação foi tomada pelo Plenário da Freguesia da Autora, aprovada pela quase totalidade dos 112 eleitores que dele participaram, no caso 108 votos favoráveis e 4 abstenções.
N.º10 - Ainda o Plenário em causa concedeu à Junta de Freguesia do Feirão poderes para, nomeadamente, proceder "...à consequente venda, a quem entenderem e pelo preço que tiverem por conveniente...assinando para o efeito tudo o que se torne necessário".
N.º11 - A venda em causa foi deliberada para "...obter meios financeiros para continuar as obras do CENTRO CÍVICO DE ..., nesta freguesia, que estão em curso e em que a freguesia se encontra muito empenhada, dada a sua necessidade para responder a inúmeras carências locais".
N.º13 - A 15 de Outubro de 1990, todos os elementos da Junta de Freguesia de ... (Presidente – II; Secretário – JJ; e Tesoureiro – LL) assinaram contrato-promessa de compra e venda do citado prédio a favor de DDD e sua irmã HH promessa de venda pelo preço de €2.992,79 (no correspondente valor de seiscentos mil escudos).
N.º 14 - Com a celebração do contrato de promessa de compra e venda referido no anterior artigo a Autora recebeu logo 500.000$00 e, apesar de o pagamento dos restantes Escs. 100.000$00 haver sido reservado para a escritura do contrato prometido, reconhecendo as promitentes compradoras a necessidade premente da Junta de Freguesia por se encontrar "muito empenhada na construção do seu Centro Cívico", anteciparam o pagamento dos restantes Escs. 100.000$00 que entregaram em 28 de Abril de 1991.
N.º15 - A 28 de Abril de 1991, reuniu a Junta de Freguesia (Presidente – II; Secretário – JJ e Tesoureiro – LL) e anunciou a celebração do contrato-promessa supra identificado e de que a outorga da escritura seria feita quando as promitentes compradoras assim o desejassem e fosse possível, tudo nos termos da acta no.º 33.
N.º 16 - Ao tempo o prédio constituía um "terreno rochoso incultivável", do qual não era possível extrair qualquer rendimento para além da recolha de matos e erva.
N.º18 - A Junta, após ter recebido a totalidade do preço, o que aconteceu em 28 de Abril de 1991, passou a considerar que o prédio pertencia às promitentes compradoras, não mais se interessou pela sua exploração e quem passou a tomar conta dele foram as rés, através da sua mãe.
N.º21 - Decorridos mais de dez anos - cerca de finais de 2001 - com a expansão da indústria da produção de energia eléctrica a partir de energias renováveis e por processos de co-geração a Junta de Freguesia de ... foi abordada para a "colocação de aerogeradores" em terrenos por si administrados.
N.º 23 - No prédio alienado ainda hoje não se encontra instalada qualquer torre eólica e ele, após o seu destaque, foi objecto de avaliação fiscal a qual, realizada em 1996, aquando da sua inscrição, atribuiu-lhe um valor de € 29,93.
N.º 30 - Por contrato celebrado em 8 de Setembro de 2003 as mesmas co-Rés, também representadas por aquela procuradora prometeram vender à Ré FF - que àquelas prometeu comprar -o prédio ora reivindicado pela Autora e identificado em 1, pelo preço de €3.000,00, por conta do qual logo foi pago o sinal de €1.000,00, devendo o restante ser liquidado na data da escritura definitiva de compra e venda, a ser outorgada logo que a promitente compradora o desejasse e fosse possível obter os documentos necessários para o efeito.
N. 32 - A partir da celebração do contrato-promessa entre EEE, na qualidade de procuradora das rés DDD e CCC, e FF, na qualidade de promitente-compradora, em 8 de Setembro de 2003, foi esta quem passou a tomar conta do prédio, à vista de toda a gente e sem qualquer oposição, como se de seu bem se tratasse, e na convicção de que não ofendia direitos de terceiro.
N.º 42 - Ao prédio em questão, objecto de avaliação em Julho de 2015, por reporte a 1990, foi fixado o valor comercial de €7.432,43 (sete mil, quatrocentos e trinta e dois euros, quarenta e três cêntimos).
N.º 43 - Em 10 de Maio de 2012, data da celebração da escritura de compra e venda, o imóvel descrito no ponto n.º 1 dos factos provados tinha o valor de mercado de 111 590,00, considerando um rendimento médio anual de € 5 579,50, pelo prazo mínimo de 20 anos.

 Mais vem demonstrado nos autos que:

i) na época do negócio não se identificava a possibilidade de utilização do prédio para instalação de aerogeradores, o que veio a surgir como possibilidade superveniente, a partir do ano 2000, época em que a A. se comportava como não sendo proprietária, nem possuidora do bem;

ii) em 1990, os membros da Junta de Freguesia eram os seguintes: Presidente da Junta de Freguesia de ... - II (pai do ora Réu AA); Secretário – JJ; Tesoureiro – LL; 

iii) em 2012, os membros da Junta de Freguesia eram os Réus AA, BB e CC; no contrato promessa as promitentes compradoras eram HH e a sua irmã, DDD;

iv)  o contrato prometido foi celebrado com a promitente compradora, HH, tendo a outra promitente indicado que prescindia do seu direito em favor da irmã, com a concordância do seu marido;

v) existe uma relação familiar entre a R., FF, II e AA

.

E não vem provado:

i) que existissem entre as partes envolvidas no negócio de promessa e na escritura (EE e a sua irmã, DDD) relações familiares ou de afinidade com os representantes da junta de freguesia, RR. no processo;

ii) que tivesse havido negócio simulado;

iii) que existam indícios de aproveitamento ilícito ou participação em negócio ou elementos suspeitos que possam levar a questionar a real e esclarecida vontade das partes em pretender realizar o negócio nos termos acordados;

iv) que existissem interessados na aquisição do prédio alienado disponíveis para realizar a sua compra na mesma data pelo valor indicado como sendo o de mercado – mais de 7.000 euros

A alegação, em conclusões da recorrente, no sentido dos pontos 36 e 37, não alteram os factos provados, nem acrescentam elementos jurídicos relevantes para a decisão da causa.

12. Do exposto resulta que este tribunal entende que a validade dos negócios se afere pelo momento em que foram realizados, à luz da lei vigente nessa mesma data. Nada indicando que pudesse afectar a referida validade à época (1990 e 2012), a modificação do valor do prédio por alteração de circunstâncias não pode ser invocada como fundamento de invalidade do negócio. Na verdade, nos autos colhe-se a ideia clara de que o valor do prédio hoje é muito superior ao valor do negócio que conduziu à sua alienação, apontando-se como indícios que poderão justificar a sua valorização a procura de terrenos pelas empresas de energia eólica, dispostas a pagar rendas pela utilização de prédios inaptos ou não utilizados para outros fins, rendas que são apelativas – sobretudo se se considerar que durante imensos anos tais prédios nunca geraram rendimentos semelhantes – ou até a realização de obras e benfeitorias como abertura de vias ou vedação de terrenos.

13. Dos autos também se comprova que o prédio em 1990 teria um valor de mercado na ordem dos 7.000 euros. Mas nada consta no sentido de se demonstrar que esse valor seria um valor efectivamente passível de ser obtido numa transacção com outros compradores e este elemento é fundamental para se poder dizer que o valor de mercado é este ou aquele.

Um valor de mercado pressupõe um encontro entre a oferta e a procura, capaz de dar origem a um negócio. Não basta avaliar o bem em abstracto – apurar o seu valor em termos tanto possíveis objectivos para se concluir que esse é o valor de mercado. Até porque para se falar em valor de mercado – em sentido próprio – teríamos de encontrar uma plataforma de negociação que conduzisse ao apuramento e divulgação do referido valor de mercado, à semelhança do que sucede com alguns bens transacionados em mercado com o valor a servir de referencial legal – situações que encontramos nos mercados de valores mobiliários, quando existe uma cotação oficial que a lei tome como critério de aferição do valor do bem.

 No caso dos imóveis não existe um mercado nesse sentido. O mercado surge quando alguém está interessado em vender e há compradores interessados em adquirir o bem, acordando-se o valor.

Por outro lado, o negócio tem de ser contextualizado no tempo e no espaço: é um negócio de 1990; é um prédio rústico, situado numa freguesia predominantemente rural.

Em face do exposto, e da prova produzida, não resulta que os negócios realizados – quer a promessa, quer a alienação – tenham sido realizadas com violação da lei, nem sequer do art.º 280.º do CC.

14. Também não colhe o argumento da recorrente que invoca a alínea h), do n.º 1, do artigo 34.º e da alínea i), do n.º 2, do artigo 17.º da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro (que estava em vigor a 10/05/2012), indicando que a venda de imóvel de valor superior a € 75.521,60 só poderia ser realizada mediante prévia autorização da Assembleia de Freguesia.

Não se contesta o sentido normativo referido – e a necessidade de autorização prévia das assembleias de freguesia – para certos actos de alienação de bens do domínio privado das autarquias locais.

Contesta-se que uma lei que apenas passou a exigir este requisito depois de o negócio base dos autos ter sido outorgado – o contrato-promessa – se possa pretender aplicar ao mesmo, inviabilizando o cumprimento das obrigações assumidas pelas partes na data da celebração da escritura pública – que é o acto de cumprimento dos deveres assumidos e não o momento de aferição da sua legalidade.

Faz-se notar que a exigência de tal requisito como elemento instrutório necessário à escritura, em 2012, não teria qualquer razoabilidade, considerando que se a parte interessada no cumprimento tivesse recorrido à execução específica do contrato-promessa tal formalidade não lhe seria imposta nesse âmbito.

15. A conclusão segundo a qual o prédio hoje vale mais de 100.000 euros também não é relevante para aferir da validade do negócio realizado em 1990 – a promessa de compra e venda – ou da venda efectiva – em 2012. É que é por referência ao ano de 1990 que o conteúdo dos negócios e a sua validade tem de ser vista.

Em 2012, a escritura pública de venda traduziu apenas o cumprimento das obrigações assumidas pela Junta de Freguesia, não sendo este momento o relevante para apurar os contornos do negócio.

Pode até dizer-se que, se a Junta de Freguesia não tem outorgado a escritura – como pretende a Autora ser a posição correcta –, estaria sujeita a ser demandada por incumprimento do contrato ou ver requerida a execução específica, com as inerentes consequências daí resultantes.

Não se identifica assim nenhum fundamento para contestar, repita-se, à luz dos factos provados, a atitude da A. ao cumprir voluntariamente a promessa feita em 1990, que, agora contesta, constituindo este seu comportamento uma atitude de venire contra factum proprio, atentatória da boa-fé – art.º334.º do CC, matéria que é do conhecimento oficioso deste tribunal.

16. A A. deliberou a realização do negócio em 1990, pelo valor de 3.000 euros, que recebeu na íntegra, tendo estado 22 anos sem realizar a escritura de venda, que vem a efectuar em 2012, e a impugnar em 2014.

Desde 1990 que a A. se desinteressou do prédio – facto provado –, o que se percebe:  se prometeu vendê-lo e recebeu o seu valor integral passou a comportar-se como não sendo proprietária.

Desde 1990, que as promitentes compradoras se comportaram como proprietárias do imóvel, tendo assumido a sua posse – controlo material em nome próprio – público e pacífico; as promitentes compradoras vieram mesmo a prometer vender o prédio à ora Ré FF – o que também atesta que, com essa promessa, confirmam a sua qualidade de possuidoras em nome próprio, posse que transferem para FF por via desse acordo. É, pois, nessa sequência que FF vem a comportar-se como possuidora do prédio e a receber renda da ré pela ocupação do prédio, desde Janeiro de 2005 (rendas no montante de € 43 478,52).

Note-se ainda que o negócio de promessa de venda do prédio outorgado pelas promitentes compradoras em favor de FF envolve a contrapartida de 3.000 euros, exactamente igual ao valor pelo qual as duas irmãs haviam prometido comprar o prédio à A.

17. Acompanha-se aqui mais uma vez a posição assumido pelo Tribunal da Relação quando afirmou:

“Com base na matéria assente pode afirmar-se que a recorrente foi proprietária do prédio em questão até 10 de Maio de 2012, data em que, por efeito do contrato de compra e venda celebrado com a ré DDD, transmitiu para esta a propriedade sobre tal bem. Já não assiste razão à recorrente quando sustenta que esteve na posse de tal bem até à data da venda. Apesar de o contrato-promessa de compra e venda do imóvel, celebrado em 1990, com as rés DDD e CCC não tenha tido por efeito a transmissão da posse sobre tal bem, provaram-se factos que apontam no sentido de que, pelo menos a partir do momento em que a autora recebeu a totalidade do preço, o que sucedeu em 28 de Abril de 1991, a autora perdeu a posse do imóvel por a ter cedido às promitentes vendedoras. Com efeito, a prova de que a Junta, após ter recebido a totalidade do preço, o que aconteceu em 28 de Abril de 1991, ter passado a considerar que o prédio pertencia às promitentes compradoras, não mais se ter interessado pela sua exploração e quem passou a tomar conta dele foram as rés, através da sua mãe, caracteriza a perda da posse pela sua cedência, tal como está previsto na alínea c), do n.º 1 do artigo 1267.º do Código Civil. Posse que por seu turno se deverá considerar cedida à ré FF, a partir da celebração do contrato-promessa entre ela e as rés DDD e HH, pois apurou-se que a partir da celebração de tal contrato em 8 de Setembro de 2003, foi a ré FF quem passou a tomar conta do prédio, à vista de toda a gente e sem qualquer oposição, como se de seu bem se tratasse, e na convicção de que não ofendia direitos de terceiro. Sendo esta posse de caracterizar como posse de boa fé, considerando a noção de posse de boa fé constante do n.º 1 do artigo 1260.º do Código Civil, e a prova de que a ré FF passou a tomar conta do prédio, na convicção de que não ofendia direitos de terceiro, assistia-lhe a faculdade de fazer suas as rendas que lhe foram pagas pela ré Empreendimentos até ao dia em que soubesse estar a lesar com a sua posse o direito de outrem, por aplicação do disposto no n.º 1 do artigo 1270.º do Código Civil. Ora não há prova de que a ré sabia que estava a lesar o direito de propriedade da autora, enquanto esta foi proprietária do imóvel em questão, isto é, até 12 de Maio de 2012. Daí que não tenha fundamento legal a alegação da recorrente de que, enquanto ela foi proprietária, a ré FF recebeu indevidamente as rendas e que se locupletou injustificadamente à custa do património dela recorrente. A pretensão da recorrente também não tem amparo na alegada violação do seu direito de propriedade sobre o prédio.”

18. E também não se considera relevante o argumento que a recorrente pretende seja procedente ao afirmar “se a Ré FF era uma possuidora de boa-fé, que exercia a sua posse à vista de todos e na convicção de que não ofendia direitos de terceiro, porque é que, a 10 de Maio de 2012, o contrato de compra e venda não foi realizado tendo a mesma como compradora?”

Esta pergunta tem uma resposta evidente: o contrato-promessa obriga à celebração do contrato definitivo as partes naquele interveniente. Não tendo sido aqui demonstrado o consentimento da A. (prévio ou posterior à cessão da posição contratual das promitentes compradoras, com as inerentes consequências legais), o promitente vendedor deve outorgar o contrato definitivo com quem foi parte nele, sendo que, no caso, tendo uma das promitentes renunciado à sua posição em favor da outra, a outorga do contrato definitivo com a promitente restante assegura a regularidade do cumprimento das obrigações assumidas pelas partes no negócio – cf. art.º424.º e ss do CC.

Pelo exposto, improcede a pretensão da recorrente de pretender receber as rendas que foram pagar à R. FF.

19. No que respeita ao pedido de condenação dos 3 primeiros réus a pagar à autora a quantia de € 108 590,00, que assenta no pressuposto de que, numa altura em que já não existia obrigação jurídica de vender o imóvel, os três primeiros réus, então membros da junta de freguesia, venderam o imóvel por preço que correspondia a cerca de 2,68% do seu valor de mercado; que, os réus tinham o dever de promover uma avaliação independente e isenta do imóvel, a fim de lhe ser atribuído um valor comercial, tendo em conta o rendimento anual superior a 5000,00 e que ao venderem o imóvel pelo preço por que o fizeram provocaram à autora um dano no valor de pelo menos 108 590 euros, que corresponde à diferença entre o valor comercial dele e o valor pelo qual ele foi vendido, cumpre dizer que se concorda plenamente com a decisão da Relação e com os motivos nela indicados, fundamentos aos quais se fazem acrescentar os supra indicados em todo este acórdão, para rebater a posição invocada pela recorrente.

Quanto à posição do Tribunal da Relação, recorda-se que foi equacionada e analisada a problemática da eventual responsabilidade civil dos titulares de cargos políticos pelos actos praticados no exercício das suas funções, porquanto: i) os 3 primeiros réus eram membros da junta de freguesia, que é um dos órgãos representativo de autarquia local, sendo considerados membros de cargos políticos, por aplicação da alínea 1), do n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho; i) o acto onde a autora/recorrente faz radicar a responsabilidade dos réus – venda do imóvel – foi praticado por eles no exercício das suas funções; iii) a responsabilidade que lhes está a ser exigida é responsabilidade civil extracontratual; iv) quem lhe está a exigir a responsabilidade civil não é um terceiro, mas a pessoa colectiva territorial em nome da qual fizeram a venda; tendo sido dada uma resposta negativa.

Disse-se aí:

Resulta deste preceito (artigo 23.º, n.º 1) que os titulares de cargos políticos respondem civilmente perante a pessoa colectiva pública se lesarem em negócio jurídico os interesses patrimoniais que lhe cumpra, em razão das suas funções administrar, fiscalizar, defender ou realizar e se a lesão for feita com a intenção de obter para si ou para terceiro uma participação económica ilícita. No caso, ainda que se entendesse que a venda havia sido lesiva para os interesses patrimoniais da autarquia, a responsabilidade dos três primeiros réus seria de afastar pois não se provou que a venda foi feita com a intenção de obter para eles ou para terceiro uma vantagem económica ilícita.

A verdade é que, considerando as circunstâncias relativas à venda, ela não é sequer de considerar como negócio lesivo para os interesses patrimoniais da autarquia.”

Esta decisão está correcta e merece apoio integral, inclusive na conclusão seguinte:

 “Considerando estas circunstâncias, percebe-se a razão pela qual o prédio foi vendido por um preço inferior ao seu valor de mercado, em 2012. O prédio foi vendido pelo preço de 600 000$00 por ter sido esse o preço convencionado no contrato-promessa celebrado entre a autora, na qualidade de promitente-vendedora e a ré DDD, na qualidade de promitente-compradora. Ora, o cumprimento de um contrato válido não configura qualquer dano. Daí que a celebração da escritura de compra e venda, para cumprimento do contrato-promessa não seja de configurar como dano.

Por outro lado, para se apurar se o negócio era lesivo para alguma das partes, por haver desproporção entre o preço e o valor de mercado d bem, devia ter-se por referência o tempo em que foi celebrado o contrato-promessa e não o tempo em que foi celebrado o contrato definitivo.

Ora, considerando o tempo em que foi celebrado contrato-promessa é inequívoca a proporcionalidade entre o preço e o valor do mercado, pois provou-se que, ao tempo da celebração do contrato-promessa, o prédio constituía um terreno rochoso incultivável do qual não era possível extrair qualquer rendimento para além da recolha de matos e erva e que, após o destaque da área de 30 000 m2, tal área foi objecto de avaliação fiscal em 1996 da qual resultou um valor tributável de € 29,93.

Em terceiro lugar, tendo a venda sido realizada em cumprimento de um contrato-promessa, a reposta à questão de saber se o contrato é contrário aos interesses das populações deve ter também por referência o tempo em que foi celebrado o contrato-promessa. Ora, tendo por referência este tempo, é seguro afirmar-se que o contrato foi celebrado para prosseguir um interesse das colectividades locais, concretamente obter meios financeiros para continuar as obras do Centro Cívico de ...

Em quarto lugar, a circunstância de o contrato definitivo ter sido celebrado cerca de 22 anos depois da celebração do contrato-promessa de compra e venda também não representa a violação de qualquer dever por parte dos membros da junta de freguesia que intervieram na escritura de compra e venda.”

Conclusão à qual se acrescenta o argumento supra indicado sobre o sentido de valor de mercado.

20. A recorrente invoca igualmente que o contrato definitivo não devia ter sido outorgado, por estar prescrita a obrigação.

A este argumento também respondeu o Tribunal da Relação com a indicação de “que a prescrição de qualquer obrigação não constitui o devedor na obrigação de não cumprir. Completada a prescrição, tem o beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento ou de se opor por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito (n.º 1 do artigo 304.º do Código Civil). Se for realizada espontaneamente a prestação em cumprimento de uma obrigação prescrita, ainda que seja feita com ignorância do regime da prescrição, a prestação realizada não pode ser repetida (n.º 2 do artigo 304.º do Código Civil).”

A interpretação do Tribunal da Relação não merece censura, pelos motivos indicados no acórdão, que estão correctos.

21. A recorrente pretende ainda responsabilizar os três primeiros réus pelo negócio realizada indicando que não mandaram fazer uma prévia avaliação do prédio antes da venda.

Sobre o argumento, o Tribunal da Relação voltou a decidir bem, indicando (que se transcreve quase na íntegra):

1- que a “recorrente não diz expressamente qual a fonte deste dever”;

2-  “resulta da remissão que ela faz para o artigo 149.º da petição e do contexto deste artigo, que tal dever, segundo ela, resultava do Decreto-lei n.º 280/2007, de 7 de Agosto, que estabelece o regime jurídico do património imobiliário público;

3- É exacto que tal diploma prevê que a venda de imóveis do domínio privado do Estado e dos institutos públicos cuja propriedade não seja necessária à prossecução de fins de interesse público e cuja manutenção na sua propriedade não seja conveniente e a venda de imóveis afectos a fins de interesse público desde que fique assegurada a continuidade da prossecução de fins dessa natureza sejam precedidas do procedimento de avaliação (artigo 79.º);

4- Sucede que esta norma não é aplicável ao caso, pois não está em causa a venda de um imóvel do domínio privado do Estado e dos institutos públicos.

5- Está em causa a venda de um imóvel do domínio privado de uma autarquia.”

Não estando demonstrado que existisse um dever jurídico de promover a avaliação do prédio – em 1990 – data em que os contornos do negócio foram realizados – ainda que hoje seja quase indiscutível que essa avaliação deve ser (recomenda-se que seja) pedida – não se podem extrair ilacções aplicáveis a factos passados – com cerca de 24 anos, à data da entrada do processo em juízo.

Não procede a conclusão “45.ª – Sendo que, enquanto para efeitos de preenchimento dos elementos subjetivos do tipo criminal de participação económica em negócio se exige o dolo específico da intenção de obter para eles ou para terceiro uma vantagem económica ilícita, no que se refere à responsabilidade civil dos titulares de órgãos políticos, a mesma verifica-se quando (estando preenchidos os restantes pressupostos) estes tenham agido com dolo ou com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se encontravam obrigados em razão do cargo”, na medida em que não esteja demonstrada uma actuação com dolo ou com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se encontravam obrigados em razão do cargo” – essa prova não se encontra no processo.

III. Decisão

Pelas razões supra expostas, julga-se improcedente o recurso confirmando-se a decisão recorrida.

Condena-se a recorrente nas custas do recurso

Lisboa, 27 de Fevereiro de 2018

                

 Fátima Gomes

Garcia Calejo

Helder Roque