1. AA, mais detidamente identificado nos autos, preso preventivamente no Estabelecimento Prisional Regional de ......, foi condenado pelo Juízo Central Criminal de .........-J.../ Tribunal Judicial da Comarca de ......... pela prática, em autoria material e, em concurso efetivo, de:
- Um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 14.º, 131 e 132, n.ºs 1 e 2, alínea a), ambos do Código Penal (na pessoa do seu filho CC), na pena de 17 (dezassete) anos de prisão; e
- Um crime de violência doméstica, previsto e punido pelos artigos 14.º, 152.º, n.º 1, als. a) e n.º 2 do Código Penal (na pessoa da sua esposa BB), na pena de 3 (três) anos de prisão
E em cúmulo jurídico das penas parcelares acima referidas, foi condenado na pena única de 18 (dezoito) anos de prisão.
2. Inconformado, recorreu desta decisão, tendo, contudo, o Tribunal da Relação de ......... integralmente confirmada a referida decisão da 1.ª Instância.
3. De novo irresignado, o arguido veio interpor recurso para este Supremo Tribunal de Justiça. Da respetiva Motivação retirou as seguintes Conclusões:
“1. O tribunal a quo, não obstante toda a motivação do recurso do recorrente, caiu precisamente no mesmo erro do tribunal de 1.ª instância, fazendo uma errada análise e apreciação da prova dos autos, uma errada qualificação jurídica dos crimes imputados ao ora recorrente e uma errada medida das penas que lhe foram aplicadas, o que, aos olhos do recorrente, consubstancia uma flagrante injustiça, com a qual este não se pode conformar.
2. É notório o erro na apreciação da prova, especialmente, nos pontos 19; 20; 23; 25; 30; 32 e 33 dos factos dados como provados pela 1.ª instância e mantidos na íntegra pelo tribunal recorrido.
3. Ao elencar no rol dos factos provados que “19. Na medida em que o arguido não se acalmava, CC agarrou o arguido pelo braço, de modo a levá-lo para o interior da residência” e que “20. O arguido tentou-se soltar, esbracejando, ao que perdeu o equilíbrio e caiu no chão”, o tribunal a quo dá como provado factos logicamente inaceitáveis, notoriamente errados, que não podiam ter acontecido, face às lesões que o arguido apresentava à data dos factos, constantes do relatório pericial de fls. 162 a 218 dos autos, nomeadamente, de fls. 164 a 171.
4. Segundo aquele relatório pericial, o arguido apresentava duas feridas superficiais lineares e paralelas na zona zigomática direita (foto 16 – fls. 164); um hematoma na pálpebra esquerda (foto 17 – fls. 164); feridas na zona da clavícula direita (foto 25 – fls. 167); duas feridas no cotovelo esquerdo (foto 26 – fls. 167); uma ferida linear, com cerca de 2,5 cm, na zona entre o metacarpo e a falange do dedo polegar direito (fotos 27 e 28 – fls.168); uma ferida junto ao dedo médio direito (foto 29 – fls. 169); uma inflamação e uma ferida no joelho esquerdo (fotos 31 e 32 – fls. 170) e inflamação na zona da canela esquerda (fotos 33 e 34 – fls. 171).
5. Ditam as regras da física e da experiência comum que as lesões supra descritas não são, de todo, compatíveis com uma mera queda no chão, resultante de uma mera perda de equilíbrio.
6. Ninguém que, ao esbracejar, perda o equilíbrio e caia no chão apresenta simultaneamente lesões na zona zigomática direita; na pálpebra esquerda; na clavícula direita; no cotovelo esquerdo; no joelho esquerdo; na canela esquerda e ainda uma ferida linear, com cerca de 2,5 cm, na zona entre o metacarpo e a falange do dedo polegar direito e uma ferida junto ao dedo médio direito.
7. Se tivesse acontecido como o tribunal entendeu, que não foi, o recorrente poderia, eventualmente, apresentar lesões ou na zona esquerda do corpo, ou na zona direita, conforme a queda tivesse sido para o lado esquerdo ou para o lado direito, mas nunca apresentaria lesões em ambos os lados, nem na face, nem golpes de 2,5 cm entre os dedos.
8. As lesões na face do arguido e na clavícula direita, em simultâneo com as lesões no cotovelo, no joelho e na canela esquerdos e ainda com os golpes profundos entre os dedos das suas mãos, são incompatíveis com uma mera queda no chão por desequilíbrio, mas totalmente compatíveis com agressões físicas desferidas pela vítima.
9. O hematoma na pálpebra esquerda; as feridas na zona da clavícula direita e no cotovelo esquerdo; a inflamação e a ferida no joelho esquerdo e a inflamação na zona da canela esquerda demonstram inequivocamente as agressões que o arguido referiu ter sofrido por parte do filho – fls. 8 do Auto de Interrogatório de Arguido, de 03/06/2019, 10. Assim como as feridas na zona zigomática direita; a ferida linear, com cerca de 2,5 cm, na zona entre o metacarpo e a falange do dedo polegar direito e a ferida junto ao dedo médio direito demonstram inequivocamente que também o arguido foi atingido, no seu corpo pela mesma faca que acabou por vitimar o seu filho, e que só este lhas poderia ter infligido, dado o arguido ser destro, como resulta do exame médico-legal de 10/10/2019, uma vez que, sendo o arguido a empunhar a faca, o faria na mão direita, sendo-lhe impossível auto desferir tais golpes nessa sua mesma mão.
11. O facto de existir material hemático pertencente tanto ao arguido como à vítima, no cabo de madeira da faca dos autos – cfr. fls 189 e fls. 325 dos autos, como de se encontrar a presença de perfis genéticos compatíveis tanto com os perfis da vítima, como com os do arguido, nas unhas da vítima– cfr. fls. 325 dos autos, demostra inequivocamente que existiu uma luta prévia ao fatídico desfecho entre o arguido e a vítima, como relatado por aquele.
12. O mesmo resulta das fotos juntas com o relatório pericial de fls. 162 a 218 dos autos, nomeadamente, as fotos 74 e 75 (fls. 193); 76 e 77 (fls. 194); 78 (fls. 195) e 81 (fls. 196) e do relatório final da PJ, de 03/10/2019, onde se descreve que “na zona utilizada pela vítima como quarto (…) evidenciava sinais de luta, observando-se ali muita desarrumação resultante eventualmente de terem andado ali envolvidos, designadamente, os tapetes enrolados e uma mesa tombada e conspurcada com material supostamente de origem hemática” cfr. fls. 300 dos autos.
13. Tal luta não é compatível com uma mera tentativa de tentar retirar a faca da mão do recorrente, como preceitua o tribunal a quo, mas antes demonstradora de um sério confronto físico entre pai e filho, que conduziu ao fatal desfecho da morte deste.
14. Não é logicamente aceitável que o tribunal caia duas vezes no mesmo erro de olhar para o desfecho do caso dos autos sem analisar com perspicácia e atenção a prova pericial (documentada, na maior parte das vezes, por fotografias) existente nos autos.
15. Ao elencar no rol dos factos provados que “23. Na cozinha, o arguido retirou de uma gaveta uma faca de cozinha, uma das quais com uma lâmina de inox com 11,5 cm de comprimento e um cabo de madeira com 9,5 cm de comprimento”, o tribunal a quo dá como provado um facto notoriamente errado, que não podia ter acontecido, face ao teor dos relatórios periciais de fls. 226 a 229 e de fls. 285 a 328 dos autos, de acordo com os quais não foi encontrado qualquer vestígio pertencente ao arguido na gaveta de onde terá sida alegadamente retirada a faca que atingiu a vítima.
16. E ao elencar no rol dos factos provados que “25. No momento em que estava a tentar fechar a porta, o arguido, com a referida faca com lâmina de inox com 11,5 cm de comprimento e um cabo de madeira com 9,5 cm de comprimento, e por forma a conseguir abrir a porta para poder esfaquear o seu filho, atingiu a ofendida com um golpe no dedo polegar direito” e que “30. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido (descrita em 25.), a ofendida BB sofreu as seguintes lesões: - Membro superior direito: ferimento linear na face palmar da falange distal do 1.º dedo da mão (mais concretamente na face medial, estendendo-se à face anterior), curvilíneo, de abertura infero-lateral, com uma extensão de 1,3 cm e uma profundidade máxima de 0,1 a 0,2 cm em área de máximo afastamento dos bordos (0,2 cm). Mobilidades ativas e passivas do referido dedo conservadas, contudo, dolorosas nos graus máximos de flexão da articulação interfalângica distal”, o tribunal a quo dá como provado factos logicamente inaceitáveis, notoriamente errados, que não podiam ter acontecido, face aos relatórios periciais de fls. 190; 191 e 325 dos autos, segundo os quais, da porta que alegadamente a testemunha BB haja querido fechar, de modo a evitar que o arguido viesse ao exterior da casa ter com o filho, apenas foram detetados vestígios hemáticos pertencentes à própria testemunha e à vítima.
17. Impunha-se ao tribunal a quo que, “para prova dos factos 14 a 27” tivesse sabido dissecar rigorosamente o depoimento da testemunha e assistente BB com a prova pericial existente nos autos, tendo em conta a análise lógica da situação, baseada em critérios de ciência e de experiência comum.
18. De acordo com os relatórios periciais de fls. 190; 191 e 325 dos autos, inexistem quaisquer vestígios do arguido na porta da casa que alegadamente a ofendida pretendia fechar, que o possam relacionar com o golpe sofrido pela mesma.
19. Na livre apreciação da prova, o tribunal não pode simplesmente dar primazia aos depoimentos das testemunhas, sobretudo quando as mesmas são ofendidas nos autos, quando tais depoimentos são contraditórios com os relatórios periciais existentes.
20. O tribunal deveria ter reparado que não seria fisicamente possível que a ofendida BB tivesse sido atingida com a faca dos autos, na mão direita, pelo arguido, enquanto segurava a porta com ambas as mãos, como a mesma referiu no depoimento que prestou.
21. Efetivamente, ainda que os factos relatados pela testemunha correspondessem a alguma verdade, o que não é minimamente credível, nunca o arguido a poderia ter atingido na mão direita, com a faca, ao abrir a porta: ou, ao faze-lo, a testemunha seria imediatamente projetada para trás, juntamente com a própria porta, não dando hipótese ao arguido de a poder atingir, ou o máximo que o arguido conseguiria atingir, empunhando a faca numa das mãos, seria os dedos mínimo, anelar, médio e/ou indicador da mão esquerda da testemunha e nunca o polegar da sua mão direita.
22. Bastaria ao tribunal tentar visualizar a situação conforme foi relatada pela dita testemunha para chegar à conclusão de que, se a mesma se encontrava a exercer pressão na porta, virada de frente para esta, empurrando-a para dentro, com ambas as mãos, de forma a que o arguido a não conseguisse abrir, abrindo-se a porta, de dentro para fora e da esquerda para a direita (como demonstram as fotos 69; 70 e 71 de fls. 190 e 191 dos autos), de acordo com o logicamente aceitável, o arguido apenas poderia atingir a mão esquerda da testemunha, por ser essa a mão que mais próxima estaria da abertura da porta, e nunca a sua mão direita, que estaria do lado oposto ao da abertura
23. É rotundamente notório o erro na apreciação da prova.
24. Ao elencar no rol dos factos provados que “32. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido (descrita em 28.) CC sofreu as seguintes lesões:
• Hábito externo – Tórax:
- Solução de continuidade fusiforme, sensivelmente horizontal, de bordos rectos, nítidos e discretamente desidratados, de extremidades angulosas, com a extremidade medial em ponta de V – ferida cortante. Tal ferida no quadrante infero-medial da região mamária esquerda, medindo 3,5cm de comprimento por 7 mm de afastamento de bordos, com cauda medial ligeiramente curva para cima, que media 1,5cm de comprimento e distava, respetivamente, 6 cm do mamilo esquerdo (ao bordo superior), 11cm do bordo costal esquerdo (ao bordo inferior), 12 cm da linha média esternal (à extremidade medial);
• Hábito interno – Tórax:
- Paredes: solução de continuidade a nível do 5.º espaço intercostal esquerdo, sobre a linha média clavicular, que media, antes de perfurar o grande peitoral esquerdo na transição para o grande oblíquo esquerdo, 16mmx4mm, em correspondência com idêntica solução descrita no hábito externo;
- Clavícula, cartilagens e costelas esquerdas: solução de continuidade horizontal com 24mmx4mm a nível do 5.º espaço intercostal esquerdo sobre a linha média clavicular, em correspondência com a solução de continuidade descrita no hábito externo e plano muscular, a qual continuava, para baixo e para fora, até à 7.ª cartilagem costal esquerda;
- Pericárdio e cavidade pericárdica: ferida cortante na parte inferior da parede anterior, sobre o lado esquerdo, em relação com o ferimento dos tecidos moles descrito acima e conexa com a ferida cardíaca do ápex descrita abaixo, que media externamente 16mmx4mm;
- Coração: perfuração completa no ápex com 1,5cmx4mm, transfixiva, que atingia a parede posterior do ventrículo esquerdo, onde fazia ferida cortante com 4cm de extensão por 1 cm de profundidade, no bordo lateral do ventrículo entre ambos os músculos papilares, terminando em ponta por baixo do limite lateral da valva anterior da mitral” e que “33. As lesões traumáticas torácicas produzidas pela faca, instrumento perfuro-cortante, apresentam um trajeto daquele instrumento no corpo do ofendido CC orientado de frente para trás, da esquerda para a direita e de baixo ligeiramente para cima, numa profundidade estimada em cerca de 13-15cm, e foram causa direta e necessária da morte de CC”, o tribunal a quo dá como provado factos logicamente inaceitáveis, notoriamente errados, que não podiam ter acontecido, face ao
teor do relatório pericial de fls.. 128 a 134 dos autos.
25. De acordo com o referido relatório pericial, as lesões sofridas pela vítima são:
“EXAME AO HÁBITO EXTERNO:
(…)
Apresentava vestígios de sangue envolvendo uma lesão corto perfurante observada na face inframamária esquerda do tórax, bem como esquimose rosada de contornos irregulares na face interior ao nível do terço inferior da perna direita e uma escoriação horizontal, na região posterior do pescoço, sem correspondência com o interior e aparentemente antiga.
(…)
EXAME DAS LESÕES OBSERVADAS AO NÍVEL DO HÁBITO EXTERNO:
- Pescoço:
Na região cervical (no plano inferior à nuca): escoriação horizontal, com aspeto apergaminhado, bordos horizontais, cor vermelho escuro, com 3,5 cm x 0,4 cm, sem correspondência com o interior e aparentemente antiga (fotos 5 e 6).
- Tronco:
Na região inframamária esquerda do tórax, a cerca de 5 cm do mamilo esquerdo:
ferida incisa única, corto perfurante, praticamente horizontal, com 3,5 cm x 1,2 mm, com bordos regulares, sendo observável “cauda final” e exposição da derme devido à deliceração dos tecidos (fotos 7 a 9).
(…)
Membros Inferiores:
Perna direita, na face interior do terço inferior: esquimose superficial, rosada e de contornos irregulares (fotos 12 e 13).
EXAME AO HÁBITO EXTERNO:
Cabeça:
Ausência de fraturas aparentes ou traumatismos, com coloração uniforme.
Pescoço:
Ausência de fraturas aparentes ou traumatismos.
Tórax:
Perfuração dos tecidos da linha média do 5.º espaço intercostal da região inframamária esquerda (foto 14), com 2,6 cm x 1 cm, com infiltração sanguínea perilesional (foto 15);
Perfuração do saco pericárdio (foto 16) na sequência da solução de continuidade atrás descrita, com infiltração sanguínea proveniente da hemorragia dos tecidos e órgãos atingidos, nomeadamente coração (foto 17);
Perfuração da região inferior do coração (foto 18) na solução de continuidade da lesão atrás descrita, com hemorragia (foto 19);
Na análise e observação detalhada realizada ao coração, verifica-se perfuração do ventrículo esquerdo do mesmo órgão (fotos 20 a 22), na solução de continuidade da lesão perfurante atrás descrita;
O golpe que provocou a lesão observada indica ter sido efetuado da esquerda para a direita e ligeiramente de baixo para cima.
Abdómen:
Ausência de fraturas ou traumatismos.
(…)”
26. Tal relatório pericial foi efetuado ao cadáver da vítima em 04.06.2019, três dias após a sua morte.
27. As lesões ali descritas em nada correspondem com as lesões constantes do relatório de autópsia analisado pelo tribunal a quo.
28. De facto, insistimos, é completamente diferente, estarmos perante uma ferida cortante com a ponta de V, com 3,5 cm x 7 mm (provocada com verdadeira intenção de perfurar o corpo da vítima) ou uma ferida incisa única, praticamente horizontal, com 3,5 cm x 1,2 mm (provocada quase de raspão),
29. É completamente diferente o cadáver apresentar várias lesões, nomeadamente, nas paredes do tórax com 16 mm x 4 mm; na clavícula com 24 mm x 4 mm; no pericárdio com 16 mm x 4 mm; perfuração completa no ápex do coração com 1,5 cm x 4 mm, com uma ferida cortante de 4 cm de extensão por 1 cm de profundidade ou apresentar apenas uma lesão no tórax e no ventrículo esquerdo com 2,6 cm x 1 cm.
30. Assim como é completamente diferente as lesões traumáticas apresentarem um trajeto da faca orientado de frente para trás, da esquerda para a direita e de baixo ligeiramente para cima, numa profundidade estimada de 13-15 cm ou um golpe da esquerda para a direita e ligeiramente de baixo para cima, provocando uma ferida incisa única, praticamente horizontal, com uma perfuração de 2,6 cm x 1 cm.
31. Competia ao tribunal, ao reanalisar a prova, dar-se conta destas tão grandes disparidades e tentar averiguar a razão das mesmas.
32. O relatório de autópsia médico-legal não pode anular o relatório de perícia médico-legal ao cadáver, descrevendo factos totalmente distintos entre si.
33. O arguido não compreende em que se baseia o tribunal para, com tanta certeza, afirmar que os elementos periciais dos autos “afastam inequivocamente a versão do arguido de que a morte do filho ocorreu acidentalmente como insinua nos artigos 136.º e 137.º da motivação”, sobretudo quando dá por provado que “nesse momento apenas estavam os dois, pois a assistente tinha saído para o exterior da casa a pedir auxílio – facto n.º 27”.
34. É inequívoco que a causa da morte resultou do golpe da faca, mas daí a dar por certo que tenha sido o arguido a desferir o golpe vai uma longa distância.
35. Em momento algum o relatório da autópsia confirma que foi o arguido a desferir o golpe fatal no corpo da vítima.
36. Fica – e terá sempre de ficar - a dúvida, até porque, ninguém, além do arguido e do seu malogrado filho, assistiu ao que verdadeiramente se passou.
37. Tal dúvida, à luz do princípio de presunção de inocência, só por si, já deveria ser mais do que suficiente para que o tribunal não optasse por condenar o arguido, como o fez, muito menos à pena de 17 anos de prisão efetiva.
38. Em momento algum ficou cabalmente demonstrada a intenção de matar.
39. Nem podia, porque, de facto, nunca existiu.
40. O recorrente não compreende, nem aceita, que o tribunal dê por provada a intenção de matar, devido ao “golpe da faca na vítima, que existiu e é causa da morte”.
41. Nenhum relatório, nem nenhuma perícia são verdadeiramente capazes de demonstrar a intenção de matar nas circunstâncias dos autos.
42. Analisando-se o teor dos relatórios periciais dos autos, poderia perfeitamente ter ocorrido o mesmo resultado se fosse a vítima quem desferisse o golpe em si mesma, no meio da luta com o arguido; se a vitima se tivesse atingido acidentalmente na zona do coração, ou até mesmo que, admitindo-se, ainda que hipoteticamente, fosse o arguido a atingir a vítima, para evitar que a faca o atingisse a si, o que resultaria igualmente num acidente, e que, por não terem sido constatados quaisquer sinais corporais de defesa, designadamente, nos membros superiores da vítima, foi porque o arguido se limitou a defender do ataque do seu filho, a quem nunca quis agredir, o que facilmente se compreende, não só pela grande diferença de idades, como pela grande diferença de
compleição física de ambos (a vítima era um jovem de 36 anos, porte atlético, bem constituído, saudável, enquanto o arguido era, e é, um homem de 60 anos, porte médio, obeso, hipertenso e diabético) e, sobretudo, pelo facto de o arguido se encontrar completamente alterado, não só pelo álcool em excesso que havia consumido nessa noite, como pelas agressões que o filho já lhe havia infligido, como por toda a tensão e o stress que a própria vivência dos factos lhe provocava.
43. Não se pode condenar alguém a 18 anos de prisão efetiva sem se analisar criteriosa e imparcialmente toda a prova dos autos e sem se ter absoluta certeza do grau da culpa do agente.
44. Além do golpe fatal na região infra mamária esquerda do tórax, o ofendido não apresentava quaisquer outro tipo de ferimentos no corpo – cfr. relatório pericial de fls. 125 a 134 dos autos, nomeadamente, não apresentava quaisquer golpes de faca nas mãos – cfr. relatório pericial de fls. 125 a 134 dos autos.
45. O arguido, por sua vez, apresentava dois golpes de faca na zona zigomática direita (fls. 164 dos autos) e vários golpes em ambas as mãos, especialmente na mão direita (fls. 168 e 169 dos autos).
46. Estes factos, plenamente documentados por fotos e por exame pericial, demonstram inequivocamente que foi o ofendido quem pegou na faca para atingir o pai, golpeando-lhe o lado direito da face, junto ao olho (fls. 164 dos autos), e que este se tentou defender das ditas agressões com ambas as mãos, acabando por ser também golpeado nas mesmas pelo seu filho.
47. No caso dos autos, não só não ficou cabal e inequivocamente demonstrado – por inexistência de prova - ter sido o recorrente quem matou o filho, como, muito menos, que a morte deste haja sido produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade.
48. Não é pelo simples facto de a vítima ser filha do arguido que se pode desde logo aquilatar da especial censurabilidade ou perversidade das circunstâncias da morte, sendo outrossim necessário que se aquilate as verdadeiras circunstâncias em que a morte aconteceu.
49. Analisando cabalmente a prova produzida nos autos, não se encontra nenhuma capaz de sustentar, sem qualquer margem para dúvidas, que foi o arguido quem desferiu o golpe fatal no ofendido, provocando-lhe a morte, assim como não existe qualquer prova irrefutável que sustente ter havido, por parte do arguido, qualquer intenção de matar, muito menos que a morte do ofendido haja sido produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade por parte daquele.
50. O tribunal a quo deveria ter dado por provado que a morte do ofendido foi acidental e nunca intencional, tendo ocorrido num momento de grande altercação entre pai e filho, após ambos se envolverem num confronto físico.
51. Relativamente ao crime de violência doméstica, o tribunal a quo baseou-se exclusivamente nos depoimentos das testemunhas BB e DD, dominados pelo forte turbilhão de emoções que a memória ainda tão fresca da morte do filho/irmão lhes aporta.
52. Além da perícia médico-legal efetuada à testemunha BB, em 17.06.2019 (Ref.ª Citius: .....405), cujas lesões se limitam a um ferimento no membro superior direito, alegadamente imputável ao arguido, ainda que, como já vimos, sem qualquer possibilidade de assim ser, não existe qualquer outro relatório pericial que avalie qualquer dano corporal à dita testemunha, cuja autoria possa eventualmente ser atribuída ao arguido.
53. Até à data da morte do ofendido, nunca qualquer das ditas testemunhas apresentou qualquer queixa por violência doméstica contra o arguido.
54. A testemunha de acusação EE referiu que, efetivamente, deu guarida à testemunha BB, em sua casa, e que aquela lhe mencionou ter tido uma prévia discussão com o arguido, mas que nunca presenciou qualquer agressão por parte deste, nem física, nem verbal.
55. O crime de violência doméstica existe quando, em face do comportamento demonstrado, for possível formular o juízo de que o agente manifestou desprezo, desejo de humilhar, ou especial desconsideração pela vítima.
56. Além das ditas testemunhas, nenhuma outra referiu ter assistido ou presenciado a qualquer tipo de violência entre o casal, bem pelo contrário, o que foi referido em sede de audiência de julgamento, foi que o arguido e a esposa eram um “casal normal” e que sempre viram o arguido ser respeitador para a mulher.
57. A aplicação das penas e das medidas de segurança visa a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade - artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal.
58. Por outro lado, a pena também tem uma função de prevenção geral negativa ou de intimidação, como forma estadualmente acolhida de intimidação das outras pessoas pelo mal que com ela se faz sofrer ao delinquente e que, ao fim, as conduzirá a não cometerem factos criminais.
59. O ponto de partida das finalidades das penas com referência à tutela necessária dos bens jurídicos reclamada pelo caso concreto e com significado prospetivo, encontra-se nas exigências da prevenção geral positiva ou de integração, em que a finalidade primária da pena é o restabelecimento da paz jurídica comunitária posta em causa pelo comportamento criminal.
60. O ponto de chegada está nas exigências de prevenção especial, nomeadamente da prevenção especial positiva ou de socialização, ou porventura, a prevenção negativa relevando da advertência individual ou de segurança ou inocuização, sendo que a função negativa da prevenção especial se assume por excelência no âmbito das medidas de segurança.
61. Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa – artigo 40.º, n.º 2 do Código Penal.
62. Não pode haver pena sem culpa ou acima da culpa, pois que o princípio da culpa não vai buscar o seu fundamento axiológico a uma qualquer conceção retributiva da pena, antes sim ao princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal. A culpa é condição necessária, mas não suficiente, da aplicação da pena; e é precisamente esta circunstância que permite uma correta incidência da ideia de prevenção especial positiva ou de socialização.
63. Em síntese: a verdadeira função da culpa no sistema punitivo reside efetivamente numa incondicional proibição de excesso; a culpa não é fundamento da pena, mas constitui o seu limite inultrapassável: o limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações ou exigências preventivas - sejam de prevenção geral positiva de integração ou antes negativa de intimidação, sejam de prevenção especial positiva de socialização ou antes negativa de segurança ou neutralização.
64. A função da culpa, deste modo, “é a de estabelecer o máximo da pena ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de Direito Democrático” (idem, ibidem, págs.109 e segs).
65. A culpa do arguido é diminuta, no caso dos autos: não foi ele quem, efetivamente, provocou o ofendido, nem quem foi buscar a faca dos autos à gaveta da cozinha, não obstante, na sua qualidade de pai, ter-se sentido humilhado e desrespeitado pelo próprio filho, que após o arrastar à força até casa, ainda o agrediu fisicamente, com murros, pontapés e até com a faca dos autos, acabando por deita-lo ao chão, por mais do que uma vez, mesmo sabendo que o pai se encontrava já fragilizado pelo álcool que o viu ingerir ao jantar.
66. Se o arguido não se desse com o filho ou se lhe desejasse mal, nunca o teria ajudado nem trazido para ao pé de si.
67. A sua morte é, só por si, a mais pesada das “penas” com a qual o arguido terá de viver até ao final dos seus dias, não devendo qualquer outra pena ser aplicada ao arguido.
68. Sem conceder, e ainda que assim não se entenda, por mera cautela de patrocínio sempre se dirá que, dadas as provas existentes nos autos, não pode o tribunal dar como plenamente demonstrada uma intenção de matar, pelo que, 18 anos de prisão efetiva será sempre uma pena demasiado pesada de aplicar.
69. O arguido tem 61 anos de idade, não tem qualquer outra condenação pela prática de qualquer outro crime, sempre levou a sua vida honestamente, criou os filhos e ajudou a criar os netos, sendo sempre o único sustento da família, trabalhando de sol a sol para que nunca nada lhe faltasse.
70. O arguido veio para Portugal em busca de condições melhores e assim que as conseguiu reunir, foi trazendo, aos poucos, a família para ao pé de si, sempre a expensas suas, tudo fazendo para que também ela vivesse em melhores condições do que as que tinha no seu país natal.
71. Condenar o arguido a 18 anos de prisão efetiva é praticamente condená-lo à prisão perpétua, sendo que, só aos 78/ 79 anos – se o arguido lá chegar – é que a sua pena estará integralmente cumprida.
72. A morte ocorreu acidentalmente, sem qualquer intenção de matar por parte do arguido.
73. Novamente sem conceder, e atenta a diminuta culpa do arguido nas circunstâncias da morte do ofendido, entende aquele que, caso o tribunal mantenha a decisão de o condenar, deverá responder, apenas, por um crime de homicídio privilegiado, previsto pelo artigo 133.º do Código Penal e punível com uma pena de prisão entre um e cinco anos, de acordo com o mesmo artigo.
74. Por sua vez, e relativamente ao alegado crime de violência doméstica, tendo em conta a idade, a cultura e a religião do arguido, não deveria o tribunal a quo deslembrar a sobejamente conhecida diferença com que os muçulmanos veem os homens e as mulheres, no que diz respeito aos direitos e deveres de cada um.
75. Aos olhos de quem professa a religião de Maomé, o homem é visto como o chefe da casa, a quem todos devem obediência, em especial a esposa e os filhos que com ele habitam.
76. Para uma família tradicional muçulmana, de classe média/ baixa e com pouca instrução escolar, como a do arguido, é perfeitamente aceitável, e espectável até, que as ordens em casa sejam dadas pelo marido, que este seja o único a prover ao sustento da família e que a mulher se “limite” a cuidar da casa, sem questionar ou criticar as opções que o marido decida tomar, muito menos que o afronte ou que deixe de lhe reconhecer autoridade, rebaixando-o perante os filhos e, especialmente, perante a restante comunidade.
77. O arguido nunca pretendeu molestar ou maltratar a sua mulher, muito menos vexa-la ou humilha-la.
78. Por várias vezes o arguido se sentiu ele próprio vexado e humilhado pela mulher, quando esta o enfrentava ou desautorizava em frente aos filhos,
79. Reagindo, nesses casos, de forma mais brusca ou autoritária, no único intuito de tentar impor e preservar o respeito que entende ser-lhe devido pelo papel que lhe compete no seio familiar.
80. Não tendo o arguido praticado qualquer crime de violência doméstica, nenhuma pena lhe deveria ser aplicada.
81. Devendo, de igual modo, improceder o pedido de indemnização civil formulado pela demandante BB, por falta de fundamentação.
82. Sem embargo, e ainda que assim não se entenda, também por mero dever de patrocínio se dirá que, não estando em causa factos praticados contra menores, nem na presença de menores, sempre a previsão do crime alegadamente imputado ao arguido caberia na al. a) do n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal, onde o mesmo é punido com pena de prisão de um a cinco anos e não na alínea a) do n.º 2 do mesmo artigo, como erradamente entendeu o tribunal.
83. O tribunal a quo violou o preceituado nos artigos 40.º; 71.º; 131.º; 132.º, n.ºs 1 e 2, al. a) e 152.º, n.º 1, als. a) e n.º 2, al. a) do Código Penal; 127.º e 151.º do Código de Processo Penal.
Termos em que, deverão V. Exas dar provimento ao presente recurso, de acordo com o exposto em sede de motivação, com o que se fará a necessária e costumada
JUSTIÇA!”
4. Respondendo, o Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal a quo, considerou:
“1. O arguido AA interpôs recurso para o STJ do acórdão do Tribunal da Relação de ..., de 4 de novembro de 2020, que confirmou o acórdão condenatório proferido em 1ª instância, alegando, em síntese, que “o tribunal a quo, não obstante toda a motivação do recurso do recorrente, caiu precisamente no mesmo erro do tribunal de 1.ª instância, fazendo uma errada análise e apreciação da prova dos autos, uma errada qualificação jurídica dos crimes imputados ao ora recorrente e uma errada medida das penas que lhe foram aplicadas”. Ora,
2. O arguido, perante o STJ, mais não faz do que repetir as questões que suscitou no recurso que interpôs perante o Tribunal da Relação de ........., todas elas apreciadas de forma exaustiva e decididas com acerto e eloquência por aquele tribunal, em cujo acórdão nos revemos sem reserva, o que nos dispensaria de quaisquer considerações complementares. Contudo,
3. Permitimo-nos apenas manifestar o nosso profundo e sincero incómodo pela circunstância do arguido, através da sua advogada nomeada, invocar o facto de professar o Islamismo para justificar a violência exercida sobre a sua mulher, de quem se esperava que fosse sempre como “um cão fiel para o marido”. É que,
4. Tendo presente que muitos dos crimes mais bárbaros cometidos contra a humanidade o têm sido em seu nome ou por sua causa dela, repudia-nos que a religião seja invocada como desculpa ou justificação para a prática de um crime, ainda que o possa explicar, especialmente quando esse crime ofende bens tão elementares como a vida, a integridade física ou a dignidade humana.
Assim, pelo exposto, sem necessidade de outras considerações, deve o recurso interposto pelo arguido AA ser julgado totalmente improcedente.
Vossas Excelências, porém, como sempre, farão a costumada Justiça.”
5. A Assistente veio aderir in totum à Resposta apresentada pelo Digno Magistrado do Ministério Público.
6. Por seu turno, neste STJ, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, pronunciou-se também pela total improcedência do recurso.
7. Foi cumprido o disposto no art. 417, n.º 2 do CPP, não tendo havido qualquer resposta.
Sem Vistos, dada a situação de estado de emergência,
cumpre, em conferência, apreciar e decidir.
Do Acórdão recorrido relevam, hic et nunc, em especial (notas intratextuais por motivos técnicos).
“II
Questões suscitadas:
1. A impugnação da matéria de facto provada versus o erro notório na apreciação da prova e o erro de julgamento.
2. O enquadramento jurídico do factualismo provado.
3. A medida da pena.
4. O pedido de indemnização civil.
III
1. São os seguintes os factos dados como provados e não provados na sentença:
2.1. De Facto:
2.1.1. Dos Factos Provados:
1. O arguido e BB casaram em … de Maio de 1980, no ............
2. CC nasceu em … de Fevereiro de 1983, no ............, e era filho do arguido e BB
3. O arguido e BB, vieram viver para Portugal, em 2013, onde permanecem até ao presente.
4. Em 2014, o arguido e a ofendida BB viveram em ..........
5. Em 2015, arguido e ofendida fixaram residência na Rua ....., residindo sozinhos.
6. Em Abril de 2019, o ofendido CC emigrou para Portugal, passando a residir desde então com o arguido e a ofendida, BB, na dita residência, sita na ..........
7. Entre 1981 e 2001, e entre 2008 e Novembro de 2013, durante a vivência em comum no ............, o arguido, em datas não concretamente apuradas, mas aos fins de semana, na então residência do casal, estava, muitas das vezes, alcoolizado.
8. Em Portugal, o arguido consumia bebidas alcoólicas em excesso quase todos os dias, com especial incidência aos fins de semana.
9. Em data não concretamente apurada de 2014, na então residência do casal sita em ........., de tarde, depois do almoço, o arguido estava alcoolizado e aproximou-se da ofendida, agarrou-a com força, atirou-a contra a parede.
10. A filha do arguido e da ofendida, DD, veio em defesa da ofendida, acabando o arguido por soltar a ofendida.
11. Em data não concretamente apurada, quando já residiam em ........., o arguido, trancou a porta de entrada, na sequência do que a ofendida teve de pedir guarida à sua vizinha e senhoria, EE.
12. Em data não concretamente apurada de Outubro de 2018, na residência do casal sita em ........., o arguido, estando ao pé da gaiola dos periquitos, pediu à ofendida para segurar numa chave de fendas, o que esta recusou.
13. De imediato, o arguido dirigiu-se na direção da ofendida para lhe bater, o que não conseguiu, porque a ofendida, atemorizada, fugiu para a rua, acabando por pedir auxílio à sua vizinha e senhoria, EE, que a acolheu.
14. No dia … de Junho de 2019, na residência do arguido e ofendida, sita em ........., o arguido ingeriu bebidas alcoólicas ao jantar, ficando embriagado.
15. Após o jantar, cerca das 22h30m, o arguido, no exterior da habitação, iniciou discussão com o seu senhorio, FF, tendo por objeto renegociação do contrato de arrendamento.
16. Apercebendo-se do tom de voz exaltado do arguido, a ofendida BB, que se encontrava no interior da residência, dirigiu-se ao exterior da mesma e, aproximando-se do arguido, tentou acalmá-lo, dizendo-lhe que estava a fazer muito barulho, logrando levá-lo pelo braço na direção da habitação de ambos.
17. O arguido dirigiu-se, então, à ofendida, dizendo-lhe que não valia nada e apelidando-a de “animal” e “canalha”.
18. CC, que se encontrava junto à porta da entrada da referida habitação, foi ao encontro do arguido e da ofendida, ainda no exterior, tentando acalmar o pai.
19. Na medida em que o arguido não se acalmava, CC agarrou o arguido pelo braço, de modo a levá-lo para o interior da residência.
20. O arguido tentou-se soltar, esbracejando, ao que perdeu o equilíbrio e caiu no chão.
21. A ofendida ajudou o arguido a levantar-se.
22. De imediato, o arguido dirigiu-se sozinho para o interior da habitação, tomando a direção da cozinha.
23. Na cozinha, o arguido retirou de uma gaveta uma faca de cozinha, uma das quais com uma lâmina de inox com 11,5 cm de comprimento e um cabo de madeira com 9,5cm de comprimento.
24. Apercebendo-se de tal, e receosa do que pudesse acontecer, a ofendida foi no encalço do arguido, para evitar que ele voltasse a sair para o exterior, tentando fechar e trancar a porta da habitação para que o arguido não viesse ao exterior ter com o filho.
25. No momento em que estava a tentar fechar a porta, o arguido, com a referida faca com lâmina de inox com 11,5 cm de comprimento e um cabo de madeira com 9,5cm de comprimento, e por forma a conseguir abrir a porta para poder esfaquear o seu filho, atingiu a ofendida com um golpe no dedo polegar direito.
26. Nesse momento, CC, pretendendo defender a sua mãe, foi ao encontro do pai ao interior da habitação, com o intuito de lhe retirar a faca da mão.
27. BB dirigiu-se, de imediato, ao exterior para pedir auxílio.
28. A certo momento, o arguido munido da aludida faca, com uma lâmina de inox com 11,5 cm de comprimento e um cabo de madeira com 9,5cm de comprimento, desferiu uma facada na zona infra mamária esquerda do seu filho.
29. Seguidamente, o ofendido dirigiu-se para o exterior da residência, acabando aí por desfalecer e morrer ainda no local.
30. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido (descrita em 25.), a ofendida BB sofreu as seguintes lesões:
- Membro superior direito: ferimento linear na face palmar da falange distal do 1.º dedo da mão (mais concretamente na face medial, estendendo-se à face anterior), curvilíneo, de abertura infero-lateral, com uma extensão de 1,3cm e uma profundidade máxima de 0,1 a 0,2cm em área de máximo afastamento dos bordos (0,2cm). Mobilidades ativas e passivas do referido dedo conservadas, contudo dolorosas nos graus máximos de flexão da articulação interfalângica distal.
31. Tais lesões demandaram um período de cura de 15 dias, com afetação da capacidade de trabalho geral.
32. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido (descrita em 28.) CC sofreu as seguintes lesões:
• Hábito externo – Tórax:
- Solução de continuidade fusiforme, sensivelmente horizontal, de bordos rectos, nítidos e discretamente desidratados, de extremidades angulosas, com a extremidade medial em ponta de V – ferida cortante.
Tal ferida no quadrante infero-medial da região mamária esquerda, medindo 3,5cm de comprimento por 7 mm de afastamento de bordos, com cauda medial ligeiramente curva para cima, que media 1,5cm de comprimento e distava, respetivamente, 6 cm do mamilo esquerdo (ao bordo superior), 11cm do bordo costal esquerdo (ao bordo inferior), 12 cm da linha média esternal (à extremidade medial);
• Hábito interno – Tórax
- Paredes: solução de continuidade a nível do 5.º espaço intercostal esquerdo, sobre a linha média clavicular, que media, antes de perfurar o grande peitoral esquerdo na transição para o grande oblíquo esquerdo, 16mmx4mm, em correspondência com idêntica solução descrita no hábito externo;
- Clavícula, cartilagens e costelas esquerdas: solução de continuidade horizontal com 24mmx4mm a nível do 5.º espaço intercostal esquerdo sobre a linha média clavicular, em correspondência com a solução de continuidade descrita no hábito externo e plano muscular, a qual continuava, para baixo e para fora, até à 7.ª cartilagem costal esquerda;
- Pericárdio e cavidade pericárdica: ferida cortante na parte inferior da parede anterior, sobre o lado esquerdo, em relação com o ferimento dos tecidos moles descrito acima e conexa com a ferida cardíaca do ápex descrita abaixo, que media externamente 16mmx4mm;
- Coração: perfuração completa no ápex com 1,5cmx4mm, transfixiva, que atingia a parede posterior do ventrículo esquerdo, onde fazia ferida cortante com 4cm de extensão por 1 cm de profundidade, no bordo lateral do ventrículo entre ambos os músculos papilares, terminando em ponta por baixo do limite lateral da valva anterior da mitral.
33. As lesões traumáticas torácicas produzidas pela faca, instrumento perfuro-cortante, apresentam um trajeto daquele instrumento no corpo do ofendido CC orientado de frente para trás, da esquerda para a direita e de baixo ligeiramente para cima, numa profundidade estimada em cerca de 13-15cm, e foram causa direta e necessária da morte de CC.
34. Já após a detenção do arguido nos presentes autos, em Julho de 2019, em visita da ofendida BB e filha DD ao arguido no Estabelecimento Prisional Regional de ......, o arguido, em tom sério e intimidatório, dirigiu-se à ofendida BB e disse-lhe para pensar muito e bem nas ligações que ele tinha lá dentro com “drogados e criminosos”.
35. Mais lhe disse que o tinha de ajudar a sair da cadeia.
36. O arguido atuou de modo livre e com o propósito concretizado e reiterado de molestar física e psicologicamente BB, sua esposa, bem sabendo que dessa forma lhe provocava ofensas no corpo e na saúde, a menosprezava e ofendia na sua honra e consideração, provocando-lhe dores e as lesões verificadas e ainda sentimentos de vergonha, humilhação, angústia, medo e inquietação.
37. Agiu ainda o arguido de forma livre e com o propósito de, ao proferir as expressões acima mencionadas dirigidas à ofendida, sua esposa, provocar nela um sentimento de medo e inquietação, por forma a constrangê-la na sua liberdade de decisão e ação, com o propósito de a determinar a alterar o depoimento prestado nos presentes autos e assim evitar ser responsabilizado pela morte do seu filho, ciente que as expressões proferidas tinham potencialidade para alcançar esse desiderato.
38. Mais sabia que em virtude da relação de casamento que os unia, tinha um especial dever de respeito para com aquela e que, com tais condutas, a atingia na sua dignidade humana, bem sabendo, ainda, que muitos dos factos foram praticados na residência do casal.
39. O arguido agiu, ainda, com o propósito concretizado de pôr termo à vida de CC, seu filho, para o que se muniu previamente de uma faca, com a qual o atingiu num local onde se alojam órgãos que constituem estruturas essenciais à vida, como é o caso do coração, sabendo daquela essencialidade e querendo atingir especificamente essa área, para assim conseguir a morte daquele, não se coibindo de prosseguir a sua atuação, ciente que os unia essa relação familiar, o que representou.
40. O arguido agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.
Mais se logrou provar, com relevância para a decisão a proferir:
41. Do certificado de registo criminal do arguido nada consta.
Relativamente às suas condições económico-sociais logrou provar-se que:
42. O arguido nasceu no .... .
43. É o filho mais velho de nove irmãos, seis do sexo masculino, e três do sexo feminino.
44. O pai trabalhava no ....... e a mãe era ..... .
45. Frequentou a escola, no país de origem, até aos nove anos, tendo efetuado um estágio numa .........
46. Aos 18 anos cumpriu serviço militar na ......
47. Após, iniciou o seu percurso profissional numa empresa de ....., onde trabalhou cerca de 13 anos.
48. Em 2000 imigrou para Portugal, tendo dificuldade em arranjar trabalho.
49. Trabalhou inicialmente nas ......... e, passados alguns meses começou a trabalhar como ........., voltando a trabalhar na ..........
50. Em 2003, ficou residência na zona de ........., onde trabalhou como ............, por conta de uma empresa de .............
51. Nesta trabalhou durante cerca de quatro anos.
52. Em 2007 voltou ao ............ por ter tido necessidade de renovar o passaporte, tendo permanecido no país de origem até 2014.
53. Durante esse período trabalhou com ......... no ....... que prestava serviço no ..... e, simultaneamente, trabalhou como ........
54. Antes de ter sido preso preventivamente, o arguido trabalhava como ........., por conta da empresa S........ - Sociedade de ........., S.A..
55. O arguido AA encontra-se no Estabelecimento Prisional de ...... desde 03/06/2019, preso preventivamente à ordem do presente processo.
56. Em reclusão, o arguido tem mantido comportamento de acordo com as normas institucionais, sem registo de infrações disciplinares.
57. Não desempenha qualquer atividade estruturada.
58. No Estabelecimento Prisional, o arguido apenas recebeu uma vez a visita do cônjuge e da filha DD, tendo estas familiares deixado de o visitar ou manter quaisquer contactos com ele.
59. Recebeu também uma visita de um amigo.
60. Atualmente não beneficia de apoios por parte de familiares ou amigos.
61. O Arguido apresenta hábitos de consumo de bebidas alcoólicas que desvaloriza.
62. Como projeto de vida, o arguido refere a sua intenção de, logo que possível regressar ao ....., onde reside grande parte dos elementos da sua família alargada.
Relativamente ao pedido de indemnização civil logrou provar-se que:
63. Em resultado das condutas levadas a cabo pelo arguido, “supra” descritas nos pontos 9 e 25, a ofendida BB sofreu dores.
64. Em resultado das condutas levadas a cabo pelo arguido, supra” descritas nos pontos 9 a 13, 17, 25 e 34, a ofendida BB, sentiu tristeza, medo, humilhação e ansiedade.
2.1.2. Dos Factos Não Provados:
a) No circunstancialismo referido no ponto 5, dirigia-se à ofendida BB chamando-a “filha da puta”, “animal” e “canalha”.
b) A partir do primeiro ano de casamento com a ofendida BB, o arguido tornou-se para com esta uma pessoa agressiva e violenta.
c) A ofendida BB, receando que o arguido lhe batesse, tentava fugir, ao que o arguido lhe puxava o cabelo com uma das mãos e, com a outra, desferia-lhe murros na cabeça.
d) Tal acontecia, muitas vezes, em frente aos filhos do casal e também durante a sua menoridade.
e) Em data não concretamente apurada de Agosto ou Setembro de 1983, de noite, na então residência do casal, o arguido, alcoolizado, chamou a ofendida.
f) Por estar a amamentar o seu filho, CC, à data com cerca de 6 meses de idade, a ofendida demorou alguns minutos a dirigir-se ao arguido.
g) Quando se aproximou do mesmo, este, com um tijolo, desferiu-lhe uma pancada na região temporal esquerda, causando-lhe dores e ferimentos, que redundou em marca cicatricial na zona atingida.
h) Em data não concretamente apurada, não anterior a 2008, na residência do arguido e ofendida no ....., o arguido, no âmbito de uma discussão com a ofendida, agarrou numa faca e foi na direção da ofendida, dizendo que a matava.
i) Em 2008, no ....., no Verão, perto da hora de almoço, na referida residência, o arguido, alcoolizado, pediu à ofendida que lhe desse dinheiro.
j) Como esta se recusou, por não ter consigo dinheiro, o arguido dirigiu-se à mesma e levantou o braço, preparando-se para lhe bater, o que não conseguiu, porque esta, receosa pela sua integridade física, fugiu na direção da casa do filho, CC, sita nas proximidades.
k) O arguido foi logo atrás da ofendida e quando se aproximaram da casa do filho, agarrou a ofendida e atirou-a com força contra uma salamandra, com forma quadrada, aí existente, tendo a ofendida batido com o seu braço direito numa esquina, sangrando e sofrendo escoriação na zona atingida.
l) A dada altura, CC, apercebendo-se de tais agressões, dirigiu-se ao arguido e à ofendida, agarrando o arguido pelos braços para evitar que ele continuasse a agredir a ofendida.
m) O arguido, exaltado, perguntou ao seu filho: “Queres-me bater? Queres-me bater?”. CC largou o arguido, disse-lhe que não lhe queria bater, mas apenas que aquele parasse de bater na ofendida.
n) O arguido retornou de imediato à sua residência, sendo seguido pela ofendida, e dirigiu-se à cozinha, de onde retirou, de uma gaveta, duas facas.
o) A ofendida começou a gritar para que o seu filho fugisse, o que este fez.
p) Nessa altura surgiu a nora do arguido, casada com CC, e a ofendida colocou-se entre ela e o arguido, dizendo-lhe que não lhe fazia mal, porque a nora estava grávida.
q) Então, o arguido expulsou a ofendida de casa e fechou a porta à chave, impedindo-a de entrar.
r) No circunstancialismo referido no ponto 9, a ofendida BB chamou o arguido à atenção, dizendo-lhe que o pai dele tinha morrido, se ele não tinha vergonha, era muçulmano.
s) Nesse circunstancialismo o arguido apertou-lhe o pescoço, e
t) … a dado momento, o arguido agarrou-lhe um dos braços e levantou o outro para lhe bater.
u) Nesse momento, a ofendida chamou a sua filha DD para a socorrer.
v) O referido no ponto 11 ocorreu no decurso de uma discussão entre o arguido e a ofendida, na qual, aquele expulsou esta de casa.
w) O referido em 12, ocorreu perto da hora de almoço.
x) No circunstancialismo referido no ponto 16, a ofendida BB disse ao arguido que já havia pessoas a dormir.
y) Nesse circunstancialismo, a ofendida, na tentativa de acalmar o arguido, disse-lhe que era melhor falar com o senhorio no dia seguinte.
z) Nesse circunstancialismo o arguido chamou a ofendida BB de “puta”. aa) No circunstancialismo referido no ponto 18, CC, encontrava-se, no interior da residência, e foi ao encontro do arguido e da ofendida alertado pelo barulho.
bb) No circunstancialismo referido no ponto 19, o arguido apresentava-se cada vez mais enfurecido, pelo que, CC intercedeu a favor da mãe, dizendo ao arguido que não podia tratar assim a mãe, que ela estava fraca e frágil e não merecia ser tratada daquela forma.
cc) … Mais disse ao arguido que estava ali há dois meses e que já estava farto de assistir a bebedeiras frequentes e discussões.
dd) No circunstancialismo referido no ponto 20, o arguido começou então a culpar o filho pelo sucedido.
ee) No circunstancialismo referido no ponto 23, o arguido retirou, de uma gaveta da cozinha, duas facas.
ff) No circunstancialismo referido no ponto 26, o arguido e CC envolveram-se em confronto físico.
gg) No circunstancialismo referido no ponto 35, o arguido disse à ofendida que esta tinha de o ajudar “fechar o processo” (referindo-se aos presentes autos), dizendo que o arguido tinha agido em legítima defesa e que o filho falecido é que havia sido o agressor.
hh) O arguido sabia ainda que muitos dos factos foram praticados, na presença dos seus filhos e ainda durante a sua menoridade.
*
A restante matéria alegada não foi considerada nem provada, nem não provada, por vaga, irrelevante, repetitiva ou constituir argumentação de direito.
2. Fundamenta o tribunal a quo a matéria de facto nos seguintes termos:
2.1.3. Do Exame Crítico e Motivação da Prova:
O Tribunal formou a sua convicção, relativamente aos factos considerados como provados, com base na análise e valoração global da prova produzida e examinada em audiência de discussão e julgamento, a qual foi apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador [cfr. art. 127º do Código de Processo Penal].
Assim:
Quanto aos factos provados:
Para prova do facto 1, o Tribunal socorreu-se do teor da Certidão de Casamento junta com o Requerimento de 23-10-2019 e respetiva tradução (cfr. fls. 399-400 e fls. 421 e ss.).
Para prova do facto 2, o Tribunal fundou-se no teor da cópia do passaporte de CC, constante de fls. 26.
Para prova dos factos 3 a 5, o Tribunal fundou-se no teor dos depoimentos de BB, esposa do arguido, e DD, filha do arguido e de BB, as quais, nessa qualidade lograram ter conhecimento direto dos factos em questão, a primeira por ter residido com o arguido, durante o período em questão, a segunda, por ter tido os seus pais a residir com a sua família, em 2014.
Para prova do facto 6, o Tribunal fundou-se na análise conjugada dos depoimentos das testemunhas BB e DD, e ainda, no teor do depoimento de GG, o qual confirmou ter dado emprego a CC, em 2019, e ainda no teor do Relatório de Inspeção Judiciária de fls. 39 e ss, no qual se revelam vestígios da vivência do falecido CC na residência do arguido e de BB.
Para prova dos factos 7 a 10, o Tribunal fundou-se na análise conjugada dos depoimentos de BB e DD, as quais, de forma convergente, sincera e espontânea e lógica, relataram tal factualidade, merecendo os seus depoimentos, por isso, credibilidade.
Para prova dos factos 11 a 13, o Tribunal fundou-se no teor do depoimento de BB, a qual relatou tal factualidade de forma espontânea, sincera e lógica e, nessa medida, considerada credível pelo Tribunal.
Para prova dos factos 14 a 27, o Tribunal fundou-se no teor do depoimento de BB, a qual relatou tal factualidade de forma espontânea, sincera e lógica e, nessa medida, considerada credível pelo Tribunal. Designadamente, quanto ao facto 25, o Tribunal fundou-se, ainda, no teor do relatório de inspeção judiciária de fls. 39 e ss, o qual é corroborador, quanto às características da faca encontrada na residência do arguido, bem como, do golpe no dedo sofrido pela ofendida BB.
Por outro lado, a circunstância de a testemunha BB ter referido ter visto o arguido a retirar duas facas da gaveta, quando apenas uma faca foi encontrada no local do crime (cfr. relatório de inspeção judiciária de fls. 39 e ss.), não retira credibilidade à aludida testemunha, entendendo o Tribunal que tal divergência, resulta do facto de a memória da testemunha ter sido negativamente influenciada durante o período do intervalo de retenção (período que medeia entre a vivência/presenciamento do acontecimento e o seu relato pela testemunha).
Efetivamente, os acontecimentos assistidos pela depoente, são aptos a induzir stress e temor naquela, durante a sua vivência. E embora os efeitos do stress na fase da codificação da informação (isto é, a apreensão da informação durante a vivência do acontecimento) variem de pessoa para pessoa, a doutrina da área da psicologia cognitiva tem unanimemente entendido que o stress influencia o processo de codificação de informação por parte da testemunha ocular [cfr., neste sentido, MARIA SALOMÉ PINHO, in artigo “Factores que influenciam a memória das testemunhas oculares”, in “Psicologia e Justiça”, Ed. Almedina, 2008, pp. 308 a 310].
Para além disso, durante o intervalo de retenção, isto é, o período que medeia entre o acontecimento presenciado e o seu relato pela testemunha, a memória da testemunha pode ser alvo de fatores que a afetam, designadamente através de informações enganosas pós-acontecimento. Como refere a citada autora, a informação enganosa pós-acontecimento pode resultar da reavaliação da experiência vivida, a qual é influenciada por estados afetivos ou derivar da ruminação ou, ainda, da formação de imagens mentais vividas [cfr.cit. autora, ob.cit. pp. 311-312].
Face ao acima exposto, entendemos que a divergência, dessa parte do depoimento da testemunha BB, com o teor do relatório de inspeção judiciária de fls. 39 e ss., quanto ao número de facas que foram retiradas da gaveta da cozinha, pelo arguido, não mina a sua credibilidade, sendo a mesma resultante de uma memória que se encontra influenciada inconsciente e negativamente pela recordação do acontecimento vivenciado pela depoente, sob evidente stress e temor.
No resto, da análise conjugada do teor do Relatório de Inspeção Judiciária, de fls. 39 e ss., Relatório de Perícia Médico Legal de fls. 128 e ss., Relatório de Exame Pericial de fls. 159 e ss. e Relatório Pericial de Criminalística Biológica de fls. 247 e ss., verificamos que tais elementos se revelam corroboradores da versão da aludida testemunha.
Para prova dos factos 28 a 29, o Tribunal fundou-se na análise conjugada do teor do Relatório de Inspeção Judiciária de fls. 39 e ss., Relatório de Perícia Médico Legal de fls. 128 e ss., Relatório de Exame Pericial de fls. 159 e ss. e Relatório Pericial de Criminalística Biológica de fls. 247 e ss., conjugado com o teor do depoimento da testemunha BB. Assim, do teor do depoimento desta testemunha, dúvidas não restam que, no local, apenas se encontravam, a depoente, o falecido (e seu filho) CC, e o arguido, pai deste. Após a testemunha BB referir ter sido golpeada pelo arguido no dedo, com uma faca (cfr. facto que se encontra devidamente corroborado e comprovado nos autos, consultando os elementos de prova documental e pericial acima referidos) a mesma referiu ter se ausentado da residência, onde se encontrava o arguido, para pedir auxílio, sendo que, como a mesma relatou, o seu filho foi em direção ao arguido (com o objetivo, segundo as regras da lógica e da experiência comum, perante aquele cenário, de lhe retirar a faca das mãos). Daqui resulta que, quando o arguido atingiu o corpo do falecido CC, com a faca, na residência do arguido e da ofendida BB, apenas se encontravam, nesse local, o arguido e o falecido, pelo que, dúvidas não restam, que foi o arguido que atingiu o ofendido com a aludida faca, a qual, segundo os elementos probatórios já referidos, tem vestígios hematológicos da vítima mortal (cfr. Relatório Pericial de Criminalística Biológica de fls. 247 e ss.).
Não obstante a versão apresentada pelo arguido, em declarações prestadas em audiência, o qual referiu que atingiu inadvertidamente o ofendido CC com uma faca, na sequência de uma queda de ambos, os relatórios de Perícia Médico Legal de fls. 128 e ss., e de autópsia médico-legal de fls. 341 a 343, contrariam, de forma inequívoca e objetiva, a versão do arguido, demonstrando, sem margem para dúvidas, que o arguido atingiu, de forma intencional, o ofendido CC, atenta a natureza do ferimento causado, o tipo de lesão provocada neste, e a zona do corpo e órgão atingidos, aspetos que não se compaginam com um golpe inadvertido ou acidental.
Para prova dos factos 30 e 31, o Tribunal fundou-se no teor do Relatório Perícia Médico-Legal de fls. 372 a 374.
Para prova dos factos 32 e 33, o Tribunal fundou-se na análise conjugada do teor do Relatório de Perícia Médico Legal de fls. 128 e ss. e do relatório de autópsia médico-legal de fls. 341 a 343.
Para prova dos factos 34 e 35, o Tribunal fundou-se na análise conjugada dos depoimentos de BB e DD, as quais, de forma convergente, sincera e espontânea e lógica, relataram tal factualidade, merecendo os seus depoimentos, por isso, credibilidade, sendo que, a versão do arguido, referindo que, a versão das depoentes visa castigar o arguido pelo facto de o ofendido, filho e irmã (respetivamente) ter falecido, por destituída de lógica, não foi acolhida pelo Tribunal.
Os factos 36 a 40 são comprováveis por presunções ligadas ao princípio da normalidade ou regras gerais da experiência. Com efeito, a factualidade relativa ao dolo, dada a sua natureza subjetiva, é insuscetível de apreensão direta, só podendo captar-se a sua existência através de factos materiais, entre os quais o preenchimento dos elementos integrantes da infração, e por meio das presunções materiais ligadas ao princípio da causalidade ou das regras gerais da experiência. No caso concreto, tal princípio e regras dizem-nos que as condutas, como as desenvolvidas pelo arguido, não podem deixar de ser conscientes e intencionais, atenta a forma como foram perpetradas.
O Tribunal ainda valorou o teor dos relatórios periciais de fls. 159 a 218, 344 e 345, 346 e 347, e de fls. de fls. 369 e 370 e 372 a 374, bem como, o teor do auto de notícia de fls. 2 a 5, relatório fotográfico de fls. 6 a 10, auto de apreensão de fls. 27, comunicação de notícia de crime de fls. 37 e 38, relatório de inspeção judiciária de fls. 39 a 63, autos de apreensão de fls. 64 e 65, autos de exame direto de fls. 66 e 67, croquis de fls. 126 e 127, cópia de visto de fls. 137, registo da ATA de fls. 138 e 139, auto de apreensão de fls. 145, auto de exame direto de fls. 148 a 150, reportagem fotográfica lâmina e cabo de fls. 151 a 153, os quais, permitiram reforçar a convicção do Tribunal quanto a prova da globalidade da factualidade “supra” elencada.
Também, os depoimentos das testemunhas EE, FF, foram valorados, ajudando a reforçar a convicção formada, porque se revelaram corroboradores da versão da ofendida BB.
Quanto à testemunha HH, o seu depoimento não foi considerado revelante, por não ter revelado ter tido conhecimento direto dos factos sob apreciação.
As restantes testemunhas arroladas, por terem sido prescindidas, o seu depoimento não foi objeto de valoração.
Para prova da ausência de antecedentes criminais do arguido (cfr. facto 41), o Tribunal fundou-se no teor do certificado de registo criminal que antecede (cfr. fls. 606 – a 02-03-2020).
Para prova das condições económico-sociais do arguido (cfr. factos 42 a 62), o Tribunal fundou-se no teor do relatório social que antecede (cfr. fls. 629 e ss.).
Os factos 63 e 64, são comprováveis por presunções ligadas ao princípio da normalidade ou regras gerais da experiência. Com efeito, a factualidade relativa às dores sentidas pela ofendida e sentimentos vivenciados por esta, na sequência das agressões físicas e verbais perpetradas pelo arguido, dada a sua natureza subjetiva, é insuscetível de apreensão direta, só podendo captar-se a sua existência através de factos materiais, entre os quais o preenchimento dos elementos integrantes da infração, e por meio das presunções materiais ligadas ao princípio da causalidade ou das regras gerais da experiência. No caso concreto, tal princípio e regras dizem-nos que as condutas, como as desenvolvidas pelo arguido, atenta a sua natureza e intensidade, não podem deixar de provocar dores e sentimentos de tristeza, medo, humilhação e ansiedade, na ofendida, como, de resto, ficou patente da sua inquirição, onde tais sentimentos foram diretamente percecionados pelo Tribunal, atento o teor das declarações prestadas pela ofendida, lógicas, emocionadas e sinceras.
Quanto aos factos não provados:
Quanto ao facto não provado ee), o mesmo foi assim considerado, por não ter sido produzida prova bastante e concludente da sua verificação, uma vez que, do relatório de inspeção judiciária de fls. 39 e ss., apenas resultar ter sido encontrada uma faca no local do crime, sendo que, quanto à circunstância de a depoente BB referir ter visto o arguido com duas facas, repescamos aqui os fundamentos da motivação da prova dos factos provados 14 a 27.
Quanto aos demais factos não provados, os mesmos foram assim considerados uma vez que não foi produzida prova da sua verificação.
Com efeito, quanto aos factos (não provados) referidos de a) a k) os depoimentos das testemunhas BB, esposa do arguido, e DD, revelaram-se vagos, não permitindo, por isso, esclarecer, de forma concludente, a sua verificação.
Quanto aos restantes factos, os mesmos não podem ser aferidos do teor da prova pericial e da prova documental, nem foram relatados por nenhuma das testemunhas inquiridas.
V
1ª Questão: a impugnação da matéria de facto provada versus o erro notório na apreciação da prova e o erro de julgamento.
1. Insurge-se o recorrente arguido contra a matéria de facto julgada provada nos itens 7; 8; 9; 10; 12; 13; 17; 18; 19; 20; 21; 22; 23; 24; 25; 26; 28; 30; 32; 33; 34; 35; 36; 37;38; 39; 40; 58; 63 e 64 do acórdão que, em seu entender, deveria ser dada como não provada – v. conclusão 11.
Nas conclusões seguintes – 12 a 21 -, sintetiza as razões de tal entendimento.
Mais entende o recorrente que o facto da alínea ff) dos factos não provados deveria ter sido dado por provado, atento o teor dos Relatórios Periciais de fls. 162 a 218, de 10.10.2019, de fls. 189 a 325 e de 03.10.2019, onde inclusive se descreve que na zona utilizada pela vitima como quarto evidenciava sinais de luta, observando-se ali muita desarrumação resultante de terem ali andado envolvidos arguido e ofendido, como fotograficamente documentado nesse mesmo relatório – v. conclusão 22.
Fundamenta a sua posição dizendo que “Existe erro notório na apreciação da prova, quando não existindo fundamentos válidos que permitam divergir da prova pericial, se decide pela aplicação do princípio da livre apreciação” - conclusão 26.
E que “Sem olvidar o disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, a conclusão retirada pelo tribunal, em matéria de prova, deve materializar-se numa decisão suficientemente suportada, de modo a não deixar quaisquer dúvidas, quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a sua convicção” - conclusão 27.
2. Ora, a impugnação da matéria fática provada pode ser efetivamente feita através desde logo, pela invocação dos vícios do artigo 410º, do Código de Processo Penal e pela impugnação mais ampla do artigo 412º, nºs 3 e 4 do mesmo diploma legal.
Quanto aos vícios das alíneas a) b) e c) do nº 2 do artº 410º do Código Processo Penal, cumpre dizer que pode sempre conhecer-se deles (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova) desde que resultem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Na medida em que estes vícios têm de resultar do texto da decisão, significa que lhe são intrínsecos, que são vícios da decisão e não erros de julgamento. Daí que a sua constatação tenha de resultar da leitura, sem recurso a quaisquer outros elementos que lhe sejam exteriores, com exceção das regras da experiência.
Sem prejuízo de o recorrente ter feito referência expressa ao erro notório na apreciação da prova, de toda a análise da motivação de recurso parece-nos que a impugnação assenta não propriamente neste erro mas sim em eventual erro de julgamento da prova produzida em audiência.
É que o vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal dá como provado um facto logicamente inaceitável, notoriamente errado, que não podia ter acontecido, quando, usando um processo racional e lógico, retira de um facto provado uma consequência ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro facto.
Ou, no dizer do ac. do STJ de 24/3/99, C.J. ano VII, t. I, p. 247, só existe erro notório na apreciação da prova “quando, do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, resulta por demais evidente a conclusão contrária àquela a que chegou o tribunal”.
E compulsado todo o teor da sentença, não se vislumbra qualquer erro notório na apreciação da prova, com este sentido e alcance.
Quanto à observação concreta do recorrente sobre o teor da autópsia, a questão será apreciada no momento próprio.
Ora, cotejando todo o teor da motivação de recurso, a “impugnação” do recorrente sobre a matéria provada apoia-se essencialmente nos seguintes pressupostos:
1. Os depoimentos das duas testemunhas BB, esposa do arguido, e DD, filha do arguido e de BB, não são credíveis.
2. A prova pericial valorada pelo tribunal recorrido quanto à matéria dos artigos 32º e 33º do acórdão não reflete a verdade dos autos porquanto até parece que o julgador se fundamenta num relatório que nada tem a ver com este processo, que existe confusão de relatórios.
3. O julgador em primeira instância não valorou a versão do arguido quanto ao modo de ocorrência dos factos bem como a perícia realizada sobre as lesões sofridas pelo recorrente, de onde se pode/deve concluir que foi agredido pela vítima, seu filho.
À exceção da referência às suas declarações (do arguido) e ao exame médico sobre as próprias lesões sofridas, pode afirmar-se que não cumpriu o recorrente os requisitos exigidos pelo artigo 412º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, sobre a impugnação da matéria de facto na medida em que se indicou os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados já não fez a indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida.
E sobre esta matéria a jurisprudência dos Tribunais superiores é elucidativa e uniforme:
I - O recurso em matéria de facto («quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto») não pressupõe uma reapreciação total pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas, em plano diverso, uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão tomada pelo tribunal a quo quanto aos «pontos de facto» que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base, para tanto, da avaliação das provas que, na indicação do recorrente, imponham «decisão diversa» da recorrida3. (provas, em suporte técnico ou transcritas quando as provas tiverem sido gravadas) – art. 412.º, n.º 3, al. b), do CPP –, ou determinando a renovação das provas nos pontos em que entenda que esta deve ocorrer – ac. do STJ de 23-05-2007, proferido no processo 07P14984.
“7 – Como vem entendendo, sem discrepância, este Supremo Tribunal de Justiça, o recurso em matéria de facto ("quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto") não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os "pontos de facto" que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base da avaliação das provas que, na indicação do recorrente, imponham "decisão diversa" da recorrida (provas, em suporte técnico ou transcritas quando as provas tiverem sido gravadas) – art. 412.º, n.º 3, al. b), do CPP –, ou da renovação das provas nos pontos em que entenda que esta deve ocorrer” ac. do STJ de 31.5.2007, proferido no processo nº 07P14125.
De todo o modo, apesar de o recorrente não ter indicado as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, pronunciou-se sobre a valoração do tribunal relativamente a determinada prova concreta – prova pericial – e teceu considerações sobre a prova testemunhal, que merecem a consequente análise.
Aliás, no seguimento do propugnado pelo mesmo ac. supra citado, do STJ de 31.5.2007, que acrescenta no respetivo nº 8:
“8 – Na verdade, se a reapreciação da matéria de facto, não impõe uma avaliação global, também não se basta com meras declarações gerais quanto à razoabilidade do decidido no acórdão recorrido, requerendo sempre, nos limites traçados pelo objecto do recurso, a reponderação especificada, em juízo autónomo, da força e da compatibilidade probatória entre os factos impugnados e as provas que serviram de suporte à convicção”.
Analisemos, pois, mais em pormenor, a “impugnação” do recorrente sobre a matéria provada à luz dos referidos pressupostos supra enunciados:
3. Os depoimentos das duas testemunhas BB, esposa do arguido e DD, filha do arguido e de BB, não são credíveis.
3.1. Sobre estes depoimentos, cria o recorrente uma narrativa de modo a descredibilizar os mesmos, sobretudo no que respeita ao depoimento da testemunha e assistente BB, dizendo para o efeito na motivação:
9.º
Basta atentar nos seus depoimentos, imbuídos de mágoa e de sofrimento,
10.º
Para facilmente nos apercebermos que as mesmas se encontram ainda a atravessar um doloroso processo de luto,
11.º
Perfeitamente natural e espectável para quem, de forma tão súbita, tão fútil e tão fatídica perde um ente querido,
12.º
Sobretudo um filho, na flor da idade, sendo talvez esta a mais absurda das mortes, a morte “anti natura”.
13.º
Não deveria o tribunal descuidar que, para sobreviver à morte de um filho, num acontecimento tão trágico como o dos autos, seja fundamental para uma mãe encontrar um culpado, que pague pelo que, na sua ideia, fez,
14.º
Especialmente quando vê o filho morrer à sua frente, após uma desavença com o pai,
15.º
Cuja obrigação seria sempre a de o proteger e perdoar, impedindo, a todo o custo, aquele resultado.
16.º
É um facto notório, que nenhum julgador deve descurar, que nenhuma mãe consegue verdadeiramente ultrapassar a morte de um filho.
17.º
E nenhuma mãe que haja tido a infelicidade de ter assistido a essa morte consegue perdoar aquele que, a seus olhos, é o responsável,
18.º
Nem encontrar pena bastante para “vingar” a sua perda.
19.º
CC faleceu há pouco mais de um ano.
20.º
A audiência de julgamento do arguido teve início no dia 13.04.2020 – apenas 10 meses após o seu falecimento.
21.º
Não houve sequer tempo para que a família conseguisse fazer o luto, nem para que a mãe conseguisse apaziguar a sua dor,
22.º
O tribunal a quo não deveria ter-se alheado desta evidência, avaliando, antes, com muita mais cautela o seu depoimento.
E formula nos artigos 23º 26º as seguintes críticas e considerações sobre a fundamentação do tribunal a quo:
23.º
Afinal, como o próprio assume, quanto à testemunha BB: “os acontecimentos assistidos pela depoente são aptos a induzir stress e temor naquela, durante a sua vivência. E embora os efeitos do stress na fase da codificação da informação (isto é, a apreensão da informação durante a vivência do acontecimento) variem de pessoa para pessoa, a doutrina da área da psicologia cognitiva tem unanimemente entendido que o stress influencia o processo de codificação de informação por parte da testemunha ocular (…). Para além disso, durante o intervalo de retenção, isto é, o período que medeia entre o acontecimento presenciado e o seu relato pela testemunha, a memória da testemunha pode ser alvo de fatores que a afetam, designadamente, através de informações enganosas pós-acontecimento. (…) a informação enganosa pós-acontecimento pode resultar da reavaliação da experiência vivida, a qual é influenciada por estados afetivos ou derivar da ruminação ou, ainda, da formação de imagens mentais vividas (…)”.
24.º
O que verdadeiramente nos surpreende é que, após esta breve reflexão, o tribunal a quo tenha, ainda assim, considerado que as nítidas divergências no depoimento da testemunha BB, resultantes “de uma memória que se encontra influenciada inconsciente e negativamente pela recordação do acontecimento vivenciado pela depoente, sob evidente stress e temor” não minam a sua credibilidade,
25.º
E concluído que “a versão do arguido, referindo que a versão das depoentes visa castigar o arguido pelo facto de o ofendido, filho e irmão (respetivamente) ter falecido” seja “destituída de lógica”, não podendo ser “acolhida pelo Tribunal”!...
26.º
Aqui chegados, e perante tamanha incongruência, perguntamo-nos, qual foi, então, a lógica seguida pelo tribunal?!...
Estas considerações e “dúvidas” do recorrente encontram efetivamente esclarecimento na fundamentação do tribunal recorrido sobre a apreciação que fez da prova segundo os princípios da imediação e da livre apreciação (onde relevam as regras da experiência), justificando as “contradições” no depoimento da testemunha BB, mãe da vítima CC, quando diz:
Para prova dos factos 14 a 27, o Tribunal fundou-se no teor do depoimento de BB, a qual relatou tal factualidade de forma espontânea, sincera e lógica e, nessa medida, considerada credível pelo Tribunal. Designadamente, quanto ao facto 25, o Tribunal fundou-se, ainda, no teor do relatório de inspeção judiciária de fls. 39 e ss, o qual é corroborador, quanto às características da faca encontrada na residência do arguido, bem como, do golpe no dedo sofrido pela ofendida BB.
Por outro lado, a circunstância de a testemunha BB ter referido ter visto o arguido a retirar duas facas da gaveta, quando apenas uma faca foi encontrada no local do crime (cfr. relatório de inspeção judiciária de fls. 39 e ss.), não retira credibilidade à aludida testemunha, entendendo o Tribunal que tal divergência, resulta do facto de a memória da testemunha ter sido negativamente influenciada durante o período do intervalo de retenção (período que medeia entre a vivência/presenciamento do acontecimento e o seu relato pela testemunha).
Efetivamente, os acontecimentos assistidos pela depoente, são aptos a induzir stress e temor naquela, durante a sua vivência. E embora os efeitos do stress na fase da codificação da informação (isto é, a apreensão da informação durante a vivência do acontecimento) variem de pessoa para pessoa, a doutrina da área da psicologia cognitiva tem unanimemente entendido que o stress influencia o processo de codificação de informação por parte da testemunha ocular [cfr., neste sentido, MARIA SALOMÉ PINHO, in artigo “Factores que influenciam a memória das testemunhas oculares”, in “Psicologia e Justiça”, Ed. Almedina, 2008, pp. 308 a 310].
Para além disso, durante o intervalo de retenção, isto é, o período que medeia entre o acontecimento presenciado e o seu relato pela testemunha, a memória da testemunha pode ser alvo de fatores que a afetam, designadamente através de informações enganosas pós-acontecimento. Como refere a citada autora, a informação enganosa pós-acontecimento pode resultar da reavaliação da experiência vivida, a qual é influenciada por estados afetivos ou derivar da ruminação ou, ainda, da formação de imagens mentais vividas [cfr.cit. autora, ob.cit. pp. 311-312].
3.2. Ora, a narrativa de “castigo e vingança” que o recorrente imputa ao depoimento da testemunha BB, não tem fundamento. O recorrente confunde o sentimento de dor, sofrimento e de perda e luto de mãe, (o mesmo se dizendo da testemunha DD, enquanto irmã da vítima), com a objetividade do seu depoimento quanto a determinados factos concretos efetivamente ocorridos e vivenciados pela testemunha nos termos provados.
E olvida o recorrente que esta fundamentação/explicação do tribunal a propósito do depoimento da testemunha BB tem essencialmente na base a eventual divergência quanto ao número de facas que o arguido retirara da gaveta da cozinha, pois que a testemunha terá referido duas quando na verdade segundo o relatório de inspeção judiciária de fls. 39 e ss só terá sido encontrada uma faca.
Isso mesmo explicita o tribunal recorrido na sua fundamentação, acrescentando:
“Face ao acima exposto, entendemos que a divergência, dessa parte do depoimento da testemunha BB, com o teor do relatório de inspeção judiciária de fls. 39 e ss., quanto ao número de facas que foram retiradas da gaveta da cozinha, pelo arguido, não mina a sua credibilidade6, sendo a mesma resultante de uma memória que se encontra influenciada inconsciente e negativamente pela recordação do acontecimento vivenciado pela depoente, sob evidente stress e temor”.
E acrescentamos nós que, da análise de todo o factualismo provado que para além do depoimento desta testemunha tem apoio nos vários relatórios periciais e médicos, desde o relatório de inspeção judiciária de fls. 39 e ss que integra a fls 64 o auto de apreensão da respetiva faca, a reportagem fotográfica de fls. 151 a 153 sobre a lâmina e cabo da faca, o Relatório de Perícia Médico Legal de fls. 128 e ss de onde resulta a lesão/golpe causada por instrumento corto perfurante compatível com a utilização de arma branca e relatório de autópsia médico legal de fls. 341 a 343 onde se conclui do mesmo modo, dúvidas não se suscitam que efetivamente pelo menos uma faca foi usada pelo arguido na prática do crime. Inexistindo nos autos outros elementos que permitam afirmar e/ou concluir que o mesmo tenha usado em simultâneo, duas facas. De onde se pode retirar, segundo um raciocínio lógico e das regras da experiência que a fundamentação do tribunal para explicar as duas facas referenciadas pela testemunha tenha a explicação adiantada, não retirando a necessária credibilidade ao seu depoimento. Que tem relevância em outros aspetos determinantes para se compreender todo o circunstancialismo da conduta do arguido.
Tudo isto para dizer que não se acompanha o raciocínio do recorrente para retirar credibilidade ao depoimento de ambas as testemunhas, sendo certo que quanto ao crime de homicídio (e quanto a todos os factos que ocorreram nesse dia) as críticas e considerações só podem relevar quanto ao depoimento da testemunha BB, única que presenciou os factos. Como resulta dos autos, no momento da consumação do crime de homicídio apenas se encontravam presentes a vítima, o arguido e esta testemunha.
Pelo que faz todo o sentido a afirmação do tribunal recorrido sobre esta questão da credibilidade do depoimento testemunhal ao concluir:
“No resto, da análise conjugada do teor do Relatório de Inspeção Judiciária, de fls. 39 e ss., Relatório de Perícia Médico Legal de fls. 128 e ss., Relatório de Exame Pericial de fls. 159 e ss. e Relatório Pericial de Criminalística Biológica de fls. 247 e ss., verificamos que tais elementos se revelam corroboradores da versão da aludida testemunha7”.
3.3. Ainda quanto à credibilidade do depoimento das testemunhas BB e DD (mãe e filha) importa distinguir consoante o crime, pois que o depoimento desta (DD) apenas foi valorado quanto ao crime de violência doméstica e, sabe-se, está em causa a prática pelo recorrente, de dois crimes, o de homicídio qualificado e o de violência doméstica.
3.3.1. E sobre este crime, o de violência doméstica, o recorrente, que não indicou a já mencionada prova para infirmar os factos provados, limita-se a tecer considerações de índole crítica sobre o momento escolhido para relatar tais factos ao fim de vários anos de convivência com o arguido, integrando esta atitude no que designa de satisfação de “vingança e castigo” da assistente sobre o arguido, obtendo deste modo a sua desejada “justiça”- v. artigos da motivação de recurso:
“32.º
E visivelmente demonstrada no facto de, à boleia do sucedido, trazerem a julgamento factos alegadamente passiveis de serem enquadrados num crime de violência doméstica,
33.º
Alguns deles alegadamente praticados há quase 40 anos, mas que só vieram a lume, precisamente, após a morte do ofendido e a consequente detenção do arguido.
34.º
Se para o tribunal isto não manifesta um especial desejo de vingança pela morte de um filho/ irmão, deveria, ao menos, suscitar alguma estranheza quanto ao timing escolhido para se trazerem tais factos ao seu conhecimento.
35.º
Ou os mesmos mais não são do que uma achega para a condenação do arguido, numa clara manifestação de ressentimento pela morte do filho/ irmão”.
Mais uma vez este argumento do recorrente atribuindo aos depoimentos testemunhais um claro sentido de vingança, não tem sustentabilidade nas elementares regras da experiência. Aceita-se que, efetivamente, a morte do filho tenha sido para a testemunha BB, enquanto mãe, o despoletar de factos e vivências ocorridas umas, há já várias anos, outras bem mais recentes. Mas não a título de um mero “ressentimento” da assistente. Sabe-se que factos desta natureza ocorrem no seio das famílias e lares ao longo de anos e anos, sem manifestação para o exterior nem deles se apercebendo familiares e amigos próximos, quer por não os presenciarem diretamente (pois ocorrem entre quatro paredes as mais das vezes), quer porque as ofendidas(os) não os relatam a terceiros por motivos vários.
E com certeza que a esta situação não é alheia a verdadeira submissão da ofendida/assistente ao arguido, como este afirma a dado momento no artigo 201.º da motivação: “Recorde-se que a própria mulher do arguido referiu ter agido sempre como um
“cão fiel para o marido”, como era esperado pela sua comunidade e restante família”.
É que, como o recorrente adianta logo a seguir nos artigos da motivação de recurso,
202.º
Para uma família tradicional muçulmana, de classe média/ baixa e com pouca instrução escolar, como a do arguido, é perfeitamente aceitável, e expectável até, que as ordens em casa sejam dadas pelo marido,
203.º
Que este seja o único a prover ao sustento da família,
204.º
E que a mulher se “limite” a cuidar da casa,
205.º
Sem questionar ou criticar as opções que o marido decida tomar,
206.º
Muito menos que o afronte ou que deixe de lhe reconhecer autoridade.
Mas esta situação será analisada mais adiante a propósito do enquadramento da conduta do arguido na prática do crime de violência doméstica.
3.3.2. Neste momento apenas interessa ainda relevar, sobre os factos referentes a este crime (de violência doméstica), se tais factos se devem manter como provados ou se algum deles deve ser considerado como não provado.
Como já se referiu, o recorrente não indicou a prova concreta para impugnar este concreto factualismo, ficando-se por algumas críticas e considerações e justificando algumas atitudes com as “regras” inerentes ao facto de professarem como religião o islamismo.
E de entre as críticas e considerações feitas, ressalta mais uma, a referente à ingestão de bebidas alcoólicas, que são, segundo os elementos dos autos, a principal causa das várias condutas do arguido, incluindo a prática do crime de homicídio, pois nesse dia mais uma vez tinha ingerido bebidas alcoólicas encontrando-se embriagado, originando uma discussão com o senhorio, seguindo-se os demais factos – v. factos nºs 14 e 15, que o arguido nem sequer impugna:
14. No dia 1 de Junho de 2019, na residência do arguido e ofendida, sita em ........., o arguido ingeriu bebidas alcoólicas ao jantar, ficando embriagado.
15. Após o jantar, cerca das 22h30m, o arguido, no exterior da habitação, iniciou discussão com o seu senhorio, FF, tendo por objeto renegociação do contrato de arrendamento.
Efetivamente, segundo o provado no artigo 7º do acórdão, o arguido “ Entre 1981 e 2001, e entre 2008 e Novembro de 2013, durante a vivência em comum no ....., o arguido, em datas não concretamente apuradas, mas aos fins de semana, na então residência do casal, estava, muitas das vezes, alcoolizado.
Também no artigo 8º se afirma que “Em Portugal, o arguido consumia bebidas em excesso quase todos os dias, com especial incidência ao fim de semana”.
E no momento da prática dos factos provados no artigo 9º do acórdão, o arguido estava alcoolizado “Em data não concretamente apurada de 2014, na então residência do casal sita em ....., de tarde, depois do almoço, o arguido estava alcoolizado e aproximou-se da ofendida, agarrou-a com força, atirou-a contra a parede”.
Mais resultando do teor provado no artigo 61º, que o arguido não impugna, que “apresenta hábitos de consumo de bebidas alcoólicas que desvaloriza”8.
O recorrente deduz oposição a esta matéria nos artigos 151 º a 154º da motivação, onde afirma:
151.º
O tribunal dá ainda por provado que “Em Portugal, o arguido consumia bebidas em excesso quase todos os dias, com especial incidência ao fim de semana” (ponto 8 dos factos provados), ao mesmo tempo que dá por provado que o arguido, em Portugal, “trabalhou inicialmente nas ......... e, passados alguns meses, começou a trabalhar como ........., voltando a trabalhar na .........” (ponto 49 dos factos provados); “Em 2003, fixou residência na zona de ........., onde trabalhou como ............, por conta de uma empresa de ............” (ponto 50 dos factos provados); “Nesta trabalhou durante cerca de quatro anos” (ponto 52 dos factos provados) e “Antes de ter sido preso preventivamente, o arguido trabalhava como ........., por conta da empresa S........ - Sociedade de ........., S.A.” (ponto 54 dos factos provados).
152.º
Ora, se o arguido consumia bebidas em excesso quase todos os dias, com especial incidência ao fim de semana, como é que o tribunal explica o facto de este trabalhar como ......... durante vários anos, à semana e ao Sábado, sem que a sua entidade patronal se apercebesse disso???...
153.º
Como lhe poderiam ser atribuídas sucessivas funções de ......... se o arguido andasse constantemente alcoolizado?!...
154.º
Das duas, uma: ou o arguido tinha um valente domínio sobre o efeito do álcool no seu corpo ou as várias entidades patronais que o empregaram andavam todas a dormir!...
Sem prejuízo destas deduções/conclusões do recorrente quanto à compatibilidade da ingestão de bebidas alcoólicas com o exercício destas atividades profissionais, as regras da experiência dizem-nos que são perfeitamente possíveis:
- Em lado algum da matéria de facto se afirma que o arguido estava sempre e permanentemente alcoolizado;
- O que se afirma e provou é que tinha hábitos de consumo de bebidas alcoólicas que desvalorizava – v. facto nº 61.
- A ingestão das bebidas era mais aos fins de semana, na então residência do – v. artigo 7º;
- Quando no artigo 8º se afirma que em Portugal o arguido consumia bebidas em excesso quase todos os dias, não significa necessariamente diariamente, pois se realça, mais uma vez, com especial incidência ao fim de semana.
Ou seja, o consumo de bebidas alcoólicas pelo arguido ao ponto de ficar embriagado, nos termos dados como provados, coincide praticamente com os períodos dos fins de semana, na residência. O que, assim sendo, não colide com o exercício da atividade profissional, mesmo como .... . Pois o recorrente não alega muito menos faz prova, do exercício destas atividades ao fim de semana, ainda que ocasionalmente. E ainda que realizasse, não significa que, previamente, não tivesse ingerido alguma bebida alcoólica. Mas esta é questão que não releva para os efeitos pretendidos apurar.
3.3.3. Quanto ao teor dos factos provados sob os artigos 34º e 35º, relevantes para a consumação do crime de violência doméstica, a sua prova advém dos depoimentos das testemunhas BB e DD, esposa e filha, que visitaram o arguido no Estabelecimento Prisional Regional de ......, ficando já registado na fundamentação do tribunal que “Para prova dos factos 34 e 35, o Tribunal fundou-se na análise conjugada dos depoimentos de BB e DD, as quais, de forma convergente, sincera e espontânea e lógica, relataram tal factualidade, merecendo os seus depoimentos, por isso, credibilidade, sendo que, a versão do arguido, referindo que, a versão das depoentes visa castigar o arguido pelo facto de o ofendido, filho e irmã (respetivamente) ter falecido, por destituída de lógica, não foi acolhida pelo Tribunal”.
3.3.4. Já quanto ao crime de homicídio, sem prejuízo das considerações do recorrente e da apreciação que já foi feita da fundamentação do tribunal a quo quanto à credibilidade do depoimento da assistente BB, importa relembrar que, para além dos elementos periciais, é a única testemunha que presenciou o desenrolar dos factos. Que se iniciaram com a conduta do arguido descrita nos artigos 14 a 16, que o recorrente não impugna.
Os subsequentes factos, os dos artigos 17 a 33, têm efetivamente como suporte o depoimento desta testemunha (v. artigos 14 a 27) e as provas documentais e periciais (V. 28 a 33), encontrando-se na descrição do depoimento da testemunha uma dinâmica lógica que lhe confere credibilidade. Credibilidade que se encontra reforçada e confirmada pela prova documental e pericial: o uso da faca da cozinha pelo arguido (encontrada no local); as lesões sofridas pela testemunha BB descritas nos artigos 30 e 31 (confirmadas pelo teor do Relatório de Perícia Médico-Legal de fls. 372 a 374), provocadas pela faca detida pelo arguido quando esta tentou impedir a passagem do mesmo para o exterior da casa conforme teor dos factos dos artigos 24 e 25 e finalmente as lesões da vítima descritas nos itens 32 e 33 da sentença, que serão objeto de análise mais à frente.
O teor da matéria dos artigos 36º a 38º (o mesmo sucedendo com o teor dos artigos 39 e 40 quanto ao crime de homicídio ) referentes ao dolo com que o recorrente agiu, como bem se fundamenta na sentença, “são comprováveis por presunções ligadas ao princípio da normalidade ou regras gerais da experiência. Com efeito, a factualidade relativa ao dolo, dada a sua natureza subjetiva, é insuscetível de apreensão direta, só podendo captar-se a sua existência através de factos materiais, entre os quais o preenchimento dos elementos integrantes da infração, e por meio das presunções materiais ligadas ao princípio da causalidade ou das regras gerais da experiência. No caso concreto, tal princípio e regras dizem-nos que as condutas, como as desenvolvidas pelo arguido, não podem deixar de ser conscientes e intencionais, atenta a forma como foram perpetradas”.
Passemos agora à análise do segundo pressuposto referido em 2):
4. A prova pericial valorada pelo tribunal recorrido quanto à matéria dos artigos 32º e 33º do acórdão não reflete a verdade dos autos porquanto até parece que o julgador se fundamenta num relatório que nada tem a ver com este processo, que existe confusão de relatórios.
4.1. Começa o recorrente por afirmar na conclusão 31 que “O tribunal a quo fundamentou a sua decisão num relatório de autópsia errado e que nada tem a ver com o dos autos”.
Explicitando nas conclusões 32 a 34, o porquê desta afirmação. A qual tem maiores desenvolvimentos na motivação de recurso, artigos 76º a 78º, culminando com o afirmado em 79º a 83º:
“79º
Basta, de facto, atentar nas lesões dadas por provadas em 32 e 33 dos factos provados e nas lesões constantes do relatório da autópsia de CC para facilmente percebermos que o tribunal a quo analisou outro qualquer relatório de uma outra qualquer autópsia, efetuada numa outra qualquer perícia médico-legal a uma qualquer outra vítima que nada tem a ver com a dos presentes autos!9...
80.º
Veja-se a atenção demonstrada pelo tribunal na análise da prova dos autos,
81.º
Incapaz, sequer, de se aperceber de tão monstruoso erro,
82.º
Preocupado que estava em conferir credibilidade às testemunhas e dar por provada a acusação.
83.º
Repare-se com que facilidade se condena um ser humano a 18 anos de privação de liberdade, tendo por base um relatório de uma autópsia que nem sequer corresponde ao dos autos!...”.
Afirmações não só fortemente temerárias/imprudentes como ferem o brio e dignidade do julgador a quo, na medida em que se revelam manifestamente infundadas.
Em primeiro lugar, todas as perícias e provas documentais estão nos autos, incluindo o respetivo relatório de autópsia médico legal de fls. 341 a 343 da vítima CC. Que foi com certeza visto e analisada pela defesa. Pelo que não deixa de ser surpresa para este Tribunal de recurso vir só agora o recorrente fazer tamanha afirmação sobre tal relatório de autópsia. Mas sobre o qual não suscitou qualquer incidente de falsidade.
Cotejando o teor da matéria de facto dada por provada nos itens 32 e 33 do acórdão, encontra toda ela (matéria fática) suporte no teor do relatório de fls 341 a 343.
Este relatório (fls 341 a 343) é o relatório de autópsia médico-legal do Serviço de Clínica e Patologia Forense da Delegação do Centro realizado à vítima CC.
Quando no acórdão se diz no artigo 32 dos factos provados que “Como consequência direta e necessária da conduta do arguido (descrita em 28.) CC sofreu as seguintes lesões:
• Hábito externo – Tórax:
- Solução de continuidade fusiforme, sensivelmente horizontal, de bordos rectos, nítidos e discretamente desidratados, de extremidades angulosas, com a extremidade medial em ponta de V – ferida cortante.
Tal ferida no quadrante infero-medial da região mamária esquerda, medindo 3,5cm de comprimento por 7 mm de afastamento de bordos, com cauda medial ligeiramente curva para cima, que media 1,5cm de comprimento e distava, respetivamente, 6 cm do mamilo esquerdo (ao bordo superior), 11cm do bordo costal esquerdo (ao bordo inferior), 12 cm da linha média esternal (à extremidade medial); - corresponde a transcrição, ainda que parcial, do teor de fls 342 do relatório da respetiva autópsia médico-legal.
• Hábito interno – Tórax
- Paredes: solução de continuidade a nível do 5.º espaço intercostal esquerdo, sobre a linha média clavicular, que media, antes de perfurar o grande peitoral esquerdo na transição para o grande oblíquo esquerdo, 16mmx4mm, em correspondência com idêntica solução descrita no hábito externo;
- Clavícula, cartilagens e costelas esquerdas: solução de continuidade horizontal com 24mmx4mm a nível do 5.º espaço intercostal esquerdo sobre a linha média clavicular, em correspondência com a solução de continuidade descrita no hábito externo e plano muscular, a qual continuava, para baixo e para fora, até à 7.ª cartilagem costal esquerda;
- Pericárdio e cavidade pericárdica: ferida cortante na parte inferior da parede anterior, sobre o lado esquerdo, em relação com o ferimento dos tecidos moles descrito acima e conexa com a ferida cardíaca do ápex descrita abaixo, que media externamente 16mmx4mm;
- Coração: perfuração completa no ápex com 1,5cmx4mm, transfixiva, que atingia a parede posterior do ventrículo esquerdo, onde fazia ferida cortante com 4cm de extensão por 1 cm de profundidade, no bordo lateral do ventrículo entre ambos os músculos papilares, terminando em ponta por baixo do limite lateral da valva anterior da mitral - corresponde a transcrição, ainda que parcial, do teor de fls 342v do mesmo relatório de autópsia médico-legal.
Quando no acórdão se dá igualmente como provado no artigo 33 que “As lesões traumáticas torácicas produzidas pela faca, instrumento perfuro-cortante, apresentam um trajeto daquele instrumento no corpo do ofendido CC orientado de frente para trás, da esquerda para a direita e de baixo ligeiramente para cima, numa profundidade estimada em cerca de 13-15cm, e foram causa direta e necessária da morte de CC corresponde ao teor das conclusões 1ª, 2ª e 6ª, do mesmo relatório de autópsia médico-legal a fls. 343v.
O recorrente confunde, outrossim, o teor deste relatório de autópsia médico-legal do Serviço de Clínica e Patologia Forense da Delegação do Centro realizado à vítima CC junto aos autos a fls 341 a 343, com o Relatório de Perícia Médico Legal de fls. 128 e ss.
Este Relatório de Perícia Médico Legal de fls. 128 e ss., instruído com fotos várias do cadáver e órgãos com relevo como seja o coração e zonas envolventes, trata-se de um exame preliminar efetuado ao cadáver de CC.
Os relatórios não se excluem, complementam-se, sendo certo que o relatório de autópsia médico-legal é mais pormenorizado e, em nosso entender, o mais relevante para efeitos de valor probatório legalmente atribuído nos termos do artigo 163º do Código de Processo Penal.
Aliás, não se percebe toda a insinuação do recorrente quanto a esta matéria, quando a fundamentação do tribunal é explícita:
“Para prova dos factos 32 e 33, o Tribunal fundou-se na análise conjugada do teor do Relatório de Perícia Médico Legal de fls. 128 e ss. e do relatório de autópsia médico-legal de fls. 341 a 343”.
4.2. Não havendo fundamento para alterar o teor dos factos que em termos objetivos se deram como provados no que respeita à ocorrência do homicídio da vítima CC, importa agora apreciar o elemento subjetivo, mais concretamente a intenção de matar por parte do recorrente.
É que em vários momentos da motivação de recurso afasta o recorrente esta intenção. E não só. Afasta mesmo a hipótese de ter sido o arguido a desferir o golpe com a faca na vítima CC.
Afirma, pois, nos artigos 67º e 68 da motivação:
67.º
Efetivamente, analisando cabalmente a prova produzida nos autos, não se encontra nenhuma capaz de sustentar, sem qualquer margem para dúvidas, que foi o arguido quem desferiu o golpe fatal no ofendido, provocando-lhe a morte,
68.º
Assim como não existe qualquer prova irrefutável que sustente ter havido, por parte do arguido, qualquer intenção de matar.
O recorrente sustenta a sua tese dizendo que “o tribunal a quo desvalorizou, ainda, por completo as lesões que o arguido apresentava à data dos factos, e que lhe foram perpetradas pela vítima, constantes do relatório pericial de fls. 162 a 218 dos autos, nomeadamente, de fls. 164 a 171” – teor do artigo 90º e ss da motivação.
E acrescenta nos artigos 130º e ss (da motivação):
130º
Ao passo que o arguido, por sua vez, apresentava, como já vimos supra, dois
golpes de faca na zona zigomática direita (fls. 164 dos autos) e vários golpes em ambas as mãos, especialmente na mão direita (fls. 168 e 169 dos autos).
131.º
Estes factos, plenamente documentados por fotos e por exame pericial, pese embora tenham escapado à análise do tribunal, demonstram inequivocamente que foi o ofendido quem pegou na faca para atingir o pai, golpeando-lhe o lado direito da face, junto ao olho (fls. 164 dos autos), e que este se tentou defender das ditas agressões com ambas as mãos,
132.º
Acabando por ser também golpeado nas mesmas pelo seu filho.
133.º
Cai assim, definitivamente, por terra a tese defendida pelas testemunhas (sem sequer terem presenciado o que aconteceu) e apadrinhada pelo tribunal a quo,
134.º
Inexistindo, por parte do arguido, qualquer intenção de matar,
135.º
Tão só a de se defender das agressões que lhe estavam a ser infligidas e a de retirar ao filho a faca que acabou por o matar.
136.º
Não resulta claramente dos autos se foi o arguido a desferir acidentalmente o golpe no corpo do filho, enquanto se tentava libertar das agressões,
137.º
Se foi este mesmo quem, acidentalmente, no meio da luta, se auto atingiu.
138.º
Uma coisa é certa: o tribunal a quo deveria ter dado por provado que a morte do ofendido foi acidental e NUNCA intencional,
139.º
Tendo ocorrido num momento de grande altercação entre pai e filho, após ambos se envolverem num confronto físico.
4.3. Ao defender esta versão dos factos, pretende ainda o recorrente que se altere o facto não provado ff), com o seguinte teor:
“No circunstancialismo referido no ponto 26, o arguido e CC envolveram-se em confronto físico”.
Relembramos, para melhor esclarecimento, o teor dos factos provados nºs 25 e 26:
25. No momento em que estava a tentar fechar a porta, o arguido, com a referida faca com lâmina de inox com 11,5 cm de comprimento e um cabo de madeira com 9,5cm de comprimento, e por forma a conseguir abrir a porta para poder esfaquear o seu filho, atingiu a ofendida com um golpe no dedo polegar direito.
26. Nesse momento, CC, pretendendo defender a sua mãe, foi ao encontro do pai ao interior da habitação, com o intuito de lhe retirar a faca da mão.
Não está em causa que o arguido apresentava as lesões descritas no relatório de avaliação do dano corporal de fls. 362 a 365, nomeadamente:
- Membro superior direito: Vestígio de escoriação com crosta cicatricial na face dorsal da zona correspondente à articulação metacarpo-falângica do 10 dedo, medindo 1.5cmx0,2cm.
- Membro superior esquerdo: Vários vestígios cicatriciais na face posterior do cotovelo, a maior das quais medindo 3crnx2.5cm; escoriação com crosta cicatricial no terço proximal da face posterior do antebraço, medindo 2cmx1cm.
- Membro inferior esquerdo: Escoriação com crosta cicatricial na região anterior do joelho, medindo 4cmnx1,5cm.
E que da reportagem fotográfica que consta do relatório de exame pericial realizado pela Polícia Judiciária Diretoria do Centro de fls 169 a 171 (tendo como finalidade o exame à roupa, lesões e recolha de vestígios hemáticos no corpo do arguido) constata-se que o arguido apresentava:
“duas feridas superficiais lineares e paralelas na zona zigomática direita (foto 16 – fls. 164); um hematoma na pálpebra esquerda (foto 17 – fls. 164); feridas na zona da clavícula direita (foto 25 – fls. 167); duas feridas no cotovelo esquerdo (foto 26 – fls. 167); uma ferida linear, com cerca de 2,5 cm, na zona entre o metacarpo e a falange do dedo polegar direito (fotos 27 e 28 – fls.168); uma ferida junto ao dedo médio direito (foto 29 – fls. 169); uma inflamação e uma ferida no joelho esquerdo (fotos 31 e 32 – fls. 170) e inflamação na zona da canela esquerda (fotos 33 e 34 – fls. 171)”.
Tendo por base o teor dos factos descritos nos itens 24 a 27 da sentença (supra reproduzidos), em que o arguido já empunhava a faca tendo a vítima ido ao encontro do arguido com o intuito de defender a mãe, é perfeitamente admissível ou provável, segundo as regras da experiência, que antes de o arguido ter atingido mortalmente o filho CC, tenha existido algum confronto entre ambos, nomeadamente de a vítima tentar retirar ao arguido a dita faca. Mas são meras suposições que as concretas lesões apresentadas pelo arguido só por si, não são conclusivas quanto a esse aspecto. E não existe qualquer outra prova testemunhal que possa corroborar esta versão. É que nesse momento apenas estavam os dois, pois a assistente tinha saído para o exterior da casa a pedir auxílio – facto nº 27.
Acresce que o arguido apresentava álcool em excesso e antes de se confrontar com o filho, a vítima, tinha perdido o equilíbrio e caído no chão (v. facto nº 20), tendo a assistente ajudado o mesmo a levantar-se (facto nº 21). Pelo que é muito provável que algumas das lesões apresentadas pelo arguido tenham como causa esta queda, nomeadamente as feridas no joelho, cotovelo, clavícula e ferida junto ao dedo médio direito.
Mas, mesmo a admitir-se que existiu algum confronto entre arguido e filho, na tentativa deste lhe retirar a faca (o que não se provou nem existe prova suficiente para alterar tal facto não provado) e daí tenham resultado algumas lesões para o arguido sendo as mais prováveis a ferida linear, com cerca de 2,5 cm, na zona entre o metacarpo e a falange do dedo polegar direito (fotos 27 e 28 – fls.168), este eventual envolvimento não retirava a intenção de matar à conduta do arguido. A intenção de matar resulta do golpe da faca na vítima, que existiu e é a causa da morte da vítima, segundo o descrito no relatório de autópsia.
Com efeito, segundo as conclusões deste relatório de autópsia (fls. 343v) e conforme se deu como provado no facto nº 33:
1 - A morte de CC foi devida às lesões traumáticas torácicas descritas.
2 - ais lesões traumáticas constituem causa adequada de morte.
3 - Estas lesões traumáticas descritas denotam haver sido produzidas por instrumento de natureza perfuro-cortante ou atuando como tal, podendo ter sido devidas a agressão por arma branca, como consta da informação.
(…)
6 - O trajeto do instrumento foi da frente para trás, da esquerda para a direita e de baixo ligeiramente para cima, numa profundidade estimada em cerca de 13-15cm.
7 - O ferimento é compatível com instrumento com apenas um bordo cortante.
8 - O conjunto destes elementos é plenamente concordante com a etiologia homicida referida na informação.
Já no dito relatório preliminar de fls 128 e seguintes, a fls, 134 se conclui que:
- “ A morte de CC foi devida a perfuração de artérias do coração;
- Tal lesão constitui causa adequada da morte:
- Esta denota ter sido provocada por um único golpe efetuado por instrumento corto perfurante ou atuando como tal, sendo compatível com a utilização de arma branca.
4.4. Estes elementos periciais afastam inequivocamente a versão do arguido de que a morte do filho ocorreu acidentalmente como insinua nos artigos 136º e 137 da motivação:
136.º
Não resulta claramente dos autos se foi o arguido a desferir acidentalmente o golpe no corpo do filho, enquanto se tentava libertar das agressões,
137.º
Se foi este mesmo quem, acidentalmente, no meio da luta, se auto atingiu.
Corrobora-se o afirmado pelo Ministério Público na sua resposta ao recurso, quando diz:
“Na verdade, o arguido não podia ignorar – como é do senso comum – que a zona corporal atingida – tórax – aloja órgãos vitais – como é o caso do coração – e que o instrumento utilizado – uma faca, dotada de lâmina – é instrumento apto a potenciar lesões físicas e até a causar a morte, atendendo, como se referiu, à zona atingida – um golpe dirigido directamente ao coração do malogrado CC.
Por outro lado, o golpe desferido pelo arguido foi com força física suficiente para lhe furar a camisola, perfurá-lo no tecido adiposo subcutâneo / parede do tórax e 5.º espaço intercostal esquerdo, e finalmente atingi-lo no coração.
- do relatório de autópsia, não foram constatados quaisquer sinais corporais de defesa, designadamente nos membros superiores da vítima, o que permite concluir que a mesma foi surpreendida pelo acto do arguido, tanto mais que este era seu pai e atendendo à diferença de idade entre ambos”.
Perante estes factos, que assentam em prova pericial consistente e testemunhal que atesta a lógica e solidez quanto ao modo de ocorrência dos factos, não há que suscitar qualquer dúvida à luz do princípio da presunção de inocência.
Pelo que, inexistindo qualquer erro notório na apreciação da prova e erro de julgamento dessa mesma prova, deverá improceder a pretensão do arguido nesta parte em ver alterada a matéria de facto provada.
2ª Questão: o enquadramento jurídico do factualismo provado.
1. Entende o recorrente que a existir homicídio, deve este ser qualificado como homicídio privilegiado.
Por sua vez, mais entende que não se verifica a especial perversidade da sua conduta.
Finalmente, que não se verificam os pressupostos do crime de violência doméstica.
1.1. O homicídio privilegiado:
1.1.1. Afirma o recorrente na conclusão nº 72:
“Sem conceder, e ainda que assim não se entenda, atenta a diminuta culpa do arguido nas circunstâncias da morte do ofendido, deverá este responder, apenas, por um crime de homicídio privilegiado, atentas as circunstâncias em que a morte foi produzida”.
1.1.2. Dispõe o artigo 133º, do Código Penal sobre a epígrafe de homicídio privilegiado que:
“Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos”.
Estes conceitos tipo de emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral devem resultar do factualismo provado, devem ser inerentes à conduta do arguido, como que estando na origem ou causa da respetiva conduta.
Segundo o decidido no Ac. STJ de 9-04-2015:
“IV. A compreensível emoção violenta, a compaixão, o desespero, ou um motivo de relevante valor social ou moral constituem cláusulas que apontam para a redução da culpa, ou cláusulas de privilegiamento, ou elementos privilegiadores, traduzindo estados de afeto vividos pelo agente, ou causas de atenuação especial da pena do homicídio.
V. A compreensível emoção violenta é um forte estado de afeto emocional provocado por uma situação pela qual o agente não pode ser censurado e á qual também o homem «fiel ao direito» não deixaria de ser sensível.
VI. O estado de desespero, corresponde, não tanto a uma situação objectiva de falta de esperança na obtenção de um resultado ou de uma finalidade, mas sobretudo a estados de afeto ligados á angústia, á depressão ou á revolta, nele se integrando certos casos da chamada humilhação prolongada.
Por sua vez, segundo o decidido no Ac. STJ de 20-06-2012 “Exige-se, assim, uma relação de causalidade entre o crime e a emoção, uma conexão que, conquanto não implique, em princípio, que a vítima seja pessoa estranha ao desenrolar da emoção, consabido que o que está na base do ilícito típico não é a provocação da vítima, mas sim a diminuição da culpa do agente. A culpa só deverá ter-se por sensivelmente diminuída quando o agente, devido ao seu estado emocional, seja colocado numa situação de exigibilidade diminuída, ou seja, quando actue dominado por aquele estado, isto é, seja levado a matar, no sentido de que não lhe era exigível, suposta a sua fidelidade ao direito, que agisse de maneira diferente, que assumisse outro comportamento”.
Nenhum destes conceitos emerge do factualismo provado, antes se podendo concluir que a conduta do arguido se agrava quanto ao grau de culpa por adotar comportamentos manifestamente anti sociais, ingerindo bebidas alcoólicas em excesso e originando discussões quer com terceiros quer em ambiente familiar, como aconteceu no presente caso, manifestando instintos de agressividade fora do comum, o que é bem revelado pela imediata procura da faca de cozinha e do uso que dela fez, matando o próprio filho.
Não se vislumbra como é que a conduta do arguido diminui sensivelmente a sua culpa, pressuposto este imprescindível à integração de tal conduta na prática do crime de homicídio privilegiado.
1.2. A especial perversidade da conduta do arguido.
1.2.1. Diz o recorrente no artigo 69º da motivação e conclusão 29º, que a morte da vítima não foi produzida em “circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade por parte daquele”. Nada mais acrescenta ou fundamenta sobre este seu entendimento.
Fundamenta o tribunal recorrido o enquadramento jurídico destes factos, nos seguintes termos, no que releva para a apreciação desta questão:
“Acresce que, a conduta levada a cabo pelo arguido revela uma especial censurabilidade, preenchendo os elementos do tipo do crime de homicídio qualificado, p. p. art.º 132.º, n.º 2 do Código Penal; com efeito:
- a vítima mortal era seu filho (cfr. facto 2);
- o arguido atingiu a vítima, com uma faca, na zona torácica, atingindo, designadamente, o coração (cfr. factos 32 e 33), impossibilitando ou diminuindo de forma grave as probabilidades de a vítima vir a sobrevier à facada.
- o arguido, não obstante, a oposição que a mãe da vítima lhe fez para que evitasse sair de casa, com a faca que tinha ido buscar à cozinha, tentado fechar e trancar a porta da habitação para que o arguido não viesse ao exterior ter com o filho (cfr. facto 24), munido da referida faca, e por forma a conseguir abrir a porta para poder esfaquear o seu filho, não teve pejo em atingir a ofendida com um golpe no dedo polegar direito, para neutralizar a resistência que esta lhe oferecia e, desse modo, conseguir prosseguir em direção ao falecido, para consumar a sua conduta ilícita (cfr. facto 25), revelando uma enorme frieza e desrespeito pela integridade física de terceiros, e persistência, em conseguir o resultado morte do seu filho.
- o arguido agiu sem qualquer causa que pudesse justificar o seu comportamento, tanto mais que a vítima, sempre agiu com o intuito de o acalmar e de o apaziguar (cfr. facto 18).
Desta forma, a conduta do arguido, pela persistência, intensidade e violência é reveladora de características particularmente desvaliosas e censuráveis, e de um desprezo intolerável pela vida e pessoa da vítima, sendo tal conduta análoga, por equiparável em termos de intensidade da culpa e de reprovabilidade, às hipóteses exemplificativamente previstas nas als. do n.º 2 do art. 132.º do Código Penal.
É certo que, aquando da prática dos factos, o arguido encontrava-se alcoolizado (cfr. facto 14), sendo que o alcoolismo que sofria (cfr. factos 7 e 8), persistente na ocasião do crime, terá afetado de alguma forma a sua capacidade de autodeterminação. Porém, ainda que se possa defender estarmos perante um caso de imputabilidade diminuída, daí não decorre uma situação de diminuição de culpa, a determinar uma atenuação da pena (cfr. em igual sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-07-2014, Proc. 354/12.6GASXL.L1.S1, in www.dgsi.pt).
Não pode, pois, desprezar-se a valoração de todo o processo executivo adotado pelo arguido, caracterizado por uma enorme insensibilidade perante a vida humana e por uma crueldade acima da “normalidade”.
Mais se considera na decisão recorrida que:
“A qualificação do homicídio corresponde a uma situação que, de acordo com o modo de atuação do agente, merece desde logo uma maior reprovação por parte da comunidade e da ordem jurídica.
Há efetivamente uma maior censura, ou seja, a qualificação tem como pressuposto um grau maior de culpa por parte do agente. Desta forma entendem Figueiredo Dias e Nuno Brandão que os exemplos-padrão presentes na norma do 132º, n.º 2 se configuram como “elementos constitutivos do tipo de culpa” (in – Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial. 2ª Edição Coimbra Editora, 2012, Tomo I, p. 51) e não como circunstâncias que atendem ao tipo de ilícito, como outros autores afirmam.
(…)
A especial censurabilidade ou perversidade do agente não será mais do que a revelação de um desrespeito acrescido, ou de um desprezo extremo, do autor, pelo bem jurídico protegido (cfr., neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27-05-2010, Processo nº 517/08.9JACBR.C1.S1 disponível em www.dgsi.pt).
(…)
Com efeito, como refere Paulo Pinto de Albuquerque (nota 4 ao art.º 132.º, em Comentário do Código Penal, UCE Editora, 2008, pp. 349-350) os “laços familiares com a vítima devem constituir para o agente factores inibitórios acrescidos, cujo vencimento supõe uma especial censurabilidade”.
1.2.2. Tomando como base estes conceitos doutrinais e jurisprudenciais para qualificar uma determinada conduta como de especial censurabilidade ou perversidade e pegando no concreto factualismo provado e respetivo circunstancialismo que rodeou a ocorrência dos factos nos presentes autos, não vemos como conciliar a conduta do arguido com o que afirma na motivação, quando diz:
182.º
Nunca o arguido pretendeu ofender, agredir, muito menos matar o ofendido,
183.º
Ou sequer alguma vez desejou a sua morte.
184.º
Pelo contrário, o arguido tentou ser sempre o melhor pai que conseguiu,
185.º
Sendo o ofendido o único filho varão,
186.º
A quem amava mais do que a própria vida,
187.º
E a quem ajudava sempre que podia,
188.º
Fazendo ele diversas privações para que ao ofendido nada faltasse.
189.º
Foi o arguido quem reuniu condições para trazer o filho para junto de si, em busca de uma melhor vida,
190.º
Quem lhe pagou a passagem aérea do .... para Portugal,
191.º
O recebeu em sua casa,
192.º
E lhe arranjou emprego, após vários pedidos a diversas entidades.
193.º
O arguido estava, inclusive, a amealhar o fruto do seu trabalho para ajudar o filho a trazer a sua mulher e filhos também para Portugal,
194.º
De modo a poder ter a família completa junto a si.
É certo que se trata de matéria alegada em sede de recurso, pelo recorrente, que não integra a matéria provada. Mas ainda que a crer nestas afirmações, as mesmas acrescentam precisamente uma maior censura e um grau maior de culpa à conduta do arguido.
A especial censurabilidade ou perversidade da conduta que advém dos laços de parentesco entre o arguido e a vítima, pai e filho, respetivamente, tem como fundamento o que o recorrente reproduz na sua motivação de recurso, de laços fortes de amizade, de auxílio, de ajuda, de apoio, de convívio são.
Como revelam os factos, a vítima apenas pretendeu defender a mãe da agressividade do arguido. Mas agiu em modo de apaziguar e acalmar o arguido, pois não se muniu de qualquer objeto ou instrumento quando se dirigiu ao pai. Ou seja, não enfrentou o recorrente com violência.
Em contrapartida, o arguido muniu-se da faca e com ela atingiu mortalmente a vítima, agindo sem o menor respeito pela pessoa do seu filho e sem dignidade pelo bem maior, a Vida.
Não é, com certeza alheio à conduta do arguido neste dia dos factos, todo o comportamento que já vinha tendo ao longo de alguns anos, de abuso de bebidas alcoólicas e de agressividade para com a assistente, sua esposa. Pelo que mais uma vez a ingestão de álcool determinou a agressividade no arguido, ao ponto de agir como agiu.
Mas como se fundamenta na decisão recorrida, “é certo que, aquando da prática dos factos, o arguido encontrava-se alcoolizado (cfr. facto 14), sendo que o alcoolismo que sofria (cfr. factos 7 e 8), persistente na ocasião do crime, terá afetado de alguma forma a sua capacidade de autodeterminação. Porém, ainda que se possa defender estarmos perante um caso de imputabilidade diminuída, daí não decorre uma situação de diminuição de culpa, a determinar uma atenuação da pena (cfr. em igual sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-07-2014, Proc. 354/12.6GASXL.L1.S1, in www.dgsi.pt).
O teor deste acórdão vai mesmo mais longe, pois aí se afirma ainda, tendo como pressuposto que a eventual imputabilidade diminuída advém do alcoolismo que sofria o agente, persistente na ocasião do crime e que terá afectado de alguma forma a sua capacidade de autodeterminação:
III - Na determinação do grau de culpa na imputabilidade diminuída há que levar em conta as qualidades pessoais do agente, reflectidas no facto; quando estas se revelarem especialmente desvaliosas do ponto de vista do direito, estaremos perante uma culpa agravada, a que corresponde uma pena necessariamente mais grave.
Por todo o exposto, é de manter a qualificação do crime praticado pelo arguido como de homicídio qualificado.
1.3. A verificação dos pressupostos do crime de violência doméstica.
1.3.1. Diz o recorrente na motivação de recurso:
202.º
Para uma família tradicional muçulmana, de classe média/ baixa e com pouca instrução escolar, como a do arguido, é perfeitamente aceitável, e expectável até, que as ordens em casa sejam dadas pelo marido,
203.º
Que este seja o único a prover ao sustento da família,
204.º
E que a mulher se “limite” a cuidar da casa,
205.º
Sem questionar ou criticar as opções que o marido decida tomar,
206.º
Muito menos que o afronte ou que deixe de lhe reconhecer autoridade.
209.º
Como supra se referiu, nunca o arguido pretendeu molestar ou maltratar a sua mulher,
210.º
Muito menos vexá-la ou humilhá-la.
211.º
Por várias vezes o arguido se sentiu ele próprio vexado e humilhado pela mulher, quando esta o enfrentava ou desautorizava em frente aos filhos,
212.º
Reagindo, nesses casos, de forma mais brusca ou autoritária, no único intuito de tentar impor e preservar o respeito que entende ser-lhe devido pelo papel que lhe compete no seio familiar.
213.º
Não tendo o arguido praticado qualquer crime de violência doméstica, nenhuma pena lhe deveria ser aplicada.
Acrescentando na conclusão nº 73:
“Tendo em conta a idade, a cultura e a religião do arguido, não deveria o tribunal a quo deslembrar a sobejamente conhecida diferença com que os muçulmanos veem os homens e as mulheres, no que diz respeito aos direitos e deveres de cada um”.
1.3.2. Com relevância para esta questão, resultam assentes os seguintes factos no acórdão:
1. Em data não concretamente apurada de 2014, na então residência do casal sita em ...., de tarde, depois do almoço, o arguido estava alcoolizado e aproximou-se da ofendida, agarrou-a com força, atirou-a contra a parede. A filha do arguido e da ofendida, DD, veio em defesa da ofendida, acabando o arguido por soltar a ofendida (cfr. factos 9 e 10).
2. Em data não concretamente apurada, quando já residiam em ........., o arguido, trancando a porta de entrada, na sequência do que a ofendida teve de pedir guarida à sua vizinha e senhoria, EE (cfr. facto 11).
3. Em data não concretamente apurada de Outubro de 2018, na residência do casal sita em ...., o arguido, estando ao pé da gaiola dos periquitos, pediu à ofendida para segurar numa chave de fendas, o que esta recusou. De imediato, o arguido dirigiu-se na direção da ofendida para lhe bater, o que não conseguiu, porque a ofendida, atemorizada, fugiu para a rua, acabando por pedir auxílio à sua vizinha e senhoria, EE, que a acolheu (cfr. factos 12 e 13).
4. No dia 1 de Junho de 2019, após o jantar, cerca das 22h30m, quando o arguido, no exterior da habitação, havia iniciado uma discussão com o seu senhorio, FF, tendo por objeto a renegociação do contrato de arrendamento, e após a ofendida BB, que se encontrava no interior da residência, se ter dirigido ao exterior da mesma e, aproximado do arguido, tentando acalmá-lo, dizendo-lhe que estava a fazer muito barulho, logrando levá-lo pelo braço na direção da habitação de ambos, o arguido dirigiu-se, então, à ofendida dizendo-lhe que não valia nada e apelidando-a de “animal” e “canalha” (cfr. factos 14 a 17).
5. Nessa mesma ocasião, o arguido dirigiu-se sozinho para o interior da habitação, tomando a direção da cozinha, onde o arguido retirou de uma gaveta uma faca de cozinha, uma das quais com uma lâmina de inox com 11,5 cm de comprimento e um cabo de madeira com 9,5cm de comprimento. Apercebendo-se de tal, e receosa do que pudesse acontecer, a ofendida foi no encalço do arguido, para evitar que ele voltasse a sair para o exterior, tentando fechar e trancar a porta da habitação para que o arguido não viesse ao exterior ter com o filho. No momento em que estava a tentar fechar a porta, o arguido, com a referida faca com lâmina de inox com 11,5 cm de comprimento e um cabo de madeira com 9,5cm de comprimento, e por forma a conseguir abrir a porta para poder esfaquear o seu filho, atingiu a ofendida com um golpe no dedo polegar direito (cfr. factos 22 a 25).
6. Já após a detenção do arguido nos presentes autos, em Julho de 2019, em visita da ofendida BB e filha DD ao arguido no Estabelecimento Prisional Regional de ......, o arguido, em tom sério e intimidatório, dirigiu-se à ofendida BB e disse-lhe para pensar muito e bem nas ligações que ele tinha lá dentro com “drogados e criminosos” (cfr. facto 34).
1.3.3. Sobre a natureza jurídica da violência doméstica e do bem jurídico protegido com esta incriminação, afirma-se, desde logo, no acórdão recorrido:
“O bem jurídico tutelado com esta norma incriminadora é a dignidade da pessoa humana, [a qual tem consagração constitucional (art. 1.º, 24.º, n.º 1, 25.º, da Constituição da República Portuguesa) e corresponde a um dos direitos fundamentais veiculados em tratados e convenções internacionais (artigo 5.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem; artigo 3.º, n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos; artigos 7.º, n.º 1, e 10.º, n.º 1 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos; e artigos 1.º, 3.º, n.º 1, e 4.º da Convenção dos Direitos Fundamentais da União Europeia)], a qual abrange a tutela da saúde física, psíquica, emocional e moral.
(…)
Na Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres (aprovada na ONU pela Resolução 48/104, de Dezembro de 1993), no seu art. 1.º, considera-se “violência contra as mulheres”, “qualquer acto de violência dirigido contra as mulheres que produz ou é passível de produzir danos ou sofrimentos físicos, sexuais ou psicológicos ou sofrimento para as mulheres, incluindo ameaças desses actos, coacção ou privação arbitrária da liberdade, tanto na vida pública como na vida privada”.
Assim, haverá violência contra as mulheres quando estas forem vítimas de qualquer ofensa à sua integridade física ou psíquica, bem como de atos que degradem a sua condição humana ou ponham fim à sua própria vida”.
Sem prejuízo da análise feita no acórdão recorrido, acrescenta-se todavia o seguinte:
É unanimemente entendido que com este tipo de crime se protege a saúde física (integridade física ou corporal) psíquica e mental e a dignidade da pessoa humana, num contexto de relação conjugal ou análoga e mesmo após cessar essa relação.
É, pois, um bem jurídico complexo, nesta perspetiva de proteger não só a saúde e integridade física referenciadas, mas também a dignidade da pessoa enquanto ser humano na plenitude dos seus direitos. Este tipo de crime é mais complexo que a mera soma das eventuais ofensas à integridade física e/ou injúrias.
Relevante é que a conduta do agressor, se projete na pessoa da vítima, individual ou concomitantemente, na sua dimensão física e psicológica, diminuindo-a, achincalhando-a, menorizando-a, subalternizando-a, denegrindo-a, enfim, projetando-se negativamente na sua individualidade enquanto pessoa titular de direitos.
É este o sentido da jurisprudência, citando-se a título meramente exemplificativo:
“1. O bem jurídico protegido no crime de violência doméstica é complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física e psíquica e dignidade da pessoa humana, em contexto de coabitação conjugal ou análoga e mesmo após cessar aquela coabitação” – ac. desta Relação de Coimbra de 12.5.2010, proc. nº 258/08.7GDLRA.C1.
“I - O bem jurídico protegido no crime de violência doméstica é complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física psíquica e mental e a dignidade da pessoa humana, em contexto de relação conjugal ou análoga e mesmo após cessar essa relação.
II - Não exigindo o tipo legal uma reiteração de acções, um único acto ofensivo só consubstanciará “maus tratos” se se revelar de tal modo intenso que ao nível do desvalor (quer da acção quer do resultado) seja apto a lesar em grau elevado o bem jurídico pondo em causa a dignidade da pessoa humana” – ac. da Relação do Porto de 10-09-2014, proc. nº 648/12.0PIVNG.P1.
“1. Não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos a cônjuge, o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal” – ac. da Relação de Coimbra de 28-01-2010, proc. nº 361/07.0GCPBL.C1.
“1.- No crime de violência doméstica, tutela-se a dignidade humana da vítima.
2.- Neste crime não se demanda a prática habitual dos atos ou a repetitividade das condutas, o normativo prevê tanto situações repetitivas ou plúrimas como situações de natureza una.
3.- O crime de violência doméstica apenas exige que alguém, de modo reiterado ou não inflija maus tratos físicos ou psíquicos no âmbito de um relacionamento conjugal, ou análogo, e determinada por força desse relacionamento e que, por força das lesões verificadas, se entenda que tenha ofendido a dignidade da vítima” – ac. da Relação de Coimbra de 29-01-2014, proc. nº1290/12.1PBAVR.C1.
Como se decidiu também no ac. do TRE de 3-07-2012,
A «pedra de toque» da distinção entre o tipo criminal de violência doméstica e os tipos de crime que especificamente tutelam os bens pessoais nele visados concretiza-se pela apreciação de que a conduta imputada constitua, ou não, um atentado à dignidade pessoal aí protegida.
1.3.4. Pretende o recorrente justificar a sua conduta quanto a este crime, à sua idade, cultura e religião. Realçando os usos, costumes e tradições muçulmanas.
Com o devido respeito, olvida o recorrente todos os tratados e convenções internacionais sobre esta temática da violência doméstica supra mencionados consagrando a nossa Constituição da República o seguinte princípio no artigo 13º:
“1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual”.
A liberdade de consciência, de religião e de culto igualmente consagrados na CRP/76, artigo 41º (nº 1) dispondo o nº 4 que “As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto”, não derroga aquele princípio do artigo 13º.
Queremos com isto dizer que pelo simples facto de o recorrente se assumir como muçulmano, professando com certeza, como religião, o Islamismo, não o isenta de todos os deveres para com a dignidade da vítima, sua esposa, enquanto mulher, no que respeita a todos os maus tratos físicos e psíquicos infligidos.
Um concreto pormenor chama a atenção deste Tribunal, é que querendo o recorrente justificar o relacionamento e tratamento da esposa, vítima, ao abrigo da cultura e tradições muçulmanas, não se compreende como tem o recorrente um longo passado de consumo de bebidas alcoólicas, que contribuíram grandemente para a prática das suas condutas, quanto é do conhecimento geral que o consumo de álcool é proibido segundo aquela religião.
Pelo que, subsumindo os factos supra enunciados que resultaram provados aos requisitos exigidos pelo artigo 152.º n.º 1, al. a) do Código Penal segundo o qual comete o crime de violência doméstica quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais a cônjuge ou ex-cônjuge, dúvidas não se suscitam que os mesmos integram o conceito de maus tratos físicos e psíquicos infligidos à ofendida, sua esposa, violando a sua dignidade enquanto mulher e pessoa, na plenitude dos seus direitos.
1.3.5. Quanto à objeção do recorrente nos artigos 215 e 216º da motivação de que:
“Sem embargo, e ainda que assim não se entenda, também por mero dever de patrocínio se dirá que, não estando em causa factos praticados contra menores, nem na presença de menores,
Sempre a previsão do crime alegadamente imputado ao arguido caberia na al. a) do n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal, onde o mesmo é punido com pena de prisão de um a cinco anos”,
encontra a mesma resposta na decisão recorrida onde se afirma: “De facto, o arguido não teve pejo de praticar algumas daquelas condutas, no domicílio comum do casal, o que constitui circunstância qualificativa nos termos do art.º 152.º, n.º 2 do Código Penal”.
3ª Questão: a medida da pena:
1. Insurge-se ainda o recorrente contra a medida da pena, o que faz nas conclusões 53º e seguintes, para as quais se remete, porque supra transcritas, tendo assim concluído nas conclusões 70. 71 e 76:
70. A morte do ofendido é já a mais pesada das penas com a qual o arguido terá
de viver até ao final dos seus dias.
71. Não lhe devendo qualquer outra pena ser aplicada.
76. Nenhuma pena deve ser aplicada ao arguido pelo crime de violência doméstica,
que este não praticou.
2. O tribunal recorrido fundamenta quer as penas parcelares quer a pena única aplicada, nos seguintes termos (dispensando-se as considerações de índole geral sobre e a medida da culpa como limite desta, como se dispõe no artigo 40º, do Código Penal):
“Quanto ao crime de homicídio qualificado:
O crime de homicídio qualificado é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos.
Vejamos, agora, quanto à determinação da respetiva medida:
A pena é fixada, de acordo com os critérios estabelecidos no n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal, sendo que, a determinação concreta da pena deve valorizar as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, militem a favor do arguido ou contra ele; assim, impõe-se ponderar:
- grau de ilicitude do facto e modo de execução dos crimes: extremamente elevado tendo em conta a natureza do bem jurídico violado – a vida, o mais valioso da nossa ordem jurídica – o facto de a vítima ser filho do arguido (cfr. facto 2) e o modo de atuação do arguido; com efeito:
- o arguido atingiu a vítima, com uma faca, na zona torácica, atingindo, designadamente, o coração (cfr. factos 32 e 33), impossibilitando ou diminuindo de forma grave as probabilidades de a vítima vir a sobrevier à facada.
- o arguido, não obstante, a oposição que a mãe da vítima lhe fez para que evitasse sair de casa, com a faca que tinha ido buscar à cozinha, tentado fechar e trancar a porta da habitação para que o arguido não viesse ao exterior ter com o filho (cfr. facto 24), o arguido, munido da referida faca, e por forma a conseguir abrir a porta para poder esfaquear o seu filho, não teve pejo em atingir a ofendida com um golpe no dedo polegar direito, para neutralizar a resistência que esta lhe oferecia e, desse modo, conseguir prosseguir em direção ao falecido, para consumar a sua conduta ilícita (cfr. facto 25), revelando uma enorme frieza e desrespeito pela integridade física de terceiros, e persistência, em conseguir o resultado morte do seu filho.
- gravidade das consequências: extremamente elevadas, uma vez que a vítima faleceu, não podendo haver pior consequência.
- intensidade do dolo: o mais grave, porquanto o arguido agiu com dolo direto;
- sentimentos manifestados no cometimento do crime e dos fins ou os motivos que o determinaram: teve-se em consideração de o arguido, agiu sem qualquer causa que pudesse justificar o seu comportamento, tanto mais que a vítima, sempre agiu com o intuito de o acalmar e de o apaziguar (cfr. facto 18). Contudo, haverá que considerar-se que, aquando da prática dos factos, o arguido encontrava-se alcoolizado (cfr. facto 14), sendo que o alcoolismo que sofria (cfr. factos 7 e 8), persistente na ocasião do crime, terá afetado de alguma forma a sua capacidade de autodeterminação.
- exigências de prevenção geral: são extremamente elevadas, na medida em que o crime de homicídio, constitui o crime mais grave da nossa ordem jurídica.
Relativamente ao crime de violência doméstica:
Relativamente ao crime de violência doméstica, nos termos do artigo 152.º, n.º 1 e 2 do Código Penal, o mesmo é punido com pena de prisão de dois a cinco anos, pelo que, não prevendo a lei outra espécie de pena, não há lugar ao procedimento escolha da mesma, havendo, pois, que aplicar tal pena ao arguido.
Quanto ao grau de ilicitude, este revela-se elevado em função dos meios utilizados para causar maus tratos à ofendida, designadamente, através de ofensas à integridade física, injúrias e ameaças.
Também milita, contra o arguido, o facto de ter agido com dolo direto a forma de dolo mais grave.
As exigências de prevenção geral são muito elevadas, na medida em que a violência doméstica, sobretudo quanto a mulheres, é crime que teima em persistir na nossa sociedade, afetando a dignidade e a integridade das vítimas, constituindo uma clara manifestação da desigualdade histórica das relações de poder entre sexos, que conduziram à dominação sobre as mulheres, e à discriminação contra as mulheres, por parte dos homens, e à obstaculização do seu pleno progresso.
Relativamente a ambos os crimes:
- grau de violação dos deveres impostos ao agente: extremamente elevadas, tendo em conta o contexto e modos de atuação, sendo que, uma vez que as vítimas eram seu filho e esposa, exigia-se ao arguido maior autocontrolo.
- condições pessoais do agente e situação económica: teve-se em consideração, por um lado, o facto de o arguido não se encontrar no seu país de origem; de não haver registos/informações de um percurso infanto-juvenil pautados por vivências traumáticas ou negativas; de ter frequentado a escola no país de origem, e de ter cumprido serviço militar, de ter conseguido, arranjar trabalho em Portugal, não obstante as dificuldades iniciais em o conseguir; o facto de, em reclusão, o arguido manter comportamento de acordo com as normas institucionais, sem registo de infrações disciplinares, factores que o favorecem; por outro lado, considerou-se o facto de o arguido não ter apoio de familiares ou amigos, e de apresentar, hábitos de consumo de bebidas alcoólicas que desvaloriza, factores que o desfavorecem e reclamam necessidades acrescidas de prevenção especial.
- conduta anterior aos factos: a ausência de antecedentes criminais, o que se traduz numa ligeira circunstância atenuativa, porquanto, não praticar crimes é a obrigação de qualquer cidadão; ainda assim, tal deve ser valorado em seu favor;
- conduta posterior aos factos: revelam em desfavor do arguido, o facto de não serem conhecidos quaisquer atos concretos de arrependimento, bem como o facto de o arguido, já na prisão, ter tentado intimidar a ofendida BB, factores que o desfavorecem e reclamam necessidades acrescidas de prevenção especial.
Definindo, a partir deste quadro, a importância da justa retribuição do ilícito e da culpa, bem como as necessidades da prevenção especial e, depois, da prevenção geral (confirmação da ordem jurídica), chamando a ponderação entre a gravidade da culpa expressa no facto e a gravidade da pena com a graduação da importância dos crimes para a ordem jurídica violada (conteúdo da ilicitude) e a gravidade da reprovação que deve dirigir-se ao agente do crime por ter praticado os delitos (conteúdo da culpa), o tribunal entende que o arguido deve ser condenado nas seguintes penas:
- pela prática do crime de homicídio qualificado: 17 (dezassete) anos de prisão;
- pela prática do crime de violência doméstica: 3 (três) anos de prisão.
*
Nos termos dos artigos 30.º, n.º 1 e 77.º, nºs. 1 e 2 ambos do Código Penal, tendo o arguido cometido diversos crimes, haverá que atender ao facto de estarmos perante um concurso efetivo de crimes, cujas regras de punição conduzem à condenação do agente numa pena única, determinada em função dos factos e da personalidade do agente.
Assim, atentas as disposições legais acima enunciadas, no caso concreto, haverá que proceder ao cúmulo jurídico das penas de prisão, face à sua idêntica natureza.
Considerando que o limite máximo da pena única é constituído pela soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e o limite mínimo pela mais elevada das penas parcelares concretamente aplicadas [cfr. artigo 77.º, n.º 2 do Código Penal], temos como limites da moldura penal, 20 anos de prisão, como limite máximo e 17 anos de prisão como limite mínimo.
Ponderando todas as circunstâncias acima referidas aquando da determinação da medida concreta da pena e apreciando em conjunto os factos e a personalidade do arguido, este Tribunal julga adequado condenar, em cúmulo jurídico, o arguido, na pena única de 18 (dezoito) anos de prisão”.
3. Esta fundamentação do julgador a quo traduz uma síntese de toda a análise anteriormente feita quanto às condutas do arguido, ao concreto circunstancialismo em que ocorreram e à não correspondência (ideia que pretendeu fazer passar) da justificação dessas mesmas condutas - quer quanto à morte do filho quer quanto à prática do crime de violência doméstica – com o apelo à cultura e à religião de Maomé (v. artigo 200º da motivação).
Na fundamentação está expressa a gravidade das condutas quer no que respeita ao grau de ilicitude, da culpa e às exigências de prevenção.
O principal facto que causa algum “ruído”, é efetivamente a prática do crime de homicídio sob a influência de álcool. Mas já se constatou que tal “imputação diminuída” com base na ingestão do álcool não diminui a culpa, antes a mantém agravada. De resto, a ingestão do álcool determinou quase todas as condutas delituosas do arguido que integram os factos referentes ao crime de violência doméstica. É um elemento desfavorável e não atenuante na conduta do recorrente.
E apesar de todo o discurso de interesse e preocupação com a vida do filho, a quem sempre pretendeu ajudar, verbalizado em sede de motivação de recurso, a verdade é que não manifestou sequer, de modo a que pudesse ser relevado pelo tribunal, qualquer sentimento sério e genuíno de arrependimento.
Segundo a pretensão do recorrente, manifesta-se o mesmo não diretamente sobre a medida exata das penas parcelares e única ou conjunta mas sim pela sua não condenação pela prática dos crimes.
Por todos estes considerandos e porque as penas fixadas, quer as penas parcelares quer a pena conjunta, se mostram devidamente fundamentadas, fundamentação que não merece censura, entende-se que deverá improceder a pretensão do recorrente em alterá-las.
4ª Questão: O pedido de indemnização civil.
1. Uma última palavra sobre o pedido de indemnização civil fixado, sobre o qual se insurge o recorrente no artigo 214º da motivação, dizendo:
“Devendo, de igual modo, improceder o pedido de indemnização civil formulado
pela demandante BB, por falta de fundamentação”.
2. No acórdão foi apreciado e fixado o pedido de indemnização civil a favor da ofendida BB nos seguintes termos:
“Neste contexto, a assistente, igualmente demandante civil, BB deduziu pedido de indemnização civil, contra o arguido, peticionando a condenação deste a pagar-lhe a quantia de €20.000,00, acrescido de juros contados desde a citação, até efetivo e integral pagamento, a título de indemnização por danos não patrimoniais que enuncia sofridos em consequência dos factos descritos na pronúncia [cfr. pedido cível deduzido a 18-12-2019 – fls. 517 e ss. Do processo físico].
De acordo com o disposto no artigo 129.º do Código Penal, a responsabilidade civil emergente de crime é apreciada segundo as regras da lei civil.
Nos termos do artigo 483.º do Código Civil, a responsabilidade civil implica a verificação dos seus pressupostos, a saber: facto ilícito, culpa, dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Já vimos, aquando da apreciação dos pressupostos da responsabilidade criminal que a conduta do arguido preenche os elementos objetivo e subjetivo do tipo do crime de violência doméstica, p. e p., no artigo 152.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do Código Penal, inexistindo quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa.
Assim, para efeitos de responsabilidade civil extracontratual, temos, pois, verificada a existência do facto ilícito e da culpa.
Vejamos, os demais pressupostos:
Na vertente não patrimonial, atento o acervo factual dado como provado, “maxime” nos factos 9 a 13, 17, 25, 34, 36, 37 e 38, resultou provado que o arguido infligiu, de forma consciente e intencional, maus-tratos físicos e psíquicos à ofendida, com quem é casado (cfr. facto 1).
Com efeito lograram provar-se as seguintes situações, em que o arguido infligiu maus
tratos (físicos e psíquicos) à ofendida:
(…)
Ou seja, resultam igualmente demonstrados os danos e o nexo da causalidade entre os factos levados a cabo pelo arguido e os danos provocados, pois com efeito, a ofendida não os teria sofrido, se o arguido não os tivesse praticado.
Desta forma, encontram-se preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, imputando-se esta ao arguido/demandado.
Verificados que sejam estes pressupostos nasce a obrigação de indemnizar a cargo do demandado [cfr. art.º 562.º e o 564.º, n.º1, todos do Código Civil].
(…)
Impossibilitada a reconstituição natural, a indemnização será fixada em dinheiro [cfr. art.º 566.º, n.º 1, 1ª parte do Código Civil].
Em sede de danos não patrimoniais, o montante pecuniário da compensação deve ser fixado equitativamente, tendo em atenção as circunstâncias enunciadas no artigo 494º do Código Civil.
No caso em apreço, os danos provocados pelo arguido à assistente, deverão ser considerados como danos de intensidade elevada, atento o circunstancialismo em que foram produzidos. Além disso, foram plúrimas, as situações em que o arguido infligiu maus tratos à ofendida, sendo especialmente censuráveis as condutas referidas em primeiro e em quinto lugares.
Acresce que o demandado agiu com dolo direto, a forma de dolo mais grave, pelo que, entende este Tribunal ser perfeitamente ajustado e adequado atribuir à demandante uma indemnização no valor de €7.500,00 (sete mil e quinhentos euros), a título de danos não patrimoniais, a qual é devida pelo demandado à demandante”.
3. Fundamentou o tribunal recorrido a atribuição da indemnização a favor da vítima. Em contrapartida, não fundamenta o recorrente o porquê da sua discordância, ficando-se pela lacónica afirmação de que o pedido de indemnização civil formulado pela demandante BB deve improceder por falta de fundamentação.
Pelo que é oportuno aqui reafirmar o que se decidiu no ac. da Relação do Porto de 16-6-2004, proferido no processo 0412260, relator Fernando Monterroso:
«os tribunais, ao contrário das Escolas de Direito, não estão vocacionados para a pura especulação jurídica. Por isso, nos recursos não basta afirmar que se discorda da decisão, é necessário atacá-la, especificando não só os pontos em que se discorda dela, mas também as razões concretas de tal discordância».
Termos em que se mantém o montante do pedido de indemnização civil a favor da vítima.
(…)”.
1. O presente recurso pode ser recebido por este Supremo Tribunal de Justiça. Havendo legitimidade e tempestividade do feito, e tendo este Tribunal a respetiva competência. Não se prefiguram quaisquer motivos para o rejeitar, nomeadamente qualquer causa extintiva do procedimento.
2. É consensual na comunidade jurídica o entendimento de que, sem prejuízo do conhecimento oficioso de certas questões legalmente determinadas – arts. 379, n.º 2 e 410, n.º 2 e 3 do CPP – é pelas Conclusões apresentadas em recurso que se recorta ou delimita o âmbito ou objeto do mesmo (cf., v.g., art. 412, n.º 1, CPP; v. BMJ 473, p. 316; jurisprudência do STJ apud Ac. RC de 21/1/2009, Proc. 45/05.4TAFIG.C2, Relator: Conselheiro Gabriel Catarino; Acs. STJ de 25/3/2009, Proc. 09P0486, Relator: Conselheiro Fernando Fróis; de 23/11/2010, Proc. 93/10.2TCPRT.S1, Relator: Conselheiro Raul Borges; de 28/4/2016, Proc. 252/14.9JACBR., Relator: Conselheiro Manuel Augusto de Matos).
3. Da Conclusão, muito extensa e profusa em factos e suas interpretações, não poderá aproveitar-se para o presente recurso a multidão de materiais de novo carreados e que constituem matéria de facto, insuscetível de ser apreciado por este Supremo Tribunal de Justiça.
Obviamente, não podem ser conhecidas por este Tribunal as questões de facto, aliás já objeto de análise e ponderada e douta decisão pela Veneranda Relação de ......, no seu Acórdão. Como é sabido, pelos arts. 432, n º 1, alínea b) e 400, n º 1, alínea f) a contrario, do Código Penal, este tipo de recurso terá de circunscrever-se ao reexame de matéria de direito. Porquanto não está em causa uma situação em que se possa lançar mão da possibilidade excecional do art. 410, n º 2, em qualquer das suas alíneas, e, no caso, muito concretamente a alínea c). Atente-se, v.g., no Acórdão deste STJ de 19-02-2020, proferido no Proc. n.º 118/18.3JALRA.C1.S1 (Relator: Conselheiro Pires da Graça):
“I - O STJ, afora os casos em que julga em 1ª instância, ou em recurso de decisões da Relação funcionando em 1.ª instância, não conhece de matéria de facto, salvo o conhecimento oficioso de vícios nos termos do n.º 2, do art. 410.º do CPP, pois que como resulta do disposto no art. 434.º, do CPP “Sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito.”
II - Como vem sendo entendido por este Supremo, não é da competência do STJ conhecer dos vícios aludidos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, como fundamento de recurso, quando invocados pelos arguidos, uma vez que o conhecimento de tais vícios sendo do âmbito da matéria de facto, é da competência do tribunal da Relação. (arts. 427.º e 428.º, n.º 1, do CPP)
III - A matéria de facto encontra-se pois definitivamente fixada e somente perante ela se define a aplicação do direito.
IV - As questões suscitadas pelo arguido relativamente à sua discordância em relação à forma como o tribunal de 1.ª instância decidiu a matéria de facto, constituem matéria especificamente questionada, integrando-se em objecto de recurso em matéria de facto, que foi exercido, tendo a Relação fundamentado a decisão, estranha aos poderes de cognição do STJ.
V - No sistema processual penal, vigora a regra da livre apreciação da prova, em que conforme art. 127.º, do CPP, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
São admissíveis as provas que não forem admitidas por lei.- art. 125.º, do CPP.
VI - O citado art. 127.° indica-nos um limite à discricionariedade do julgador: as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova.
VII - Os recursos são remédios jurídicos que se destinam a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, reexaminando decisões proferidas por jurisdição inferior. Ao tribunal superior pede-se que aprecie a decisão à luz dos dados que o juiz recorrido possuía. (…)”
E ainda, sempre a mero título de exemplo, atente-se neste segmento do Sumário do Acórdão deste STJ de 2016-02-24 proferido no Processo n.º 1825/08.4PBSXL.E1.S1 (Relator: Conselheiro Oliveira Mendes):
“I - Constitui jurisprudência constante e uniforme do STJ (desde a entrada em vigor da Lei 58/98, de 25-08) a de que o recurso da matéria de facto, ainda que circunscrito à arguição dos vícios previstos nas als. a) a c) do n.º 2 do art. 410.º, tem de ser dirigido ao tribunal da Relação e que da decisão desta instância de recurso não é admissível recurso para o STJ. O conhecimento daqueles vícios, constituindo actividade de sindicação da matéria de facto, excede os poderes de cognição do STJ, enquanto tribunal de revista, ao qual compete conhecer da matéria de direito.
II - O STJ não está, todavia, impedido de conhecer aqueles vícios, por sua iniciativa própria, nos casos em que a sua ocorrência torne impossível a decisão da causa, assim evitando uma decisão de direito alicerçada em matéria de facto manifestamente insuficiente, visivelmente contraditória ou viciada por erro notório de apreciação. Há, pois, que rejeitar parcialmente o recurso apresentado pelo arguido, por irrecorribilidade da decisão impugnada, no segmento em que vêm arguidos os vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, da contradição insanável da fundamentação ou entre fundamentação e a decisão e do erro notório na apreciação da prova. Sendo que o acórdão recorrido não enferma, de igual forma, de qualquer um dos arguidos vícios.”
Atente-se também no Sumário do Acórdão de 18/03/2004, proferido no Proc.º n.º 03P3566 (Relator: Conselheiro Simas Santos):
“4 - A insuficiência a que alude a al. a) do nº. 2 do art. 410º do CPP decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou não provados todos aqueles factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão.
5 - Ocorre este vício quando, da factualidade vertida na decisão em recurso, se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição.»
5 - Daí que aquela alínea se refira à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova (art. 127º), que é insindicável em reexame da matéria de direito.
6 - A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, apenas se verificará quando, analisada a matéria de facto, se chegue a conclusões irredutíveis entre si e que não possam ser ultrapassadas ainda que com recorrência ao contexto da decisão no seu todo ou às regras de experiência comum
7 - O erro notório na apreciação da prova unicamente é prefigurável quando se depara ter sido usado um processo racional e lógico mas, retirando-se, contudo, de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irrazoável, arbitrária ou visivelmente violadora do sentido da decisão e/ou das regras de experiência comum, bem como das regras que impõem prova tarifada para determinados factos.”
Não é, pois, situação, nos presentes autos, para o Supremo Tribunal de Justiça, conhecer, excecionalmente, de matéria de facto, por «iniciativa própria, nos casos em que a sua ocorrência torne impossível a decisão da causa» - Acórdão do STJ de 11.06.2014, proferido no Proc.º n.º 14 /07.0TRLSB. S1 (Relator: Conselheiro Raul Borges).
Não podem, pois, apreciar-se as inúmeras questões periciais e julgamento dos factos, que são matéria esgotada nas Instâncias, e nomeadamente alvo de paciente julgamento do Venerando Tribunal da Relação. Este Supremo Tribunal de Justiça não pode substituir-se ao papel, nomeadamente, do Tribunal da Relação, que muito proficientemente o desempenhou, aliás.
4. Conclui-se que, essencialmente, está em causa neste recurso:
- A questão da alegada violação do princípio in dubio pro reo, pelo Tribunal a quo, no Acórdão recorrido;
- a qualificação jurídica do crime de homicídio;
- a qualificação dos factos provados pertinentes ao crime de violência doméstica, que deveriam, a seu ver, ser integrados, simpliciter, na previsão legal no art. 152, n.º 1, alínea a) do Código Penal (e não no art. 152, n.º 1, alínea a) e ainda n.º 2, como foi feito)
- com as necessárias consequências daí decorrentes na medida das penas, e no cúmulo. Mas sobre esta questão se levanta um problema prévio, que se verá infra.
Contudo, diga-se, desde já que, pelo quantum da pena, desde logo, este STJ não pode conhecer do crime de violência doméstica, nem da factualidade que o envolve.
5. O princípio in dubio pro reo suscita, por vezes, algumas confusões, as quais, contudo, de modo algum deveriam existir, porquanto se encontra perfeitamente balizado jurisprudencialmente.
Por exemplo, veja-se o Acórdão deste STJ de 12/03/2009 proferido no Proc.º n.º 07P1769 (Relator: Conselheiro Soreto de Barros)
“II - O «in dubio pro reo é um princípio geral do processo penal, pelo que a sua violação conforma uma autêntica questão-de-direito que cabe, como tal, na cognição do STJ. Nem contra isto está o facto de dever ser considerado como princípio de prova: mesmo que assente na lógica e na experiência (e por isso mesmo), conforma ele um daqueles princípios que (…) devem ter a sua revisibilidade assegurada, mesmo perante o entendimento mais estrito e ultrapassado do que seja uma «questão-de-direito» para efeito do recurso de revista» – Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1.ª ed. (1974), Reimpressão, Coimbra Editora, 2004, págs. 217-218; cf., ainda, Cristina Líbano Monteiro, In Dubio Pro Reo, Coimbra, 1997, e Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 437.
III - O princípio do in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa; como tal, é um princípio que tem a ver com a questão de facto, não tendo aplicação no caso de alguma dúvida assaltar o espírito do juiz acerca da matéria de direito.
IV - Este princípio tem implicações exclusivamente quanto à apreciação da matéria de facto, quer seja nos pressupostos do preenchimento do tipo de crime, quer seja nos factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.
V - Não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo.
VI - Daqui se retira que a sua preterição exige que o julgador tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido. Já o saber se, perante a prova produzida, o tribunal deveria ter ficado em estado de dúvida é uma questão de facto que não cabe num recurso restrito à matéria de direito, mesmo que de revista alargada.
VII - A apreciação pelo STJ da eventual violação do princípio in dubio pro reo encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto: há-de ser pela mera análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio, ou seja, quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção.”
O facto de se dever dar prevalência ao valor da liberdade e à presunção da inocência sobre a possibilidade da culpabilidade, em nada colide com a construção do princípio, assente na existência de verdadeira dúvida. Porém, não se trata de uma dúvida de um observador ideal, híper cético, porventura, nem dúvida sugerida ou acalentada meramente pela defesa, mas, depois de tudo somado, de tudo devidamente apreciado, estará em causa, para a aplicação do princípio, uma dúvida subsistente no julgador. É dessa dúvida que se trata. O tribunal teria tido que se encontrar na situação de algum impasse decisório, por eventualmente pender, algo pendularmente, entre possibilidades. E é no sentido de desfazer essa dúvida que se deve decidir em favor do réu. Ora não se vislumbra nos autos nada que indicie que essa dúvida existiu.
O princípio, em termos absolutos, entre nós, acaba, assim, por ter um conteúdo algo mais preciso que a “proof beyond reasonable doubt”, a qual, contudo, pode lançar alguma luz sobre as dúvidas dos tribunais. Mas que terão, elas próprias, de existir. Assim, no fundo, a própria dúvida de um tribunal (mas não é o caso), não poderá ser fruto de uma consciência tecnicamente dita “escrupulosa” (cf., v.g., Rafael Gomez Perez), não se tratando de estar acima de toda e qualquer dúvida, ou da mais leve dúvida. Se assim ocorresse, se se tratasse de uma total inexistência da mais ténue sombra de dúvida, não haveria condenações; antes terá que ser uma dúvida de acordo o padrão geralmente aceite pelo conhecimento e experiência das pessoas (segundo Neil van Dokkum, Evidence, Dublin, Thomson Round Hall, 2007, p. 9). Porém, insista-se: no caso deste princípio, não se trata de dúvidas que pudessem pairar no espírito geral, ainda que com as características apontadas por van Dokkum, mas de dúvidas, desse mesmo tipo, mas concretamente existentes nos julgadores, e que se tenham traduzido em expressa documentação nos autos. Pois não se pode sondar o ânimo íntimo da mente dos juízes sem a existência de qualquer materialização da mesma, ainda que em obter dicta.
Este STJ só poderia apreciar uma eventual violação do princípio do in dubio pro reo se da própria decisão recorrida resultasse que, no caso, o Tribunal da Relação teve dúvidas sobre a veracidade dos factos imputados ao arguido e, não se detendo nesse obstáculo, nem, por via dele, fazendo uso do princípio em causa, ainda assim lhe atribuiu a sua autoria desses factos (cf. Acórdão do STJ de 09/07/2020, proferido no Proc.º n.º 2275 /15. 1JAPRT.P2. S1 (Relator: Conselheiro Francisco Caetano). O que não ocorreu.
6. Em vez de um crime de homicídio qualificado, consumado, p. e p. pelos artigos, 14, 131 e 132, n.º s 1 e 2, alínea a), do Código Penal, pretende o Recorrente uma diversa e mais leve qualificação penal – homicídio privilegiado.
Com hábitos de consumo de álcool, e tendo-o ingerido nesse mesmo dia, passou o arguido de uma discussão com o senhorio para uma querela com a assistente, BB, com é casado, munido de uma faca com 11,5 cm de lâmina. O filho, CC, procurando interpor-se entre o casal, para evitar a agressão à mãe, acabaria por morrer em consequência de um golpe desferido na zona infra mamária esquerda, com o aludido objeto cortante, que lhe perfurou a camisola e todos tecidos até atingir o pericárdio, conforme a matéria de facto provada (assente, especialmente, no relatório de autopsia médico-legal, conjugado com o relatório de avaliação médico-legal).
É muito esclarecedora, plausível e convincente a “narrativa” dos factos da matéria provada constante do Acórdão recorrido, que brevitatis causa, não de volta a reproduzir, e especialmente a constante dos pontos 7 a 40. Note-se ainda que foi fundamentado com rigor o iter probatório que conduziria a dar os factos como provados, foi feito um exame crítico da prova.
Não se vislumbra como a situação pudesse ser integrável no homicídio privilegiado (cf. Amadeu Ferreira, Homicídio Privilegiado, 4.ª reimp., Coimbra, Almedina, 2004). Não há qualquer motivo nobre, compaixão, ou emoção violenta exterior minimamente atendível, para além da excitação agressivo do momento (art. 133 do CP). Nada, aqui, diminui a culpa, no caso. Nem mesmo, como foi aliás advertido, a própria possível etilização pelo álcool. Pelo contrário, se verifica uma especial censurabilidade, dada a relação de parentesco (e muito direto) com a vítima (art. 132, n.º 2, al. a), do CP, que justamente remete para o n.º 1, quanto a ser indício de especial censurabilidade (no caso). Essa especial censurabilidade é, pelo contrário, requisito do homicídio qualificado, por que vem condenado, e bem.
7. A qualificação jurídica como homicídio qualificado, consumado, está absolutamente correta, tendo em atenção os dados de facto e de direito.
Diz o Recorrente no artigo 69.º da motivação e conclusão 29.º, que a morte da vítima não foi produzida em “circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade por parte daquele”. Mas não parece mais nada avançar como fundamentação para este sobre este seu ponto de vista. Em contrapartida, o Tribunal a quo fundamenta o enquadramento jurídico destes factos, essencialmente nos seguintes termos, no que releva para a apreciação desta questão:
“Acresce que, a conduta levada a cabo pelo arguido revela uma especial censurabilidade, preenchendo os elementos do tipo do crime de homicídio qualificado, p. p. art.º 132.º, n.º 2 do Código Penal; com efeito:
- a vítima mortal era seu filho (cfr. facto 2);
- o arguido atingiu a vítima, com uma faca, na zona torácica, atingindo, designadamente, o coração (cfr. factos 32 e 33), impossibilitando ou diminuindo de forma grave as probabilidades de a vítima vir a sobrevier à facada.
- o arguido, não obstante, a oposição que a mãe da vítima lhe fez para que evitasse sair de casa, com a faca que tinha ido buscar à cozinha, tentado fechar e trancar a porta da habitação para que o arguido não viesse ao exterior ter com o filho (cfr. facto 24), munido da referida faca, e por forma a conseguir abrir a porta para poder esfaquear o seu filho, não teve pejo em atingir a ofendida com um golpe no dedo polegar direito, para neutralizar a resistência que esta lhe oferecia e, desse modo, conseguir prosseguir em direção ao falecido, para consumar a sua conduta ilícita (cfr. facto 25), revelando uma enorme frieza e desrespeito pela integridade física de terceiros, e persistência, em conseguir o resultado morte do seu filho.
- o arguido agiu sem qualquer causa que pudesse justificar o seu comportamento, tanto mais que a vítima, sempre agiu com o intuito de o acalmar e de o apaziguar (cfr. facto 18).
Desta forma, a conduta do arguido, pela persistência, intensidade e violência é reveladora de características particularmente desvaliosas e censuráveis, e de um desprezo intolerável pela vida e pessoa da vítima, sendo tal conduta análoga, por equiparável em termos de intensidade da culpa e de reprovabilidade, às hipóteses exemplificativamente previstas nas als. do n.º 2 do art. 132.º do Código Penal. (…)”.
E do facto de se encontrar alcoolizado não decorre diminuição de culpa, a determinar uma atenuação da pena (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-07-2014, proferido no Proc.º n.º 354/12.6GASXL.L1.S1).
É certo que a especial censurabilidade no crime de homicídio, requisito do art. 132, n.º 1 do CP, não resulta automaticamente da circunstância de a vítima ser filha do agente, agora Recorrente, nem da circunstância de não verificação da figura do privilegiamento (embora tal pareça poder deduzir-se de alguma doutrina, como, por exemplo, em Fernanda Palma, aliás nesse ponto comentada criticamente por Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, vol. I, p. 29). A qualificação pode, na verdade, ser subvertida, como no caso de pai que mata um filho por não suportar vê-lo a sofrer muito dolorosamente de doença incurável e em estado terminal, como refere Teresa Serra, Homicídio qualificado, 69, 96 ss. (apud ibidem, p. 30).
Como se sabe, o catálogo de circunstâncias não é taxativo nem elenca condições necessárias e suficientes, não sendo, pois, “automático” (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal… 3.ª ed., Lx., UCP, 2015). Evidentemente que a técnica dos exemplos-padrão, de algum modo, para alguns, pode fazer lembrar ainda algo a das enumerações (em que o Allgemeine Landrecht für die Preußischen Staaten (PrALR) foi uma espécie de campeão, e exemplo de escola), e tem colocado algumas dúvidas, avultando aí o Acórdão do Tribunal Constitucional 852/2014. Contudo, est modus in rebus, e não há nessa técnica inconstitucionalidade, por ela mesma, nem é afetado o caso sub judice. Apenas se convém que, como se disse, não basta, sem mais, a relação de paternidade com a vítima ou de filiação desta, nem o afastamento do crime privilegiado para se cair, necessariamente, no crime de homicídio qualificado. Até pelo facto de restar, ainda no quadro do homicídio, o tipo legal de homicídio tout court.
Contudo, como refere, v.g., Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal…, cit., p.510, “Os laços familiares básicos com a vítima devem constituir para o agente fatores inibitórios acrescidos, cujo vencimento supõe uma especial censurabilidade”, citando, a propósito, jurisprudência concorde deste STJ.
No caso concreto, estamos perante uma agressão a um filho que pretende apenas apaziguar uma contenda com a mãe. Recorde-se este passo:
A vítima, filho do arguido, “procurando interpor-se entre o casal, para evitar a agressão à mãe, acabaria por morrer em consequência de um golpe desferido na zona infra mamária esquerda, com o aludido objeto cortante, que lhe perfurou a camisola e todos tecidos até atingir o pericárdio (…)”. Ninguém, mesmo alcoolizado, ignora que um golpe desferido com violência ou intensidade tamanha, com um instrumento perfurante (no caso), com a dimensão da lâmina em causa, não seria apto a muito provavelmente provocar a morte da vítima, como efetivamente ocorreu.
8. Tal como o douto Parecer da Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta neste STJ, também não encontramos, nas profusas Conclusões da Motivação de Recurso um recortado, individualizado, pedido quanto às penas atribuídas:
“Não obstante se perceber que o mesmo não concorda com as mesmas, não vemos da leitura das conclusões definidoras do objecto do recurso (sem prejuízo dos poderes de cognição ex officio) que o recorrente as tenha impugnado, pelo menos de forma processualmente válida. A verdade é que para além de sustentar a sua absolvição total e em segunda linha, o privilegiamento do homicídio e a subsunção dos factos provados relativos ao crime de violência doméstica ao crime previsto no n º 1, alínea a) do art.º 152º, do Código Penal, apenas se diz que a pena (única) em que o arguido vem condenado, equivale a uma condenação a prisão perpétua …o que não nos parece idóneo a inscrever tal problemática no objecto do recurso.”
9. Começando por esta última questão, efetivamente se reitera a incompetência deste STJ quanto à pena parcelar de 3 anos de prisão em consequência do crime de violência doméstica (art. 400, n.º 1, e).
10. Crime de homicídio qualificado
Quanto ao crime de homicídio qualificado, admitindo que a referida referência à “prisão perpétua” possa motivar uma consideração um pouco mais que ex officio, apenas se dirá que o crime é gravíssimo, atentando contra um bem altíssimo, a vida, para mais de um filho, e por motivo fútil.
Apesar de não haver registo criminal, e da não habitualidade criminosa, assim como de um comportamento normativo em reclusão (que é, aliás, o esperado), este crime (que aliás concorre com outro, de que não curamos) irradia já uma ideia de personalidade incontida e violenta, a reclamar intensa prevenção espacial, e é o género de ilícitos criminais que mais desencadeia alarme social, exigindo a prevenção especial particular cuidado, com pena que não desça para além de uma fasquia suficiente para a tranquilidade social e a defesa da ordem jurídica e da sua capacidade reativa. Por outro lado, e na base de tudo, crê-se que a culpa, horizonte sempre da medida da pena, é muito grande: com dolo direto e intenso.
Recordando um passo significativo da Resposta do Ministério Público:
“16.
Ou seja, tudo permite concluir que a morte da malograda vítima foi na sequência de uma acção e um resultado almejados pelo arguido.
17.
Ao nível da prevenção geral, não concorre qualquer circunstância a exigir a alteração de quaisquer das penas concretamente determinadas, nem a alteração da pena única, não tolerando o sentimento comunitário abrandamento punitivo da prática de crimes contra a vida das pessoas, quando para mais a vítima era filho do arguido.
18.
O arguido manifestou uma atitude interna, um estado de espírito, de franca e evidente insensibilidade, desprezo e indiferença para com o valor jurídico da vida da vítima – seu filho, recorde-se –, que, por isso, reflecte qualidades desvaliosas ao nível da personalidade.
19.
O arguido actuou pois com dolo directo, que é a modalidade mais grave de culpa.
20.
Atenta a gravidade dos factos praticados pelo arguido e a sua conduta posterior – não procurando prestar qualquer auxílio à vítima - não é possível conceber que um homem “normalmente fiel ao direito”, teria provavelmente agido de igual modo, tanto mais que a vítima era seu filho, e não demonstrando qualquer arrependimento genuíno, nem compaixão pela vítima –, não se vislumbra que, apesar do contexto do âmbito do qual agiu e da ausência de antecedentes criminais, se mostre consideravelmente diminuída a culpa, a ilicitude ou a necessidade de pena, bem pelo contrário.”
O Tribunal a quo bem apreciou a prova e enquadrou juridicamente, tendo seguido as exigências jurídicas do caso.
Como é sabido, a intervenção do STJ na concretização da medida da pena, ou melhor, no controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada”- cf. Acs. de 09-11-2000, Proc. n.º 2693/00 - 5.ª; de 23-11-2000, Proc. n.º 2766/00 - 5.ª; de 30-11-2000, Proc. n.º 2808/00 - 5.ª; de 28-06-2001, Procs. n.ºs 1674/01 - 5.ª, 1169/01 - 5.ª e 1552/01 - 5.ª; de 30-08-2001, Proc. n.º 2806/01 - 5.ª; de 15-11-2001, Proc. n.º 2622/01 - 5.ª; de 06-12-2001, Proc. n.º 3340/01 - 5.ª; de 17-01-2002, Proc. n.º 2132/01 - 5.ª; de 09-05-2002, Proc. n.º 628/02 - 5.ª, CJSTJ 2002, tomo 2, pág. 193; de 16-05-2002, Proc. n.º 585/02 - 5.ª; de 23-05-2002, Proc. n.º 1205/02 - 5.ª; de 26-09-2002, Proc. n.º 2360/02 - 5.ª; de 14-11-2002, Proc. n.º 3316/02 - 5.ª; de 30-10-2003, CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 208; de 11-12-2003, Proc. n.º 3399/03 - 5.ª; de 04-03-2004, Proc. n.º 456/04 - 5.ª, in CJSTJ 2004, tomo 1, pág. 220; de 11-11-2004, Proc. n.º 3182/04 - 5.ª; de 23-06-2005, Proc. n.º 2047/05 - 5.ª; de 12-07-2005, Proc. n.º 2521/05 - 5.ª; de 03-11-2005, Proc. n.º 2993/05 - 5ª; de 07-12-2005 e de 15-12-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, págs. 229 e 235; de 29-03-2006, CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 225; de 15-11-2006, Proc. n.º 2555/06 - 3.ª; de 14-02-2007, Proc. n.º 249/07 - 3.ª; de 08-03-2007, Proc. n.º 4590/06 - 5.ª; de 12-04-2007, Proc. n.º 1228/07 - 5.ª; de 19-04-2007, Proc. n.º 445/07 - 5.ª; de 10-05-2007, Proc. n.º 1500/07 - 5.ª; de 14-06-2007, Proc. n.º 1580/07 - 5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 220; de 04-07-2007, Proc. n.º 1775/07 - 3.ª; de 05-07-2007, Proc. n.º 1766/07 - 5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 242; de 17-10-2007, Proc. n.º 3321/07 - 3.ª; de 10-01-2008, Proc. n.º 907/07 - 5.ª; de 16-01-2008, Proc. n.º 4571/07 - 3.ª; de 20-02-2008, Procs. n.ºs 4639/07 - 3.ª e 4832/07 - 3.ª; de 05-03-2008, Proc. n.º 437/08 - 3.ª; de 02-04-2008, Proc. n.º 4730/07 - 3.ª; de 03-04-2008, Proc. n.º 3228/07 - 5.ª; de 09-04-2008, Proc. n.º 1491/07 - 5.ª e Proc. n.º 999/08 - 3.ª; de 17-04-2008, Procs. n.ºs 677/08 e 1013/08, ambos desta secção; de 30-04-2008, Proc. n.º 4723/07 - 3.ª; de 21-05-2008, Procs. n.ºs 414/08 e 1224/08, da 5.ª secção; de 29-05-2008, Proc. n.º 1001/08 - 5.ª; de 03-09-2008, no Proc. n.º 3982/07 - 3.ª; de 10-09-2008, Proc. n.º 2506/08 - 3.ª; de 08-10-2008, nos Procs. n.ºs 2878/08, 3068/08 e 3174/08, todos da 3.ª secção; de 15-10-2008, Proc. n.º 1964/08 - 3.ª; de 29-10-2008, Proc. n.º 1309/08 - 3.ª; de 21-01-2009, Proc. n.º 2387/08 - 3.ª; de 27-05-2009, Proc. n.º 484/09 - 3.ª; de 18-06-2009, Proc. n.º 8523/06.1TDLSB - 3.ª; de 01-10-2009, Proc. n.º 185/06.2SULSB.L1.S1 - 3.ª; de 25-11-2009, Proc. n.º 220/02.3GCSJM.P1.S1 - 3.ª; de 03-12-2009, Proc. n.º 136/08.0TBBGC.P1.S1 - 3.ª; e de 28-04-2010, Proc. n.º 126/07.0PCPRT.S1” (cf. Acórdão deste STJ de 2010-09-23, proferido no Proc.º n.º 10/08.0GAMGL.C1.S1).
Assim, como é sabido, a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça tem reiteradamente enfatizado que, na concretização da medida da pena, deve partir-se de uma moldura de prevenção geral, definindo-a, depois, em função das exigências de prevenção especial, sem ultrapassar a culpa do arguido.
Como assinala o Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, “(2) a pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; (3) Dentro deste limite, máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico” (Direito Penal, vol. I, p. 84 e Direito Penal, vol. II, pp. 227-228” (sendo importante o diálogo que com estas ideias encetam os Conselheiros Simas Santos e Leal-Henriques, Noções de Direito Penal, 7.ª ed., Lx., Rei dos Livros, p. 192).
No caso do concreto crime em presença (único que pode ser apreciado, o homicídio) não parecem ser controversas as elevadas necessidades de prevenção geral, dada a sensibilidade social generalizada ao ataque aos bens jurídicos violados, cuja violação é geradora de escândalo, alarme e intranquilidade.
Atente-se neste passo do Acórdão de 2010-09-2, proferido no Proc.º n.º 10/08.0GAMGL.C1.S1:
“Ou seja, devendo ter um sentido eminentemente pedagógico e ressocializador, as penas são aplicadas com a finalidade primordial de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime, e, em última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico-penal”. Cf. ainda os córdãos deste STJ de 08-10-97, Proc. n.º 976/97, e de 17-12-97, Proc. n.º 1186/97, (in Sumários de Acórdãos, n.º 14, pág. 132, e n.º s 15/16, novembro/dezembro 1997, pág. 214).
Importará ainda salientar que a jurisprudência deste Supremo Tribunal sublinha que a sua intervenção no controle da proporcionalidade com que há que pesar os crimes e as penas não é ilimitada e que o quantum da pena se deve manter quando se revele, em geral, o acerto dos vários enfoques analíticos e judicatórios em questão (v.g. Ac. STJ, Proc. n.º 14/15.6SULSB.L1.S1 - 3.ª Secção, 19-09-2019). Ora é precisamente o que ocorre no caso, em que a malha hermenêutica utilizada se revelou consistente com os seus pressupostos, que foram proficientemente explicitados, com recurso a uma motivação lógica e pertinente.
11. Cúmulo Jurídico
Embora a medida da pena única pareça apenas ser posta em causa com a referida observação sobre uma suposta “prisão perpétua”, aprecie-se, finalmente, este último aspeto.
Como é sabido, a pena única deve determinar-se pela ponderação de fatores do critério que consta do art. 77 n.º 1, in fine, do Código Penal:
“1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.”
Considerando, assim, as evidentes necessidades de prevenção no caso em concreto, o respetivo grau de culpa e de ilicitude, que são elevados, entende-se que a pena única não excede um quadro de razoabilidade e proporcionalidade e é adequada e necessária para se cumprirem as finalidades preventivas, revelando-se, pois, justa.
De acordo com o art. 77, n.º 2, a moldura penal máxima, neste caso, seria a de 20 anos de prisão (17 + 3 anos – soma das penas) e a moldura penal mínima 17 anos (pena mínima). Assim sendo, parece de meridiana clareza que a pena aplicada se encontra na metade inferior das possibilidades punitivas legalmente previstas, e, tendo como medida os anos, encontra-se apenas um ano acima da pena mínima possível. O que é equilibrado.
O Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias (e vária jurisprudência com ele é concorde), aponta também para um critério holístico na escolha da medida da pena única. Assim,
“(…) como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. (…) De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)” (Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime, p. 291).
Dos Autos se extrai que a gravidade dos factos (agora, em cúmulo, considerando o homicídio e a violência doméstica, o “facto global” e a respetiva “culpa global”) e a personalidade violenta e aditiva ao álcool do arguido (a quem os laços de família não demoveram) necessitam, em prevenção especial, de uma censura expressa não laxista, de molde ainda a que a comunidade se não sinta ameaçada e descrente nas capacidades reconstitutivas da paz social do sistema jurídico.
12. Não se crê que haja nos autos elementos convincentes para afastar a decisão do Acórdão recorrido (não procederia, consequentemente, decidir uma diminuição de qualquer das penas parcelares – no caso de uma delas, fazê-lo seria ilegal – ou da pena única), o qual se revela, justo e proporcional, e não ultrapassando a medida da culpa, face à gravidade e aos crimes pelos quais foi condenado o Recorrente, nem pondo em causa as exigências de prevenção.
Termos em que, decidindo em conferência, a 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça acorda em rejeitar o recurso quanto à matéria de facto e quanto ao crime de violência doméstica, e negar provimento às demais questões, confirmando integralmente o Acórdão recorrido.
Custas pelo Recorrente.
Taxa de Justiça: 7 UCs
Tributação do art. 420, n.º 3 CPP: 5 UC’s.
Supremo Tribunal de Justiça, 24 de março de 2021
Ao abrigo do disposto no artigo 15.º-A da Lei n.º 20/2020, de 1 de maio, o relator atesta o voto de conformidade da Ex.ma Senhora Juíza Conselheira Adjunta, Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida.
Dr. Paulo Ferreira da Cunha (Relator)
Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira Adjunta)
______
3 Sublinhado nosso.
4 Relator Conselheiro Henriques Gaspar.
5 Relator Conselheiro Simas Santos.
6 Sublinhado nosso.
7 Sublinhado nosso.
8 Sublinhados nossos.
9 Sublinhado nosso.