Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2977/22.6PAPTM.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: TERESA DE ALMEIDA
Descritores: RECURSO PER SALTUM
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
PROCEDÊNCIA PARCIAL
Data do Acordão: 03/13/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário :

I. Da matéria de facto provada, ressaltam dois elementos que revelam, de forma impressiva, o desprezo pela vida do outro: o caráter traiçoeiro da conduta e a fuga do local, abandonando a vítima à sua sorte.

II. Esta última circunstância esvazia o arrependimento manifestado.

III. Nota-se que o arguido tem antecedentes criminais, além de outro, por crimes contra a vida e a integridade física.

IV. Entende-se, assim, que a aplicação de uma pena superior ao valor médio da moldura penal se encontra bem fundamentada, tendo sido valoradas, de forma proporcional, as circunstâncias atenuantes e agravantes.

V. O recorrente considera exagerado o montante da reparação oficiosa , arbitrada nos termos do art. 82.º-A do CP.

VI. Ponderadas a gravidade do dano e a culpa do arguido, afigura-se, numa primeira leitura, adequado o montante da reparação arbitrada.

VII. Contudo, há que ponderar o critério da situação pessoal e económica do arguido e esta, não só é de uma total precariedade (de dependência diária da dádiva de alimento e dormida), como não existe vislumbre de futura melhoria, em termos que permitam o pagamento do montante em causa.

Decisão Texto Integral:

Proc. n.º 2977/22.6PAPTM.S1

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. AA, arguido, de 36 anos, identificado nos autos, não se conformando com o acórdão proferido pelo Juízo Central Criminal de Portimão - Juiz 3, em 05.12.2023, que o condenou, pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de homicídio, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 22.º, 23.º, n.º 2 e 131.º, todos do Código Penal, na pena de prisão de 6 (seis) anos de prisão, julgou procedente o pedido de indemnização civil apresentado pelo ... e arbitrou, a favor da vítima, a quantia de €10.000,00, veio do mesmo interpor recurso.

2. Da motivação apresentada, retirou o arguido as seguintes conclusões: (transcrição)

“1.º O Recorrente, acusado pela prática, em autoria material e na forma tentada de um crime de homicídio, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 22.º, 23.º, n.º 2 e 131.º, todos do Código Penal, viu.

2.º Pelo tribunal recorrido, julgada totalmente procedente por provada a acusação pública, e, consequentemente, foi condenado, pela prática de um crime de homicídio, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 22.º, 23.º, n.º 2 e 131.º, todos do Código Penal , na pena de 6 (seis) anos de prisão.

3.º Assim como no pagamento do PIC formulado pelo ...

4.º Bem como no arbitramento de um quantum indemnizatório a favor da vítima BB, no montante de € 10.000,00.

5.º O presente recurso incide EXCLUSIVAMENTE sobre os pressupostos de direito do Acórdão sindicado e que estribam a aplicação ao Arguido de uma pena de 6 anos de prisão efectiva e o pagamento da quantia de € 10.000, ao Ofendido.

DA VIOLAÇÃO DO ARTIGO 40.º, N.º 2 E 71.º, DO CÓDIGO PENAL

6.º O Arguido, face à prática na forma tentada de um crime de homicídio, cifra-se entre 1 ano e 7 meses e 6 dias e os 10 anos e 6 meses de encarceramento.

7.º

O tribunal a quo, do confronto entre os critérios plasmados no Artigo 71.º do Código Penal e os aspectos provados a favor do Arguido, entendeu aplicar a este uma moldura penal de 6 anos de prisão.

8.º Dando por provado a totalidade do constante no libelo acusatório

9.º E bem assim, a favor do Arguido, o plasmado no respectivo relatório social produzido.

10,º O Arguido, que desde o primeiro interrogatório a que foi sujeito, demonstrou atingir o alcance da conduta praticada e respectivas consequências, pelo que sempre colaborou com o tribunal e exteriorizou arrependimento face aos factos havidos.

11.º Não deixando contudo de perspectivar o grau excessivo da pena determinada, quando analisado o circunstancialismo tido em voltados mesmos.

12.º Com efeito, o Arguido padece dum conjunto de circunstancialismos (patologias), de nível físico (ortopédico), neurológico (epilepsia) e de saúde mental, cujo contexto é merecedor de relevância superior, da que efectivamente teve.

13.º Pelo que se entende que aplicar uma pena, mais perto do limite mínimo da moldura penal abstracta, seja suficiente para assegurar as finalidades da punição, nos termos do disposto nos Artigos 40.º e 71.º, do Código Penal.

14.º Não tendo sido essa a opção do tribunal a quo, violando-se pois tais artigos, entende o Arguido, ser ajustada ao caso concreto, uma pena de 5 anos de prisão efectiva.

DO ARBITRAMENTO DE INDEMNIZAÇÃO A FAVOR DA VÍTIMA

15.º O tribunal a quo, em sede de arbitramento de indemnização a favor da vítima, fixou um quantum indemnizatório de € 10.000,00 a pagar pelo Arguido.

16.º Entende o Arguido que, mesmo que os danos por si causados, não possam deixar de ser mitigados com o pagamento de uma quantia ao ofendido,

17.º O valor arbitrado é manifestamente excessivo.

18.º Na medida em que o tribunal a quo contradiz-se e desrespeitou um dos critérios basilares, para determinação desse quantum, ie, a situação económica do Arguido.

19.º Na medida em que, dos factos dados por provados, consta a situação económica e pessoal do Arguido, vide Pontos 15 a 23 do Acórdão em sindicância.

20.º Razão pela qual se apoda de excessiva, inadequada e contrária a lei, o valor indemnizatório arbitrado pelo tribunal.

21.º Sendo que, mesmo olvidando-se a pensão social, aos olhos dos tempos que correm, miserável, do Arguido, bem como as diversas patologias de que sofre,

22.º É o próprio ofendido, pessoa que, felizmente apresenta condições para manter /reassumir a sua vida laboral, sendo conhecedor do estorial do Arguido, entendeu nada reclamar do mesmo,

23.º Na medida em que sabe que este nada tem e dificilmente se perspectiva vir a ter

24.º Pelo que ser o tribunal a quo, numa sanha de insensatez e afastamento da realidade, a vir arbitrar tamanha indemnização, se entende injusto, desproporcional e até irreal.

25.º O que, logicamente, leva o Arguido a não poder conformar-se com o montante a que foi condenado pagar ao ofendido.

26.º Por entender ter o tribunal a quo violado o disposto nos artigos 16.º, n.º 1, da Lei 130/2015, de 4 de Dezembro; 82.º-A do Código de Processo Penal; 129.º, do Código Penal e artigos 483.º, 494,º e 496.º, n.ºs 1 e 3 do Código Civil.

27.º Sendo que, deve a decisão proferida ser aqui reduzida, a um montante justo e equitativo, não superior a € 3.000,00.

TERMOS EM QUE, DEVERÁ ser CONCEDIDO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, CONSEQUENTEMENTE, REVOGADO E SUBSTITUÍDO O ACÓRDÃO ORA RECORRIDO.

FORMA CORRECTA DE ALCANÇAR A SEMPRE PRETENDIDA JUSTIÇA!!!”

3. Na 1.ª Instância, o Ex.mo magistrado do Ministério Público defendeu o não provimento do recurso, alegando, nomeadamente, que: (transcrição)

“3. Ora, in casu, conforme aliás consta no acórdão sob recurso, teve-se em conta, para além do mais, as lesões sofridas por CC, em resultado das quais teve de ser submetido a uma intervenção cirúrgica de urgência e esteve um período superior a 4 meses sem poder trabalhar, isto, para além das dores e sofrimento que padeceu em consequência da conduta do arguido DD.

4. Acresce que, pese embora a precária situação económica (e débil condição física) do arguido DD, seja factor a ter em conta na fixação do quantum do arbitramento, não poderá ser elemento único ou mesmo primordial, pois que, não se poderá esquecer e valorizar as múltiplas sequelas (incluindo uma cicatriz permanente visível para outros – cfr. fls. 193), tratamentos e dores infligidos à vitima CC em resultado da conduta dolosa do primeiro.

5. Pelo exposto, cremos, não ter ocorrido a violação das normas invocadas a este propósito pelo arguido DD, razão pela qual, deverá ser mantido na íntegra, por ser justo e equitativo e em consonância com a prática judicial em situações semelhantes, o valor de €10.000,00 arbitrado a favor de CC.

(…) 7. Conforme é sabido, relativamente ao crime em causa nos presentes autos, são muito elevadas as exigências de prevenção geral, na justa medida em que está em causa a violação do bem jurídico fundamental, ou seja, o direito à vida (cfr. Acórdão do STJ de 23/03/2017, cuja relatora é a Exm.ª Desembargadora EE e que se mostra disponível em texto integral em www.dgsi.pt).

8. Ademais, in casu, são também particularmente intensas as exigências de prevenção especial. Com efeito, por um lado, na sequência de uma pequena desavença com a vítima CC, por causa do incumprimento do arguido DD no que tange às regras de horário de entrada no abrigo temporário e, no momento em que aquele se encontrava com a cabeça curvada na direcção do chão e, por conseguinte, impossibilitado de se proteger/defender, este último, com grande ligeireza, utiliza uma faca e atinge-o uma zona vital.

9. Por outro lado, o arguido DD já anteriormente havia sido condenado pela prática em pena de prisão efectiva (5 anos) pela prática de um crime de homicídio na forma tentada, sendo certo que, esta condenação não lhe valeu de suficiente advertência para não voltar a praticar crimes, em particular, atentatórios da vida dos outros.

(…) 11. Nestes termos, afigura-se-nos adequada e justa a pena de 6 anos de prisão (a qual não admite a suspensão da sua execução, sendo que, in casu, esta sempre seria de afastar, em face de todo o supra exposto) que foi aplicada nos presentes autos ao arguido DD e, por conseguinte, inexistiu, no nosso modesto entendimento, qualquer violação dos artigos 40.º, n.º 2 e 71.º, ambos do Código Penal.”

4. O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, defendendo que a pena aplicada foi justa e criteriosa e se mostra equilibrado e equitativo o montante indemnizatório atribuído ao ofendido ao abrigo do Estatuto da Vítima.

Colhidos os vistos, o processo foi à conferência.

O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), visando, no caso, o reexame de direito.

O tribunal é o competente, atento o objeto do recurso (art. 432º, nº 1, al. c), do CPP).

Este Tribunal é, assim, chamado a apreciar e decidir sobre:

⎯ Medida da pena de prisão aplicada (pugnando o recorrente por uma pena de 5 anos de prisão efetiva);

- O quantum indemnizatório arbitrado em favor da vítima, face à situação económica do arguido.

Cumpre decidir.

II. Fundamentação

1. Os factos:

“1. O arguido DD pernoitava habitualmente no abrigo temporário, localizado na ....

2. Os utentes do mencionado abrigo devem aceder ao seu interior até às 22h00 – de forma a não incomodar os restantes frequentadores do espaço – e abandonar o local até às 08h00 do dia seguinte.

3. Sucede que, no dia ... de ... de 2022, pelas 02h00, o arguido DD dirigiu-se ao sobredito abrigo e, em virtude da porta de entrada se encontrar fechada, começou a bater com força na mesma, motivo pelo qual foi alertado pelo vigilante daquele espaço, FF, que devido à hora tardia não o podia deixar entrar.

4. Todavia, o arguido, inconformado com a resposta, logrou aceder ao interior do abrigo, tendo, para esse efeito, se atirado para o chão.

5. Uma vez que necessita do uso de canadianas para a sua locomoção, arrastou-se até ao local onde se situa a cama onde costuma pernoitar e deitou-se em cima da mesma, altura em que apodou CC de «Filho da Puta» e «Cabrão».

6. Seguidamente, CC voltou a alertar o arguido DD para o facto de estar a acordar os outros utentes do abrigo e que, devido a ser uma hora muito tardia, não poderia deixar o mesmo ali pernoitar.

7. Acto contínuo, CC abeirou-se da cama onde se encontrava o arguido DD, para dela o conseguir retirar.

8. No momento em que CC se encontrava com a cabeça curvada na direcção do chão, focado nas pernas do arguido DD, este, inopinadamente, retirou a navalha que se encontrava no interior das calças que tinha vestidas e desferiu com a mesma um golpe no lado esquerdo da zona abdominal do primeiro.

9. Seguidamente, o arguido DD abandonou o local para parte incerta.

10. Como consequência directa e necessária de tal conduta o ofendido sofreu as seguintes lesões:

i. Ferida incisa na zona abdominal, paramediana esquerda, supraumbilical penetrante de 20 cm, com evisceração do delgado, em razão da qual teve que ser sujeito a uma intervenção cirúrgica de emergência;

ii. Após a cirurgia, na zona do abdómen: cicatriz pós-cirúrgica, linear, oblíqua (na região paramediana esquerda), com 14 cm de comprimento por 0,5 cm de largura.

11. Tais lesões determinaram um período de doença de 124 (cento e vinte e quatro) dias, com afectação da capacidade de trabalho geral (5 dias) e com afectação da capacidade de trabalho profissional (124 dias).

12. O arguido DD, ao actuar da forma acima descrita, agiu com a intenção de matar CC, ou, pelo menos, representou a morte dele como efeito necessário da sua conduta ou como efeito possível e provável da mesma, efeito esse que preferiu aceitar a deixar de agir da forma como o fez.

13. A região atingida e a natureza do objecto utilizado eram circunstâncias adequadas a causar a morte de CC, o que só não ocorreu por razões estranhas à vontade do arguido DD, nomeadamente, devido à circunstância de o ofendido ter sido prontamente transportado para o Hospital e recebido a adequada assistência médica.

14. O arguido DD agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Mais resultou provado:

15. O arguido é reformado por invalidez e aufere uma pensão no valor mensal de €488,22.

16. À data dos factos descritos em 1 a 14, o arguido não dispunha de habitação própria ou arrendada e estava acolhido no alojamento temporário referido no facto provado 1.

17. Contava com o apoio de instituições locais de apoio a cidadãos carenciados, onde efetuava as suas refeições, e mantinha uma referenciação na equipa do ....

18. A mãe do arguido, septuagenária, encontra-se institucionalizada num lar de idosos em ....

19. O arguido tem um irmão, com quem não mantém vínculos relacionais.

20. O arguido tem epilepsia, problemas ortopédicos ao nível dos joelhos e movimenta-se com o auxílio de canadianas.

21. O arguido foi criado num ambiente marcado por episódios de violência e conflitualidade entre os elementos da fratria.

22. As condições habitacionais passaram de regulares para um nível de deterioração e pobreza após o falecimento do pai do arguido e dos problemas de saúde da mãe.

23. Tem o 2.º ciclo do ensino básico.

24. Encontra-se recluído no Estabelecimento Prisional..., onde regista infrações disciplinares.

25. O arguido regista os seguintes antecedentes criminais:

- Processo 322/08.2GBSLV, por decisão transitada em julgado em 2009/05/29, pela prática, em 2008/06/05, de 1 crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25.º, n.º 1, do D.L. n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 1 ano de prisão, substituída por 365 horas de prestação de trabalho a favor da comunidade;

- Processo 1194/09.5PAPTM, por decisão transitada em julgado em 2010/04/14, pela prática, em 2009/06/24, de 1 crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143.º, n.º 1 e 145.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão, suspensa por igual período de tempo, sujeita a regime de prova;

- Processo 2141/10.7PAPTM, por decisão transitada em julgado em 2012/02/14, pela prática, em 2010/11/13, de 1 crime de homicídio na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º, 22.º e 23.º do Código Penal, na pena de 5 anos de prisão.

A pena de prisão foi declarada extinta em 07/10/2019 (Processo n.º 377/12.5TXEVR-A).”

(…)

C. FACTOS PROVADOS RELATIVOS AO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL

1. O Demandante, na qualidade de ..., integrado no Serviço Nacional de Saúde (SNS), presta cuidados de saúde à população.

2. Na sequência das condutas praticadas pelo arguido, descritas no facto provado 8, o ofendido, FF, foi encaminhado para o serviço de urgência da ... onde lhe foram prestados tratamentos médicos/hospitalares urgentes.

3. O ofendido esteve internado de .../.../2022 a .../.../2022.

4. Realizou uma intervenção cirúrgica de emergência (facto provado 10. i.).

5. Realizou meios complementares de diagnóstico e terapêutica.

6. Pelos referidos serviços de assistência médica e hospitalar prestados ao ofendido, o Demandante emitiu a factura n.º 83003749, com data de .../.../2023, no montante de €2.588,60.”

2. O direito

a. A medida da pena

a.1. A determinação da pena mostra-se fundamentada, no acórdão recorrido, nos seguintes termos:

“O crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131.º do Código Penal, tem uma moldura abstracta que varia entre 8 a 16 anos de prisão.

A conduta é preenchida na forma tentada, pelo que os limites da punição alteram-se para 1/5, quanto ao limite mínimo, e o limite máximo é diminuído em 1/3.

A moldura aplicável situa-se, assim, no limite mínimo de um ano, sete meses e seis dias de prisão, e o limite máximo em dez anos e seis meses de prisão.

(…) Aplicando os critérios previstos no artigo 71.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, importa salientar:

A) As necessidades de prevenção geral afiguram-se elevadas: o tipo de ilícito atenta contra o bem jurídico primeiro da vida humana, com o que o causa elevado alarme social.

B) As necessidades de prevenção especial são também muito elevadas: o arguido regista várias condenações, inclusive pelo mesmo tipo de crime.

C) O arguido carece de integração social e familiar e a conduta ocorreu em meio onde o arguido recebia o auxílio de terceiros para prover às suas necessidades do quotidiano.

D) As razões subjacentes ao crime demonstram que o arguido tem um comportamento impulsivo.

A favor do arguido, há a registar:

a) O arguido confessou os factos, embora com uma postura algo desculpabilizante da sua conduta.

b) Manifestou arrependimento e consciência da gravidade do ilícito praticado.

Considerando os elementos em presença, a personalidade do arguido, o grau de culpa e as exigências de prevenção, considera-se ser de aplicar uma pena de 6 anos de prisão pela prática do crime de homicídio, na forma tentada, por que o arguido vem acusado.”

a.2. Da matéria de facto provada, ressaltam dois elementos que revelam, de forma impressiva, o desprezo pela vida do outro: o caráter traiçoeiro da conduta e a fuga do local, abandonando a vítima à sua sorte.

Esta última circunstância esvazia o arrependimento manifestado.

Nota-se que o arguido tem antecedentes criminais, além de outro, por crimes contra a vida e a integridade ....

Entende-se, assim, que a aplicação de uma pena superior ao valor médio da moldura penal se encontra bem fundamentada, tendo sido valoradas, de forma proporcional, as circunstâncias atenuantes e agravantes.

Não se descortina, pois, razão que justifique intervenção corretiva na pena, cuja medida corresponde ao grau de culpa, não merecendo divergência.

Não se verificando, pelo exposto, motivo que permita identificar violação do disposto nos artigos 40º., 70º. e 71º, todos do Código Penal.

Improcede, assim, a petição de redução da pena

b. Do quantum reparatório

b.1. O arguido foi condenado pela prática de um crime contra a vida, punível com pena de prisão superior a 8 anos, ou seja, por conduta que integra a criminalidade especialmente violenta (art. 1.º, n.º 1, als. l) e j), do CPP).

O ofendido, em razão do disposto nos n.ºs 3 e 1, al. b) do art. 67.º-A, do CPP, é vítima especialmente vulnerável, sendo-lhe aplicáveis os n.ºs 1 e 2 do art. 16.º do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 4 de setembro.

Dispõe este artigo que:

“1 - À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão relativa a indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável.

2 - Há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal em relação a vítimas especialmente vulneráveis, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.”

Por sua vez, o art. 82.º-A, do CPP prevê que:

“1 - Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham.

2 - No caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório.

3 - A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em acção que venha a conhecer de pedido civil de indemnização.”

O ofendido assume, pois, a qualidade de vítima especialmente vulnerável, sendo imperativo o arbitramento oficioso de reparação.

No caso, não foi deduzido pedido cível pela vítima e esta não se opôs expressamente ao arbitramento de uma indemnização.

b.2. O recorrente entende ser exagerado o montante da reparação em cujo pagamento foi condenado, no valor de 10000,00€.

Alega, quanto a esta parte, que não foram suficientemente tidas em conta as suas condições de vida e económicas precárias.

O Tribunal fundamentou a determinação do montante da indemnização, salientando que “há que atender à gravidade das condutas praticadas pelo arguido e à extensão dos danos causados ao ofendido.

Assim, e tendo em conta a lesão sofrida, o período de internamento hospitalar e os tratamentos a que foi sujeito, ao risco para a sua saúde e vida e às sequelas causadas, bem como ao período de inactividade laboral (facto provado 11), entende-se adequado e proporcional fixar em: €10.000,00 a indemnização a pagar pelo Arguido a FF.”

b.3. Entendeu, já, este Tribunal que a definição oficiosa de reparação, nos termos do art. 82.º-A do CPP, se inclui nas consequências de natureza penal, como efeito penal da condenação, distinguindo-se “das consequências de natureza civil que geram o dever de indemnizar pela prática de facto ilícito, nos termos das disposições aplicáveis do Código Civil e do artigo 129.º do Código Penal, dependente de pedido do lesado”1.

“A caracterização e conteúdo desta “reparação”, de natureza pecuniária, sem se confundir com a indemnização civil, remete, porém, como antes se sublinhou, para conceitos que lhe são próprios, nomeadamente quanto ao “dano” ou “prejuízos”, mas já não quanto à “quantia” a fixar, a qual, como antes se afirmou (supra, 11) não tem que coincidir com o montante da indemnização.

(…) Participando das finalidades da pena aplicada (supra, 11), esta reparação, na falta de fixação de critério próprio no artigo 82.º-A do CPP, deve levar em conta os danos não patrimoniais causados e a situação da vítima, como expressão da gravidade das consequências do crime, as condições pessoais do agente e a sua situação económica, numa ponderação conjunta dos critérios da lei civil, nomeadamente dos artigos 494.º e 496.º, n.º 4, do Código Civil, convocados pela natureza compensatória da reparação, e dos critérios da lei penal de fixação da reacção criminal atendíveis por via da culpa e da prevenção, nos termos das alíneas a) e d) do n.º 2 do artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal.”

b.4. A ação dolosa do arguido causou à vítima: - Ferida incisa na zona abdominal, paramediana esquerda, supraumbilical penetrante de 20 cm, com evisceração do delgado, em razão da qual teve que ser sujeito a uma intervenção cirúrgica de emergência; - Após a cirurgia, na zona do abdómen: cicatriz pós-cirúrgica, linear, oblíqua (na região paramediana esquerda), com 14 cm de comprimento por 0,5 cm de largura; um período de doença de 124 (cento e vinte e quatro) dias, com afetação da capacidade de trabalho geral (5 dias) e com afetação da capacidade de trabalho profissional (124 dias) (matéria de facto provada).

Encontram-se, deste modo, provados os elementos integradores do dano.

Ponderadas a gravidade do dano e a culpa do arguido, afigura-se, numa primeira leitura, adequado o montante da reparação arbitrada.

Contudo, há que ponderar o critério da situação pessoal e económica do arguido e esta, não só é de uma total precariedade (de dependência diária da dádiva de alimento e dormida), como não existe vislumbre de futura melhoria, em termos que permitam o pagamento do montante em causa.

Com efeito, o arguido é reformado por invalidez e aufere uma pensão no valor mensal de €488,22, não dispõe de habitação própria ou arrendada e estava acolhido em alojamento temporário, contando com o apoio de instituições locais de apoio a cidadãos carenciados, onde efetuava as suas refeições, e mantinha uma referenciação na equipa do “...”; tem epilepsia, problemas ortopédicos ao nível dos joelhos e movimenta-se com o auxílio de canadianas.

Entende-se, em consequência, ponderados todos os elementos de facto que importam para a aferição dos critérios enunciados pelo art. 494.º do Código Civil (na ausência de outros definidos pelas normas penais convocadas), reduzir o quantum da reparação, fixando-o em 3000€ (três mil euros)

III. Decisão

Nos termos expostos, o Supremo Tribunal de Justiça, 3ª Secção Criminal, acorda em:

1. Julgar parcialmente procedente o recurso, reduzindo o montante da indemnização e fixando-o em 3 mil euros;

2. No mais, julgar improcedente o recurso, mantendo-se o acórdão recorrido.

Sem custas (art. 513º n.º 1 parte final do CPP).

Supremo Tribunal de Justiça, 13 de março de 2024

Teresa de Almeida (Relatora)

Maria do Carmo Silva Dias (1.ª Adjunta)

Ana Maria Barata de Brito (2.ª Adjunta)

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1. Ac. deste Tribunal e desta Secção, de 02.05.2018, no Proc. 156/16.0PALSB.L1.S1, Rel Lopes da Mota.