Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
873/05.0TBVLN.G1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: NEGÓCIO JURÍDICO INDIRECTO
PROCURAÇÃO
SIMULAÇÃO RELATIVA
ABUSO DE REPRESENTAÇÃO
Data do Acordão: 11/28/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕS JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO.
Doutrina:
- Heinrich Hörster, A Parte Geral do CC Português, p. 489.
- Helena Mota, Do Abuso de Representação, p. 161.
- Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Parte I, Tomo I, pág. 844.
- Pedro de Albuquerque, A Representação Voluntária em Direito Civil, p. 1218
- Pedro Leitão de Vasconcelos, em A Procuração Irrevogável, pp. 56 e ss., 95.
- Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral de Direito Civil, 7ª ed., pp. 296, 548.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 241.º, 259.º, 261.º, 268.º, 269.º, 287.º, 694.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 27-6-00, CJSTJ, TOMO II, P. 135.
-DE 16-3-11 E DE 21-12-2005, AMBOS EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :

1. No negócio indirecto recorre-se a um tipo contratual fora da sua função normal ou habitual, sendo legítima a sua outorga desde que o fim prosseguido não represente fraude à lei.

2. Nada obsta a que seja subscrita procuração conferindo ao procurador poderes para vender bens dos representados com o objectivo de liquidar uma dívida assumida por estes perante o procurador, servindo a procuração de instrumento para realização da sua garantia patrimonial.

3. É pressuposto da simulação o intuito de enganar terceiros, o que não se verifica quando o procurador, a coberto da procuração, outorga uma escritura de compra e venda que, apesar de ocultar um contrato de doação, visa satisfazer o direito de crédito sobre os representados, nos termos acordados.

A.G.

Decisão Texto Integral:

I -AA

e

BB

intentaram acção declarativa de condenação, com processo comum ordinário, contra

CC

e

DD,

pedindo que:

a) seja declarado que o negócio de compra e venda celebrado entre os RR.  é nulo, por simulação absoluta e por ser ilícito e ofensivo dos bons costumes;  

b) seja proferida sentença que restitua ao património dos AA. a propriedade plena e exclusiva da fracção autónoma que identificam, reconhecendo-se que são os seus legítimos proprietários;

c) seja ordenado o cancelamento do registo efectuado a favor da 2ª R. ou qualquer outro registo posterior;

d) sejam os RR. condenados solidariamente a pagarem-lhes a quantia de € 25.000,00, a título de compensação económica pelos danos morais sofridos.

Alegaram que o R. CC, fazendo uso de uma procuração que lhe foi outorgada pelos AA. para vender quaisquer bens e receber o respectivo preço, sob os termos e condições que entendesse, celebrou uma escritura pública de compra e venda com a R. DD, sua filha, negócio este simulado, na medida pretenderam celebrar um contrato de doação.

Contestou a R. DD negando a existência de qualquer acordo simulatório e concluindo pela improcedência da acção. 

Os AA. replicaram.

Foi requerida pelos AA. a intervenção principal de EE, por um lado, e de FF e de GG, pelo outro, na qualidade de sucessivos adquirentes da fracção causa, a qual foi admitida.

Procedeu-se a julgamento e foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo os RR. do pedido.

Os AA. apelaram e a Relação confirmou a sentença.

Os AA. interpuseram recurso de revista em que concluíram que:

a) O negócio celebrado entre os 1º e RR. foi simulado, sendo manifesta a intenção dos RR. de enganar e prejudicar os AA., com correspondente enriquecimento sem causa do 1º R. que, contra as instruções e indicações dos AA. e sem o conhecimento e autorização destes, se fez pagar da quantia de € 35.000,00 com um bem que valia, ao tempo da compra PTE 8.900.000$00, tendo posteriormente o seu valor aumentado nas sucessivas transmissões,

b) O 1º R. agiu contra as instruções e indicações dos AA. e contra o interesse destes, verificando-se, assim, abuso de representação, sendo que os AA. não ratificaram o negócio celebrado.

c) Do conteúdo da procuração outorgada pela AA., o Tribunal recorrido extraiu a ilação de que os AA. previram a possibilidade de o 1º R. "fazer operar a transmissão, para si próprio, da propriedade da dita fracção, como nisso consentiram",

d) Tal "facto" (a possibilidade de celebração de negócio consigo mesmo), consubstancia uma verdadeira estipulação adicional ou complementar relativamente ao documento autêntico que, na ausência de prova documental, não poderia ter sido extraída dos autos pelo Tribunal recorrido, sob pena de, ao fazê-lo violar o disposto nos arts. 221° e 394o do CC e nos arts. 13o e 20o da CRP, padecendo, por isso de ilegalidade e de inconstitucionalidade.

e) Existe contradição insanável entre a fundamentação do douto acórdão recorrido e a matéria de facto constante dos pontos 8º, 9º, 10º e 14º da base instrutória.

f) Mesmo que se tratasse de uma simulação relativa, o negócio dissimulado (doação) seria nulo, por não terem sido conferidos poderes ao procurador para doar.

g) O acto jurídico celebrado pelo 1º R. no uso do mandato que lhe foi conferido consubstancia um verdadeiro negócio consigo mesmo sujeito ao disposto no art. 261º do CC.

h) Em qualquer dos casos é manifesto que o 1º R. agiu sem poderes de representação, sendo o negócio ineficaz em relação aos AA., que não o ratificaram e consequentemente nulo, nulidade de que o Tribunal deveria e poderia ter conhecido.

Não houve contra-alegações.

Cumpre decidir.

II – Factos provados:
1. Os AA. são, respectivamente, irmã e cunhado do 1º R. e a 2ª R. é filha do 1º R. e sobrinha dos AA. (A) e B)); 
2. Através da ap. 03/120495 a fracção autónoma descrita em 6. mostrava-se registada a favor dos AA., por compra a HH, Ldª (E));
3. Tal aquisição foi realizada pelos AA. com dinheiro proveniente de um empréstimo que o 1º R. lhes fez (20); 
4. No dia 26-8-96, no Cart. Not. de Valença, os AA. subscreveram o doc. de fls. 35 e segs., intitulado “Procuração”, por meio da qual declararam, além do mais:
Que constituem seu procurador CC, ao qual conferem poderes gerais de administração civil, para dar ou tomar de locação bens móveis e imóveis, (...) para proceder a partilhas, (...) para vender quaisquer bens, receber o preço e dele dar quitação (...), outorgar e assinar as necessárias escrituras, sob os termos e condições que bem entender” (C));
5. Tal procuração foi outorgada pelos AA. ao 1º R. como forma de garantir o pagamento do empréstimo referido em 3., permitindo, assim, que o 1º R. a usasse se aqueles não liquidassem a quantia emprestada no prazo acordado (22º); 
6. Por escritura pública de fls. 42 e segs., celebrada no dia 19-8-04, intitulada de “Compra e Venda”, o 1º R., na qualidade de 1º outorgante e de procurador, em nome e em representação dos AA., e a 2ª R., na qualidade de 2ª outorgante, declararam entre si, entre o mais:
Que o primeiro, na indicada qualidade, pelo preço de € 35.000,00, já recebido, vende à segunda outorgante, a fracção autónoma designada pelas letras IC, composta de uma habitação, Bloco A, 8º andar, esq., lado poente, descrita na CRP de Valença, sob o nº 556-IC, da freguesia de Valença e inscrita na matriz, sob o artigo 1972-IC, localizada no prédio urbano, sito no lugar de Val Flores, freguesia e concelho de Valença, descrito na CRP de Valença sob o nº 556 e já afecto ao regime de propriedade horizontal. Pela segunda outorgante foi dito que aceita o presente contrato nos termos exarados” (D));
7. O 1º R. fez uso da procuração como forma de se pagar da quantia que tinha emprestado aos AA. para adquirirem a fracção autónoma identificada em 6. e que, em seu entender, estes não tinham liquidado no prazo acordado (2º e 3º); 
8. Pela ap. 03/230804 foi registada na CRP a aquisição da fracção a favor da 2ª R., por compra (F));
9. Os AA. nunca consentiram ou autorizaram a “Compra e Venda” descrita em 6. (4º);
10. O 1º R. nunca quis vender nem a 2ª R. quis comprar a fracção referida em 6. pela forma aí descrita; aquilo que o 1º R. quis fazer à 2ª R., e esta aceitou, foi uma doação (15º);
11. A 2ª R. não pagou ao 1º R. a quantia (preço) a que se alude em 6. e o 1º R. não entregou aos AA. tal valor (16º e 17º)
12. No dia 31-8-04, os AA. revogaram a procuração por instrumento nº 22/2004, no Consulado de Portugal em França (G));
13. Depois de fazer uso da procuração, o 1º R. continuou a exigir aos AA. – como já o tinha feito antes – que estes lhe pagassem a quantia que, em seu entender, não tinham liquidado no prazo acordado (8º, 9º, 10º e 14º);
14. E mudou as fechaduras do imóvel, impedindo os AA. de, desde então, acederem ao mesmo e ao respectivo recheio (pertença dos AA.) (11º, 12º, 13º e 19º); 
15. Por escritura pública outorgada no Cart. Not. de Valença no dia 18-10-05, a interveniente II adquiriu à 2ª R. a fracção autónoma descrita em 6., de acordo com a escritura de compra e venda de fls. 284 e segs. (J));
16. Pela ap. 07/110106 mostra-se registada a aquisição a favor da interveniente II da fracção descrita em 6., por compra (H));
17. Muito embora formalmente conste da escritura pública a que se alude em 15. que o preço devido pela compra e venda foi de € 35.000,00, o preço real ajustado para essa compra e venda, e efectivamente pago, foi de € 80.000,00 (29º).
18. A interveniente II nada sabe acerca dos negócios celebrados entre AA. e RR. (I));
19. O interveniente JJ (que outorgou com a interveniente II escritura pública de compra e venda que abarcou a fracção dos autos, nos termos que constam do doc. de fls. 298 e segs.) nada sabe dos negócios celebrados entre AA. e RR. (L));
20. Quando os AA. souberam que o 1º R. fez uso da procuração a que se alude em 4. ficaram angustiados e preocupados (18º).

III – Decidindo:

1. Em 1995 os AA. adquiriram a propriedade de uma fracção mediante financiamento conferido pelo 1º R. Por este motivo, em 1996, subscreveram uma procuração conferindo-lhe poderes para, em sua representação, vender bens dos AA., nos termos e condições que entendesse. Procuração que foi outorgada como forma de o 1º R. se garantir relativamente à quantia mutuada, permitindo que a usasse se os AA. não realizassem o seu reembolso.

Em 2004, após o aludido financiamento, o 1º R., munido da referida procuração, sob pretexto da falta de pagamento do crédito, outorgou com a 2ª R., sua filha, uma escritura de compra e venda da fracção, ainda que na realidade nenhum dos outorgantes quisesse vender nem comprar a fracção, não tendo a 2ª R. pago qualquer preço.

2. Os AA. suscitaram na petição inicial e nos recursos de apelação e de revista diversos vícios que, em seu entender, afectariam o contrato celebrado pelos 1º e 2º RR.

Todavia, depurada a matéria de facto alegada pelo julgamento que foi efectuado pelas instâncias, não se atinge o desiderato pretendido pelos recorrentes e que está centrado essencialmente na declaração de nulidade do “contrato de compra e venda” que os 1º e 2º RR. outorgaram e na condenação dos RR. na restituição da fracção.

3. Tal resultado dependeria, segundo um primeiro fundamento, da verificação de simulação.

3.1. Para a verificação deste vício contratual, necessário seria que a matéria de facto reflectisse os três elementos constitutivos:
i) Divergência entre a declaração negocial e a vontade dos declarantes;
ii) Acordo entre o declarante e o declaratário;
iii) E intuito de enganar terceiros.

Encontram-se preenchidos os dois primeiros, mas já não o terceiro requisito.

É manifesta a divergência entre a vontade dos outorgantes e o que ficou a constar da escritura pública de “compra e venda” a que na realidade faltou o pagamento e recebimento de qualquer preço, o que convocaria o disposto no art. 241º do CC.

A tal divergência subjaz um acordo dos outorgantes (deste modo dissentindo do que foi afirmado no acórdão recorrido). A percepção daquela divergência por ambos os contraentes – que são, respectivamente, pai e filha - torna inquestionável a existência de uma acção concertada de ambos.

3.2. Já, porém, a matéria de facto se revela insuficiente para considerar demonstrada a intenção de enganar terceiros, requisito que, sendo constitutivo do direito, também integra o ónus probatório que recai sobre os AA.

Sendo possível a assunção de tal requisito por via de presunções judiciais, a Relação, dentro da sua esfera de competências, nem sequer por esta via assumiu a sua demonstração. Ademais, para além de a matéria de facto provada não conter qualquer segmento respeitante a tal pressuposto, outros factos infirmam a sua existência.

O contexto em que surgiu a procuração revela uma outra explicação para o sucedido, impedindo, assim, que se afirme ter sido vontade dos outorgantes enganar os AA., já que o que presidiu à actuação dos outorgantes foi o objectivo de defenderem os interesses patrimoniais do 1º R., através da utilização da procuração que anteriormente lhe fora outorgada pelos AA.

Não é o facto de o 1º R. ter agido na qualidade de procurador dos AA. que afasta a inserção destes no conceito de “terceiros” cujos interesses são acautelados pelo regime da simulação, sendo determinante que o vício da vontade se manifeste na pessoa do representante.

Por conseguinte, no âmbito da definição de “terceiro” tutelado pelo regime da simulação contratual pode inscrever-se o próprio representado de algum dos outorgantes no negócio jurídico, dado que, nos termos do art. 259º do CC, o que releva é a ocorrência dos vícios da vontade na pessoa do representante. Neste sentido cfr. o Ac. do STJ, de 27-6-00, CJSTJ, tomo II, pág. 135, e Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Parte I, Tomo I, pág. 844.[1]

Mas, como já se referiu, a matéria de facto não permite asseverar, nem por via directa, nem integrativa, que os 1º e 2º RR. tenham agido com o intuito de enganar os AA. Ao acto de realização da “escritura de compra e venda” esteve subjacente um relacionamento contratual mais complexo do que aquele que é sugerido pela simples outorga da procuração, tendo esta servido de instrumento para realização da garantia do 1º R. relativamente ao pagamento da quantia que emprestara aos AA. e que estes destinaram à aquisição da propriedade da fracção.

Apreciando a matéria de facto de forma conjugada e não segmentada, deparamo-nos com um quadro em que os outorgantes da escritura de “compra e venda” se associaram para concretizarem a garantia patrimonial do crédito do 1º R. sobre os AA., nos termos que haviam sido admitidos por estes aquando da outorga da procuração.

Tal impede que se conclua que, ao actuarem deste modo, os 1º e RR. 2º se tenham guiado pelo objectivo de enganar os AA., limitando-se a instrumentalizar a referida procuração para o fim que fora projectado.

Adiante se retomará esta matéria.

4. Também falece apoio para a anulabilidade do contrato fundada no disposto no art. 261º do CC sobre o negócio consigo mesmo.

Em primeiro lugar, este vício não foi alegado oportunamente na petição inicial, na qual os AA. aludiram simplesmente à nulidade do contrato por simulação absoluta e por alegada afronta aos bons costumes.

A realização de um negócio consigo mesmo, nos quadros do art. 261º do CC, apenas poderia determinar a anulabilidade.

Só que, a verificar-se este vício, o mesmo teria de ser oportunamente invocado pelos interessados, nos termos do art. 287º do CC, sendo o momento ajustado a petição inicial. A sua invocação em sede de recurso (de apelação e também de revista) representa uma modificação do objecto do processo processualmente inadmissível.

Em segundo plano, sempre a aludida pretensão claudicaria, na medida em que a transmissão da fracção foi feita em benefício da 2ª R., sendo formalmente sustentada na procuração que fora outorgada no mencionado circunstancialismo. Não se verificaria, assim, de modo algum um negócio consigo mesmo, sendo insuficiente para o caso o facto de a 2ª R. ser filha do procurador.

5. Invocam ainda os recorrentes a existência de abuso de representação. Na sua tese, a procuração apenas conferia poderes para vender e não para doar, pelo que a concretização de uma doação a favor da 2ª R. geraria a ineficácia do acto.

5.1. Os argumentos apresentados pelos recorrentes em torno do teor da procuração e da natureza do acto que foi realmente praticado, em lugar de apelarem à aplicação do art. 269º do CC, sobre o abuso de representação, mais se ajustariam à figura da representação sem poderes prevista no art. 268º.

Em abstracto, é de falta de poderes e não de uso abusivo dos poderes conferidos que deve falar-se quando, numa situação como a dos autos, em que a procuração confere ao procurador poderes para vender e não para doar, o representante opta por outorgar, na realidade, uma doação, ainda que sob a capa de um contrato formal de compra e venda.

Como referem Antunes Varela e Pires de Lima, “a falta de poderes de representação pode advir de não haver um título legítimo de representação (não há nenhum instrumento de procuração ou há procuração nula) ou de o representante, havendo embora procuração, ter excedido os seus poderes” (anot. ao art. 268º, no CC). Doutrina igualmente seguida por Helena Mota quando conclui que “é representação sem poderes, o excesso de representação em que o representante está munido, na realidade, de poderes representativos mas ultrapassa os limites dos mesmos na sua actuação representativa” (Do Abuso de Representação, pág. 161).[2]

Mas, no caso concreto, nem sequer se configura uma situação de abuso de representação. Ponderando o circunstancialismo que decorre da matéria de facto apurada, não existem condições para afirmar a ineficácia do acto de transmissão.

Esta seria a consequência a extrair de uma apreciação formal e parcelar da matéria de facto apurada, já não aquela que decorre da ponderação de todo o circunstancialismo que rodeou a realização da escritura pública, tendo em conta quer os antecedentes da sua subscrição, quer os objectivos prosseguidos pelos outorgantes.

A matéria de provado demonstra-nos a existência de uma outra situação que traduz uma relação material diversa daquela que aparentemente emerge da mera conjugação entre o teor da procuração passada ao 1º R. e a escritura pública de “compra e venda”, a que verdadeiramente esteve subjacente um acto gratuito (doação) em benefício da 2ª R.

5.2. A procuração, constitui um negócio de base abstracta que não pode ser desligada do circunstancialismo em que se inscreve. Se nuns casos é subscrita apenas por razões de conveniência, a fim de possibilitar ou facilitar a prática de actos na ausência do representado, noutros casos pode ser usada como instrumento ao serviço de múltiplos interesses que nem sempre resultam do seu texto e que, sendo lícitos, tornam legítima a sua outorga.

Ainda que se considere que a procuração apenas conferia ao 1º R. poderes para vender, o fim efectivamente prosseguido com a utilização deste instrumento notarial por parte do procurador continuou a inscrever-se naquilo que foi previsto pelos seus subscritores.

Para além das aparências, na realidade, com a sua actuação, o 1º R. procurador não extravasou os poderes em que fora investido e que, sendo formalmente reflectidos através da procuração, no que respeita à possibilidade de realização da “venda” (da fracção), “nos termos e condições que bem entendesse”, tinham subjacente um relacionamento segundo o qual 1º R. ficava legitimado a fazer uso da mesma para se garantir do crédito que lhe concedera.

Foi dentro destes limites materiais que o 1º R. agiu, sendo indiferente que tenha inexistido o pagamento de qualquer preço que, de todo o modo, não reverteria necessariamente em proveito dos AA., atenta a relação ctreditícia subjacente à procuração.

6. O que nos é transmitido pela matéria de facto provada é uma situação diversa daquela que foi invocada pelos AA. e que nos remete para os negócios indirectos.

6.1. Dentro do princípio da liberdade contratual, existe uma vasta gama de hipóteses que aos interessados se colocam e que eles podem gerir, respeitadas que sejam as normas injuntivas.

Os AA. constituíram-se devedores do 1º R. Embora houvesse outras formas mais ortodoxas de assegurar o reembolso da quantia que emprestara aos AA., designadamente através da constituição de hipoteca sobre a fracção, esta garantia real comportaria custos financeiros e outros encargos que os interessados porventura quiseram contornar mediante a outorga da procuração que habilitava o 1º R. a alienar a fracção, nos termos e condições que bem entendesse.

Como já se disse, a procuração é um negócio com uma configuração de base abstracta, sem uma causa típica, desempenhando a função que derivar da relação jurídica subjacente a tal negócio representativo (Pedro Leitão de Vasconcelos, em A Procuração Irrevogável, págs. 56 e segs.). Por isso, “mesmo quando é estipulada autonomamente, a procuração não deixa de estar ligada a um outro negócio ou a uma outra situação jurídica ou relação jurídica que lhe dá fundamento – que constitui a sua causa – e que dá critério ao exercício dos poderes de representação dela emergentes” (Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral de Direito Civil, 7ª ed., pág. 296).

Segundo Pedro de Albuquerque, em A Representação Voluntária em Direito Civil, pág. 1218 (conclusão 62ª da sua tese de doutoramento), “a procuração é um negócio incompleto a pressupor um negócio-base, apenas se apreendendo o sentido respectivo após a integração da procuratio no negócio global”.

No caso sub judice, as circunstâncias revelam que, sob o texto típico de um negócio representativo, se ocultava verdadeiramente a possibilidade de tal procuração servir de instrumento à realização efectiva da garantia patrimonial do crédito de que o procurador era titular perante os representados, objectivo que, não violando regras imperativas, legitimava aquela vontade.

Tratava-se efectivamente de uma “procuração para garantia”, como a define Pedro Leitão de Vasconcelos, ob. cit., pág. 95, em que prevalecia o interesse do procurador.

Por outro lado, conferindo a procuração poderes de efectivação da venda de bens dos AA., o 1º R., podendo concretizar essa venda a favor de qualquer pessoa, optou por realizar a alienação a favor da 2ª R., sua filha, opção que encontra compreensão no facto de se estar perante um conflito que surgiu num contexto familiar, já que a A. era irmã do 1º R.

6.2. Tendo sido afastado deste contrato o vício da simulação, o que se nos depara verdadeiramente é um negócio indirecto, mediante o qual o 1º R., servindo-se dos poderes que formalmente lhe haviam sido conferidos para realizar a garantia patrimonial referente ao seu crédito sobre os AA., em vez de um contrato de compra e venda da fracção que formalmente estava autorizado a realizar, optou por outorgar um contrato de doação a favor da sua filha, 2ª R.

Ambos os outorgantes subscreveram, em termos formais, um contrato de compra e venda, quando, na realidade, nenhum preço foi pago que fizesse jus à onerosidade de tal contrato, em divergência com a gratuitidade do contrato de doação. Contudo, foi esta a forma encontrada para a realização daquela garantia patrimonial, pretendendo os outorgantes efectivar, através de uma forma alternativa, a garantia patrimonial que, em princípio, seria concretizada através da compra e venda cujo preço reverteria para o 1º R., mas que, no referido contexto familiar, alcançou, na perspectiva dos intervenientes, o mesmo resultado.

6.3. Como refere Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 844, no negócio indirecto recorre-se a um tipo contratual fora da sua função normal ou habitual, de tal modo que a nulidade apenas o afectará se, prosseguindo um fim proibido, houver fraude à lei.[3]

Sem curar por ora de implicações de natureza tributária que envolveriam o contrato de compra e venda, em comparação com o contrato de doação, não se detecta qualquer fraude à lei, sendo a fórmula empregue pelas partes uma possibilidade que não estava afastada do contexto em que foi outorgada a procuração.

Pode ainda acrescentar-se que, sendo nulo o pacto comissório, nos termos do art. 694º do CC, este apenas está previsto para situações em que o devedor constitua hipoteca a favor do respectivo credor, não sendo tal preceito impeditivo da outorga de outros acordos que, no âmbito de outras relações jurídicas, habilitem o credor a defender os seus interesse patrimoniais,[4] como ocorreu no caso concreto.

Tão pouco se pode observar em todo o enredo negocial, quer o contemporâneo da procuração, quer o posterior, a existência de uma ofensa de bons costumes, já que, como refere Heinrich Hörster (A Parte Geral do CC Português, pág. 489), para tal necessário seria que se apurasse que os 1º e 2º RR. agiram conscientemente com o intuito de prejudicar os AA., o que não foi o caso, atentos os antecedentes referidos relativamente à anterioridade do mútuo outorgado pelo 1º R. a favor dos AA.

7. Improcedem, assim, em toda a linha, os motivos por que os AA. pretendem a invalidação (ou a ineficácia) da transmissão.

IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente a revista, confirmando o acórdão recorrido.

Custas a cargo dos recorrentes.

Notifique.

Lisboa, 28-11-13

Abrantes Geraldes

Bettencourt de Faria

Pereira da Silva

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[1] Para este autor, terceiro é aquele que é alheio ao acordo simulatório e não necessariamente ao contrato simulado (ob. cit., pág. 844).
[2] Ainda assim com a oposição de Oliveira Ascensão, citado pela mesma autora, para quem o abuso de representação constitui um caso de excessos de poderes tanto formal como material.
[3] No mesmo sentido Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral de Direito Civil, 7ª ed., pág. 548.
[4] Sobre a alienação em garantia e o pacto comissório cfr. os Acs. deste STJ, de 16-3-11 , Rel. Lopes do Rego, e de 21-12-2005, Rel. Pereira da Silva, ambos em www.dgsi.pt.