Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02B4734
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NASCIMENTO COSTA
Nº do Documento: SJ200302130047347
Data do Acordão: 02/13/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 12664/01
Data: 01/12/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : 1- A pessoa que viole uma norma jurídica não poderá , sem abuso, exercer a situação jurídica que essa mesma norma lhe tivesse atribuído ("tu quoque...").
2 - A justificação e a medida do "tu quoque..." estão nas alterações que a violação primeiro perpetrada tenha provocado no sinalagma.
3 - Tendo o R., ardilosamente, mantido em seu poder o documento enviado para assinatura pela firma que lhe vendera o veículo (há muito na sua posse ), vindo depois invocar a nulidade do contrato devida á falta de assinatura, ao ser-lhe exigido o pagamento, incorreu ele em abuso do direito naquela modalidade, não merecendo protecção a sua posição.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


"A" instaurou, em 27-10-97, contra B e mulher C, os presentes autos de acção declarativa de condenação com processo comum e forma ordinária, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de Esc. 10.556.520$00, acrescida de juros de mora à taxa legal até integral pagamento, sendo os juros já vencidos no valor de Esc. 703.265$00.

Para tanto, alegou, em síntese:
- vendeu ao R. marido um camião, no valor de 10.252.080$00, tendo este pago de imediato 1.500.000$00 e ficado obrigado ao pagamento de 24 prestações mensais e sucessivas de 364.670$00 cada;
- por incumprimento do R., a A. piropos acção judicial, na qual pediu a resolução do contrato e a entrega do veículo, tendo a acção sido julgada procedente;
- por acordo entre as partes, a A. renunciou ao direito a considerar resolvido o contrato, continuando o R. na propriedade do veículo e pagando a quantia total de 11.556.620$00, através de uma prestação inicial de 500.000$00 que o R. pagou e 12 prestações trimestrais e sucessivas de 879.710$00 cada;
- o R. não pagou estas prestações, sendo responsável pelo pagamento das prestações vencidas e não pagas, bem como dos juros de mora respectivos;
- a R. mulher é também responsável pelo pagamento da quantia peticionada, por a dívida ter sido contraída em proveito comum do casal, já que o camião destinava-se à actividade de transportador do R.

Os RR. apresentaram contestação, na qual alegam, em resumo, que estão apenas em dívida com o valor de 4.376.000$00;
que a sua actividade ficou diminuída em virtude de um acidente sofrido com o camião, pelo que teve dificuldades económicas para proceder ao pagamento das prestações a que se obrigou;
que a A. se obrigou a entregar-lhe os documentos do veículo e que não o fez;
e que em finais de Junho de 1996 comunicou à A. que o contrato ficava sem efeito e que se considerava desobrigado do seu cumprimento.
Concluem pela improcedência da acção.

A A. apresentou réplica, alegando que o R. nunca deixou de ter o veículo em seu poder e que lhe foram entregues os documentos do mesmo na sequência do acordo efectuado após a acção judicial referida.

Foi proferida sentença (fl. 219) que, julgando a acção procedente quanto ao R. B, condenou este a pagar à A. a quantia de 10.556.520$00, acrescida de juros de mora à taxa legal de 15% até 17-4-99 e 12% a partir de tal data, desde o vencimento de cada prestação até integral pagamento, e, julgando improcedente a acção contra a R. C, absolveu esta do pedido contra ela formulado.

Interpôs o R. recurso de apelação, tendo a Relação de Lisboa, por acórdão de fl. 249 e seg., confirmado a sentença.

Ainda inconformado, interpôs o R. recurso de revista, tendo ALEGADO como segue:

1) O contrato de compra e venda foi assinado apenas pela A., não pelo R.
2) Foram violados os artº373º e 376º do CC.
3) Deve ser absolvido do pedido.

Pugna a A. pela negação da revista.
II

MATÉRIA DE FACTO fixada no acórdão recorrido:

1. A A. dedica-se ao comércio de camiões, peças e acessórios para veículos automóveis.

2. Em 11 de Abril de 1990 a A. vendeu ao R. marido um camião da marca DAF, matrícula UC-....

3. O preço foi o de esc. 10.252.080$00.

4. O R. marido pagou imediatamente a quantia de esc. 1.500.000$00.

5. E obrigou-se a pagar o restante em 24 prestações mensais e sucessivas de esc. 364.670$00 cada, com início em 12 de Junho de 1990.

6. O R. marido não pagou as prestações vencidas em 11 de Dezembro de 1990, 12 de Janeiro de 1991, 12 de Fevereiro de 1991, 12 de Junho de 1991, 12 de Julho de 1991, 12 de Novembro de 1991, 12 de Dezembro de 1991, 12 de Janeiro de 1992, 12 de Fevereiro de 1992, 12 de Março de 1992, 12 de Abril de 1992 e 12 de Maio de 1992, num total de esc. 4.376.040$00.

7. Por essa razão, a A. propôs contra o R. marido acção judicial (processo n° 3509, da 2ª secção do 2° juízo cível), pedindo a resolução do contrato e consequente entrega do veículo.

8. A acção foi julgada procedente.

9. À data do contrato referido em 2. o R. marido dedicava-se à actividade de transporte de mercadorias, efectuando transportes mediante um preço, auferindo os respectivos lucros.

10. O R. utilizava o veículo UC-... no transporte de mercadoria diversa, nomeadamente madeira, palhas, carvão, para diversas localidades do país, à ordem de vários clientes.

11. Reparado o veículo, em meados de Outubro de 1992, o R. trouxe-o para o Redondo, onde reside e tem o seu local de trabalho.

12. Continuando a exercer a mesma actividade de transporte de mercadorias.

13. Proposta a acção referida em 7., com vencimento por parte da A., foram apreendidos os documentos respeitantes ao veículo em causa, em Setembro de 1995.

14. Aquando do referido em 7. e 8., em Março de 1996, o R. marido procurou a A., propondo continuar com o veículo, tendo as partes acordado o que consta do documento junto aos autos a fls. 36.

15. Foi acordado o pagamento do preço através de uma entrada imediata de esc. 500.000$00, e de 12 prestações iguais, trimestrais e sucessivas de esc. 879.710$00 cada, com início em Março de 1996.

16. 0 R. marido pagou os esc. 500.000$00 da entrada.

17. O R. marido não pagou qualquer das 12 prestações acordadas, sendo que a prestação com vencimento aprazado para 30/03/96 teve o seu vencimento diferido para 30/04/96.

18. O camião UC-... foi comprado pelo R. marido para a sua actividade de transportador.

19. Em Julho de 1992, na Serra da Ossa, no concelho do Redondo, o veículo identificado em 2. despistou-se, embateu num muro e sofreu danos.

20. Pelo que o R. o levou às oficinas da A. em Santarém, onde o mesmo esteve em reparação cerca de dois meses.

21. A falta de pagamento regular e atempada de diversas prestações respeitantes à compra do veículo, a que se alude em 6., resultou da diminuição da actividade do R. por falta de clientes.

22. Depois, com o veículo avariado, em reparação durante mais de dois meses, reduziu-se ainda mais o número dos seus clientes, com manifesta diminuição da sua actividade e obviamente dos seus rendimentos.

23. Após o referido em 13., o veículo ficou nas instalações do R. no Redondo.

24. Aquando do acordo mencionado em 14., a A. obrigou-se a entregar os documentos respeitantes ao veículo em causa - livrete e título de registo de propriedade - nos 15 dias posteriores, ou seja, até 15 de Abril de 1996.

25. O veículo e os documentos encontram-se na posse do R.

26. O R. faz serviços no campo como trabalhador rural.

27. O R. nunca deixou de ter o veículo em seu poder.

28. Os documentos do veículo - livrete e título de registo de propriedade - foram novamente entregues aos RR. em 01/04/96, na sequência do acordo a que chegaram com a A.

29. O acordo referido foi reduzido a escrito para o documento que consta de fls. 36 e 37.

30. Por carta de 18 de Abril de 1996, documento de fls. 38, foi enviado pela A. ao R. marido, o original do acordo, para que este o assinasse e devolvesse à A.

31. Até hoje o R. marido não devolveu à A. o dito acordo, depois de assinado, nem deu qualquer explicação sobre o assunto, apesar de diversas vezes instado para tal.
III

CUMPRE DECIDIR

O contrato inicial foi devidamente formalizado-fl. 39 a 41.
Procurou a A. formalizar o novo acordo e para isso enviou o impresso já preenchido ao R., para que este o assinasse e devolvesse.
A A. assinaria depois.
O R. nunca devolveu esse documento.
Como única defesa no recurso alega precisamente esse facto, que não passa de falta de cooperação devida da sua parte...

A verdade é que o camião esteve sempre em seu poder, bem como os respectivos documentos.
Nem seria difícil legalizar a sua situação, caso o desejasse.

É manifesto que o recurso improcede.
O R. incumpriu os seus compromissos.
Agiu mesmo dolosamente ao recusar a assinatura do convénio celebrado-supra II-28. e seg.
Ao que parece, para agora vir invocar como defesa precisamente a sua falta.
O seu comportamento pode enquadrar-se na figura conhecida por "tu quoque", sobre a qual se escreveu em acórdão recente relatado pelo aqui relator (1):

«Trata-se da regra pela qual a pessoa que viole uma norma jurídica não poderá, sem abuso (pensa-se entre nós no artº334º do CC), exercer a situação jurídica que essa mesma norma lhe tivesse atribuído (2).
Cita-se o brocardo "turpitudinem suam allegans non auditur" ou "equity must come with clean hands".
A propósito, dizem alguns autores que quem conscientemente actua contra a lei não tem a protecção desta, ou ainda que as partes não podem recorrer ao tribunal para resolver problemas postos pelos seus negócios obscuros.
Outros ainda invocam a proporcionalidade contratual como estando na base do "tu quoque".
Deve pensar-se no sinalagma contratual e na harmonia pressuposta, destruída pelo atentado cometido por uma das partes, assim atingindo a outra prestação.
"A justificação e a medida do "tu quoque" estão nas alterações que a violação primeiro perpetrada tenha provocado no sinalagma. »

Neste caso, há que considerar não ter o R. pelo seu lado cumprido o combinado.
Para que o negócio de venda do camião ficasse legalizada, tinha que assinar o documento enviado.
Manhosamente, não o fez.
Não pode vir agora invocar a sua falta para se eximir ao cumprimento do pactuado.
Note-se que a assinatura do dito documento apenas seria necessária para legalização do camião na Conservatória.
E talvez nem tanto, uma vez que o R. teria ainda em seu poder o documento de compra e venda inicial, como tinha ainda os documentos do veículo.
O R. nem se queixa disso.
Nem diz que não podia legalizar o camião.
Limita-se a negar o pagamento do preço, invocando falta de assinatura de um documento que ele próprio, desrespeitando o compromisso assumido, provocou.

Nega-se a revista.
Custas pelo R.

Lisboa,13 de Fevereiro de 2003
Nascimento Costa
Dionísio Correia
Quirino Soares
___________
(1) - acórdão de 10-10-2002, rec. 2601/02-7ª
(2) - Segue-se o exposto por A. Menezes Cordeiro, in Da Boa Fé no Direito Civil, II, pg. 837 e seg.