Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1074/21.6JAPDL.L1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: ACORDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
IRRECORRIBILIDADE
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
CONFIRMAÇÃO IN MELLIUS
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ACLARAÇÃO INDEFERIDA
Sumário :
Não integra omissão de pronúncia o não conhecimento das questões que o recorrente pretendia ter visto apreciadas pelo Supremo no recurso que interpôs, quando o conhecimento de tais questões pressuporia a recorribilidade do acórdão da Relação e a admissibilidade do recurso para o Supremo, pressuposto que não se verificou. Nenhuma nulidade por omissão de pronúncia pode ocorrer se de nada se poderia ter conhecido.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

1. No Processo Comum Colectivo n.º 1074/21.6JAPDL, do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores – Juízo Central Cível e Criminal de ... – Juiz 1, foi proferido acórdão a decidir condenar o arguido AA, nascido a ........1960, como autor de: dois crimes de abuso sexual de criança agravado dos arts. 171.º n.º 3, al. a) e 177.º n.º 1, al. b) do CP, um na pessoa de BB e o outro na pessoa de CC, na pena de 1 (um) ano de prisão para cada um; um crime de abuso sexual de criança agravado dos arts. 171.º n.º 1 e n.º 2 e 177.º n.º 1 al. b) do CP, na pessoa de CC, na pena de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão; um crime de violação agravada dos arts. 164.º n.º 2, al. b) e 177.º n.º 1 al. b), 177.º, n.º 7 e 177.º, n.º 8 do CP, na pessoa de BB, na pena de 6 (seis) anos de prisão; em cúmulo jurídico, na pena única de 7 (sete) anos e 3 (três) meses de prisão.

Mais foi condenado na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período de 10 (dez) anos, e na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período de 10 (dez) anos.

E foi condenado, ao abrigo do disposto no art. 82.º-A, do CPP e art. 16.º, n.º 2, da Lei 130/15, de 4.09, no pagamento ao ofendido BB da quantia reparatória de € 2.000,00 (dois mil euros) e ao ofendido CC da quantia reparatória de € 1.000,00 (mil euros).

Inconformado com o decidido, interpôs o arguido recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 13.07.2023, decidiu conceder parcial provimento ao recurso, e, em consequência, proceder à convolação do crime de abuso sexual de crianças agravado dos arts. 171.º, nºs 1 e 2 e 177.º n.º 1 al. b), do CP, para o mesmo crime, mas com previsão nos arts. 171.º, n.º 1 e 177.º n.º 1 al b), do CP; aplicar ao arguido, pela prática deste crime, a pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão, em substituição da anterior pena de 4 anos e 3 meses de prisão; proceder à reformulação do cúmulo jurídico de penas ficando o arguido/recorrente condenado na pena única de 6 (seis) anos e 8 (oito) meses de prisão. No mais, foi confirmado o acórdão recorrido.

De novo inconformado, interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que, por acórdão de 17.01.2024, decidiu rejeitar o recurso por inadmissibilidade face à irrecorribilidade da decisão (arts. 414.º, n.º 2 e 420.º, n.º 1, al. b) do CPP).

Vem agora o recorrente arguir a nulidade do acórdão do Supremo, nos termos seguintes:

“Com todo o respeito, que aliás é muito e devido, entende o Reclamante que o acórdão proferido, na parte condenatória, contém erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação, desde já se requer.

Aliás, e sem prescindir, no entendimento do Reclamante o acórdão que ora se reclama, atenta a ambiguidade e falta de total esclarecimento, fica ferido de inconstitucionalidade e nulidade, por omissão de pronúncia, a qual, desde já sealega, com as legais consequências, caso esta ambiguidade não seja extirpada.

A ambiguidade e pedido de esclarecimento que se invoca e se pretende ver verificada, centra-se em não se conseguir descortinar a integralidade decisória do acórdão, atentas as questões suscitadas na motivação do recurso e objectivadas nas conclusões.

Diga-se, prime facie, que as dúvidas suscitadas no recurso, não se encontram respondidas pelo Douto Acórdão, aqui posto em crise e que é nulo por omissão de pronúncia.

No que ao caso em concreto diz respeito, decidiu-se rejeitar o recurso por inadmissibilidade, face à irrecorribilidade da decisão (arts. 414.º, n.º 2 e 420.º, n.º 1, al. b) do CPP).

Contudo, e s.m.o., no caso em concreto não existe uma “dupla conforme”, pois que, o douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, contém um voto de vencido.

O Recurso em crise, deveria ser admitido nos termos do disposto no n.º3, do Art.º 671.º do CPC, ex vi Art.º n.º 4.º do CPP e ainda nos termos do Art.º 6.º da Convecção Europeia dos Direitos do Homem.

Importa aferir o explanado no voto de vencido vertido no douto acórdão sob escrutínio, para o qual se remete, sem contudo, deixar de exaltar os seguintes segmentos, a saber (…).

No que tange quanto à qualificação jurídico-penal dos factos e as penas aplicadas, alinhamos de igual modo com a posição da Ex.ª Sr.ª Desembargadora que expende o seguinte no seu voto de vencida (…).

Deste modo, o tribunal não deveria ter autonomizado esses actos dos demais actos de abuso sexual dada a sua natureza in casu, não sexual mas antes de aliciamento para o abuso sexual que depois foi cometido sobre cada um dos menores.

Assim, quanto a esses crimes o aqui Recorrente deverá ser absolvido, dado não estar preenchido o elemento objectivo do tipo legal de crime em causa.

Quanto aos actos praticados sobre o menor BB por se entender não ter existido penetração anal, integram também o tipo objectivo do artigo 171.º, nº1 do C. Penal, crime punido com prisão de 1 a 8 anos.

Em qualquer dos crimes, não podemos concordar com o fundamento da agravação do artigo 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, por não existir entre o arguido e os menores uma relação hierárquica ou dependência económica, ou laboral que justifique essa agravação.

Não é pelo simples facto do aqui Recorrente ser presidente do clube onde os menores jogavam futebol, que o mesmo tinha com aqueles uma relação hierárquicaoudetrabalho;considera-seocontrárioéirparaalémdoqueanorma prevê, sendo essa interpretação susceptível de atentar contra o princípio da legalidade.

E quanto à medida concreta da pena diremos o seguinte, também em concordância com a Ex.ª Sr.ª Desembargadora que votou vencido.

Atento o disposto no artigo 40.º, nº1 do Código Penal, quanto às finalidades da pena - tutela dos bens jurídicos, a que está associada a função de prevenção geral positiva, e a reinserção social do condenado, a que está ligada a função de prevenção especial ou de socialização e que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa (n.º 2 do mesmo artigo) e sopesando as exigências de prevenção geral deste tipo de crime, sobretudo na vertente de satisfação de reparação perante a comunidade dos bens jurídicos violados pelo arguido, tendo ainda em conta que são diminutas as exigências de prevenção especial face à boa reinserção social do arguido e à inexistência de antecedentes criminais, a pena única a ser aplicada não deverá ser superior a 5 (cinco) , suspensa na sua execução, ao abrigo do disposto no Art.º 50.º do CP, atendendo à personalidade do arguido, à inexistência de antecedentes criminais, à sua inserção social, laboral e familiar, não só com a condição de proceder ao pagamento das indeminizações atribuídas aos menores e com regime de prova.

Esta será uma decisão mais ressocializadora face ao conjunto dos factos praticados pelo Recorrente, o qual já tem 62 anos e esta é a primeira condenação pela prática de um crime.

Vivendo num meio pequeno, foi certamente já ostracizado pela comunidade e censurado socialmente.

Sem prescindir, Consigna o n.º 1 do art.º 13º da Lei Fundamental que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.”

Ora, se a Lei Fundamental prevê e propala a igualdade de direitos, tendo todos oscidadãosamesmaigualdadeperantealei,nãosecompreendecomopossaestar na base dos referidos preceitos do Cód. Processo penal uma selecção criteriosa do que cidadãos merecem um duplo grau de jurisdição, criando processos de maior nobreza em desprimor de outros.

Não se compreende o que está na base de proibir um recurso perante outro, só podendoserrecorríveisosprocessosdemaiornobreza,sóasgrandescondenações, resumindo a estas o direito a um 2º olhar, a um segundo parecer, enquanto os processos menos nobres ou com penas menores se resumirão apenas a um olhar.

Nem todos tem a possibilidade de expor e contraditar factos.

Existe assim a desvalorização de alguns processos, enquanto outros são enobrecidos.

Inquestionável é que a liberdade e a dignidade das pessoas não tem qualquer preço, devendo todos ser tratados de forma igual.

Inquestionável é também que a al. f) do n.º1 do art.º 400º do Cód. Processo Penal trata desigualmente cidadãos em situações similares, acusados dos mesmos crimes, e com a agravante de fazer essa destrinça com a perspectiva de que o crime compensa.

Denota-se assim a inconstitucionalidade da al. f) do n.º 1 do art.º 400º do Cód. Processo Penal por violação do art.º 13º e 32º n.º 1, ambos da Constituição da República Portuguesa.

A este propósito vejam-se os doutos Acórdãos deste Alto Tribunal, a saber:

a) Acórdão SJ200310020027205 de 02.10.2003, publicado em: http://www.stj.pt/ e também em: Colectânea de Jurisprudência, Tomo III, 2003, n.º 171, ano 11, pg. 187;

b) Acórdão SJ200310020024065 de 02.10.2003, publicado em: http://www.stj.pt/.

É esse o entendimento do Reclamante, que entende haver omissão de pronuncia, o que configura Nulidade e inconstitucionalidade, o que se alega prevenindo recurso para o Tribunal Constitucional.

Ao não o fazer, o Tribunal ad quem omitiu o dever de fundamentação que emerge do art.º 97.º n.º 5 do CPP, o que fere de nulidade a decisão tomada, conforme previsto no art.º 379.º n.º 1 al. a) do mesmo diploma legal.

E por isso se requer a sua aclaração neste requerimento, sendo certo a manter-se este entendimento, esta é desconforme com a Constituição, por violação do principio da legalidade e do contraditório.

Esta obscuridade e ambiguidade, que não permitem ao recorrente ter uma leitura firma do decidido, deverá levar, a V.ª Ex.ªs a uma aclaração do decidido, entendendo o reclamante que existe Nulidade por omissão e pronúncia.

Se assim não for, isto é, se a ambiguidade não for extirpada, e esclarecidas as questões enunciadas, tal equivale a omissão de pronúncia, que configura Nulidade, a qual vai desde já alegada, com as legais consequências.

Desta forma, requer-se a V. Ex.ªs, que face ao supra expendido, procedam á reformulação do acórdão, esclarecendo as ambiguidades suscitadas extirpando-o das nulidades invocadas, decidindo-o nos termos requeridos pelo reclamante, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.”

2. O requerimento do reclamante representa a renovação da impugnação do acórdão da Relação, apresentada no recurso para o Supremo.

Se bem se compreende a argumentação, insurge-se contra a rejeição do recurso, considerando que integra omissão de pronúncia o não conhecimento das questões que pretendia ter visto apreciadas pelo Supremo, no recurso que interpôs. Aqui residiria a omissão de pronúncia que, a verificar-se, consubstanciaria então a nulidade prevista nos arts. 379.º, n.º 1, al. c) e 425.º, n.º 4, do CPP.

Sucede que o conhecimento de tais questões pressuporia a recorribilidade do acórdão da Relação e a admissibilidade do recurso para o Supremo, pressuposto que não se verificou. Assim, nenhuma nulidade por omissão de pronúncia pode ocorrer se de nada se poderia ter conhecido.

Como se deixou claro no acórdão reclamado, em 1.ª instância o arguido fora condenado como autor de dois crimes de abuso sexual de criança agravado dos arts. 171.º n.º 3, al. a) e 177.º n.º 1, al. b) do CP, na pena de 1 (um) ano de prisão por cada um deles; um crime de abuso sexual de criança agravado dos arts. 171.º n.º 1 e n.º 2 e 177.º n.º 1 al. b) do CP, na pena de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão; um crime de violação agravada dos arts. 164.º n.º 2, al. b) e 177.º n.º 1 al. b), 177.º, n.º 7 e 177.º, n.º 8 do CP, na pessoa de BB, na pena de 6 (seis) anos de prisão; em cúmulo jurídico, na pena única de 7 (sete) anos e 3 (três) meses de prisão.

O Tribunal da Relação de Lisboa proferiu acórdão a conceder parcial provimento ao recurso do arguido, procedendo a “convolação do crime de abuso sexual de crianças agravado dos arts. 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º n.º 1 al. b), do CP, para o mesmo crime mas com previsão nos arts. 171.º, n.º 1 e 177.º n.º 1 al b), do CP”, ou seja, retirando a qualificativa do n.º 2, e aplicando ao arguido, pela prática deste crime, a pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão, em substituição da anterior pena de 4 anos e 3 meses de prisão. Por último, procedeu à reformulação do cúmulo jurídico de penas ficando o arguido condenado na pena única de 6 anos e 8 meses de prisão, em detrimento da pena de 7 anos e 3 meses de prisão anteriormente aplicada.

Assim, o Tribunal da Relação confirmou totalmente a decisão de 1.ª instância quanto à matéria de facto, confirmou-a na parte relativa ao enquadramento jurídico dos factos e aos tipos de crime aplicados, à excepção da qualificativa referida, que foi retirada (procedeu-se aqui à única alteração, consistente na retirada de uma das qualificativas de um dos crimes da condenação), decidindo por último a subsequente redução da pena parcelar correspondente, a confirmação das restantes parcelares e a reformulação do cúmulo jurídico, também com redução da pena única.

Do exposto concluiu-se no acórdão que, por um lado, a situação sub judice configurava uma “dupla conforme” e, pelo outro, inexistiam penas aplicadas superiores a 8 anos de prisão. O recurso do arguido não pôde, por isso, ser conhecido, já não deveria ter sido sequer admitido.

Considerou-se clara e indiscutível a irrecorribilidade da decisão – a irrecorribilidade do acórdão da Relação que decidiu o recurso interposto da decisão de 1.ª instância, atenta a medida da pena (única) aplicada e a existência de dupla conformidade.

Justificou-se que o art. 400.º do CPP é uma norma de excepção ao regime-regra de recorribilidade dos acórdãos, das sentenças e dos despachos, regime-regra previsto no art. 399.º do CPP. E da limitação do direito ao recurso consagrada na norma em causa (art. 400.º), designadamente do seu n.º 1, al. f), decorre que não é admissível recurso “de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão da 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos”.

Explicou-se que por consagração legal expressa, afirmada à exaustão na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, só é admissível recurso de decisão confirmatória da Relação quando a pena aplicada for superior a oito anos de prisão, só podendo constituir assim objecto de conhecimento do recurso interposto para o Supremo as questões que se refiram a condenação(ões) em pena superior a oito anos (seja pena parcelar ou pena única, mas exigindo-se sempre que sejam superiores a oito anos).

Mencionou-se a jurisprudência do Supremo no sentido do decidido, consignando-se os dois os requisitos cumulativos, da irrecorribilidade dos acórdãos condenatórios proferidos pela Relação nos termos da al. f), do n.º 1, do art. 400.º do CPP, como verificados: a “dupla conforme” e a (confirmação da) condenação em pena de prisão não superior a 8 anos.

O acórdão da Relação foi confirmativo do acórdão de 1.ª instância, não lhe retirando essa natureza de dupla conformidade a circunstância de se ter ali considerado como não operante uma das qualificativas de um dos (mesmos) crimes da condenação em 1.ª instância e de se ter procedido a uma consequente redução da correspondente pena parcelar aplicada e da pena única.

Mais se explicou que a reformatio in melius nos termos concretamente operados no acórdão recorrido integra uma situação de “dupla conforme” no sentido que releva aqui. Desde logo porque considerar o contrário conduziria ao resultado abstruso de negar o acesso ao Supremo nos casos de confirmação da condenação numa pena superior, permitindo-o nos casos em que tal pena sofreu uma redução.

Referiu-se também que o Tribunal Constitucional sempre afirmou que o direito ao recurso como garantia de defesa do arguido não impõe um duplo grau de recurso. E sempre considerou a constitucionalidade da norma do art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, no sentido em que condiciona a admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça aos acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmam decisão de 1.ª instância e aplicam pena de prisão não superior a 8 anos.

Mais se consignou carecer igualmente de razão o recorrente quando pugna pela admissibilidade do recurso à luz do art. 671.º do CPC, mormente por via do n.º 3 desta norma, pois em processo penal e em matéria de recursos, o Código (de processo penal) prevê e regulamenta autónoma e exaustivamente o modelo e os tipos de recurso.

Assim, desde logo, a lei processual penal contém norma expressa que veda o duplo grau de recurso no caso sub judice. Duplo grau de recurso que a Constituição não consagra, sendo jurisprudência desde sempre pacífica, do Tribunal Constitucional, que o direito ao recurso constitucionalmente assegurado se basta com a garantia de um grau de recurso. Grau este que, no presente caso, se mostra concretamente assegurado.

Acresce que a norma processual civil cuja utilização se pretende não tem aplicação em processo penal, porque o art. 4.º do CPP pressuporia a existência de uma lacuna, a qual não ocorre em matéria de recursos em processo penal, ao nível das linhas de organização do modelo e de classificação dos tipos de recurso, como também se explicou no acórdão.

Essa autonomia foi logo afirmada na fundamentação do Acórdão para Fixação de Jurisprudência n.º 9/2005, em que o Supremo Tribunal de Justiça confirmou a autonomização dos recursos em processo penal prosseguida pelo Código de Processo Penal vigente, jurisprudência que o decurso do tempo consolidou.

Fê-lo no AFJ n.º 9/2005, nos termos que se desenvolveram no acórdão reclamado. E fê-lo recentemente, no Acórdão para Fixação de Jurisprudência tirado no Pleno das Secções Criminais no dia 31.01.2024, em cuja fundamentação se reiterou a autonomia do regime de recursos em processo penal, “construído numa perspectiva de autonomia processual, que o legislador pretende própria do processo penal e adequada às finalidades de interesse público a cuja realização está vinculado.”

Assim, em processo penal, a existência de um voto de vencido não retira ao acórdão da Relação a natureza de acórdão confirmativo da condenação de 1.ª instância, nos termos autónoma e exaustivamente previstos no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP.

A conformidade constitucional da decisão encontra-se já justificada no acórdão. E o acórdão respeita também a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, pois nem do seu art. 13.º (Direito a um recurso efectivo), nem do art. 2.º do Protocolo 7 Adicional à Convenção, que consagra o direito ao recurso (Direito a um duplo grau de jurisdição em matéria penal), resulta a obrigatoriedade de um duplo grau de recurso, naquela que tem sido sempre a jurisprudência do TEDH. Veja-se o Caso S.K. v. Rússia (processo n.º 52722/15, de 14-05-2017) - “O artigo 13.º da Convenção não obriga os Estados Contratantes garantir um segundo grau de recurso” – e note-se que o art. 2.º do Protocolo 7 prevê que mesmo o duplo grau de jurisdição (um grau de recurso) pode ser excepcionado nas três situações que contempla.

Assim tem sido igualmente decidido pelo Senhor Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Conselheiro Nuno Gonçalves, no âmbito das reclamações de despacho de não admissão de recurso. Veja-se a decisão de 01.02.2024, proferida no Proc. nº 850/21.4PAMTJ.L1-A.S1, onde se lê:

“2. O reclamante defende para o recurso ser admitido a aplicação ao caso do disposto no artigo 671.º, n.º 3, do CPC aplicável ex vi artigo 4.o do CPP, fundado no entendimento de que o voto de vencido lavrado no acórdão da Relação descaracteriza a dupla conforme, permitindo-se, assim, um duplo grau de recurso.

Mas, não é assim.

O legislador processual penal, em conformidade com o pensamento que verteu na exposição de motivos do DL n.º 78/87, que aprovou o vigente CPP, quebrando com o anterior procedimento, instituiu um regime de recursos. autónomo, completamente regulado no CPP.

A irrecorribilidade em mais um grau de recurso ordinário por dupla conformidade decisória em matéria penal, introduzida no regime processual penal pelo DL n.º 59/98 de 25 de agosto, está, desde então, especificamente regulada no art. 400.º n.º 1 al.ª f) do CPP.

Norma que não foi modificada pelas múltiplas alterações do diploma adjetivo penal, algumas com importante intervenção no regime dos recursos.

Nota-se que a irrecorribilidade por dupla conforme em processo civil é até mais exigente que no processo penal:

- enquanto em processo penal é sempre admitido recurso em 2.º grau, contanto a pena singular ou única aplicada seja superior a 8 anos, independentemente de haver ou não voto de vencido e de serem os mesmos ou diferentes os fundamentos da confirmação da condenação;

- no processo civil, ademais do requisito da alçada, somente se admite revista havendo voto de vencido ou quando a fundamentação da decisão confirmatória for essencialmente diferente.

O regime dos recursos em processo penal não tem, pois, no que à dupla conforme respeita, qualquer lacuna. O que sucede é que, simplesmente, o legislador optou por regimes diferenciados que mantém. Aliás, o legislador processual penal teve o cuidado de estabelecer no artigo 433.º do CPP, que “recorre-se ainda para o Supremo Tribunal de Justiça noutros casos que a lei especialmente preveja”, reportando-se a leis de natureza processual penal ou que determinam a aplicação subsidiária do CPP e não, seguramente, ao Código de Processo Civil.

Consequentemente, o regime aqui aplicável é tão-somente o do CPP.”

Em suma, e para concluir, o art. 379.º, n.º 1, al. c) do CPP preceitua que é nula a sentença “quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar…”, o que não ocorreu, uma vez que a rejeição do recurso impediu o conhecimento.

De tudo resulta que, sob o epíteto de “arguição de nulidade”, o reclamante pretende tão só renovar a peça processual anterior, persistindo numa percepção inexacta do recurso no Código de Processo Penal. O seu articulado é a clara repetição da discordância originária quanto ao acórdão da Relação e, agora, ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.

A presente arguição de nulidades materializa uma insistência no desacordo relativamente ao que foi decidido, continuando a defender-se uma pretensão que não é mais processualmente viável. E face à evidência do descomedimento da arguição, nada cumpre aditar, inexistindo a propalada omissão de pronúncia e o cometimento de qualquer nulidade e/ou inconstitucionalidade.

3. Decisão

Face ao exposto, decide-se indeferir a nulidade arguida pelo reclamante.

Custas pelo recorrente, que se fixam em 3UC (art. 524º do CPP e Tab. III do RCP).

Lisboa, 21.02.2024

Ana Barata Brito, relatora

Maria do Carmo Silva Dias, adjunta

Teresa Féria de Almeida, adjunta