Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
217/12.5TNLSB.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
PRESSUPOSTOS
DECISÃO QUE PÕE TERMO AO PROCESSO
RECURSO DE REVISTA
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
Data do Acordão: 05/03/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL – PROCESSO EM GERAL / INSTANCIA / EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA / CUSTAS, MULTAS E INDEMNIZAÇÃO / MULTAS E INDEMNIZAÇÃO – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA.
Doutrina:
-Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 3.ª Edição, 2016, p. 308;
-Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume VI, Coimbra Editora, 1981, p. 200.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 6.º, N.º 1.º, 277.º, ALÍNEA C), 281.º, N.º 1 E 4, 542.º, N.º 2, ALÍNEAS C) E D) E 671.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


-DE 28-01-2016, PROCESSO N.º 1006/12. 2TBPRD.P1-A.S1, IN WWW.DGSI.PT.


-*-


ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:


-DE 14-06-2016.
Sumário :  
I. Do acórdão da Relação confirmativo da decisão que declarou deserta a instância, nos termos dos artigos 277.º, alínea c), e 281.º, n.º 1 e 4, do CPC, pondo, por essa via, termo ao processo, cabe revista, por se tratar de situação equiparável às previstas na 2.ª parte do n.º 1 do artigo 671.º do mesmo Código.  

II. A deserção da instância depende da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos:

a) – A inércia de qualquer das partes em promover o andamento do processo, imputável a título de negligência;

b) A paragem do processo por tempo superior a seis meses, a contar do momento em que a parte devia ter promovido esse andamento.

III. Tal vicissitude processual radica no princípio da auto-responsabilidade das partes, na medida em que lhes incumba o impulso processual aferível à luz do disposto na diretriz geral do artigo 6.º, n.º 1, do CPC.

IV. O incumprimento da parte em sede do dever de apresentação de documento probatório poderá ter como consequência a condenação da parte faltosa em multa e ainda a livre apreciação do valor da recusa para efeitos probatórios, incluindo a inversão do ónus da prova. E, se o documento se destinar a demonstrar factos cujo ónus probatório incumba à própria parte que o não junte, será esta desfavorecida pela falta de prova desse facto, sem prejuízo de poder ser condenada como litigante má fé instrumental, nos termos do artigo 542.º, n.º 2, alíneas c) e d), do CPC.

V. Assim, salvo tratando-se de documento de que a lei faça depender o prosseguimento da ação, o incumprimento do dever da parte no tocante à apresentação de documentos probatórios para que foi notificada não se reconduz a inobservância do ónus de impulso processual especialmente imposto por lei nem se inscreve sequer na economia do desenvolvimento da instância, não sendo, portanto, determinativo da sua deserção nos termos do artigo 281.º, n.º 1, do CPC, sendo, quando muito, suscetível de se repercutir no plano probatório do julgamento de mérito.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:



I – Relatório


1. AA - Construções, S.A. (A.), instaurou, em 29/05/2012, junto do Tribunal Marítimo de Lisboa, uma ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra a sociedade BB - Companhia de Seguros, S.P.A.(R.), sucursal em Portugal da sociedade CC, S.P.A., com sede em …, na Itália, alegando, em síntese, que:

- A A., armadora inscrita no registo nacional, adquiriu em março de 2008 e armou, sob a bandeira portuguesa, a embarcação a motor “DD”, que matriculou no Porto do Douro sob o n.º de registo P-1…-AI para navegação local, no Rio Douro;     

- Os riscos próprios e de responsabilidade civil do armador relativamente à referida embarcação foram objeto de contrato seguro firmado junto da R., com a duração de um ano, mediante a apólice n.º 007…0, emitida em 22/04/2008, o qual foi sucessivamente renovado, por períodos de um ano, através das apólices n.º 0071…0, de 31/03/2009, e n.º 0071…0, desde 26/03/2010 a 25/03/2011;   

- No dia 09/03/2011, pelas 11h00, a sobredita embarcação, quando navegava no Rio Douro, ao descrever a curva de ..., na freguesia de …, município de Penafiel, adornou e virou-se com a quilha para cima, acabando por se afundar pelas 19h30, o que foi imediatamente participado à R.;

- Do referido acidente resultou a perda total da embarcação, cujo valor, ao preço do mercado, equivale a € 586.087,53;

- O custo das operações das tentativas de reflutuação, realizadas pela EE - Mergulhadores Profissionais, Lda, importaram em € 130.000,00 e os custos da fiscalização de tais operações pela autoridade marítima ascenderam a € 38.927,00, que a Capitania embolsou à custa do montante de uma caução, tendo devolvido a quantia sobrante de € 61.073,00 à Delegação do Douro do IPTM, IP, para continuar a garantir os riscos de poluição e demais obrigações legais;

- Interpelada a R. para assumir os custos decorrentes daquele naufrágio, a mesma declinou toda a responsabilidade pelo pagamento de qualquer indemnização dele decorrente.

Concluiu a A. a pedir que R. fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 755.014,50, acrescida de juros desde a citação, bem como outras despesas que eventualmente se verifiquem por conta da caução prestada em poder do IPTM ou em excesso para além dela.    

2. A R. apresentou contestação, em sede impugnativa e excetiva, tendo concluído pela procedência da exceção de exclusão do risco e, subsidiariamente, pela improcedência do pedido, com a sua consequente absolvição do pedido.  

3. A A. deduziu réplica, reiterando o inicialmente peticionado.

4. Findos os articulados, procedeu-se a audiência prévia em 25/05/2015, no decurso da qual foi proferido saneador tabelar e fixado o valor da causa em € 755.014,50, seguindo-se os despachos de identificação do litígio, da enunciação dos temas de prova e de admissão e ordenação de diligências probatórias, nomeadamente a junção de documentos pela A..

5. Posteriormente, no que aqui releva, foi proferido o despacho de fls. 786, datado de 18/11/2015, a ordenar a notificação da A. para, em 10 dias, justificar por que razão não deu cumprimento ao despacho proferido na audiência prévia em que se determinou que ela apresentasse os documentos solicitados pela R. na contestação.

6. Subsequentemente, foi proferido o despacho de fls. 815, datado de 18/05/2016, a decretar que os autos aguardassem o decurso do prazo de deserção da instância, atenta a inércia da A. em responder à solicitação contida no despacho de fls. 786, de 18/11/2015.

7. Em 12/09/2016, foi proferido o despacho de fls. 816, a declarar deserta a instância com fundamento na inércia prolongada da A. em promover o andamento dos autos, considerando o teor do despacho de fls. 815, de 18/05/2016.

8. Inconformado com tal decisão, a A. recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo a apelação sido julgada improcedente, confirmando-se a decisão recorrida, conforme o acórdão proferido a fls. 857-861, datado de 14/11/2017, com um voto de vencido no sentido de que a falta de junção, por parte da A., dos documentos solicitados não determina a deserção da instância, implicando antes o prosseguimento do processo, sujeitando-se a A. à aplicação do disposto no art.º 417.º, n.º 2, do CPC.

9. Novamente inconformada, a A. vem pedir revista para o que formula as seguintes conclusões: 

1.ª – A decisão recorrida viola as disposições dos artigos 281.º, n.º 1, e 417.º, n.º 2, “ex vi” do disposto no art.º 430.º, todos do CPC, porque foi proferido sem que as partes, desde logo, a A., houvessem omitido qualquer ato de que dependa a marcha do processo;

2.ª - Assim, em face dos preceitos legais, é evidente que a consequência da falta de apresentação de documentos alegadamente em poder da parte contrária e, por maioria de razão, a falta de justificação da conduta omissiva, é balizada pelo disposto no art.º 417º, n.º 2, do CPC e não pode fundamentar nunca a deserção da instância.

3.ª - A decisão recorrida viola ainda a disposição do art.º 281º, n.º 1, do CPC, porque foi proferida sem audição prévia das partes após decurso do prazo da deserção e sem fundamento na culpa das partes, desde logo da A., cuja conduta não apreciou nem valorou;

4.ª - Não obsta à precedente conclusão, a prolação do despacho de 18/5/2016, que as partes não podiam impugnar antes da decisão final, não constitui caso julgado, ainda que meramente formal, antes configurando uma ordem à secretaria, que não tem a virtualidade de afetar qualquer direito da A., que não é parte vencida (631.º, n.º 1, do CPC)”

5.ª - Trata-se, aliás, de despacho que nem carece de ser notificado às partes;

6.ª - Não tendo a A./recorrente cumprido o despacho que determinou que juntasse documentos ao processo, nem tendo explicitado, como foi convocada a fazer, os motivos dessa omissão, impunha-se que o processo seguisse os normais trâmites, uma vez que conduta do autor é suscetível de motivar a aplicabilidade do disposto no art.º 417.º, n.º 2, do CPC, ex vi do disposto no art.º 430.º do mesmo diploma e nunca um julgamento de extinção da instância por deserção, como antes já concluído;

7.ª - Só assim não seria quando os documentos a apresentar não contendessem com a prova dos factos em discussão na causa, mas antes com a prova de pressuposto ou requisito do processo, caso em que a falta de apresentação obsta efetivamente à normal marcha do processo;

8.ª - Nestes termos, e nos demais tidos por aplicáveis, deve revogar-se a decisão e substituir-se por outra que ordene seguirem os autos os seus termos normais.

9.ª - Quando assim não seja julgado, importa considerar que o artigo 281.º, n.º 1, do CPC estatui que, sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses;

10.ª - No regime atual, a deserção da instância deixou de ser automática carecendo de ser julgada por despacho do juiz;

11.ª - No despacho que julga deserta a instância, o julgador terá de apreciar se a falta de impulso processual se ficou a dever à negligência das partes, o que significa que lhe incumbe efetuar uma valoração do comportamento das partes, por forma a concluir se a falta de impulso em promover o andamento do processo resulta, efetivamente, da negligência destas.

12.ª - Assim, o Tribunal antes de lavrar despacho a julgar extinta a instância por deserção, deverá ouvir as partes de forma a melhor avaliar se existe a falta de impulso processual e se é a eventual e hipotética falta de impulso imputável ao comportamento negligente de alguma delas ou de ambas.

13ª - No caso em pareço, que o julgador, não ouviu as partes, previamente ao despacho recorrido;

14.ª - Quando o recurso não proceda nos termos peticionados na conclusão 8.ª, deve a decisão recorrida ser ainda revogada e substituída por outra que ordene notificar as partes para se pronunciarem sobre a eventual falta de impulso processual e sobre a negligência da conduta, previamente à prolação de despacho que decida sobre a extinção da instância;

15.ª – Acresce que o acórdão recorrido sustenta que a única questão colocada à consideração deste Tribunal resume-se a saber se, no caso concreto, as partes deviam ter sido ouvidas antes da prolação do despacho que julga extinta a instância por deserção;

16.ª - O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, logo se vê das conclusões A) e B) avançadas pela apelante em cumprimento do disposto no art.º 639.º, n.º 1 e 2, do CPC, transcritas no ponto I.B do acórdão recorrido, que a apelante elegeu como principal fundamento do recurso a violação das normas legais dos artigos 281º, nº 1, e 417.º, n.º 2, ex vi do disposto no art.º 430.º, todos do CPC.

17.ª - Subsiste omissão de pronúncia sobre questão que a Relação devia conhecer por imposição da primeira parte da norma da alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º “ex vi” das disposições legais dos artigos 607.º, n.º 2, 608.º, n.º 2, 663.º, n.º 2, e 666.º, n.º 2, todos do CPC;

18.ª - Não obsta a tal conclusão considerar que as razões da discordância mencionadas no voto de vencida, que correspondem, em suma, à posição da apelante, fazem presumir que a questão da ofensa de lei por violação das normas dos artigos 281.º, n.º 1, e 497.º, n.º 2, ambos do CPC, foi discutida no julgamento do objeto do recurso.

19.ª - Antes era sempre devido o conhecimento da questão na exata medida em que a decisão da única questão de que conheceu o acórdão (saber se as partes deviam ser ouvidas antes do despacho que julgou extinta a instância) em caso algum pode prejudicar o conhecimento desta outra.

Pede a Recorrente que, em primeira linha, se declare a nulidade cominada na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC e, subsidiariamente, se dê provimento ao recurso conforme as 8.ª e 14.ª conclusões acima numeradas.

10. A R. contra-alegou a pugnar pela confirmação do julgado.


Cumpre apreciar e decidir.


II – Quanto à admissibilidade da revista


Muito embora não venha suscitada qualquer questão prévia sobre a admissibilidade da revista, mostra-se conveniente deixar aqui clarificada a verificação de tal admissibilidade.

Antes de mais, tendo a presente ação sido instaurada em 29/05/2012 e as decisões impugnadas proferidas em 12/09/2016 e 14/11/2017, respetivamente na 1.ª instância e na Relação, é aplicável o regime recursório constante do CPC na versão introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26/06, nos termos do artigo 5.º, n.º 1, desta mesma Lei. 

Ora o acórdão recorrido confirmou a decisão da 1.ª instância que declarou deserta a instância, pondo, por essa via, termo ao processo mediante a mera extinção da instância, nos termos conjugados dos artigos 277.º, alínea c), e 281.º, n.º 1, do CPC, que não por decisão de mérito.

Segundo o artigo 671.º, n.º 1, do CPC:

   Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto ao pedido ou reconvenção deduzidos.

Desde logo, importa reter que, diversamente do preceituado no artigo 721.º, n.º 1, com referência ao 691.º, n.º 1, do CPC, na redação anterior à Reforma introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26-06, segundo o qual o cabi-mento da revista era aferido em função do efeito processual da decisão da 1.ª instância, face ao normativo acima transcrito, tal cabimento passou a ser aferido em função do efeito do próprio acórdão da Relação, independentemente do teor da decisão da 1.ª instância[1].

Ponto é saber se o acórdão recorrido tem como efeito jurídico-processual pôr termo ao processo, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 671.º.

Não há dúvida que, no aqui relevante, o indicado normativo refere-se literalmente a acórdão da Relação que “ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou alguns dos réus quanto ao pedido ou reconvenção deduzidos”, explicitação esta que não constava do anterior artigo 691.º, n.º 1, do CPC, referindo-se apenas a “decisão … que ponha termo ao processo”.

Porém, o aditamento daquela explicitação na nova lei, no essencial, teve em vista alargar o âmbito da revista às hipóteses de decisões de absolvição da instância, mormente em sede de despacho saneador, quanto a alguns dos réus ou a alguns dos pedidos ou de reconvenção deduzidos, mesmo não pondo termo a todo o processo, o que, de resto, não se encontrava contemplado na lei anterior, levando também à alteração introduzida no atual artigo 644.º, n.º 1, alínea b), do CPC, para efeitos de apelação autónoma. Não se afigura, pois, que a explicitação em foco vise, de algum modo, restringir o âmbito da revista, mormente quanto a acórdãos finais da Relação, ou sejam que ali ponham termo ao processo, ainda que não versem sobre o mérito da causa ou que não absolvam o réu da instância, como, aliás, sempre veio sendo admitido em sede do então recurso de agravo interposto na 2.ª instância[2].

Com efeito, para além dos casos de julgamento de mérito e de absolvição da instância, existem outras hipóteses de extinção da instância, como são as previstas nas alínea b) a e) do artigo 277.º do CPC e, porventura, ainda algumas outras situações atípicas, das quais pode resultar o fim do processo quanto a alguns dos réus ou quanto a algumas das pretensões deduzidas, sem pôr termo a todo o processo, não se divisando razões ponderosas para que não sejam contempladas à semelhança dos casos de absolvição parcelar da instância[3]. É o que sucede precisamente no caso da extinção da instância por via da sua deserção.

Nessa linha de entendimento, o acórdão recorrido, ao ter confirmado a decisão da 1.ª instância que declarou deserta a instância, traduz-se em acórdão da Relação que põe termo ao processo em moldes equiparáveis aos da absolvição do réu da instância, para efeitos de cabimento da revista em conformidade com o disposto no n.º 1 do citado artigo 671.º do CPC.

Acresce que aquele aresto foi aprovado com um voto de vencido, donde resulta a não verificação de dupla conforme nos termos do artigo 671.º, n.º 3, do mesmo diploma.

Termos em que se tem por assegurado o cabimento da presente revista. 


III - Delimitação do objeto do recurso


Como é sabido, o objeto do recurso é definido em função das conclusões formuladas pelo recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do CPC.         


Dentro desses parâmetros, o objeto da revista incide sobre as seguintes questões:

i) – Em primeira linha, a questão da invocada omissão de pronúncia, por parte da Relação, quanto à impugnação da verificação dos pressupostos da deserção da instância declarada pela 1.ª instância e confirmada pelo acórdão recorrido; 

ii) – Subsidiariamente:

a) - A questão da alegada falta de audição prévia das partes sobre a questão daquela deserção da instância;

b) - A questão do alegado erro de direito, com fundamento em violação dos artigos 281.º, n.º 1, e 497.º, n.º 2, do CPC, no respeitante à decisão confirmativa da deserção.


IV – Fundamentação   

 

1. Quanto à invocada omissão de pronúncia


Neste capítulo, sustenta a Recorrente que, tendo invocado, como fundamento principal da apelação, a violação das normas legais dos artigos 281º, nº 1, e 417.º, n.º 2, ex vi do disposto no art.º 430.º do CPC, a Relação confinou, todavia, a sua apreciação à questão de saber se, no caso concreto, as partes deviam ter sido ouvidas antes da prolação do despacho que julga extinta a instância por deserção.

Nessa base, argui a nulidade do acórdão recorrido ao abrigo do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), ex vi do artigo 666.º do CPC.


Embora o recurso tenha sido admitido conforme despacho tabelar exarado a fls. 920, datado de 13/03/2018, e remetido a este Supremo Tribunal sem que a invocada questão de omissão de pronúncia tivesse sido submetida à apreciação da conferência da Relação, como decorre das disposições conjugadas dos artigos 617.º, n.º 1, e 666.º, n.º 1 e 2, do CPC, considera-se dispensável mandar baixar o processo para suprimento de tal irregularidade, ao abrigo do n.º 5 do indicado artigo 617.º.


Entrando agora no conhecimento dessa questão, cumpre ter presente que, segundo o disposto no artigo 608, n.º 2, do CPC, ao tribunal incumbe o dever de pronúncia, além do mais, sobre todas as questões que tenham sido suscitadas pelas partes. A omissão desse dever é sancionada com a nulidade da decisão recorrida conforme o estatuído no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), 1.ª parte, do mesmo Código. Tais disposições são aplicáveis aos acórdãos da Relação por via do artigo 663.º, n.º 2, e 666.º, n.º 1, do CPC.   

Para tal efeito, há que averiguar se a alegada omissão de pronúncia versa sobre questão que devesse ter sido objeto de apreciação, o que, em sede de objeto de recurso e em conformidade com o teor das conclusões do recurso, no que aqui releva, se traduz em saber se essa omissão respeita a qualquer dos invocados fundamentos de erro de direito por que vem pedida a alteração ou anulação da decisão recorrida, nos termos definidos no artigo 639.º, n.º 1 e 2, do CPC.

Porém, segundo doutrina e jurisprudência correntes, a omissão de pronúncia só ocorrerá quando o tribunal a quo deixe de se pronunciar de todo sobre ela, em termos de inviabilizar qualquer apreciação de mérito ou demérito, por parte do tribunal ad quem, e não já quando se trata de apreciação insuficiente ou medíocre, envolvendo, nestes casos, erro de julgamento.   


Vejamos.


No caso vertente, a A./apelante impugnou o despacho proferido pela 1.ª instância a fls. 816, datado de 12/09/2016, que decretara a deserção da instância com fundamento na inércia processual daquela A., formulando então as seguintes conclusões, transcritas no próprio acórdão recorrido:

A) - O despacho recorrido viola as disposições legais dos art. 281.º, n.º 1, e 429.º, n.º 2, ambos do CPC, porque foi proferido sem que as partes, desde logo a A., houvessem omitido qualquer ato de que dependa a marcha do processo;

B) - Assim, em face dos preceitos legais, é evidente que a consequência da falta de apresentação de documentos alegadamente em poder da parte contrária, e, por maioria de razão, a falta de justificação da conduta omissiva, é balizada pelo disposto no art. 429.º e não pode fundamentar nunca a deserção da instância.

C) - A decisão recorrida viola ainda a disposição citada do art.º 281.º, n.º 1, do CPC, porque foi proferida sem audição prévia das partes após decurso do prazo da deserção e sem fundamento na culpa das partes, desde logo da autora, cuja conduta não apreciou nem valorou;

D) - Não obsta à anterior conclusão C) a prolação do despacho de 18/5/2016, que as partes não podiam impugnar antes da decisão final e não constitui caso julgado, ainda que meramente formal;

Nessa base, pediu a ali apelante que se revogasse a decisão recorrida e se substitusse por outra a ordenar o prosseguimento dos autos ou, quando assim se não entendesse, se ordenasse a notificação das partes para se pronunciarem quanto à culpa que possa ser-lhes assacada relativamente ao andamento da causa.


Por sua vez, o Tribunal da Relação, depois de enunciar que a única questão a resolver se resumia à questão de saber se, no caso concreto, as partes deviam ter sido ouvidas antes da prolação do despacho que julgou extinta a instância por deserção, fez a seguinte apreciação:

   «II. A

   A matéria relevante é a seguinte:

   3) Na audiência prévia de 25.05.2015, a apelante foi notificada para, no prazo de 10 dias, proceder à junção dos seguintes documentas:

   - Os Planos de viagens ou navegação da EMBARCAÇÃO para o dia 09-03-2011. a existirem;

  a. Cópia dos documentos de identificação e registo da EMBARCAÇÃO;

    b. Cópia do rol de tripulação e da lotação e do certificado da lotação da EMBARCAÇÃO;

   c) - Cópia dos documentos de inspecção periódica e manutenção das gruas instaladas na EMBARCAÇÃO, relativos aos anos de 2010 e 2011.

4) Em 18 de Novembro de 2015, atenta a omissão de cumprimento do ordenado, foi proferido novo despacho notificando a autora para “Justi-ficar por que razão ainda não deu cumprimento ao despacho proferido na audiência prévia que determinou a apresentação dos referidos documentos".

  5) Em 18.02.2016 é proferido o seguinte despacho: Nos termos do seu requerimento de fls. 401 e ss., remetido para o endereço do correio electrónico deste Tribunal no dia 16-06-2015 (00.01h), a Autora recorreu do despacho proferido na audiência prévia que lhe negou a concessão do prazo de 5 dias para apresentar o seu requerimento probatório. A Autora apre-sentou igual requerimento a fls. 406 e ss., desta feita através da plataforma CITIUS, no mesmo dia, embora mais tarde (22.25h, conforme parece decorrer da validação da assinatura do seu Ilustre Mandatário, aposta a fls. 412). A audiência prévia realizou-se no dia 25-05-2015, tendo a Autora - na pessoa do seu Ilustre Mandatário - sido notificada nessa data do despacho recorrido. Muito embora não tenha sido alegada a espécie nem o modo de subida bem como o efeito do recurso, deve considerar-se que a impugnação deduzida pela Autora subsume-se na previsão da al. d) do n.º 2 do art. 644.º do CPC. Isto significa que o prazo para a apresentação do recurso terminou definitivamente no dia 15-06-2015, tudo nos termos das disposições conjugadas dos arts. 644.º, n.º 2, al. e), 638.º, n.º 1 e 3, e 139.º, n.º 5, todos do CPC. Logo, ao ter apresentado a minuta recursiva no dia 16-06-2015, a Autora praticou um acto fora do tempo devido, definido em termos peremptórios, ou seja, quando já estava extinto o direito que pretendia exercitar (art. 139.º, n.º 3, do CPC). Nestes termos, e com tais fundamentos, não admito o recurso interposto pela Autora no dia 16-06-2015 [art. 641.º, n.º 2, al. a), do CPC]. Notifique. Aguardem os autos pelo de-curso do prazo para a Autora, querendo, reclamar do despacho supra.

   Em 17.05.2016, atento o silêncio da parte, é proferido novo despacho com o seguinte teor: "Aguardem os autos o decurso do prazo de deserção da instância, atenta a inércia da Autora em responder à solicitação contida no despacho proferido no dia 18-11-2015 (fls. 786), reportando-se o início da dilação em curso ao termo do prazo concedido à Autora para reclamar do despacho de 18-02-2016 (fls. 813 e ss.). Notifique."

   A recorrente foi notificada deste despacho, conforme certificação CITIUS de 19.05.2016.

   Em 12.09.2016 é proferido o despacho impugnado.

   II. B.

   Estipula o art.281.º do CPC que se considera deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontra a aguardar impulso processual há mais de 6 meses.

   Entende a recorrente que deveria ter sido ouvida antes da prolação do despacho.

   A recorrida, por seu turno, refere que nada na lei impõe a audição das partes antes da prolação do despacho de extinção por deserção.

   E efectivamente assim é. A lei faz depender a deserção de despacho nesse sentido,e nada mais.

   No regime do ACPC a instância interrompia-se quando o processo estivesse parado durante mais de um ano por negligência das partes em promover os seus termo(cfr.art.º 285). A interrupção carecia de ser decretada por despacho.

   Permanecendo a parte na sua inércia, a deserção verificava-se automaticamente (ope legis - "independentemente de qualquer decisão judicial") decorridos dois anos(cfnart. 291 °,n.°1).

   Actualmente, a deserção carece de despacho nesse sentido excepto no tocante às execuções(cfr.art.281.º, n.º 4 e 5, CPC).

   No entanto, como a própria recorrida admite, há que salvaguardar o princípio genérico do contraditório consagrado no art.3.º, n.º 3, do CPC.

   Ora , no caso em apreço, a recorrente foi  devidamente alertada: i) para justificar a omissão de junção da documentação solicitada pelo tribunal na audiência prévia, como resulta do despacho de 18.11.2015; ii) para as consequências da sua inércia, conforme resulta do despacho proferido em 17.05.2016. E remeteu-se sempre ao silêncio.

   Não se desconhece o teor do Ac desta Relação' de citado pelo recorrente.

   Mas, como por outro lado se refere no Ac. do TRP de 14.06.2016 “l...II. O despacho a decretar a deserção da instância por força da aplicação de tal preceito não tem que ser, obrigatoriamente, precedido da audição prévia das partes nos casos em que, em algum momento nos autos, as mesmas tenham sido alertadas para as consequências da omissão do Impulso processual pelo prazo de deserção.”

A recorrente foi notificada para justificar a omissão de junção de documento e nada disse. E foi notificada/advertida de que os autos aguardavam o prazo de deserção atenta a sua inércia.

E, mais uma vez, nada disse.

O contraditório mostra-se, pois, devidamente assegurado.

As conclusões da recorrente improcedem na totalidade.

Em síntese diz-se o seguinte:

1. O despacho a decretar a deserção da instância por força da aplicação do art.º 281.º, n.º 1 e 4, do CPC, não tem que ser, obrigatoriamente, precedido da audição prévia das partos nos casos em que, em algum momento nos autos, as mesmas tenham sido alertadas para as consequências da omissão do impulso processual pelo prazo de deserção."

III

Considerando o que se acaba de expor julga-se improcedente a apelação, e confirma-se o despacho recorrido.»


O referido acórdão foi aprovado com um voto de vencido, a concluir que:

«Não tendo a autora/recorrente cumprido o despacho que determinou que juntasse documentos ao processo, nem tendo explicitado, como foi convocada a fazer, os motivos dessa omissão, impunha-se que o processo prosseguisse os normais trâmites; a falta do autor motiva a aplicação do disposto no art.º 417.º, n.° 2 do C.P.C., ex vi do disposto no art. 430.º do mesmo diploma e não um julgamento de extinção da instância por deserção.

Revogaria, pelos fundamentos apontados, a decisão recorrida.»

        

Nestas circunstâncias, embora se reconheça que a fundamentação que fez vencimento no acórdão se centrou, fundamentalmente, na apreciação da questão de saber se, no caso concreto, as partes deviam ter sido ouvidas antes da prolação do despacho que julgou extinta a instância por deserção, mesmo assim teve por verificados os respetivos pressupostos, mormente ao confirmar o despacho recorrido. De resto, nele se concluiu expressamente que “as conclusões da recorrente improcedem na totalidade”.  

Bem sintomático disso é ainda o facto de, no próprio voto de vencido, se discordar dessa solução, entendendo que a omissão imputada à A. não implicava o seu sancionamento com a deserção da instância.

É quanto basta para se considerar que o acórdão recorrido acabou por se pronunciar, de algum modo, sobre a verificação dos pressupostos da deserção da instância, ainda que de forma algo adesiva tanto em relação ao despacho recorrido como ao quadro legal convocado.

Termos em que improcede o invocado vício de omissão de pronúncia.


2. Quanto às demais questões


2.1. Do contexto processual relevante


Colhe-se dos autos, no que aqui importa ter presente, o seguinte desenvolvimento processual:

i) – A R., na sua contestação (a fls. 110), requereu, ao abrigo do artigo 528.º do CPC, a notificação da A. para juntar aos autos os seguintes documentos:

a) – dos planos de viagem ou navegação da embarcação para o dia 09/03/ 2011;

b) – de cópia dos documentos de identificação e registo da embarcação;

c) – de cópia do rol de tripulação e da lotação e do certificado de lotação da embarcação;

d) – de cópia dos documentos de inspeção periódica e manutenção das gruas instaladas na embarcação, relativos aos anos de 2010 e 2011.

ii) – No decurso da audiência prévia realizada, em 25/05/2015, conforme a ata de fls. 363 a 371, após prolação de despacho saneador tabelar, foi proferido despacho a identificar como objeto do litígio:

Se o sinistro sofrido pela embarcação da A. está coberto pelo seguro celebrado com a R. e, em caso afirmativo, a medida da responsabilidade desta;

 iii) – E foram enunciados os seguintes temas da prova:


1.º

Navegação da DD

2.º

Naufrágio da DD

3.º

Acompanhamento do sinistro pela Ré a partir do momento em que o mesmo lhe foi comunicado pela Autora.

4.°

Salvação da DD.

5.°

Intervenção da Ré na salvação da DD.

6.°

Caudais do rio Douro no dia do sinistro e seus antecedentes.


Autorização de navegação concedida pelo IPTM a montante de Entre-os-Rios com caudais na ordem dos 1400m3/segundo.

8.°

Configuração do rio Douro a montante da barragem de Crestuma até à barragem do Carrapatelo.

9.°

Valor de mercado da DD.

10.°

Custo da salvação da DD.

11.°

Despesas a suportar junto da autoridade marítima.

12.°

Estado de conservação da DD.

13.°

Atividade prosseguida com a DD na data do sinistro.

14.°

Falta de licença da DD para proceder à extracção de inertes.

15.°

Quantidade de inertes extraída e armazenada e capacidade para esse armazenamento por altura do sinistro.

16.°

Condições meteorológicas e de rio na data do sinistro.

17.°

Local do sinistro.

18.°

Fixação do balde da grua n.° 3 (grua de ré) da DD a um ponto fixo, não assinalado.

19.°

Consequências de tal fixação para a DD e reacção do seu mestre.

20.°

Suspensão da navegação no local do sinistro.

21.°

Não apresentação ao IPTM do plano de viagem da DD para o dia 09-03-2011.

22.°

Falta de papéis de bordo.

23.°

Inobservância do rol de tripulação e da lotação mínima de segurança.

24.°

Não acatamento pela salvadora do procedimento de emersão determinado pela autoridade marítima e recomendado pela Ré.



 iv) – Por fim, ainda na mesma audiência, foi proferido despacho em sede de diligências probatórias, a admitir, além do mais, o pedido formulado pela R. de notificação da A. para apresentação de documentos em seu poder, atenta a sua necessidade e pertinência, nos termos do artigo 429.º do CPC, determinando-se que a mesma viesse juntar aos autos, no prazo de 10 dias, o seguinte:

  “– Os planos de viagem ou navegação da embarcação para o dia 09/03/ 2011;

  – Cópia dos documentos de identificação e registo da embarcação;

  - Cópia do rol de tripulação e da lotação e do certificado de lotação da embarcação;

  - Cópia dos documentos de inspeção periódica e manutenção das gruas instaladas na embarcação, relativos aos anos de 2010 e 2011.”

v) – Posteriormente, foi proferido o despacho de fls. 786, datado de 18/11/2015, a ordenar a notificação da A. para, em 10 dias, justificar por que razão não deu cumprimento ao despacho proferido na audiência prévia em que se determinou que ela apresentasse os documentos solicitados pela R., fazendo-se ali a indicação expressa dos mesmos.

vi) – Em 18/02/2016, foi proferido o despacho de fls. 813, a rejeitar, com fundamento em extemporaneidade, o recurso interposto pela A., em 16/ 06/2015 (fls. 401 e seguintes), do despacho proferido na audiência prévia que lhe negou a concessão do prazo de cinco dias para apresentar o seu requerimento probatório, mandando-se aguardar o decurso do prazo para a mesma A. reclamar, querendo, desse despacho de rejeição;      

vii) – Em 18/05/2016, foi proferido o despacho de fls. 815 com o seguinte teor:

«Aguardem os autos o decurso do prazo de deserção da instância, atenta a inércia a Autora em responder à solicitação contida no despacho proferido no dia 18-11-2015 (fls. 786), reportando-se o início da dilação em curso ao termo do prazo concedido à Autora para reclamar do despacho de 18/02/2016 (fls. 813 e ss.)

Notifique.»

viii) - Em 12/09/2016, foi proferido o despacho de fls. 816 nos seguintes termos:

«Atento o teor do despacho que antecede [despacho de fls. 815], o qual não foi posto em crise pelas partes, e a inércia prolongada na Autora em promover o andamento dos autos, julgo deserta a instância por considerar concretamente preenchida a previsão do art. 281.º, n.º 1, do CPC.»

 ix) – A A. interpôs recurso de apelação do despacho de fls. 816 no âmbito do qual foi proferido o acórdão ora recorrido. 

2.2. Quanto à questão da falta de audição prévia das partes sobre a deserção da instância


Neste particular, sustenta a Recorrente que o tribunal da 1.ª instância omitiu a necessária audição prévia das partes, em especial da A., sobre a deserção da instância que acabou por ser decretada.

Sucede que, conforme se expõe no acórdão recorrido e resulta do contexto processual acima descrito, a A. foi expressamente prevenida através do despacho de fls. 815, datado de 18/05/2016, de que os autos ficavam a aguardar “o decurso do prazo de deserção da instância, atenta a [sua] inércia em responder à solicitação contida no despacho proferido no dia 18/ 11/2015 (fls. 786), reportando-se o início da dilação em curso ao termo do prazo concedido (…) para reclamar do despacho de 18/02/2016 (fls. 813 e segs.). E nada veio dizer até ser proferido o despacho de fls. 816, datado de 12/09/2016, que decretou a deserção da instância.

Nestas circunstâncias, não se tem por violado o princípio do contraditório nem se mostra que o despacho da 1.ª instância a decretar a deserção da instância constitua, quanto à A., decisão-surpresa nos termos do artigo 3.º, n.º 1 a 3, do CPC, tal como se decidiu no acórdão recorrido.

Improcedem, pois, também neste particular, as razões da Recorrente.


2.3. Quanto ao invocado erro de direito sobre os pressupostos da deserção da instância


Como já acima ficou dito, o acórdão recorrido confirmou integralmente o despacho da 1.ª instância que declarou deserta a instância com fundamento na inércia prolongada da A. em promover o andamento do processo, ao não responder à solicitação contida no despacho proferido a fls. 786, datado de 18-11-2015, relativamente à falta de junção aos autos, que lhe foi oportunamente determinada, dos documentos supra indicados, considerando assim concretamente preenchida a previsão do art. 281.º, n.º 1, do CPC. E fê-lo, tendo por improcedente a totalidade das conclusões da então apelante, nas quais se incluía a alegada violação dos artigos 281.º, n.º 1, e 429.º, n.º 2, ambos do CPC.  

Significa isto que a Relação, em face da inércia da A. demonstrada nos autos, naquele particular, considerou, de modo taxativo, verificados os pressupostos da deserção da instância previstos no indicado artigo 281.º, n.º 1, sem sentir necessidade de se embrenhar na argumentação da apelante tendente a caracterizar o erro de direito invocado nesse domínio.

Todavia, foi lavrado voto de vencido a dissentir de tal solução, entendendo que a omissão imputada à A. não era determinativa da deserção da instância.

E é também nessa linha que a ora recorrente pede revista.


Assim sendo, a questão que aqui se coloca consiste em saber se, não tendo a A. procedido à junção dos documentos para que foi notificada conforme o despacho instrutório proferido na audiência prévia a fls. 370 e, subsequentemente, reiterado através dos despachos de fls. 786, datado de 18/11/2015, e de fls. 815, datado de 18/05/ 2016, neste caso sob a cominação da deserção da instância, incorreu em inércia negligente do impulso processual determinativa da extinção da instância por via da referida deserção.


Vejamos.      


Desde logo, o artigo 277.º, alínea c), do CPC prevê como causa da extinção da instância a sua deserção, o que se traduz numa forma extintiva da relação jurídico-processual sem qualquer pronunciamento sobre o mérito da causa. 

E, nos termos do artigo 281.º do CPC, no que aqui releva:  

1 – Sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.

(…)

4 – A deserção é julgada no tribunal onde se verifique a falta, por simples despacho do juiz ou do relator.


Nesse quadro normativo, a deserção da instância depende da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos:

a) – A inércia de qualquer das partes em promover o andamento do processo, imputável a título de negligência;

b) A paragem do processo por tempo superior a seis meses, a contar do momento em que a parte devia ter promovido esse andamento.


Tal vicissitude radica no princípio da auto-responsabilidade das partes, na medida em que lhes incumba o impulso processual subsequente, o que deve ser aferido, à luz do disposto na diretriz geral do artigo 6.º, n.º 1, do CPC, em função do ónus de impulso especialmente imposto por lei àquelas, cumprindo, por seu turno, ao juiz dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação.  

Assim, casos há em que a instância só pode prosseguir quando a parte pratique determinado ato ou promova determinado procedimento incidental, como, por exemplo, quando se torne necessária a habilitação dos herdeiros de uma parte falecida na pendência da ação, nos termos do artigo 351.º e seguintes do CPC. Noutros casos, pode a lei fazer depender o prosseguimento da causa da junção de determinado documento, para o que a parte deve então ser convidada a fazê-lo como se preceitua no artigo 590.º, n.º 3, parte final, do CPC.

Nessas situações, estamos perante a figura do ónus processual relativo ao desenvolvimento da instância, o qual consiste na necessidade de a parte adotar o comportamento processual legalmente prescrito, sob pena de sofrer uma desvantagem, como é o da deserção da instância.

Situação distinta é aquela em que as partes se encontrem adstritas a deveres de conduta processuais, nomeadamente o dever de cooperação genericamente previsto no artigo 7.º do CPC e, mais especificamente, o dever de cooperação para a descoberta da verdade prescrito no artigo 417.º do mesmo Código.

Neste domínio, diferentemente do que sucede com a inobservância de um ónus processual, o incumprimento de um dever processual implica a aplicação à parte infratora de multa e a adoção de medidas coercitivas.

No respeitante ao dever processual de cooperação para a descoberta da verdade estabelecido no artigo 417.º, n.º 1, do CPC, o n.º 2 deste normativo prescreve que:

Aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrentes do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil.

 

E mais precisamente, no referente à junção de documentos probatórios que se encontrem em poder da parte contrária à parte onerada com a prova de determinado facto, o artigo 429.º do CPC faculta ao interessado o direito de requer a notificação daquela para, dentro do prazo que for designado, os apresentar. Se ela o não fizer, o artigo 430.º do mesmo diploma manda aplicar as sanções estabelecidas no n.º 2 do artigo 417.º acima transcrito.

Nessa conformidade, o incumprimento da parte em sede do dever de apresentação de um documento probatório poderá ter como consequência a condenação da parte faltosa em multa e ainda a livre apreciação do valor da recusa para efeitos probatórios, incluindo a inversão do ónus da prova. E se o documento se destinar a demonstrar factos cujo ónus probatório incumba à própria parte que o não junte, será esta desfavorecida pela falta de prova desse facto, sem prejuízo de poder ser condenada como litigante má fé instrumental, nos termos do artigo 542.º, n.º 2, alíneas c) e d), do CPC.

Ou seja, salvo tratando-se de documento de que a lei faça depender o prosseguimento da ação, o incumprimento do dever da parte mormente no tocante à apresentação de documentos probatórios para que foi notificada não se reconduz a inobservância do ónus de impulso processual especialmente imposto por lei nem se inscreve sequer na economia do desenvolvimento da instância, não sendo, portanto, determinativo da sua deserção nos termos do artigo 281.º, n.º 1, do CPC, sendo, quando muito, suscetível de se repercutir no plano probatório do julgamento de mérito.

        

No caso dos autos, a A. foi notificada para juntar os documentos acima referidos, destinados a provar factos que se inscrevem no âmbito dos temas da prova. E não se depreende sequer que o mero prosseguimento da causa dependa da junção de tais documentos, nem tão pouco foram como tal referenciados na fundamentação da decisão que decretou a deserção da instância.

Assim sendo, não se mostra lícito ter por verificada a inércia da mesma A. em sede de inobservância do ónus do impulso processual subsequente, nos termos acima expostos, donde resulta a falta de preenchimento do correspetivo pressuposto para que fosse declarada tal deserção.


É certo que a A. foi notificada no sentido de que, atenta a falta de junção desses documentos, os autos ficavam a aguardar o decurso do prazo de deserção da instância, nos termos do despacho de fls. 815, de 8/05/ 2016, o qual não foi então objeto de impugnação. 


Porém, uma tal cominação não tem a virtualidade de produzir efeitos de caso julgado formal a impor a subsequente declaração da deserção da instância. Nem se afigura que a perspetivada cominação fosse, sem mais, suscetível de recurso, que só cabe da decisão que a concretize através da declaração de deserção, como sucedeu no caso.

Posto isto e sem necessidade de mais considerações, não resta senão concluir pela verificação do erro de interpretação e aplicação do disposto no artigo 281.º, n.º 1, do CPC em que incorreu a decisão recorrida, ao imputar à A. a inércia do impulso processual, impondo-se a sua revogação e consequente determinação do prosseguimento da causa.  


V - Decisão


Pelo exposto, acorda-se em:

A) – Julgar improcedentes:

a) – a arguição da nulidade do acórdão recorrido fundada em omissão de pronúncia;

b) – a questão da falta de audição prévia das partes sobre a deserção da instância;

B) – Não obstante isso e quanto ao mais, conceder a revista, revogando-se a decisão recorrida e, em sua substituição, ordenando-se o prosseguimento da causa.  


 As custas do recurso ficam a cargo da R./Recorrida.


Lisboa, 3 de maio de 2018

Manuel Tomé Soares Gomes (Relator)

                                      

Maria da Graça Trigo

Maria Rosa Tching

        

____________

[1] A este propósito, vide Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 3.ª Edição, 2016, p. 308.
[2] A este propósito, vide Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. VI, Coimbra Editora, 1981, p. 200.
[3] No mesmo sentido, e com mais desenvolvimento, vide acórdão do STJ, de 28/01/2016, relatado por Abrantes Geraldes e em que o ora relator interveio como adjunto, proferido na revista n.º 1006/12. 2TBPRD.P1-A.S1, acessível na Internet