Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2370/17.2T8VNG.P1.S3
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: CHAMBEL MOURISCO
Descritores: REVISTA EXCECIONAL
RELEVÂNCIA JURÍDICA
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
Data do Acordão: 10/27/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA EXCEPCIONAL
Decisão: NÃO ADMITIDA A REVISTA
Sumário :

I- É de rejeitar o recurso de revista excecional quando o recorrente não cumpra o ónus a que alude a alínea a) do n.º 2 do artigo 672º do C.P.C.

II- Não é de admitir o recurso de revista excecional com o fundamento no art.º 672.º, n.º 1, alínea c) do CPC, quando não se verificam os aspetos de identidade dos acórdãos alegadamente em contradição.

Decisão Texto Integral:


Processo n.º 2370/17.2T8VNG.P1. S3 (Revista excecional) - 4ª Secção

           

Acordam na formação a que se refere o n.º 3 do artigo 672.º do Código de Processo Civil da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

1. Supra - Sociedade Unida de Produtos Aglomerados, Lda. interpôs recurso de revista excecional do Acórdão do Tribunal da Relação ………, o qual confirmou a Sentença proferida pelo Tribunal de 1º Instância (que considerou ilícito o despedimento de AA), invocando o disposto no artigo 672º, n.º 1, alíneas a) e c) do CPC.

2. Foi proferido despacho liminar, no qual se considerou: que o recurso é tempestivo; que o recorrente tem legitimidade; que estão preenchidas as demais condições gerais relativas à admissibilidade do recurso, bem como a existência de dupla conforme.

3. O processo distribuído a esta formação, para se indagar se estão preenchidos os pressupostos para a admissibilidade da revista excecional referidos nas alíneas a), e c) do n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil.

           

4. A revista excecional é um verdadeiro recurso de revista concebido para as situações em que ocorra uma situação de dupla conforme, nos termos do artigo 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

A admissão do recurso de revista, pela via da revista excecional, não tem por fim a resolução do litígio entre as partes, visando antes salvaguardar a estabilidade do sistema jurídico globalmente considerado e a normalidade do processo de aplicação do Direito.

Assim, só é possível a admissão do recurso pela via da revista excecional se estiverem preenchidos os pressupostos gerais de admissão do recurso de revista e se esta não for possível pela existência da aludida situação de dupla conforme.

Nos presentes autos, como resulta do despacho liminar estão preenchidos os pressupostos gerais de admissibilidade do recurso decorrentes do artigo 629.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, sendo certo que, como já se referiu, a decisão recorrida confirmou, sem mais, a decisão proferida pela 1.ª instância, pelo que estamos perante uma situação de dupla conforme, nos termos do n.º 3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil.

A recorrente invoca como fundamento da admissão do recurso o disposto nas alíneas a), e c) do n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil, que referem o seguinte:

1 - Excecionalmente, cabe recurso de revista do acórdão da Relação referido no n.º 3 do artigo anterior quando:

a) Esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;

b)…

c) O acórdão da Relação esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.

Relativamente à primeira exceção à regra da irrecorribilidade em situações de dupla conforme, prevista na referida alínea, a) pode ler-se em anotação ao art.º 672.º do CPC, anotado por Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís F. P. Sousa (Almedina Vol. I, 2018), «Para esta primeira exceção são elegíveis situações em que a questão jurídica suscitada apresente um carácter paradigmático e exemplar, transponível para outras situações, assumindo relevância autónoma e independente em relação aos interesses das partes envolvidas. Na verdade, a intervenção do Supremo apenas se justifica em face de uma questão cujo relevo jurídico seja indiscutível, embora a lei não distinga entre questões que emergem do direito substantivo ou do direito adjetivo. Não bastará, pois, o mero interesse subjetivo da parte.»

Com maior desenvolvimento, Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2018, 5.ª Edição, pág. 381) refere: «Outra linha de força aponta para a recusa da pretensão quando a decisão recorrida se enquadrar numa corrente jurisprudencial consolidada, denotando a interposição de recurso mero inconformismo perante a decisão recorrida.

As expressões adverbiais empregues na formulação normativa (“excecionalmente” e “claramente necessária”) não consentem que se invoque como fundamento da revista excecional a mera discordância quanto ao decidido pela Relação. Tão pouco bastará a verificação de uma qualquer divergência interpretativa, sob pena de vulgarização do referido recurso em situações que não estiveram no espectro do legislador.

Constituindo um instrumento processual em que fundamentalmente se pretendem tutelar interesses ligados à “melhor aplicação do direito”, a intervenção do Supremo apenas se justifica em face de questões cujo relevo jurídico seja indiscutível, o que pode decorrer, por exemplo, da existência de legislação nova cuja interpretação suscite sérias divergências, tendo em vista atalhar decisões contraditórias (efeito preventivo), ou do facto de as instâncias terem decidido a questão ao arrepio do entendimento uniforme da jurisprudência ou da doutrina (efeito reparador).»

No que se refere à terceira exceção à regra da irrecorribilidade em situações de dupla conforme, Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2018, 5.ª Edição, pág. 383) refere que a mesma está ligada ao vetor da uniformidade jurisprudencial e da certeza na aplicação do direito.

O citado autor acrescenta que «A coerência interpretativa é promovida pela verificação de costumes jurisprudenciais ou de jurisprudência constante ou consolidada, o que determina que certos impulsos em sentido divergente sejam naturalmente atenuados pela previsível revogação em caso de interposição de recurso».

5. Vejamos:

A Recorrente vem alegar no requerimento de interposição de recurso, que duas das questões devem ser reapreciadas “atenta a sua relevância jurídica”.

Nas alegações sustenta apenas que “se revela de extrema importância a aplicação correta” da lei ao presente processo.

Nas conclusões alega que “127. Daí, a necessidade de submeter à apreciação de V. Exas, a situação vertente, a fim de no futuro, ocorrências similares possam ser objeto de uma melhor aplicação do direito, ou seja, que numa situação de suspensão de um qualquer trabalhador, o mesmo cumpra a determinação da sua entidade patronal, contribuindo, assim, para a paz social e a normalidade do relacionamento entre aquela, o visado e, bem assim, dos demais funcionários, o que não sucedeu, aliás muito antes pelo contrário” e “136. Estas condutas erráticas e desconformes à lei estabelecida e aplicável, atenta a relevância jurídica do circunstancialismo decorrido, clamam por uma resposta adequada, clamam por uma melhor aplicação do direito”. 

A Recorrente não logrou identificar as questões que pretende submeter a este STJ de forma autónoma, clara e individualizada, limitando-se a discordar do Acórdão para justificar a necessidade de “melhor aplicação do direito”, repetindo continuamente ao longo das alegações, a propósito dos vários pontos que vai enunciando, que se impunha uma decisão diversa.

Não só não formula expressamente a questão ou questões em concreto que justificariam a revista excecional, como também não explica qual a relevância jurídica das questões analisadas no recurso, nem o motivo pelo qual tal apreciação seria necessária para a melhor aplicação do direito.

A intervenção do STJ apenas se justificará em questões cujo relevo jurídico seja indiscutível (v.g. aplicação de uma nova legislação cuja interpretação suscite sérias dúvidas ou para reparação de uma decisão que tenha sido proferida em desconformidade do entendimento uniforme de doutrina e jurisprudência) ou quando ocorra abundante divergência doutrinária ou jurisprudencial ou perante questões cuja operação exegética seja de especial complexidade. seja de elevado grau de dificuldade, sendo de prever dificuldade e contradições no futuro.

Contudo, a Recorrente não argumenta no sentido de preenchimento do conceito indeterminado de “relevância jurídica”, não tentando subsumir a situação às hipóteses suprarreferidas.

Não se vislumbra, pois, uma argumentação sólida e convincente, pelo que se conclui pelo não cumprimento pela Recorrente do ónus a que alude a alínea a) do nº2 do artigo 672º do C.P.C.

                                                           *

A Recorrente vem sustentar a contradição entre o Acórdão proferido nos presentes autos e o Acórdão do Tribunal da Relação, confirmado pelo STJ, no processo nº 1035/17……. .

Vem elencar o que considera serem os aspetos de identidade que determinam a contradição e juntou certidão dos Acórdãos do Tribunal da Relação e do STJ, cumprindo o ónus a que alude o artigo 672º, nº2, alínea c) do C.P.C.

O Acórdão do Tribunal da Relação proferido no processo nº 2370/17……….. confirmou a decisão do Tribunal da 1ª Instância que considerou ilícito o despedimento do trabalhador AA.

O Acórdão do Tribunal da Relação e o Acórdão do STJ proferidos no âmbito do processo nº 1035/17…….. consideram lícito o despedimento de BB, irmão de AA.

Ambos os processos surgem na sequência de processos disciplinares num contexto de elevada litigiosidade societária e familiar e os comportamentos imputados a cada um dos trabalhadores são distintos, embora alguns tenham ocorrido nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar.

Contudo, há desde logo um aspeto muito relevante que distingue ambas as situações e que justifica que, a final, um despedimento seja considerado lícito e outro ilícito:

- BB era “apenas” trabalhador da ora Recorrente, embora tenha comparecido numa assembleia geral em representação do pai (que era sócio), como procurador, pelo que todo o seu comportamento foi analisado à luz de uma relação laboral e do incumprimento de vários deveres;

-  AA assumia duas qualidades -  trabalhador e sócio, o que implicou que o Tribunal da Relação tenha considerado que uma parte substancial da sua atuação correspondia ao exercício de direitos societários; outra parte assumia apenas cariz pessoal/familiar ( palavras “ameaçadoras”); e apenas identificou pontual violação de deveres de obediência (ao não entregar o telecomando do portão,  o cartão de crédito e os modelos das ordens de fabricação; ao não colocar a chave do gabinete em lugar acessível, ao ter continuado a exercer funções depois de ter conhecimento da sua suspensão preventiva) e deveres de respeito e urbanidade (ao chamar a GNR para identificar o filho de BB). Quanto à violação dos deveres referidos, considerou que não impossibilitavam a manutenção da relação laboral.

Neste contexto, os “aspetos de identidade” que a Recorrente invocada, não se verificam.

Vejamos mais em detalhe.

Negócio de cessão de quotas entre o sócio CC e AA e participação na assembleia geral de 16.06.2016

A Recorrente sustenta que a identidade entre os Acórdãos assenta no facto de AA ter comparecido na assembleia geral de 16.06.2016 na qualidade de sócio (com base numa cessão de quotas alegadamente abusiva) e de BB, seu irmão, ter comparecido em representação do pai CC.

Ora, não só não há identidade no enquadramento fáctico, pois as condutas são distintas, como as decisões não são contraditórias, precisamente porque partem de pressupostos fácticos e jurídicos distintos:

- De um lado um trabalhador (BB) que, sem autorização da entidade patronal, se ausenta durante o horário de trabalho para comparecer numa assembleia geral, ali votando em representação de um sócio e a favor da destituição de outro sócio, conflituando em termos de gerência (processo nº 1035/17………);

- Do outro lado, temos um sócio (AA) exercendo deveres societários, embora seja simultaneamente trabalhador, tendo o tribunal considerado que não poderia ver restringido o exercício dos direitos societários, sendo esta a questão central apreciada e que não o foi, por não ter qualquer cabimento, no outro processo.

Acompanhamento de AA do sócio CC e do irmão BB numa ocasião em que comunicaram aos trabalhadores a destituição do sócio DD

Se bem percebemos (com algum esforço interpretativo), a alegada identidade ocorrerá pelo facto de ambos os irmãos terem comparecido na mesma situação. Contudo, conforme resulta dos Acórdãos, a sua intervenção é distinta (para além da qualidade em que intervêm): AA “apenas” esteve presente; BB efetuou uma comunicação, que veio a ser considerada como violadora de deveres laborais.

Não existe, pois, qualquer contradição entre os Acórdãos, pois as respetivas decisões não assentam nos mesmos pressupostos nem de facto nem de direito.

Recusa de cumprimento de ordem dada pelo sócio DD numa reunião com funcionários.

A alegada identidade residirá no facto de ambos os irmãos estarem presentes (sem terem sido convocados) na reunião de 21.06.2016 e se terem recusado a sair da sala.

Contudo, note-se que o comportamento de BB que, no processo nº 1035/17………, o Tribunal da Relação e o STJ consideraram como violador do dever de respeitar o empregador com probidade e urbanidade tem uma amplitude diferente, pois não se recusou apenas a sair da sala, tendo também se dirigido ao outro sócio dizendo que queria uma ordem escrita porque não confiava nele e chamou “aldrabão” ao advogado que se encontrava na sala.

Trata-se de um comportamento que valorado no seu todo, é desde logo distinto, do comportamento imputado a AA que consistiria “apenas” em ter recusado abandonar a sala. Acresce que o fundamento do Acórdão proferido nestes autos é o de que não se tratava de uma ordem legítima (questão que não foi abordada no outro processo) e de que não se inseria no âmbito dos poderes de direção da entidade empregadora.

Assembleia geral de 20.07.20216

Mais uma vez, a Recorrente sustenta que há identidade porquanto AA e BB perturbaram o funcionamento da assembleia e assumiram comportamentos desleais. Contudo, conforme já referido anteriormente, enquanto num processo se considerou que BB, agiu em violação dos seus deveres como trabalhador, interferindo em assuntos da gerência, no outro, considerou-se que se estava perante uma atuação no quadro de direitos societários. Isto é, novamente estamos perante um quadro factual e jurídico diverso.

Recusa na entrega do telecomando do portão, o cartão de crédito e os modelos das ordens de fabricação e não colocar a chave do gabinete em lugar acessível quando AA se encontrava suspenso preventivamente

A identidade apontada reside o facto de também BB ter sido suspenso preventivamente e se ter recusado a fornecer certos elementos.

Ora, não só as informações/elementos cuja prestação/entrega foi recusada pelos irmãos são totalmente distintos, justificando por isso uma valoração distinta, sem que se possa vislumbrar qualquer identidade (BB não entregou códigos de validação de pagamento que eram indispensáveis para pagamento de salários, faturas e de outros compromissos financeiros; enquanto que AA não prestou esclarecimentos sobre um negócio e não entregou o telecomando, as chaves, o cartão de crédito e os moldes de fabricação), como em ambos os acórdãos se considerou haver violação de deveres (exceto quanto às informações sobre um negócio por parte de AA), embora depois, a final, considerada a globalidade dos factos provados, tenham concluído em termos distintos sobre a possibilidade de manutenção dos vínculos laborais.

E a diferença no resultado final decorre precisamente da consideração de toda a factualidade provada em cada um dos processos, que é muito díspar:

- No processo nº1035/17……… considerou-se que BB violara vários deveres laborais e que se mostrava impossível a manutenção da relação;

- No presente processo, considerou-se que AA incorreu em violações menores que não colocavam em causa a manutenção do vínculo, tendo-se mesmo concluído que o processo disciplinar foi instrumentalizado num contexto de litigiosidade familiar e societária.  

Neste contexto, não estamos perante uma contradição de acórdãos porquanto:

- Não estamos perante a mesma questão fundamental de direito (estão em causa factos distintos, qualidade distintas dos sujeitos e consequentemente enquadramentos jurídicos distintos;

- Não ocorre uma oposição frontal entre os acórdãos, nem mesmo implícita ou pressuposta;

- O aspeto em que porventura se poderá considerar existir alguma contradição, respeita apenas ao não acatamento por AA da ordem para sair da sala durante uma reunião com funcionários. Contudo, não só o comportamento que lhe é imputado é diferente da globalidade da conduta imputada ao irmão nessa mesma circunstância de tempo e lugar, como, de todo o modo, não se trata de uma questão essencial, não sendo claramente determinante para as respetivas decisões finais (é apenas uma das condutas relevadas e que, não determinou, só por si, o sentido das decisões), pelo que, também nesta parte não estamos perante uma contradição sobre uma mesma questão fundamental de direito.

Pelo exposto, acorda-se em não admitir a revista excecional interposta pela recorrente do acórdão do Tribunal da Relação.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 27 de outubro de 2021

Chambel Mourisco (Relator)

Júlio Manuel Vieira Gomes

Maria Paula Moreira Sá Fernandes