Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
103/2002.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
DANO BIOLÓGICO
EQUIDADE
PODERES DE COGNIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 05/20/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :

1. O dano biológico, perspectivado como diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com substancial e notória repercussão na vida pessoal e profissional de quem o sofre , é sempre ressarcível, como dano autónomo, independentemente do seu específico e concreto enquadramento nas categorias normativas do dano patrimonial ou do dano não patrimonial.

2. A indemnização a arbitrar pelo dano biológico sofrido pelo lesado - consubstanciado em relevante limitação funcional ( 10% de IPP genérica) - deverá compensá-lo, apesar de não imediatamente reflectida no nível salarial auferido, quer da relevante e substancial restrição às possibilidades de mudança ou reconversão de emprego e do leque de oportunidades profissionais à sua disposição, enquanto fonte actual de possíveis e eventuais acréscimos patrimoniais, quer da acrescida penosidade e esforço no exercício da sua actividade profissional actual, de modo a compensar as deficiências funcionais que constituem sequela das lesões sofridas, garantindo um mesmo nível de produtividade e rendimento auferido.

3.O juízo de equidade das instâncias, concretizador do montante a arbitrar a título de dano biológico, assente numa ponderação , prudencial e casuística, das circunstâncias do caso – e não na aplicação de critérios normativos – deve ser mantido sempre que – situando-se o julgador dentro da margem de discricionariedade que lhe é consentida - se não revele colidente com os critérios jurisprudenciais que generalizadamente vêm sendo adoptados, em termos de poder pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1.AA intentou acção de condenação, na forma ordinária, contra BB Seguros, S.A., pedindo a respectiva condenação no ressarcimento dos danos que lhe foram causados por atropelamento, imputável ao condutor de veículo segurado na R., peticionando os valores de, respectivamente, €25.079,22, a título de danos patrimoniais, e de €75.000,00, a título de ressarcimento dos danos não patrimoniais.
No termo da tramitação do processo na 1ª instância, foi proferida sentença a julgar a acção parcialmente procedente, condenando-se a R. seguradora a pagar à lesada os montantes de €30.000 a título de danos não patrimoniais, e de €2.181,41 a título de danos patrimoniais; arbitrou-se ainda à lesada o montante de €5.000 como compensação dos danos patrimoniais futuros associados ao dano biológico sofrido pela A.: na verdade, esta – com 53 anos de idade à data do acidente - ficou afectada por uma incapacidade genérica permanente parcial de 10%, compatível com o exercício da actividade de gerente comercial que exercia à data do acidente, entendendo a sentença que cumpria ressarcir a afectação ou limitação funcional decorrente das gravosas lesões sofridas, mesmo que esta não tivesse implicado uma concreta perda dos rendimentos do trabalho, implicando, porém, um esforço suplementar e acrescida penosidade para continuar a exercer as suas actividades.

A A. apelou desta decisão, na parte em que avaliou o dano patrimonial futuro nos referidos €5.000, entendendo que a indemnização adequada nunca poderia ser de valor inferior a €15.000.
A Relação julgou a apelação procedente, arbitrando à lesada o referido valor peticionado de €15.000, por entender que a limitação à sua capacidade produtiva justificava adequado ressarcimento, computado equitativamente naquele valor, afirmando:


O caso sub judice não se traduz em perda efectiva de rendimento de trabalho, mas deverá ser analisado na perspectiva de um. Dano biológico, de natureza meramente funcional e susceptível de indemnização patrimonial, determinada única e exclusivamente segundo o juízo temperador da equidade e considerando as especificidades do caso em concreto.
A limitação da condição física, que a incapacidade permanente parcial sempre envolve ou acarreta, determina necessariamente, até pelas suas consequências psicológicas, diminuição da capacidade laboral genérica e dos níveis de desempenho exigíveis, podendo, muitas vezes, colocar o lesado em posição de inferioridade no confronto com as demais pessoas no mercado de trabalho. Como tal, afectada a integridade psicossomática plena, as sequelas permanentes que integram": o dano corporal importam, normalmente, diminuição, pelo menos, da capacidade geral de ganho do lesado, e isto, mesmo que não seja perspectivada de imediato uma diminuição dos seus proventos futuros, pois, o dano corporal ou biológico importa, de per si, um prejuízo indemnizável, consoante os arts 564° n°2 e 566° n°3 do CC, a título de dano patrimonial futuro, independentemente da perda efectiva de rendimento (cfr. Ac. do STJ de 12-01-2006, Proc n° 05B3548, acessível em www.dgsi.pt.).
A indemnização por danos futuros resultantes de incapacidade física do lesado causada por acidente de viação, independentemente da perda efectiva de rendimento, não deve englobar-se nos danos não patrimoniais que a própria incapacidade possa gerar (desgosto, angústia, perda da alegria de viver).
Tratando-se de um dano futuro no âmbito de um longo período de previsão, sem implicar perda ou diminuição da remuneração, mas apenas um esforço acrescido para se manterem os mesmos níveis de ganho, é manifesta a dificuldade de cálculo da respectiva indemnização, pelo que, é fundamental a ampla utilização de juízos de equidade.
"A partir dos pertinentes elementos de facto apurados, independentemente do seu desenvolvimento no quadro das referidas fórmulas de cariz instrumental, deve calcular-se o montante da indemnização em termos de equidade, no quadro de juízos de verosimilhança e de probabilidade, tendo em conta o curso normal das coisas e as particulares circunstâncias do caso. E apesar do longo período de funcionamento da previsão, a quantificação deve ser imediata, sob a atenuação da fluidez do cálculo no confronto da referida previsibilidade, no âmbito da variável inatingível da trajectória futura do lesado, quanto ao tempo de vida e de trabalho e à espécie deste, por via dos referidos juízos de equidade. Devem, pois, utilizar-se juízos lógicos de probabilidade ou de verosimilhança, segundo o princípio id quod plerumque accidit, com a equidade a impor a correcção, em regra por defeito, dos valores resultantes do cálculo baseado nas referidas fórmulas de cariz instrumental" - Ac do STJ de 09-10- 2008, Proc n° 08B2686, em www.dgsi.pt.).
No caso dos autos, a A. tinha 53 anos de idade, à data do acidente (nos factos provados na sentença não consta a idade da A., como devia constar, se bem que, relativamente aos danos não patrimoniais, se tenha considerado a idade da A.; mas, na perícia de avaliação do dano corporal elaborada pelo Instituto Nacional de Medicina Legal, consta que a apelante nasceu em 31-10-1947), sendo previsível, considerando um quadro normal de vida e saúde, que
exercesse a sua profissão de gerente comercial, pelo menos, até aos 65 anos, sendo o seu vencimento mensal o correspondente ao ordenado mínimo. Por outro lado, é portadora de sequelas que lhe conferem uma incapacidade genérica permanente parcial de 10% _a qual, embora sendo compatível com aquela sua actividade profissional, lhe exige esforços suplementares para o seu desempenho.
Convirá aqui esclarecer-se que não pode ser considerada a relevância da lesão apenas com referência a vida activa provável do lesado; antes se há de considerar também o período posterior à normal cessação de actividade laboral, com referência à esperança média de vida. E que a esperança média de vida da mulher portuguesa é de cerca de 81 anos, segundo o INE.
Deste modo, considerando aquela situação de incapacidade de que a A. ficou afectado, a sua idade, o exercício da aludida actividade remunerada, bem como as regras da probabilidade normal do devir das coisas, constata-se que se está apenas perante um dano futuro previsível em razão do maior esforço que lhe vai ser exigido no exercício de tal actividade.

Assim, face a este quadro de facto e com base em juízos de equidade, julga-se adequado fixar a respectiva indemnização no montante de € 15.000,00, reportado ao momento presente, tendo em conta o critério actualista definido no n°2 do art 566° do CC.

2. É desta decisão que vem interposto o presente recurso de revista, que a seguradora recorrente encerra com as seguintes conclusões que lhe definem e delimitam o objecto:

1. Com interesse para a apreciação do objecto deste recurso, foi dado como provado que "em consequência das lesões sofridas no acidente supra descrito a Autora ficou com uma incapacidade genérica permanente parcial de 10% com rebate sobre a profissão de gerente comercial, podendo exigir esforços suplementares no seu exercício" (cfr. ponto NNN da fundamentação da sentença).
2. Com base nestes factos, decidiram as Instâncias que existia uma afectação da Autora do ponto de vista funcional mas que não tinha tradução em perda efectiva de rendimento de trabalho, sendo, por isso, indemnizável como dano biológico.
3. Em bom rigor, o tal dano "biológico" por não se traduzir num prejuízo patrimonial, devia ter sido qualificado na vertente de danos não patrimoniais, não autonomizado, mas avaliado conjuntamente com os demais, afigurando-se perfeitamente adequado o montante de € 30.000, atribuído pelo Tribunal de l.ª Instância.
4. Por isso, o valor indemnizatório que se alcance não pode - nem deve - corresponder ao valor do capital correspondente ao que a A. perderia, se a incapacidade parcial permanente de 10% de que ficou a padecer tivesse efectivo rebate no rendimento futuro.
5. Aliás, se assim fosse, estar-se-ia a criar situações verdadeiramente injustas, já que se estaria a indemnizar da mesma forma duas situações perfeitamente distintas; aquela em que o lesado ficasse com uma incapacidade parcial para trabalho, que determinasse uma redução/perda de rendimento e aquela em que, não obstante," a existência de uma incapacidade parcial genérica, não existe incapacidade alguma para o trabalho nem, consequentemente, perda ou redução de rendimento.

6. O fundamento da atribuição desta indemnização, foi o facto de a incapacidade parcial atribuída implicar da parte da Autora esforços suplementares no exercício da sua profissão, pelo que na avaliação de tal dano deve tomar-se em consideração a idade de reforma (65anos), já que, previsivelmente, nessa altura a Recorrida deixará de exercer a sua profissão e, consequentemente, deixará de ter "esforços suplementares".
7. Ponderada a idade da Autora, o limite da vida activa, o valor do salário mínimo por si auferido e a IPP de 10% de que ficou a padecer, o valor que se alcança usando como base de cálculo a fórmula referida no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 4 de Abril de 1995, não chega a € 5.000 (sem qualquer redução em virtude do benefício a redução antecipada).
8. Pelo que, qualquer valor indemnizatório que exceda o acima indicado incorre em patente e flagrante injustiça, por indemnizar da mesma forma danos diferentes, conforme supra alegado.
9. Verifica-se, pois, que não existe qualquer fundamento de facto ou de Direito que justifique a decisão do Tribunal da Relação de triplicar o valor da indemnização arbitrada a título de dano biológico pela l.ª Instância. " (
10. Ao assim decidir, o Tribunal da Relação violou, entre outros, o disposto nos arts. 562.° e 564.o do Código Civil.

Na contra-alegação apresentada, a A./ recorrida pugna pela manutenção do acórdão recorrido, suscitando ainda a questão prévia da recorribilidade, já que o decaimento ou sucumbência da seguradora, apenas no valor de €10.000, inviabilizaria a interposição de revista, por força do estatuído na parte final do nº1 do art. 678º do CPC.
Tal argumentação enferma, porém , de lapso manifesto, já que o referido valor da sucumbência é superior a metade da alçada da Relação, naturalmente calculada face aos valores vigentes antes da reforma operada pelo DL 303/07: improcede, pois, a questão prévia suscitada quanto à admissibilidade da revista.


3. As instâncias assentaram a dirimição do pleito na seguinte matéria de facto:

"Da matéria assente:
A) No dia 01/07/1999, a Autora atravessava a Av. 24 de Julho, na zona para esse efeito destinada aos peões, quando foi atropelada pelo veículo de matrícula 00-00-00
B) A Ré -BB SEGUROS, S.A. assumiu a responsabilidade civil decorrente de acidente de viação do supra citado veículo 00-00-00 através do contrato de seguro em tempo celebrado com a Ré, titulado pela apólice n° 00000.
C) No referido dia 01/07/1999, pelas 12 horas e 30 minutos, a Autora atravessava, na passadeira, a Avenida 24 de Julho, no sentido Norte/Sul.
D - No mesmo dia e hora circulava naquele preciso local, no sentido Nascente/Poente, o veículo segurado pela Ré, de matrícula 00-00-00, então conduzido pelo proprietário, CC.
E - Veículo automóvel que circulava em excesso de velocidade, a uma velocidade estimada de cerca de 80 km/h, quando no local só é permitido a circulação automóvel a uma velocidade de 50 km/h.
F - Só circulando a uma tal velocidade é que se poderá compreender porque é que o condutor do referido motociclo -CC-, após o embate, sido arrastado pelo solo numa extensão de 10,80 metros.
G - Mesmo porque tal extensão foi percorrida não obstante o referido veículo se encontrar sujeito à acção de forte atrito, por o mesmo, após o embate, não mais se encontrar a circular sobre duas rodas.
H - Bem como por esse percurso ter sido efectuado sobre o lancil da placa separadora dos dois sentidos de trânsito.
I - O CC conduzia o identificado veículo de um modo gravemente desatento, negligente, e em plena violação das regras estradais.
J - Para além de conduzir a uma velocidade superior à legalmente permitida para a via em questão, o CC não respeitou a sinalização existente no local.
K - Porque a sinalização existente no pavimento da via indicava existência de um local apropriado para a travessia de peões, o condutor em referência deveria obrigatoriamente ter imobilizado o seu veiculo.

L - Quando se deu o embate em apreço a ora Autora, AA, já se encontrava a proceder ao atravessamento da refenda avenida.
M - Não obstante tal obrigação de parar, o CC avançou com o veículo de matrícula 00-00-00, em clara violação às imposições do Código da Estrada.
N - Nesse preciso momento, a ora Autora, procedia ao atravessamento da artéria in casu, fazendo-o no local apropriado para o efeito.
O - Perante a não imobilização atempada do veículo automóvel, conforme lhe era imposto, o segurado pela Ré foi embater com a parte traseira direita do veículo 00-00-00, no peão -aqui Autora -que atravessava a referida avenida no sentido Norte/Sul.
P - Com a violência do referido embate, a Autora foi violentamente projectada pelo ar, indo cair no chão fora da passadeira a cerca de 4 metros do local do atropelamento.
Q - Ao que acresce que a referida Via se apresentava como uma recta de boa visibilidade.
R - O piso, em linha recta, era regular e sem obstáculos que dificultassem a respectiva circulação.
S - Piso que, naquele momento, se encontrava seco, por ser "bom" o estado do tempo que então se fazia sentir.
T - Perante a factualidade supra exposta, o veículo identificado nestes autos, circulava em claro e total desrespeito das regras legalmente estabelecidas pelo Código da Estrada.
U - Desrespeito ao disposto no Código da Estrada porque circulava, como supra se demonstrou, a urna velocidade de cerca de 80 Km/h, consideravelmente superior à permitida no local, por se tratar de uma via dentro de uma localidade,
V - Desrespeito, ainda, porque não observou a sinalização no pavimento, bem como o peão - ora Autora - a proceder ao atravessamento da via na referida passadeira, que o obrigava a proceder à imobilização do veículo.
X - Desrespeito, finalmente, porque conduzia desatento às condições do lugar e da via de trânsito em que se encontrava.

Z - Mais se diga que a toda a factualidade ora em apreço - circunstâncias concretas do acidente - foi relatada pelo próprio condutor à autoridade policial chamada ao local.
AA - Da condução notória e gravemente negligente e descuidada do referido veiculo 00-00-00 e como causa directa e necessária do referido embate, resultaram para a autora as seguintes lesões corporais:
-Fractura exposta dos ossos da perna esquerda:
-Traumatismo craniano com perda de conhecimento (Coma);
-Traumatismo (com fractura apenas posteriormente detectada) dos ossos próprios do nariz;
-Lesão na região da vista e sobrancelha direitas, com necessidade de sutura;
-Hematomas generalizados em todo o corpo e face.
BB - A Autora, sofreu vários e diversificados traumatismos, entre os quais factura exposta, de grau II, da tíbia e peróneo esquerdo.
CC - Pelo que foi, de imediato, conduzida às urgências do Hospital de S. José onde lhe foi efectuada limpeza e sutura da ferida e imobilização do membro com tala engessada cruropodália;
onde ficou internada até ao dia 23/07/1999.
DD - E, posteriormente - em 07/07/1999 - foi a Autora submetida a intervenção cirúrgica à perna para estabilização endomedular da fractura com "cavilha de ender" na tíbia.
EE - Intervenção seguida de alta médica, com imobilização gessada cruropodálica .
FF - Enquanto que em 21/09/1999, por insuficiência de calo ósseo, foi efectuado gesso funcional na autora, que se manteve até 12/10/1999.
GG - Em 23/11/1999, revelava a Autora "sinais clínicos compatíveis com a algodistrofia e oexame radiográfico revelava atraso na consolidação da fractura".
HH - Tendo a Autora sido submetida a nova intervenção cirúrgica em 15/12/2000 para extracção da referida cavilha.
II - Traumatismo craniano que levou a Autora a ser submetida a diversos exames e consequentes tratamentos nas especialidades de neurologia e de otorrinolaringologia.

JJ - Após o período de internamento, da Autora seguiu-se o necessário tratamento em regime ambulatório.
KK - Despesas essas que, em parte, foram suportadas pela Ré .
LL - Como consequência do supra narrado acidente, a Autora, AA sofreu várias lesões bem como três intervenções cirúrgicas que a obrigaram a permanecer vários meses em regime de baixa com incapacidade total.
MM - A ré pagou à Autora as quantias a que se reportam os does. de fls. 170 a 177, 180 a 185 ( inclusive ) e 187 a 192 ( inclusive ).
Da base instrutória:
NN - A Autora ficou em coma algumas horas.
00 - A Autora ficou imobilizada desde a data do acidente até ao dia 12/10/1999.
PP - Como resultado do acidente de viação supra referido a A. revelava, em Julho de 2001 "(...) uma lesão parcial crónica do ramo profundo do ciático popliteu externo (...). Por esse motivo foi submetida a intervenção cirúrgica no dia 27/07/2001, no Hospital SAMS."
QQ - Na presente data, e de acordo com o parecer do médico assistente da Autora, Dr. DD, "(. . .) apesar de todos os esforços terapêuticos, existem lesões que poderão ser irreversíveis, relacionadas com a manutenção de parestesias e hipersensibilidade no território do ciático popliteu externo (..)".
RR - Tais lesões na área de ortopedia têm permanecido com sequelas, com necessidade de acompanhamento assíduo na especialidade de ortopedia até 8 de Abril de 2000 e entre 15-12-00 e 13-01-2001.
SS - A A esteve sob vigilância médica e com tratamentos de fisioterapia durante o ano de 2000 até 8 de Abril e 3 meses no ano de 2001 e continua com dores na perna esquerda, decorrentes do atropelamento em causa.
TT - A deslocou-se, com frequência, no ano de 2000, para consultas de especialidade, exames médicos, tratamentos.
UU - A A recorreu a serviços de transporte de táxi devido às dificuldades de locomoção.

VV - Na sequência das graves sequelas resultantes do acidente a que se referem os presentes autos, a Autora ficou em situação de baixa médica, com uma incapacidade para exercer a respectiva actividade profissional bem como todas as lides domésticas.
XX - Deixando assim de auferir quaisquer rendimentos do trabalho a título de remuneração ou subsídio de doença.
AZ - Motivo pelo qual a empresa em que então trabalhava, na qualidade de gerente e única sócia e trabalhadora, se viu forçada a contratar uma empregada para efectuar o trabalho anteriormente prestado pela ora Autora, possibilitando assim, a viabilidade económica e subsistência da referida empresa.
AAA - Tendo, inclusivamente, a ora Autora - nos períodos em que se encontrou em convalescença imobilizada em sua casa, sido forçada a recorrer à contratação de duas empregadas domésticas.
BBB - A Autora teve despesas médicas para tratamento das lesões sofridas em consequência do acidente.
CCC - A A teve despesas medicamentosas para tratamento das lesões sofridas em consequência do acidente.
DDD - A A teve despesas de deslocação para consultas e tratamentos médicos por causa das lesões sofridas em consequência do acidente.
EEE - Em consequência das lesões sofridas no acidente e incapacidade delas decorrentes, a A não auferiu quaisquer rendimentos a título de remuneração ou subsídio de doença entre 01/07/99 e 8/04/2000 e 15-12-2000 a 13-01-2001, sendo o seu vencimento mensal o correspondente ao ordenado mínimo.
FFF - Nos períodos referidos em EEE a A despendeu com uma funcionária que a substituiu durante o tempo da incapacidade uma quantia igual à que deixou de receber como ali também se refere.
GGG - A A gastou € 2181,41 com vencimento de duas empregadas contratadas por causa do acidente.
HHH - Como consequência directa do acidente a A sofreu abalo psicológico.

III - Como causa directa do acidente, a A permaneceu em regime de baixa com incapacidade temporária para o trabalho entre a data do acidente e 8/04/200 e de 15-12-00 a 13-01-01.
JJJ - A A sofreu dores agudas e continua a sofrer dores.
LLL - Em consequência do acidente persiste na autora uma sensação de medo, tristeza, depressão e perda de alegria de viver.
MMM - A Autora sente-se diminuída na sua capacidade profissional, estando incapacitada de ter uma vida activa, social e profissional.
Factos considerados nos termos do art. 659°, n°3 CPC:
NNN - Em consequência das lesões sofridas no acidente supra descrito a Autora ficou com uma incapacidade genérica permanente parcial de 10% com rebate sobre a profissão de gerente comercial, podendo exigir esforços suplementares no seu exercício.
000 - A data de consolidação das lesões fixa-se em 9/04/00".

4. O objecto da presente revista circunscreve-se, pois à questão da ressarcibilidade do «dano biológico» sofrido pela lesada e à respectiva quantificação – ou seja: se é autonomamente indemnizável a perda parcial de uma genérica capacidade para o trabalho, decorrente das sequelas do acidente, num caso em que, apesar de a lesada passar a padecer de uma IPP genérica de 10%, daí não resultou uma previsível ou próxima diminuição do nível de rendimentos profissionais auferidos na actividade laboral que habitualmente vinha exercendo.
Tal questão não é nova na jurisprudência e doutrina, estando amplamente tratado, quer o problema da ressarcibilidade de tais danos, quer o da respectiva qualificação ou enquadramento jurídico, nas categorias normativas dos danos patrimoniais ou não patrimoniais.
Como se afirma, por exemplo, no Ac. deste Supremo de 27/10/09, proferido no P. 560/09.0YFLSB:

Já o Acórdão deste mesmo Supremo Tribunal, de 4 de Outubro de 2005 – 05 A2167, julgou no sentido de que “o dano biológico traduz-se na diminuição somático-psíquica do indivíduo, com natural repercussão na vida de quem o sofre.”

Certo que se trata de um dano (que na definição do Prof. A. Varela “é perda in natura que o lesado sofreu em consequência de certo facto nos interesses [materiais, espirituais ou morais] que o direito viola ou a norma infringida visam tutelar.” – in “Das Obrigações em Geral”, I, 591, 7.ª ed.)

Mas há que proceder à integração do dano biológico, ou na categoria do dano patrimonial – como “reflexo do dano real sobre a situação patrimonial do lesado.” – Prof. A. Varela, ob. cit.) abrangendo não só o dano emergente, como perda patrimonial, como o lucro frustrado, ou cessante –, ou na classe dos danos não patrimoniais (como dores físicas, desgostos morais, vexames, perda de prestigio ou de reputação e que atingem bens como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, o bom nome, que não integram o património do lesado).

A maioria da jurisprudência, e certa doutrina, consideram o dano biológico como de cariz patrimonial. (cf., entre outros, o citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Maio de 2009 e os Acórdãos de 4 de Outubro de 2007 – 07B2957, de 10 de Maio de 2008 – 08B1343, 10 de Julho de 2008 – 08B2101, e de 6 de Maio de 1999 – 99B222, e Prof. Sinde Monteiro, in “Estudos sobre a Responsabilidade Civil”, 248).

Em abono deste entendimento refere-se que, mesmo não havendo uma repercussão negativa no salário ou na actividade profissional do lesado – por não se estar perante uma incapacidade para a sua actividade profissional concreta- pode verificar-se uma limitação funcional geral que terá implicações na facilidade e esforços exigíveis o que integra um dano futuro previsível, segundo o desenvolvimento natural da vida, em cuja qualidade se repercute.

Mas também é lícito defender-se que o ressarcimento do dano biológico deve ser feito em sede de dano não patrimonial.

Nesta perspectiva, há que considerar, desde logo, que o exercício de qualquer actividade profissional se vai tornando mais penoso como decorrer dos anos, o desgaste natural da vitalidade (paciência, atenção, perspectivas de carreira, desencantos…) e da saúde, tudo implicando um crescente dispêndio de esforço e energia.

E esses condicionalismos naturais podem é ser agravados, ou potenciados, por uma maior fragilidade adquirida a nível somático ou em sede psíquica.

Ora, tal agravamento, desde que não se repercuta directa – ou indirectamente – no estatuto remuneratório profissional ou na carreira em si mesma e não se traduza, necessáriamente numa perda patrimonial futura ou na frustração de um lucro, traduzir-se-á num dano moral.

Isto é, o chamado dano biológico tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como compensado a título de dano moral.

A situação terá de ser apreciada casuisticamente, verificando se a lesão originou, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida e, só por si, uma perda da capacidade de ganho ou se traduz, apenas, numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade.

E não parece oferecer grandes dúvidas que a mera necessidade de um maior dispêndio de esforço e de energia, mais traduz um sofrimento psico-somático do que, propriamente, um dano patrimonial.

Aderindo, no essencial, a este entendimento, parece-nos importante começar por distinguir os problemas da ressarcibilidade do dano biológico e do seu enquadramento ou qualificação jurídica nas categorias do dano patrimonial ou do dano moral – ou eventualmente como «tertium genus», como dano de natureza autónoma e específica, por envolver prioritariamente uma afectação da saúde e plena integridade física do lesado : é que, qualquer que seja o enquadramento jurídico que, no caso, se entenda reflectir mais adequadamente a natureza das coisas, é indiscutível que a perda genérica de potencialidades laborais e funcionais do lesado constitui seguramente um dano ressarcível, englobando-se as sequelas patrimoniais da lesão sofrida seguramente no domínio dos lucros cessantes, ressarcíveis através da aplicação da «teoria da diferença»; ou, não sendo perspectiváveis perdas patrimoniais próximas ou previsíveis, a penosidade acrescida no exercício das tarefas profissionais e do dia a dia constitui seguramente um dano não patrimonial que, pela sua gravidade, não poderá deixar de merecer a tutela do direito.

Essa natureza híbrida ou mista do dano biológico é perfeitamente detectável no caso dos autos, em que estamos confrontados com relevantes limitações funcionais da lesada que, de nenhum modo, se podem perspectivar como pequenas invalidades permanentes, geradoras de um mero «dano de complacência» ( veja-se a situação analisada no Ac. deste Supremo de 20/1/2010, no p.203/99): na verdade, embora tais sequelas incapacitantes não tenham um imediato reflexo no nível de remuneração auferida na concreta actividade profissional ( de gerente da sua própria micro-empresa) da lesada, elas poderão revelar-se plenamente se, porventura , esta, no decurso da vida profissional que lhe resta, quiser ou tiver de mudar de actividade.

Ou seja: pelo menos nos casos em que a não previsível e imediata diminuição de rendimentos profissionais, potencialmente associada às sequelas das lesões, ocorre por o lesado ainda não exercer uma actividade profissional ou exercer, no momento, actividade concreta que não é substancialmente afectada pelas sequelas físicas ou psíquicas que restringem as suas capacidades pessoais, é indiscutível que o lesado vê diminuída a amplitude de escolha, o leque das actividades laborais que pode perspectivar exercer ainda no futuro, ficando necessariamente condicionado e «acantonado» no exercício de actividades menos exigentes – o que naturalmente limita de forma relevante as suas potencialidades no mercado do trabalho ( facto particularmente atendível numa organização económica que crescentemente apela à precariedade e à necessidade de mudança e reconversão na profissão exercida, a todo o momento susceptível de mutação ao longo da vida do trabalhador).

Em suma: pelo menos para quem não está irremediavelmente afastado do ciclo laboral, a perda relevante de capacidades funcionais – embora não imediatamente reflectida nos rendimentos salariais auferidos na profissão exercida – constitui uma verdadeira «capitis deminutio» do lesado num mercado laboral em permanente mutação e turbulência, condicionando-lhe, de forma relevante e substancial, as possibilidades de mudança ou reconversão de emprego e o leque de oportunidades profissionais à sua disposição, constituindo, deste modo, fonte actual de possíveis e futuros lucros cessantes, a compensar como verdadeiros danos patrimoniais .

Para além disto, terão naturalmente de ser ponderados e ressarcidos os danos não patrimoniais, decorrentes da degradação do padrão de vida da lesada, quer nos aspectos não directamente associados ao exercício da profissão, quer da notoriamente maior penosidade que este passou a representar para a lesada, como forma de, contornando as sequelas incapacitantes, lograr manter o mesmo nível de produtividade e de rendimento auferido.
Ora, ao contrário do sustentado pela seguradora /recorrente, este tipo de danos, mesmo que configuráveis , no caso concreto, como não patrimoniais, tem plena autonomia relativamente aos restantes danos não patrimoniais, que as instâncias englobaram num valor indemnizatório global ( abalo psicológico sofrido, dores intensas, sensação de depressão e incapacitação para uma vida social e pessoal activa) – conexionando-se, pelo contrário, com a matéria especificamente constante do facto NNN - cujas consequências danosas não foram manifestamente englobadas na indemnização arbitrada em bloco - : em consequência das lesões sofridas no acidente supra descrito a A. ficou com uma incapacidade genérica permanente parcial de 10% com rebate sobre a profissão de gerente comercial, podendo exigir esforços suplementares no seu exercício.

A indemnização a arbitrar pelo dano biológico sofrido pela lesada deverá, pois, compensá-la, quer da relevante e substancial restrição ou limitação às possibilidades de mudança ou reconversão de emprego e do leque de oportunidades profissionais à sua disposição, enquanto fonte actual de possíveis e futuros acréscimos patrimoniais, quer da acrescida penosidade e esforço no exercício da sua actividade profissional actual, de modo a compensar as deficiências funcionais que constituem sequelas das lesões sofridas, garantindo um mesmo nível de produtividade e de rendimento auferido.

E, nesta dupla perspectiva, que temos por correcta e adequada, não parece que o valor indemnizatório alcançado pelas instâncias, essencialmente através de juízos de equidade, se possa perspectivar como inadequado e merecedor de censura.

É que, como vimos sustentando ( veja-se o Ac. de 5/11/09, proferido no P. 381-2002.S1) – não poderá deixar de ter-se em consideração que tal «juízo de equidade» das instâncias, alicerçado, não na aplicação de um critério normativo, mas na ponderação das particularidades e especificidades do caso concreto, não integra, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito», pelo que tal juízo prudencial e casuístico das instâncias deverá , em princípio, ser mantido, salvo se o julgador se não tiver contido dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade – muito em particular, se o critério adoptado se afastar, de modo substancial, dos critérios que generalizadamente vêm sendo adoptados, abalando, em consequência, a segurança na aplicação do direito, decorrente da adopção de critérios jurisprudenciais minimamente uniformizados, e , em última análise, o princípio da igualdade.

Tal como temos entendido – veja-se o mesmo aresto - que a indemnização a arbitrar por tais danos futuros deve corresponder a um capital produtor do rendimento de que a vítima ficou privada e que se extinguirá no termo do período provável da sua vida, determinado com base na esperança média de vida (e não apenas em função da duração da vida profissional activa do lesado, até este atingir a idade normal da reforma), já que as necessidades básicas do lesado não cessam obviamente no dia em que deixa de trabalhar por virtude da reforma, sendo manifesto que será nesse período temporal da sua vida que as suas limitações e situações de dependência, ligadas às sequelas permanentes das lesões sofridas , com toda a probabilidade mais se acentuarão; além de que, como é evidente, as limitações substanciais às capacidades laborais do lesado não deixarão de ter fortes reflexos negativos na respectiva carreira contributiva para a segurança social, repercutindo-se no valor da pensão de reforma a que venha a ter direito.

Neste entendimento, que se mantém, nenhuma censura merece o acórdão recorrido, ao basear-se essencialmente, para a formulação do juízo equitativo que o levou a quantificar o dano biológico sofrido pela lesada na esperança média de vida – e não no termo eventual da sua vida activa , aliás, não de trabalhadora subordinada, mas de gerente e única sócia e trabalhadora da agência de documentação que lhe pertencia.


5. Nestes termos e pelos fundamentos apontados nega-se provimento à revista.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 20 de Maio de 2010

Lopes do Rego (Relator)
Barreto Nunes
Orlando Afonso