Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B2093
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MOITINHO DE ALMEIDA
Descritores: DEPOIMENTO DE PARTE
DEPOIMENTO DE TESTEMUNHA
DESCENDENTE
HABILITAÇÃO
ADVOGADO
MANDATO
INCUMPRIMENTO
NEGLIGÊNCIA
OBRIGAÇÕES DE MEIOS E DE RESULTADO
Nº do Documento: SJ200307080020932
Data do Acordão: 07/08/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL GUIMARÃES
Processo no Tribunal Recurso: 1624/02
Data: 01/29/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : I-Os sucessores habilitados da Autora não podem ser admitidos a depor como testemunhas.
II- As obrigações que recaem sobre o advogado são, em princípio, puras obrigações de meios dependendo, assim, a prova do incumprimento do mandato da prova da negligência.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. "A" intentou a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra B, pedindo a condenação do Ré a pagar-lhe a quantia de Esc.7.500.000$00.
Alegou para o efeito e em substância que o Réu, advogado seu mandatário, não exerceu o mandato com a diligência devida, causando-lhe prejuízos no valor mencionado.
A Autora faleceu em 25 de Agosto de 2000, tendo sido julgados habilitados como únicos herdeiros C, seu marido, e D, E, F e G, seus filhos.
Na audiência de julgamento foi negado o depoimento de C e D por terem a qualidade de parte no processo. Desta decisão foi interposto recurso de agravo.
A acção foi julgada improcedente.
Por acórdão de 29 de Janeiro de 2003, a Relação de Guimarães negou provimento ao agravo e julgou parcialmente procedente a apelação dos autores habilitados na parte em que os condena em custas.
Inconformado, recorreu F para este Tribunal, concluindo as alegações da sua revista nos seguintes termos:
1. No entender do recorrente, o douto acórdão recorrido carece de mérito quanto ao decidido sobre o agravo interposto nos autos, relativamente à questão de saber se podem, ou não, prestar o seu depoimento em audiência de julgamento, como testemunhas arroladas (no caso, por ambas as partes, autora e réu), dois sucessores "mortis causa" da autora A, entretanto falecida, precisamente na qualidade de sucessores, para fazerem prosseguir os termos da acção;
2. Em primeira instância, o despacho de fls.163-164, perfilhou o entendimento de aqueles sucessores da autora haviam passado a ocupar o lugar de partes na acção.
3. Por sua vez, o douto acórdão proferido, invocando o disposto no artº. 617º do C.P. Civil, decidiu que os referidos sucessores habilitados são, não partes, mas antes representantes da parte falecida: "Os sucessores habilitados no decurso da acção, prosseguindo na lide na qualidade de representantes da parte falecida, com ela se identificando, não podem nela depor na qualidade de testemunhas."
4. Sucede efectivamente que, entende o recorrente, em contrário do ali decidido, tratar-se a habilitação dos sucessores e a posterior intervenção destes no processo de uma modificação subjectiva na relação substantiva em litígio, em conformidade com o que resulta do disposto no artº. 270º, al.a) do C.P.Civil.
5. Ou seja, consiste assim essa intervenção dos sucessores habilitados numa mera substituição da parte falecida, com vista a possibilitar-se o prosseguimento da acção, de acordo, precisamente, com o direito substantivo sucessório (cfr. Acórdão da Relação do Porto de 25/06/98-Processo: 9830710, Ac. da Relação de Porto de 04/11/93- Processo:9250187).
6. Com efeito, como previsto no artº. 2024º do C.Civil "Diz-se sucessão o chamamento de uma ou mais pessoas á titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam".
7. Estatuindo, por outro lado, a norma do artº. 2068º do C.Civil que "a herança responde pelas despesas com o funeral e sufrágios do seu autor, pelos encargos com testamentaria, administração e liquidação do património hereditário, pelo pagamento das dívidas do falecido e pelo cumprimento dos legados".
8. De facto, supondo que, numa acção instaurada para obter o pagamento de uma dívida pecuniária, o réu na mesma vem a falecer na sua pendência, então, a entender-se que os sucessores habilitados do réu serão partes na acção, no caso de sobrevir condenação nessa mesma acção, esses sucessores ficariam necessariamente vinculados a pagar a dívida, através do seu património pessoal, o que, como já visto, contraria directamente o disposto no artº. 2068º do C. Civil: é a herança a responsável pelo pagamento das dívidas do falecido...
9. É, assim, evidente que nunca poderão vir a ser penhorados bens pessoais dos sucessores habilitados, sob pena de ser tal penhora objectivamente ilegal, como resulta directamente do disposto no artº. 827º, nº. 1, do C.P.Civil, e vem sendo sucessivamente decidido, nesta matéria, pelos tribunais superiores, designadamente, entre outros, pelo Ac. da Relação do Porto de 10/10/2000 (Recurso nº. 344/00, in " Col. Jurisprud.", T IV, pág. 203).
10. Por consequência, entende o recorrente, salvo melhor opinião, que deverá ser revogado o acórdão sub iudice, decidindo-se decretar a anulação da audiência de julgamento efectuada nos autos e a realização de novo julgamento, no qual sejam admitidos a prestar depoimento testemunhal os mencionados sucessores habilitados da autora.
11. Sem prescindir, por outro lado, no entender do recorrente, compulsada toda a matéria de facto dos autos, bem como o relatório pericial de fls...., resulta devidamente fundamentada a procedência da presente acção.
12. Na verdade, a casa de habitação descrita em C) da matéria assente, tendo um valor corrente, a preços de mercado, de Esc.15.000.000$00 (...), conforme consta do relatório pericial de fls..., veio a ser arrematada, pela própria exequente, pela quantia irrisória de Esc.: 80.000$00 (...)- cfr. als. D) e E) da matéria assente..
13. Tendo sucedido que, o mandatário da autora, réu nos presentes autos, não compareceu a essa arrematação - cfr. al. F) da matéria assente.
14. Por outro lado, o património da herança aberta por óbito de H, sogro da autora, tendo um valor total não inferior a Esc. 45.945.000$00 (...), conforme consta igualmente do relatório pericial de fls..., correspondente a dois prédios urbanos, trinta e um prédios rústicos e duas sepulturas no cemitério paroquial de Candemil, significa um direito à herança da autora de valor não inferior a Esc. 5.000.000$00 (...), como alegado pela autora em 17º a 20) da petição inicial e o número de herdeiros - cfr. als. K), L) e M) da matéria assente e, ainda, o doc. junto com a petição inicial, sob nº. 7.
15. Ora, o direito à herança referido, pertencente à autora, veio a ser arrematado, pela própria exequente, pela quantia de Esc.101.000$00 (...) - cfr. al. H) e I) da matéria assente.
16. Tendo sucedido, mais uma vez, que o mandatário da autora, ora réu, não compareceu a essa arrematação - cfr. al. J) da matéria assente.
17. Sendo todos os factos descritos do pleno conhecimento do réu, atenta a sua qualidade de mandatário da autor cfr. al. N) da matéria assente.
18. Resulta, pois, evidente que o réu se alheou do resultado das arrematações judiciais dos bens e direitos em causa, pertencentes à autora, desde logo ao não comparecer a tais arrematações, como lhe competia e era seu dever profissional.
19. O que, a ter acontecido, poderia ter evitado a arrematação de bens valiosos pelo preço irrisório por que foram alienados à exequente, "I";
20. Inclusive, o réu poderia e deveria ter diligenciado no sentido de, por aqueles preços de alienação dos bens; tão míseros e baixos, aconselhar de imediato um dos descendentes da autora a exercer o respectivo direito de remissão, "salvando" desse modo o património da autora.
21. Por consequência, é entendimento convicto do recorrente, o de que o réu não cumpriu os deveres profissionais de mandatário e advogado a que se encontrava vinculado para com a autora, fazendo-o incorrer, salvo melhor opinião, em responsabilidade civil, nos termos dos artºs. 485º, nº e 486º do Código Civil, e do artº. 83º, nº. 1 al. d) do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo Dec.-Lei nº. 84/84, de 16-3 ("Estudar com cuidado e tratar com zelo a questão de que seja incumbido, utilizando para o efeito, todos os recursos da sua experiência, saber e actividade.")
22. Prescrevendo, também, o artº. 1178º, nº. 2 do C. Civil, a este respeito, que, "o mandatário a quem hajam sido conferidos poderes de representação tem o dever de agir não só por conta, mas em nome do mandante, a não ser que outra coisa tenha sido estipulada".
23. Assim, em consequência, como peticionado, deverá ser o réu condenado a indemnizar a autora pelos danos resultantes da sua conduta ilícita - cfr. artº. 483º, nº. 1, do Código Civil -, com o que se fará justiça.
24. O douto acórdão recorrido, por incorrecta interpretação e aplicação dos normativos legais, terá violado, salvo melhor opinião, o disposto nos artigos 483º, nº. 1, 485º, nº. 2 e 486º, 1178º, nº. 2, 2068º e 2071º, todos do Código Civil, no artigo 83º, nº. 1, al. d), do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo Dec.-lei nº. 84/84, de 16-3, e ainda o disposto nos artigos 446º, nºs. 1 e 2, 827º, nº1, ambos do Código de Processo Civil.

2. É a seguinte a matéria de facto dada como provada pelas instâncias:
Em 28 de Dezembro de 1994, o Réu foi constituído mandatário judicial da Autora no processo nº. 142/93 (execução ordinária) do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova de Cerveira, ainda a correr seus termos, em que a Autora é co-executada, sendo exequente "I".
Tal mandato judicial produziu todos os devidos e legais efeitos, pelo menos até 23 de Fevereiro de 1999, data em que a Autora procedeu à revogação do mesmo.
Em 16 de Abril de 1996, para pagamento da dívida exequenda no montante de Esc. 4.080.123$00 foi efectuada, naqueles autos de execução ordinária arrematação em hasta pública do seguinte prédio urbano:- Casa de habitação sita na Avenida ..., freguesia de Vila Nova de Cerveira, a confrontar do Norte com arruamento, do Nascente com C.M. lote ..., do Sul ... e outro e do Poente com caminho público, com área coberta de 94 m2 e com logradouro de 165 m2, omissa na Conservatória do Registo Predial e inscrita na matriz-predial urbana sob o artº. 677º, com valor tributável de Esc. 67.276$00.
O qual foi arrematado pela quantia de Esc. 80.000$00, tendo sido arrematante a própria exequente, representada pelo seu mandatário judicial.
O mandatário da Autora não compareceu a essa arrematação.
Em 28 de Junho de 1996, para pagamento da dívida exequenda, foi efectuada nos mesmos autos, a arrematação em hasta pública dos seguintes direitos pertencentes à Autora:
- o direito à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de J, residente em Vila Nova de Cerveira e falecido em 18 de Julho de 1982.
- o direito à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de H, residente em Candemil e falecido em 5 de Março de 1979.
Os quais foram arrematados, cada um, pela quantia de Esc. 101.000$00, tendo sido arrematante a própria Exequente.
O mandatário da Autora, ora Réu, não compareceu a essa arrematação.
Foi essa quantia de Esc. 5.000.000$00 que a exequente, em 30 de Dezembro de 1997, em resultado de um acordo extrajudicial e como forma de pagamento desse direito que havia adquirido na mencionada arrematação judicial, recebeu da herdeira e directa interessada na partilha, L, irmã do marido da Autora, através de cheque da "I".
Devendo referir-se que da herança de H faziam parte, para além de uma pistola e de uma quota, com o valor de Esc. 580.500$00, na firma "Panificação ..., Lda." e nada menos que 35 imóveis:
a- dois prédios urbanos
b- trinta um prédios rústicos;
c- duas sepulturas no cemitério paroquial de Candemil.
Os bens da herança de H foram partilhados judicialmente, através do processo de inventário que correu seus termos no Tribunal Judicial de Vila Nova de Cerveira.
Todos os factos supra descritos eram do pelo conhecimento do Réu, atenta a sua qualidade de mandatário da Autora nos autos de execução em referência.
Em 25 de Janeiro de 1995, o mandatário da Autora, ora Réu, intentou acção para separação de meações da Autora e seu marido, C. Nesse processo, o Réu fez a p.i., acompanhou C nas declarações de cabeça de casal e apresentou relação de bens.
O processo 14/B/93 foi à conta e aguarda, desde 12/02/97, a deserção da instância.
Os direitos às heranças ilíquidas e indivisas em causa foram penhorados em 19/02/96.
Em 13/11/95, o Réu, mandatário do marido da Autora, intentou acção de embargos de terceiro, em que se pedia ao Tribunal que desse sem efeito a hasta pública.
O marido da Autora desistiu dos referidos embargos.
O Réu, como mandatário de M, deduziu, à execução 142/93, novos embargos de terceiro, com o fundamento de que o bem penhorado (o bem imóvel em causa nos autos) era de M, mãe da Autora, da Autora e de uma irmã.
O Tribunal decreta a extinção da instância.
Interveio no processo 14-E/93, mormente no processo principal 142/93, N e marido, que pelo seu mandatário, Dr. O, requereu a suspensão da praça aprazada para o dia 16 de Abril de 1996, requerimento que foi indeferido.
O Réu, como mandatário de C, intentou em 13/06/96 novos embargos de terceiro que correram seus termos sob o nº. 142-F/93, os quais, após produção de prova, foram indeferidos.
O prédio urbano arrematado está situado na área central de Vila Nova de Cerveira, sendo constituído por uma casa de habitação, de rés-do-chão e primeiro andar, e tendo boas condições de habitabilidade.
O Réu promoveu várias reuniões com a "I" e com o seu mandatário, Dr. P, e com o responsável da área da referida instituição, Dr. Q em que procurou acordar formas de pagamento das dívidas da Autora.
A Autora não cumpriu os referidos acordos em que a "I" lhe deu todas as possibilidade de pagar.
O Réu aconselhou a Autora a pagar o que devia.

3. Agravo
Considera o Recorrente que os sucessores habilitados da Autora não podem ser considerados partes sendo-lhes, por isso inaplicável o disposto no artigo 617º, do Código de Processo Civil que estabelece: "Estão impedidos de depor como testemunhas os que na causa possam depor como partes".
Trata-se de meros substitutos da falecida cuja intervenção no processo se destina a assegurar o seu prosseguimento. E a prova é que a responsabilidade dos sucessores se encontra limitada aos bens da herança.
Carece, porém, de razão.
Como se observa no acórdão recorrido, "O depoimento de parte é o meio processualmente consentido e destinado à concretização da confissão das partes; e, se é assim, compreende-se que não possa depor como testemunha quem só deve ser chamado a juízo para declarar se aceita ou não a versão dos factos adiantada pela parte contrária e que, nessa medida, poderá ser prejudicado..."
Por isso, não podem depor como partes os representantes das sociedades comerciais (acórdão do S.T.J. de 5 de Maio de 1992, no B.M.J., nº. 417, p. 626) ou, em geral, de pessoas colectivas (entre outros, o acórdão do S.T.J., de 5 de Dezembro de 1991, processo nº. 80917), bem como os descendentes (acórdão do mesmo Tribunal de 28 de Novembro de 1995, na Colect. Jur. S.T.J., 1995, III, p. 126º.).

4. Revista
É, aqui, também manifesta a improcedência do recurso.
A eventual responsabilidade civil do Réu assenta no contrato de mandato, do qual resultam para o advogado, em princípio, puras obrigações de meios, isto é, compromete-se a representar o cliente utilizando os conhecimentos e a diligência de um bom profissional sem assegurar qualquer resultado. Nesta condições, a prova do incumprimento do contrato, que pertence a este último (artigo 799º, nº. 1 do Código Civil), implica a prova da negligência.
Ora, resulta da matéria de facto dada como provada que o Réu promoveu várias reuniões com representantes da "I" exequente com vista ao pagamento das dívidas da Autora e que os acordos aí obtidos não foram por esta respeitados, a quem foram dadas todas as possibilidades de pagar. Interveio ainda na execução, pedindo que fosse dada sem efeito a hasta pública e tentou opor-se mediante embargos de terceiro que foram indeferidos.
E não se provou que os bens em causa tivessem o valor que o Recorrente lhes atribui (resposta negativa aos quesitos 5º e 7º).
Como entenderam as instâncias, não existe, pois, negligência por parte do Réu que agiu como um profissional competente. E cabia ainda ao Recorrente fazer a prova de que a não comparência em ambas as hastas públicas fora a causa dos prejuízos alegados, designadamente pelas razões que agora invoca (possibilidade de intervenção da familiares na arrematação), o que manifestamente não conseguiu.

Termos em que nega a revista.
Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 8 de Julho de 2003
Moitinho de Almeida
Ferreira de Almeida
Abílio Vasconcelos