Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A1765
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ALVES VELHO
Descritores: UNIÃO DE FACTO
PENSÃO POR MORTE
Nº do Documento: SJ200607060017651
Data do Acordão: 07/06/2006
Votação: UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : - Em acção para reconhecimento da titularidade do direito às prestações por morte de beneficiários do regime da Segurança Social das pessoas que se encontrem na situação de união de facto, impende sobre o autor o ónus de alegar e provar que se encontra nas condições exigidas pelo art. 2020º do Código Civil;
- Todos e cada um dos requisitos substantivos referidos no preceito são elementos constitutivos do direito invocado pelo Autor, a demonstrar através dos factos que preenchem cada uma das condições estabelecidas no artigo, sejam eles positivos ou negativos;
- A impossibilidade de prestação de alimentos pelos familiares elencados no art. 2009º apresenta-se como um pressuposto ou condição substantiva da titularidade do direito às prestações a par das demais cumulativamente exigidas pelo art. 2020º-1, não configurando qualquer excepção, nomeadamente na modalidade de facto impeditivo, relativamente aos requisitos enunciados no primeiro segmento do preceito.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. - "AA" intentou contra Instituto de Solidariedade e Segurança Social/Centro Nacional de Pensões acção declarativa para pedir o reconhecimento da titularidade das prestações por morte de BB.
Alegou ser solteiro, mas ter vivido em união de facto, desde 1946, com a BB, que não deixou bens, união de que existem duas filhas. Que estas não têm rendimentos que lhes permitam prestar assistência ao A., que também não tem pais vivos ou irmãos.

O Réu contestou, impugnando por desconhecimento a factualidade alegada.

Posteriormente, o A. rectificou o alegado na petição inicial, juntando prova da existência de dois irmãos, que disse viverem da reforma, com bastantes dificuldades económicas.

A acção foi julgada procedente, decisão que a Relação confirmou.

O ISSS pede ainda revista, insistindo na revogação do decidido.
Para tanto, no essencial, conclui:
- O Recorrido não alegou, nem provou que não tem ascendentes e irmãos que possuam recursos económicos para o auxiliarem;
- Também não alegou, nem provou a inexistência ou insuficiência de bens na herança do "de cujus";
- Quem invoca um direito em juízo tem de fazer prova dos factos constitutivos do direito alegado, quer os factos sejam positivos quer negativos.
Não tendo ficado provada a impossibilidade de os familiares obrigados a alimentos - ascendentes e irmãos - nos termos das als. c) e d) do art. 2009º C. Civil de suprirem a necessidade de alimentos do A. e que a herança inexista ou seja insuficiente, a acção tinha de improceder.

O Recorrido apresentou resposta.

2. - Questão prévia. Objecto do recurso.

O acórdão recorrido apreciou o mérito da acção apenas em sede de resolução da questão do ónus da prova do requisito impossibilidade de obtenção de alimentos por parte dos familiares referidos nas als. a) a d) do art. 2009º C. Civil, tendo confirmado a sentença com fundamento em que caberia ao R. provar que tais parentes existem e que se encontram em conduções de prestar alimentos ao A., como factos impeditivos do direito deste.
Foi também essa, e apenas essa, a questão suscitada na apelação, como claramente mostram as respectivas alegações e conclusões.

Apesar disso, o Recorrente suscita agora a questão da prova de um outro pressuposto, que será da inexistência ou insuficiência de bens na herança do falecido.

Ora, como é sabido, o nosso sistema jurídico adoptou, em sede de recursos, o modelo de revisão ou de reponderação, o que se traduz em que, como regra, o tribunal de recurso não pode pronunciar-se sobre matéria não alegada perante o tribunal recorrido ou sobre pedidos não formulados perante ele.
Na verdade, como estabelece o art. 676º-1 CPC, os recursos são meios de impugnação das decisões judiciais e não meios de julgamento de questões novas, sendo, há muito, jurisprudência constante que os recursos se destinam à reapreciação de questões anteriormente submetidas à apreciação do tribunal inferior e não à criação de decisões sobre matéria nova (cfr. TEIXEIRA DE SOUSA, "Estudos sobre o Novo Processo Civil", 395; AMÂNCIO FERREIRA, "Manual dos Recursos...", 138).
Ressalvadas ficam as questões de conhecimento oficioso, designadamente as relativas a direitos indisponíveis.

A questão ora colocada apresenta-se, assim, como questão nova, não abrangida pela excepção da oficiosidade de conhecimento.

Está, consequentemente, vedada neste recurso a apreciação do respectivo objecto.

3. - Mérito do recurso.

3. 1. - O objecto do recurso resulta, como antes decidido, limitado à questão das consequências da alegada falta de alegação e prova, pelo Autor, de não ter ascendentes ou irmãos que o possam auxiliar.
3. 2. - Em sede de matéria de facto o que releva é justamente a ausência, entre os factos provados, de qualquer alusão a ascendentes do Autor, bem como à situação e capacidade económica dos irmãos do mesmo Autor.

No mais, apesar da irrelevância para a apreciação do objecto do recurso, dão-se por reproduzidos os factos tidos como provados pelas Instâncias.

3. 3. - Antes de mais importa deixar duas notas destinadas a corrigir imprecisões na posição do Recorrente e clarificar a situação tal como a reflectem os autos:
- A primeira, quanto aos ascendentes, para referir que o A. alegou que "não tem pais vivos - o A. tem 85 anos de idade", matéria que foi desconsiderada no despacho de condensação e na sentença. Alegada, como está, a matéria, sem pronúncia das Instâncias sobre a mesma, nada impediria este Tribunal de, ao abrigo da faculdade excepcionalmente admitida no art. 729º-3 CPC, ordenasse a respectiva apreciação, ampliando a base de facto para aplicação do direito;
- A segunda, no tocante aos colaterais, para dizer que o A., tendo inicialmente alegado não ter irmãos, veio corrigir essa afirmação já na fase de instrução, declarando ter dois, cujas certidões de registo de nascimento juntou, dando conta que esses irmãos "vivem das respectivas pensões de reforma, com bastantes dificuldades económicas, sendo que um deles está acamado". Designada, depois, data para julgamento não foi feito uso do poder-dever previsto no art. 650º-2-f) CPC, com referência ao n.º 3 do seu art. 264º e, na sentença, considerou-se apenas a existência dos dois irmãos, factos documentalmente provados que, no acórdão, a Relação omite. Também aqui poderia ser caso de lançar mão da possibilidade prevista no dito art. 729º-3 se não se erguesse, desde logo, o incontornável obstáculo de transcrita alegação do A. ser de natureza genérica e conclusiva, desprovida da inclusão de factos materiais e concretos susceptíveis de integrarem um juízo de impossibilidade de prestação de alimentos por parte dos ditos irmãos do A..

Fica, pois, avançado que, apesar do que adiante se decidirá sobre o requisito, natureza dos factos que o preenchem e respectiva prova, não há condições para ampliação da matéria de facto, que falta, quanto ao dever de prestação de alimentos pelos irmãos, o que arreda a possibilidade também quanto aos ascendentes, por a tornar inútil.

3. 4. - A considerar, assim e apenas, para efeitos de conhecimento do mérito do recurso, que não está demonstrado que os irmãos do Autor não têm possibilidades de lhe prestarem alimentos.

A regulamentação jurídica do direito às prestações por morte de beneficiários do regime geral da segurança social das pessoas que se encontrem na situação de união de facto está contida, ao que aqui releva, nos arts. 8º do DL n.º 322/90, de 18/10; art. 3º do Dec.-Reg. 1/94, de 18/1 e art. 6º da Lei n.º 7/2001, de 11/5.

Segundo este último preceito, beneficia do direito às prestações, na eventualidade de morte do beneficiário, "quem reunir as condições constantes do art. 2020º do Código Civil", ou seja, quem, no momento da morte de pessoa não casada ou separada judicialmente, vivia com ela há mais de dois anos em condições análogas à dos cônjuges, se não puder obter os alimentos de que necessita das pessoas mencionadas nas als. a) a d) do art. 2009º.
Requisitos da atribuição das prestações de sobrevivência serão, então:
- Que o companheiro do requerente tenha falecido no estado de solteiro, divorciado ou separado de pessoas e bens;
- Que a união, em condições análogas às dos cônjuges, tenha perdurado por mais de dois anos;
- Que o Autor tenha necessidade de alimentos; e,
- Que os não possa obter do seu cônjuge ou ex-cônjuge, ou de descendentes, ou ascendentes ou de seus irmãos.

Esta impossibilidade de prestação de alimentos pelos familiares elencados no art. 2009º, nomeadamente pelos irmãos, apresenta-se, assim, como um pressuposto ou condição substantiva da titularidade do direito às prestações a par das demais cumulativamente exigidas pelo art. 2020º-1, não configurando, a nosso ver, qualquer excepção, nomeadamente na modalidade de facto impeditivo, relativamente aos requisitos enunciados no primeiro segmento do preceito.
Não se trata de um contra-facto que venha paralisar a eficácia do direito, obstando à sua válida constituição ou exercitabilidade, ou que, em momento posterior, lhe altere ou suprima os efeitos. Trata-se, antes, de facto que, por integrar os elementos constitutivos do direito impede o seu próprio nascimento, obstando não apenas à validade da sua constituição ou exercício, mas à sua formação e existência.

Todos e cada um dos requisitos substantivos referidos são elementos constitutivos do direito invocado pelo Autor, a demonstrar através dos factos que preenchem cada uma das condições estabelecidas no artigo, sejam eles positivos ou negativos - art. 342º-1 C. Civil.

De resto, se dúvidas houvesse quanto à natureza dos factos, sempre haveriam de ser considerados como constitutivos, sendo que a eventual dificuldade de prova de factos negativos não autoriza a inversão do respectivo ónus, que a lei limita aos casos em que ela mesma o determina - - arts. 342º-3 e 344º C. Civil.

Conclui-se, pois, que impendia sobre o Autor o ónus de alegar e provar que se encontra nas condições exigidas pelo art. 2020º, entre as quais a de que não pode obter alimentos dos irmãos (cfr., neste sentido, entre muitos, os acs. deste STJ de 18/11/04, de 31/5/05 e de 22/6/05 disponíveis no ITIJ , de 8/11/05-proc. 3068/05-1 e de 14/2/06-proc. 4345/05-1).

Não demonstrado o requisito de direito substantivo e, como dito supra, não havendo alegação factual que permita a ampliação da base fáctica, a pretensão do Autor-recorrido não pode proceder.
Procedem, nestes termos, em parte, as conclusões do Recorrente.

4. - Decisão.

Pelo exposto, decide-se:
- Conceder a revista;
- Revogar a decisão impugnada;
- Julgar a acção improcedente e absolver o Réu Instituto de Solidariedade e Segurança Social/Centro Nacional de Pensões do pedido contra ele formulado pelo Autor AA; e,
- Condenar o A. nas custas, sem prejuízo do benefício que lhe foi concedido.


Lisboa, 6 de Julho de 2006
Alves Velho
Urbano Dias
Moreira Camilo (votei a decisão, tendo em conta o incumprimento por parte do autor.)