Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
434/1999.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
PESSOA COLECTIVA
SOCIEDADE POR QUOTAS
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 01/10/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Sumário :
I - Justifica-se o levantamento da personalidade coletiva de sociedade que outorgou escritura de compra e venda em 21-12-1995, constatando-se que essa sociedade era mero testa de ferro do oculto comprador, seu sócio dominante com 85% do capital, considerando-se, por via do levantamento ou desconsideração da personalidade dessa sociedade, celebrado o contrato entre o oculto comprador e os demais intervenientes na compra e venda.

II - O abuso da personalidade coletiva da sociedade revela-se pela circunstância de que, com a intervenção dela, e não do seu sócio maioritário – homem oculto – na escritura de 1995, pretendia impedir-se que os imóveis adquiridos se integrassem no património desse sócio que, muitos anos antes (1988), outorgara contrato-promessa de compra e venda com traditio desses mesmos imóveis (apesar de ao tempo não ser deles ainda proprietário), sujeitando-se, se não se acobertasse em 1995 sob o manto da personalidade coletiva da “ sua” sociedade, ao pedido de execução específica (artigo 830.º do CC) por parte do promitente comprador de 1988, atenta a mora em que há muito incorria o promitente vendedor.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. AA - Hotelaria e Similares, S.A.", com sede na Avenida 5 de Outubro, n."..., 1.0, em Lisboa, intentou ação declarativa de condenação, com processo ordinário, contra BB e CC, III, Lda., DD, entretanto falecido e prosseguindo os autos com os seus herdeiros habilitados, EE , que foi sua mulher como tal demandada inicialmente e seus filhos FF e JJ, GG, HH e II, LL e MM, NN e OO, PP e QQ, representados pelo sucessor RR, SS, TT, UU e VV, XX, ZZ, AAA e BBB, CCC, representada pelos seus sucessores DDD e EEE, FFF, GGG HHH, pedindo o seguinte:

- Que seja declarada a nulidade do contrato titulado pela escritura de compra e venda que incidiu sobre as frações identificadas na petição inicial, celebrada em 21/12/1995 no 4.° Cartório Notarial de Lisboa.

- Que sejam julgados esses atos impugnados e ineficazes e condenados os réus a reconhecê-lo.

- Que seja ordenado o cancelamento do registo predial de transmissão das frações autónomas a favor da ré III, Lda. (apresentação nº 4 de 21/02/1996 da 3ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa).

- Que seja declarado existente, válido e plenamente eficaz, nomeadamente para efeito de registo predial o contrato de compra e venda dissimulado, o qual tem como partes os réus DD, EE , GG, HH, II, LL, MM, NN, OO, PP, QQ, SS, TT, UU, VV, XX, ZZ, AAA, BBB, CCC, FFF, GGG HHH, como vendedores, e o réu BB, na qualidade de comprador.

- Que seja reconhecida a validade do contrato-promessa celebrado entre o réu BB e a autora, em 25/10/1988, bem como incumprimento culposo por parte do promitente vendedor, o réu BB

- Que seja notificado o réu BB para receber, por termo, dia e hora que venha a ser indicado, o remanescente do preço ajustado no referido contrato promessa, ou seja a importância de 9.400.000$00

- Que o Tribunal produza, nos termos do artigo 830.° do Código Civil, os efeitos da declaração negocial do réu BB referente à promessa titulada pelo contrato promessa de 25/10/1988.

2. Sustenta a autora que a escritura de compra e venda de 21-12-1995 celebrada entre a sociedade ré, representada pelo réu BB na qualidade de promitente compradora e os demais réus na qualidade de promitentes vendedores, foi um negócio simulado pois na realidade sob ele existiu um outro que as partes quiseram realizar - o de compra e venda a favor do comprador BB - o que fizeram com o intuito de prejudicar a autora.

3. É que, tendo a autora outorgado contrato- promessa de compra e venda com o referido BB em 25-10-1988, se o BB adquirisse por essa escritura de 1995 a propriedade do imóvel, podia a autora obter a execução específica do contrato-promessa de compra e venda.

4. Para a autora resulta claro que a sociedade BB Lda. foi utilizada com a finalidade de defraudar os interesses da autora; o réu BB pretende, pela utilização da personalidade jurídica da sociedade que constituiu, evitar o cumprimento do contrato-promessa a que se havia obrigado em 25-10-1988; a constituição dessa sociedade teve esse propósito como finalidade principal, senão exclusiva, a de adquirir tais frações, sendo manifesto que, detendo o réu BB uma quota de 85% da totalidade do capital da sociedade, existia uma confusão nítida entre a vontade do primeiro e a vontade da segunda, impondo-se, assim, desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade; assim sendo, a personalidade coletiva torna-se irrelevante e, por isso, passa a considerar-se o centro de imputação de efeitos jurídicos a pessoa titular dos seus órgãos ou a que atuou em seu nome. Há, no caso sub specie, uma utilização da pessoa coletiva para um fim contrário ao direito, verificando-se um abuso de limitação de responsabilidade.

5. Alegou a autora que outorgou em 25/10/1988, com o réu BB contrato-promessa de compra e venda referente a duas frações autónomas, pelo preço de 34.600.000$00, cujo pagamento seria faseado; tomou posse nesse dia das aludidas frações autónomas e realizou obras de reconstrução tendo em vista adaptá-las a um bar-discoteca que veio a ser designado “K...” e que viria a abrir em dezembro de 1988.

6. Sucede que a escritura pública de compra e venda não chegou a realizar-se.

7. A autora, depois de interpelar inutilmente o réu para proceder à marcação da aludida escritura, procedeu ela própria à marcação para o dia 9-3-1994 e só em 7-3-1994 o réu, que não compareceu à escritura, lhe comunicou que não era proprietário das frações.

8. Com efeito, nessa data as aludidas frações eram propriedade dos réus DD, EE, GG, HH, II, LL, MM, NN, OO, PP, QQ, SS, TT, UU, VV, XX, ZZ, AAA, BBB, CCC, FFF, GGG HHH.

9. Sucede que, na qualidade de proprietário e gestor de negócios dos restantes herdeiros, o então réu DD outorgou a 25/08/1983 um contrato-promessa com LLL, incidindo sobre uma das frações autónomas (fração “A”) e em 08/10/1986, LLL transmitiu ao Réu BB a posição contratual que detinha no contrato-promessa.

10. Por sua vez em 23/06/1995, a ré HHH, por si e na qualidade de gestora de negócios dos restantes co-herdeiros, outorgou um contrato promessa com o réu BB prometendo vender-lhe, ou a quem ele indicasse, as frações autónomas pelo preço de 16.500.000$00.

11. E finalmente, em 21/12/1995, os réus DD, EE, GG, HH, II, LL, MM, NN, OO, PP, QQ, SS, TT, UU, VV, XX, ZZ, AAA, BBB, CCC, FFF, GGG, HHH, na qualidade de comproprietários, celebraram com a ré III, Lda. uma escritura pública de compra e venda das frações autónomas, tendo declarado o preço de 16.500.000$00, imputando 8.250.000$00 a cada uma das frações autónomas.

12. Foi o réu BB que procedeu ao pagamento do preço e, na escritura pública, a ré III, Lda. declarou que as frações autónomas se destinavam a revenda, mas ainda se encontram registadas em seu nome, a transmissão foi registada na competente conservatória do registo predial, a ré III, Lda. foi registada pela apresentação nº 32 de 30/03/1995, tendo como únicos sócios o réu BB, sua mulher, a ré CC e JJJ, a denominação da Ré III, Lda. coincide com o nome do Réu BB, a ré III, Lda. foi constituída com o capital social de 5.000.000$00, subscrito pela seguinte forma: 4.250.000$00 pelo Réu BB, 500.000$00 pela Ré CC e 250.000$00 por JJJ, a gerência pertence exclusivamente ao Réu BB e a ré III, Lda. obriga-se com a única assinatura do gerente. O réu BB detém o total controlo e domínio absoluto da Ré "III, Lda.

13. Alegou ainda a A. que os réus celebraram contrato simulado (escritura de compra venda de 23-6-1995) com o intuito de prejudicar a autora tendo em atenção o exposto anteriormente.

14. A ação foi julgada improcedente nas instâncias.

15. Recorre a autora para o Supremo Tribunal finalizando a minuta com as seguintes conclusões:

A - O tribunal “ a quo” não fez a correta apreciação da matéria jurídica que perante si foi suscitada pela recorrida a qual não se reconduz apenas à apreciação da simulação.

B - Da matéria de facto dada como provada nos autos é possível extrair a conclusão que a recorrida, a sociedade III Lda., foi criada e foi usada pelo recorrido BB para surgir como compradora das frações constantes do contrato-promessa de fls. 32-36 dos autos, bem sabendo este que desta forma impedia o cumprimento do dito contrato tal como ele (BB) se havia obrigado e ao preço que havia contratado.

C - Surgindo a sociedade III Lda. como proprietária das frações cuja propriedade fora prometida, o recorrido BB pretendia obter um maior valor pela venda das mesmas que o que inicialmente contratara mercê da projeção da discoteca K... e da valorização das frações por via desta exposição pública.

D - Não existe outro propósito para a criação desta empresa, na qual são únicos sócios, marido e mulher, senão o de adquirir as frações cuja propriedade fora prometida vender ao sócio principal e dominante, o recorrido BB.

E - Aliás a data de constituição desta empresa é próxima da data da celebração da escritura de compra e venda o que reforça aquele propósito e objetivo.

F - E se o recorrido BB era titular de uma quota de 85% da totalidade do capital social da empresa III Lda. é óbvio que era aquele que detinha na empresa a posição dominante e que presidia aos destinos da mesma.

G - Consequentemente podemos afirmar, sem margens para dúvidas, que existia uma confusão nítida entre o que era a vontade de BB e a vontade da empresa III Lda.

H - Para esta utilização abusiva da personalidade jurídica, a doutrina e a jurisprudência respondem com a solução jurídica conhecida por desconsideração da personalidade jurídica.

I - Na apreciação desta questão releva a prova documental junta aos autos e que foi dada como assente pelo Tribunal “ a quo” a saber: o contrato-promessa de compra e venda subscrito pelo réu BB com a autora em 25-10-1988; o contrato-promessa de compra e venda subscrito pelo réu BB com a família M... (réus nestes autos) em 23-6-1995 e o contrato de compra e venda celebrado entre a ré III Lda. e os restantes réus (família M....) em 21-12-1995.

J - O recorrido BB assume, através da constituição da sociedade III Lda. e posteriormente , na qualidade de sócio-gerente, pela aquisição, por parte desta, dos imóveis por via do contrato de fls. 79-86 dos autos um comportamento que, ainda com uma aparência formal correta, se traduz na utilização da pessoa coletiva para um fim contrário ao direito.

K - Os factos aqui expostos demonstram que estamos efetivamente perante um claro e nítido caso de abuso de limitação da responsabilidade, pois o comportamento do recorrido BB enquanto homem oculto, embora baseado numa posição legitimada, é realizado em oposição aos fins ou objetivos da limitação de responsabilidade.

L - O que nos permite concluir que o sócio BB mistura a sua massa patrimonial com a da sociedade, favoravelmente a esta, e invoca perante os seus credores pessoais in casu a ora recorrente a autonomia da pessoa coletiva e a sua limitação de responsabilidade para não lhes pagar ou, in casu, para não cumprir a sua obrigação para com a autora relativa à venda prometida

M - E é este facto em concreto que tem de ser apreciado pelo tribunal ad quem

N- Ao contrário da apreciação efetuada pelo Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão sub judice encontra-se provado nos autos o conluio entre BB ou a sociedade por si constituída e os recorridos réus vendedores.

O - Isto porque nos contratos que constam da matéria de facto assente é expressamente reconhecido pelo réu BB e pelos réus pertencentes à família M... a existência do contrato-promessa de fls. 32-36 dos autos celebrado entre o recorrente e o réu BB e bem como é reconhecido que ainda não fora celebrado com a autora a escritura definitiva.

P - Todos sabiam da existência do contrato-promessa de fls. 32-36 dos autos, todos sabiam que no local funcionava a discoteca K... explorada pela recorrida.

Q- Facto que está expressamente confessado por todos os recorridos/réus na cláusula 7ª do contrato-promessa de fls. 71/77 dos autos.

R - Pelo que a decisão sobre a validade da escritura pública do contrato de compra e venda datado de 21-12-1995 de fls. 79/86 no que se refere à real vontade negocial das partes tem de necessariamente ser aferida em função desses factos, os quais constam da matéria de facto assente.

S- A decisão sobre a validade da escritura pública do contrato de compra e venda, datada de 21-12-1995, no que se refere à real vontade negocial das partes nela intervenientes tem ainda de ser aferida perante os factos dados como provados de que foi o réu BB, enquanto pessoa singular, quem subscreveu com os réus o contrato definitivo de compra e venda de fls. 79-86, sendo que ambos os contratos têm por objeto as mesmas frações constantes do contrato-promessa de compra e venda subscrito pelo réu BB com a autora.

T - A recorrida III Lda. apresenta-se aparentemente como parte do negócio mas em virtude de um acordo oculto, os efeitos do negócio destinam-se a outra pessoa, não adquirindo de facto essa interposta pessoa a posição jurídica que exteriormente parece assumir.

U - Esta criação de uma aparência negocial divergente da realidade constitui uma simulação relativa na medida em que o contrato de compra e venda celebrado entre os 3º a 19º réus/recorridos e o recorrido BB (constante do instrumento de fls. 71/77) dos autos é oculto sob a aparência de um contrato celebrado entre os mesmos 3º a 19º réus/recorridos e a recorrida (pessoa coletiva) III Lda. (constante do instrumento de fls. 77/86 dos autos)

V - E subjacente a este conluio está o facto de a todos os recorridos interessar impedir a recorrente de poder exigir o cumprimento do contrato-promessa de compra e venda das frações descritas nos autos ao recorrido BB.

W - Aqui a simulação consiste não propriamente, como tradicionalmente se entende, na divergência entre a vontade real e a vontade declarada mas na vontade de cindir os efeitos diretos ou internos do negócio, vinculativo entre as partes, dos seus efeitos reflexos ou externos que, no caso concreto, equivaleriam ao cumprimento do contrato-promessa de compra e venda constante do instrumento de fls. 32-35 dos autos, celebrado entre a recorrente e o recorrido BB.

X - Para os recorridos BB e III Lda. existia um interesse forte em celebrar o negócio simulado em vez do negócio dissimulado, sendo claro que a vontade da recorrida III Lda. é meramente instrumental em relação à vontade do recorrido BB

Y - Evidente é que o valor das frações identificadas nos autos é em 1995 muito superior ao seu valor à data da celebração do contrato-promessa de 25-10-1988 em virtude das obras que a recorrente desenvolveu no local, com reconhecido sucesso

Z - Ao que acresce o facto de a zona onde ficam situados os imóveis se ter tornado no ano de 1995 a mais importante da cidade de Lisboa no que respeita ao desenvolvimento das atividades ligadas à criação de “Bar-Discotecas” com naturais consequências ao nível dos preços praticados nas transações imobiliárias.

AA - A recorrente é enganada pelos recorridos que pretenderam, da forma aqui descrita, afastar a consequência que decorreria necessariamente com a aquisição pelo recorrido BB, das frações identificadas nos autos, ou seja, o recurso à execução específica para cumprimento do contrato-promessa constante do instrumento de fls. 32-36 dos autos.

BB - O 3º a 19º recorridos não podam deixar de prever os graves prejuízos que para a recorrente resultariam se a venda não fosse efetuada ao recorrido BB e mesmo assim aceitaram celebrar o contrato com a recorrida III Lda.

CC - E não podiam deixar de o prever porque sabiam que as frações descritas nos autos eram ocupadas pela recorrente, sabiam que a recorrente nelas explorava o Bar-Discoteca K..., sabiam que o recorrido BB tinha contratado com a recorrente, sabiam que à data em que celebram a escritura pública constante do instrumento de fls. 77-86 dos autos o recorrido BB ainda não celebrara com a autora o contrato definitivo.

DD - Nesse sentido é clara a intenção por parte dos réus/recorridos, como se expôs neste recurso, de enganar a recorrente cujos interesses são afetados pelo negócio simulado.

E - A vontade dos réus/recorridos é divergente da declaração expressa na escritura de compra e venda constante do instrumento de fls. 77/86 dos autos porquanto o contrato a celebrar, de acordo com a vontade de todos os intervenientes, teria sido uma venda ao recorrido BB.

FG - Pelo exposto estão preenchidos todos os elementos integradores do conceito de negócio simulado, consistindo este tipo de simulação relativa, mais concretamente na modalidade de interposição fictícia de pessoas.

GG - O negócio fictício ou simulado está ferido de nulidade , contudo , o negócio real ou dissimulado será objeto de tratamento jurídico que lhe caberia se tivesse sido concluído sem a dissimulação (ut 241.º do Código Civil)

HH - Pelo que observada a forma exigida por lei quanto ao negócio dissimulado deve este ser declarado válido, considerando-se a venda formalizada a fls. 79-86 como efetivamente realizada ao recorrido BB.

16. Factos provados:

1. Com data de 25/10/1988, foi subscrito o acordo constante do instrumento de fls. 32-35 denominado "contrato promessa de compra e venda", entre, por um lado, BB, como primeiro outorgante e promitente vendedor, e por outro lado, R. M HOTELARIA e SIMILARES, Lda. […], devidamente representada pelos seus sócios-gerentes, MMM e NNN nos termos do qual o 1º outorgante declarou ser proprietário da fração “A” com entrada pelo número 5 das Escadinhas da Praia, do prédio sito na Calçada R... dos S... ou Calçada de S..., nº ..., tornejando para as E... da P..., números ... e ..., freguesia de S..., descrito na ...ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº ---- e da fração “...” do prédio sito nas E... da P..., números ... a ..., tornejando para a Avenida ... de ..., número ..., descrito na ...ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº -----, frações essas que compõem o rés do chão que se inscreve nesses prédios.

2. Nos termos do aludido contrato, o 1º outorgante e promitente vendedor prometeu vender ao 2º outorgante e promitente comprador as frações referidas pelo preço de 34.600.000$00.

3. Os legais representantes da 2ª outorgante entregaram nessa data, como sinal e princípio de pagamento, a quantia de 1.200.000$00 ao promitente vendedor e primeiro outorgante, que deu no presente contrato a respetiva quitação.

4- O remanescente do aludido preço, ou seja, a importância de 33.400.000$00, será paga pelo segundo outorgante e promitente compradora ao primeiro outorgante e promitente vendedor, em vinte e uma prestações mensais e sucessivas de 400.000$00, com vencimento a oito de cada mês, com início no mês de novembro de 1998, sendo o restante, para pagamento integral do preço ajustado, ou seja, a quantia de 25.000.000$00, liquidado no ato da escritura, que ficou, desde logo marcada para o dia 15 de julho de 1990, em Cartório, hora e local a designar pelo primeiro outorgante e promitente vendedor, mediante postal registado dirigido ao segundo outorgante e promitente compradora com a antecedência de dez dias.

5. O prédio urbano sito na Calçada R... S..., nº 19 e E... da P...nº ... a nº ..., está descrito na 3.a Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº ..., da freguesia de S... e dele constam, além do mais, as inscrições e averbamentos constantes da certidão de fls. 37 a 54 dos autos.

6. Com data de 22/02/1994, foi subscrito o acordo constante do instrumento de fls. 55-56 denominado "contrato promessa de compra e venda", entre AA - Hotelaria e Similares, S.A. e OOO nos termos do qual a AA declarou ser possuidora do espaço onde se situa a discoteca K..., no nº ... das E... da P..., registado na ...ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, prometendo vender o identificado prédio, livre de quaisquer ónus ou encargos, desocupado e no estado em que se encontrava, a OOO, o que este aceitou, pelo preço de 200.000.000$00.

7. Com data de 24/01/1994, a autora "AA - Hotelaria e Similares, S.A." remeteu ao réu BB a comunicação constante do instrumento de fls. 57, cujo teor aqui se tem por integralmente reproduzido, do qual consta, além do mais, o seguinte: "Tendo presente o contrato em referência e considerando que V. Exa. não procedeu à marcação da escritura pública de compra e venda em 15 de julho de 1990, nem em data posterior, situação esta que se torna insuportável para os nossos interesses, vimos, por este meio, interpelar V Exa. para, no prazo máximo de quinze dias contados da receção da presente carta, promover a marcação da referida escritura pública (...)”

8. Esta comunicação foi enviada por carta registada com aviso de receção para a morada Rua D... P... I, II-..., A...-C..., e foi devolvida com a menção "retirou desta morada".

9. Com data de 25/02/1994, a Autora "AA - Hotelaria e Similares, S.A." remeteu, por carta registada com aviso de receção, ao réu BB a comunicação constante do instrumento de fls. 63, na qual refere, nomeadamente:

"Tendo em conta a nossa carta de 24 de janeiro de 1994 sobre o assunto em referência, recebida por V. Exa. em 3 de fevereiro de 1994, à qual não se dignou dar qualquer resposta nem promover as diligências solicitadas para a marcação da escritura pública de compra e venda, vimos, por este meio, informar V. Exa. que a escritura pública de compra e venda, a que se refere o contrato em referência, está marcada por nós no ...º Cartório Notarial de Lisboa para o dia 9 de março de 1994, às 10.00 horas. Mais solicitamos a V. Exa. que, até ao dia 7 de março de 1994, proceda à entrega naquele Cartório de toda a documentação necessária que a V. Exa. diz respeito para a preparação e efetivação da referida escritura".

10. Com data de 07/03/1994, o réu BB remeteu à autora a comunicação constante do instrumento de fls. 66, da qual consta, além do mais, o seguinte:

"Serve o presente para informar V. Exas. que por razões administrativas que se prendem com os herdeiros dos antigos proprietários, não tem sido possível concretizar a legalização dos registos de propriedade (de que já pagamos a respetiva contribuição autárquica) pelo que não é ainda possível realizar a prometida escritura de compra e venda. Assim, logo que este estrangulamento esteja ultrapassado voltarei à v/presença para informar e combinar o ato notarial. Aproveito para lembrar que aguardo o pagamento da última mensalidade".

11. Com data de 09/03/1994, no ....° Cartório Notarial de Lisboa foi lavrado o instrumento constante de fls. 69-70 denominado "certificado de ocorrência", do qual consta, além do mais, o seguinte:

"compareceram como outorgante: NNN e MMM e que outorgam na qualidade de gerentes da sociedade por quotas denominada AA - Hotelaria e Similares, Lda. (..). pessoas cuja identidade e poderes invocados verifiquei por serem do meu conhecimento pessoal.

E POR ELES FOI DITO:

Que, foi notificado por carta registada de vinte e oito de fevereiro de mil novecentos e noventa e quatro, o senhor BB para comparecer neste Cartório pela dez horas de hoje, a fim de procederem a escritura de compra e venda da fração autónoma designada pela letra ''... ", do prédio urbano silo na C... de S..., número ..., tornejando para as E... da P... números ... e ..., na freguesia de S..., em Lisboa (..) e da fração "..." do prédio urbano sito nas E... da P..., números ... a .... Em voz alta chamei no Cartório, em todas as suas salas e instalações e verifiquei não se achar presente o outorgante notificado. São neste momento decorridas duas horas da hora marcada para o (..) este não compareceu.”

12. Com data de 23/06/1995, foi subscrito o acordo constante do instrumento de fls. 71-77 denominado "contrato promessa de compra e venda", entre os 3º a 19º Réus, enquanto promitentes vendedores e BB enquanto promitente comprador e do qual consta, nomeadamente:

Os promitentes vendedores são donos e legítimos proprietários das frações autónomas que a seguir se identificam: fração autónoma designada pela letra ''...'', pertencente ao prédio sito na C... R... dos S..., nº ..., tornejando para as E... da P..., números ... a ..., descrito na ...ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o n° 132; Fração autónoma designada pela letra "...", pertencente ao prédio sito nas E... da P..., números ... a ..., tornejando para a Av. ... de ..., descrito na ... . a Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o nº ... . Pelo presente contrato os promitentes vendedores prometem alienar e o promitente comprador promete adquirir, por si ou quem vier a indicar,

As partes reconhecem os seguintes factos:

a) as frações ora prometidas vender, encontram-se ocupadas pela sociedade AA - Hotelaria e Similares, S.A. (..), nas quais exploram o Bar discoteca "K...";

b) contra a sociedade mencionada na alínea anterior foi instaurada, pelos promitentes vendedores, ação especial de posse judicial avulsa, que corre termos no 9º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, Secção, sob o nº 3765/95;

c) a fração "A", descrita na cláusula 1ª, foi objeto de contrato promessa de compra e venda em 25 de agosto de 1983, no qual os promitentes vendedores prometeram alienar a referida fração a LLL (..) ou a quem este viesse a indicar; d) o promitente comprador após ter adquirido a posição contratual de LLL, referida na alínea anterior, transmitiu-a à sociedade AA - Hotelaria e Similares; S.A., não tendo sido outorgada qualquer escritura pública.

Pelo presente contrato, e na medida da disponibilidade dos respetivos direitos, as partes renunciam a quaisquer direitos e obrigações emergentes das relações contratuais anteriores. Os promitentes vendedores obrigam-se a desistir do pedido na ação de posse judicial avulsa referida na alínea b) da cláusula após a celebração da escritura pública ora prometida, salvo se o promitente comprador pretender assumir a respetiva posição processual".

14. Com data de 21/12/1995, foi outorgada a escritura pública constante do instrumento de fls. 79-86 denominada "compra e venda", entre BB, os 3º a 19º réus e a Ré “BB Limitada” do qual consta, além do mais, o seguinte:

DISSERAM OS PRIMEIRO, SEGUNDA, TERCEIRA E QUARTO OUTORGANTES:

Que eles primeiro, segunda, terceira e os representados do quarto outorgante, são donos e legítimos possuidores das seguintes frações autónomas:

a) - fração autónoma destinada a armazém, designada pela letra “...”, correspondendo à sub-cave para armazém, com dois saguões, com entrada pelo número cinco das E... ',da P..., do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na C... R... dos S..., número dezanove e E... da P..., números, sete a nove, na freguesia de S..., concelho de L... (. .. ); descrito na T... Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número... .a freguesia de S... (..);

b) - fração autónoma destinada a armazém, designada pela letra "C", correspondente ao rés do chão, armazém com o número cinco das E... da P..., do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito nas E... da P..., números ... A e..., tornejando para a Avenida vinte e quatro de julho, número sessenta e seis, na freguesia de Santos (..) descrito na ... Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número ... da freguesia de Santos[…].

Que pela presente escritura e pelo preço global já recebido de DEZASSEIS MILHÕES E QUINHENTOS MIL ESCUDOS. vendem à representada do sexto outorgante as identificadas frações autónomas, sendo oito milhões e duzentos e cinquenta mil escudos, por cada uma das frações autónomas.

DISSE O QUINTO OUTORGANTE: Que presta o necessário consentimento à sua referida mulher para plena validade desta venda.

DISSE O SEXTO OUTORGANTE:

Que para a sua representada aceita a venda nos termos exarados e, que os imóveis ora adquiridos se destinam a revenda.”

15. A ré III, Lda. encontra-se matriculada na ...ª Secção da Conservatória do Registo Comercial de Lisboa sob o nº ---- de 30/03/1995, tem como objeto a compra e venda de propriedades, construção civil, de empreendimentos turísticos, restaurantes, pousadas, hotéis e estabelecimentos de natureza similar e exploração dos mesmos; como capital social o valor de 5.000.000$00; como sócios o Réu BB com uma quota de 4.250.000$00, a ré CC cônjuge do réu BB com uma quota de 500.000$00 e JJJ com uma quota de 250.000$00; como gerente o Réu BB; e como forma de obrigar a assinatura de um gerente.

16. Com data de 30-12-1994, foi outorgada a escritura pública constante do instrumento de fls. 328-329 denominada "compra e venda", e do qual consta, além do mais, o seguinte:

"compareceu como outorgante:

BB , o qual outorga como procurador com poderes para o ato, em representação de:

a) REALAR - EMPREENDIMENTOS URBANOS E TURÍSTICOS, LIMITADA (..), conforme procuração que ARQUIVO, adiante designada por REALAR; e

b) III, Lda. constituída hoje por escritura deste Cartório (..).

PELO OUTORGANTE NA QUALIDADE EM QUE OUTORGA FOI DITO:

Que livre de ónus ou encargos e pelo preço de SETE MILHÕES E QUINHENTOS MIL ESCUDOS, que declara já recebido, em nome da R..., vende à sociedade que representa, "III, Lda.", a fração autónoma designada pela letra "...", correspondente ao quarto piso - primeiro andar direito, um fogo com uma arrecadação no segundo piso cave, para habitação, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito no, lugar da R... das V..., Lote ..., na freguesia e concelho de Cascais, descrito na ... Conservatória do Registo Predial de C... sob o número três mil quinhentos e trinta e dois da dita freguesia de C... (..);

Que aceita para a sociedade "III, Lda.", a presente venda nos termos exarados, destinando-se a fração ora adquirida a REVENDA".

17. No dia 25/10/1988 a autora tomou posse da fração autónoma designada pela letra "...", com entrada pelo nº ... das E... da P..., do prédio urbano sito na C... R... dos S... ou C... de S..., nº ..., tornejando para as E... da P..., nº ... e nº ..., freguesia de S..., descrito na ....a Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o nº ..., da freguesia de S... e da fração autónoma designada pela letra "..." do prédio urbano sito nas E... da P..., nº ... a nº ..., tornejando para a Avenida ... de ..., nº ..., descrito na ....a Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o nº ..., da freguesia de S... (1)

18. As obras nas duas frações autónomas referidas no instrumento de fls. 32-35 eram as de adaptação a um novo bar-discoteca, ao qual foi dado o nome de "K..." e que viria a abrir ao público em dezembro de 1988 (2)

19. A autora gastou inicialmente a importância não apurada na implantação do referido estabelecimento de diversões (3)

20. A novidade do conceito de diversão criado pela autora e a forma de gestão implementada fizeram com que rapidamente esse local de entretenimento noturno ganhasse notoriedade no País e até no estrangeiro (4)

20-A Nos termos estipulados no acordo constante do instrumento de fls. 32-35 a autora entregou ao réu BB diversas prestações no total de 25.200.000$00 (5) - facto provado conforme decisão do Tribunal da Relação)

21.O êxito do "K..." esteve na base de várias propostas feitas à autora, tendo a autora aceitado uma delas e celebrou o acordo constante do instrumento de fls. 55-56 (6)

21-A Em 22-2-1994 a autora recebeu de OOO um cheque pré-datado no montante de 20.000.000$00 (7) ( facto considerado provado por decisão do Tribunal da Relação)

21-B Consta da escritura pública de compra e venda celebrada a 21-12-1995 ,junta de fls. 78/86, que “ pelo preço global já recebido de dezasseis milhões e quinhentos mil escudos, vendem à representada do sexto outorgante [BB] as identificadas frações autónomas, sendo oito milhões e duzentos e cinquenta mil escudos por cada uma das frações autónomas" (8)- ( facto considerado provado por decisão do Tribunal da Relação.

21-C Os réus conheciam, desde data anterior a 23-6-1995, que a discoteca K... funcionava nas frações de que eram donos (10)

22. A ré GG é divorciada e reformada, vivendo em Torres Vedras uma existência pacata, num pequeno casal, no campo, longe dos meios sociais frequentados pelos réus DD, EE , HH, II, LL, MM, NN, OO, PP, QQ, SS, TT, UU, VV, XX, ZZ, AAA, BBB, CCC FFF, GGG HHH (12)

23. Foram os gerentes da autora que se dirigiram ao Réu BB com a intenção de adquirir as frações autónomas (15)

Apreciando:

17. A autora AA-Hotelaria e Similares, S.A. propôs a presente ação invocando dois fundamentos tendo em vista obter a execução específica do contrato-promessa que celebrou com o réu BB:

- A simulação relativa (artigo 241.º do Código Civil) do negócio de compra e venda outorgado no dia 21-12-1995 entre os réus e III Lda., devendo, por isso, reconhecer-se a validade do negócio dissimulado, a compra e venda entre os réus e BB (pessoa singular) que tinha prometido vender à autora em 25-10-1988 as frações agora adquiridas pela escritura de 21-12-1995.

- A desconsideração da personalidade jurídica da sociedade III Lda., registada desde 30-3-1995 (fls. 89 dos autos) e dominada maioritariamente por BB que nela detém uma quota de 85% - as outras quotas de 10% e de 5% pertencem, respetivamente, à ré CC, mulher do réu BB, e a JJJ. Desconsideração fundada na circunstância de a intervenção da sociedade como compradora ter apenas por finalidade esconder o efetivo adquirente, o sócio BB, que, dessa forma, evitava sujeitar-se ao cumprimento do contrato-promessa que outorgara com a autora em 25-10-1988 por via do qual, alegando ser proprietário das frações em causa, se obrigou a vendê-las por escritura a realizar no dia 15-7-1990 (cláusula quarta desse contrato-promessa), escritura esta que não chegou a ser outorgada.

18. No que respeita à simulação implica esta a prova de um acordo entre declarante e declaratário com o intuito de enganar terceiros traduzido na divergência entre a vontade real e a vontade declarada (artigo 240.º do Código Civil).

19. A divergência consistiria em os vendedores terem declarado vender os imóveis à sociedade e esta declarado adquiri-los quando, na realidade, eles vendiam ao réu BB e este é que comprava para si os aludidos imóveis. Estaríamos, assim, face a uma das modalidades de simulação relativa, a simulação subjetiva ou dos sujeitos, em que se dá um conluio entre os dois sujeitos reais da operação e o interposto (acordo trilateral), que é um simples testa de ferro , um “ homem de palha” (Ver Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, pág. 470).

20. Assim, no caso vertente, a sociedade seria o testa de ferro porque os sujeitos reais do negócio de compra e venda eram o seu sócio BB e os demais intervenientes na escritura, proprietários das aludidas frações.

21. A dificuldade está em que os factos provados não permitem considerar provada a simulação.

22. Muito singelamente bastaria referir que o intuito de enganar terceiros não está provado face à resposta ao quesito 11º ( onde se perguntava: o acordo entre todos os réus teve como causa a intenção de enganar o autor?) não podendo o Supremo Tribunal de Justiça alterar a matéria de facto definida pelas instâncias judiciais ( ver artigo 722.º do C.P.C.). No sentido de que a intenção de enganar constitui questão de facto, veja-se o Ac. do S.T.J. de 1-6-1994 (Costa Raposo) B.M.J. 438-456 que ainda considera que constitui ónus da prova para o demandante o apuramento do intuito de enganar (artigo 342.º do Código Civil); vejam-se ainda os seguintes acórdãos demonstrativos de uma jurisprudência consolidada: Ac. do S.T.J. de 7-3-2002 (Ferreira de Almeida), revista n.º 4129/01 - 2ª secção, Ac. do S.T.J. de 9-5-2002 (Araújo de Barros) , revista nº 511/02 - 7ª secção, Ac. do S.T.J. de 21-1-2003 (Lopes Pinto), revista n.º 4233/02, Ac. do S.T.J. de 9-10-2003 (Oliveira Barros) (revista n.º 2536/2003) também na C,J., 3, pág 93, Ac. do S.T.J. de 18-12-2003 (Ferreira de Almeida),revista n.º 3794/03 - 2ª secção, Ac. do S.T.J. de 3-3-2005 (Ferreira de Almeida), P. 200/2005, Ac. do S.T.J. de 7-12-2005 (Pires da Rosa) , revista n.º 4646/04 - 7ª secção, Ac. do S.T.J. de 16-11-2006 (Bettencourt Faria) , revista 3584/06, Ac. do S.T.J. de 17-4-2007 (Silva Salazar), P. 702/2007, Ac. do S.T.J. de 8-10-2009 (Serra Batista) revista 4132/06.3TBVCT.S1

23. No entanto, se estiverem adquiridos nos autos, designadamente por via documental, factos que importem o entendimento de que todos os intervenientes na escritura sabiam que a intervenção da sociedade tinha apenas por objetivo enganar a autora, independentemente de a prejudicar - de enganar, e não de prejudicar, é o intuito de que fala a lei no artigo 240.º/1 do Código Civil - podem abrir-se as portas a uma intervenção do Supremo Tribunal face ao disposto no artigo 729.º/3 do C.P.C. Nada obsta a que o intuito de enganar possa ser considerado verificado, se não tiver sido expressamente quesitado, a partir dos demais factos provados, entendimento seguido no Ac. do S.T.J. de 22-1-2005 (Salreta Pereira), revista n.º 3247/05 - 6ª secção e também no Ac. do S.T.J. de 22-2-2011 (Fonseca Ramos), revista 1819/06.4TBMGR.C1.S1.

24. Ainda que o quesito haja sido formulado, não deve todavia o julgador alhear-se dos demais elementos de facto provados, pois as contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito (artigo 729.º/3 do C.P.C.) não devem limitar-se às contradições nas respostas aos quesitos, situação que é obviamente a mais comum, pois, atento o disposto no artigo 515.º do C.P.C. que impõe ao Tribunal tomar em consideração todas as provas produzidas, devem ser também considerados os factos que constam dos documentos que justifiquem um entendimento inequívoco.

25. Quer isto dizer que, com este âmbito, as proposições de facto, ditadas por essa leitura da matéria de facto adquirida nos autos, não devem ser consideradas factos novos obtidos por presunção judicial ( artigo 351.º do Código Civil) pois da presunção sempre há de ocorrer a revelação de um novo facto, o que é diverso da necessária asserção dimanada do facto adquirido nos autos integrado em documento.

26. Do exposto resulta que o não se ter provado o quesito pelo qual se visava saber se tinha havido o intuito de enganar terceiros, tal não dispensa o Tribunal de ponderar a restante matéria de facto, podendo surpreender-se uma realidade de facto adquirida nos autos que conduza a entendimento oposto.

27. Tudo isto para dizer ainda que, quando a recorrente sustenta, invocando razões de facto fundadas nos documentos juntos aos autos, que se deve considerar à luz dos factos provados que houve um acordo entre o referido BB, que interveio na escritura de compra e venda como representante da sociedade - note-se que a sociedade se obriga com a assinatura de um gerente e gerente da sociedade é apenas o próprio BB - e os demais réus que nela intervieram, visando precisamente o engano da autora e também o seu prejuízo, assim sucedendo, dizíamos, o Tribunal deve ponderar tais razões.

28. Quanto à existência de prejuízo, não há factos que demonstrem ter ele ocorrido. Seria porventura tal prejuízo evidenciado pela perda da valorização das frações resultante das obras realizadas e da exploração da discoteca que nelas foi instalada, o que a recorrente tem por evidente. No entanto, como se disse, para a lei basta o intuito de enganar, não o de prejudicar, razão por que a matéria de facto que pudesse ter sido alegada nesse sentido não teria relevância enquanto facto imprescindível ao reconhecimento da simulação; isto não quer obviamente significar que uma tal pretensão não possa ser cumulada: veja-se Ac. do S.T.J. de 29-5-2007 (Azevedo Ramos), P. 1334/2007 e C.J., 2, pág 98.

29. Com efeito, o intuito de enganar terceiros não exige a alegação e prova do prejuízo pois, como se refere no Ac. do S.T.J. de 23-9-1999 (Garcia Marques) B.M.J. 489-304, “ não é requisito da simulação a intenção fraudulenta, a intenção de prejudicar - é suficiente o propósito de criar perante outrem a aparência de um ato que, na realidade, não existiu entre os simuladores”

30. A autora sustentou, como se disse, que houve um pactum simulationis com o intuito de a enganar porque, quando foi outorgada a escritura de compra e venda, todos os demais intervenientes sabiam que a recorrente/autora ocupava a discoteca K..., instalada nas frações que BB prometera vender à autora em 25-10-1988 e sabiam que BB ainda não celebrara com a autora o contrato definitivo.

31. A escritura de compra e venda de 21-12-1995 foi celebrada em cumprimento do contrato-promessa outorgado no dia 23-6-1995 entre o réu BB e os demais RR identificados, reconhecendo os intervenientes deste contrato-promessa, por declaração exarada no próprio contrato-promessa, que as frações prometidas vender (frações “A” e “C” do identificado imóvel) se encontravam ocupadas pela sociedade Hotelaria Similares, SA ( ora autora) que explora a referida discoteca; mais reconheceram que os promitentes vendedores tinham instaurado ação judicial contra a sociedade Hotelaria e Similares, S.A. e reconheceram ainda que uma das frações prometida vender (fração “A”) tinha sido já objeto de contrato-promessa em 25-8-1983 e que o promitente comprador cedera a sua posição contratual à AA-Hotelaria Simileres.SA.

32. Ora desta realidade não resulta que os promitentes vendedores (do contrato-promessa de 23-6-1995: supra 12) soubessem que a dita sociedade AA.Hotelaria e Similares, S.A (aqui autora) já tivesse outorgado CP como promitente compradora em 25-10-1988 (ver 1 supra, nele figurando BB como promitente vendedor e proprietário que não era) com BB ( que veio a outorgar, como promitente comprador, contrato-promessa de compra e venda com os réus em 23-6-1995: ver supra 12) e que, alienando (escritura de 21-12-1995: 14 supra) as frações a III Lda. (ao abrigo da estipulação do CP de 23-6-1995 que conferia ao promitente comprador a faculdade de indicar outra pessoa como outorgante comprador), tivessem em vista criar a aparência de uma venda à sociedade III Lda., desse modo contribuindo para que BB

33. Não dispondo este Tribunal do contrato-promessa de 25-8-1983 por via do qual a agora autora se terá constituído por cedência da posição contratual como promitente compradora da fração “A” (escrevemos terá porque o réu BB, na contestação, afirma no artigo 55º que ele é que assumiu a posição contratual do promitente comprador no dito contrato-promessa de 25-8-1983) o mais que se pode considerar é que, outorgando escritura de compra e venda das aludidas frações a favor de BB, os promitentes vendedores, proprietários dessa frações, incorreriam porventura em incumprimento do aludido contrato-promessa de 25-8-1983, não dispondo, no entanto, este Tribunal, nem é questão que tenha de se ocupar, de elementos concretos para saber se efetivamente todos estavam vinculados a essa promessa e qual a situação da autora perante os proprietários das frações visto que ela ocupava a outra das frações, a fração “B”, sem que se mostre que o fizesse ao abrigo de traditio conferida pelos proprietários.

34. Por isso, porque no contrato-promessa outorgado em 23-6-1995, ficou estipulada a cláusula 2ª que diz que “ pelo presente contrato os promitentes vendedores prometem alienar e o promitente comprador promete adquirir, para si ou para quem vier a indicar, as frações descritas na cláusula 1ª” os promitentes vendedores, quando aceitaram outorgar a escritura de compra e venda com a sociedade III Lda., fizeram-no ao abrigo dessa cláusula e não porque tivessem em vista enganar a autora (terceiro) tanto mais que não se vê que interesse lhes adviria de celebrar o contrato de compra e venda com a sociedade III Lda. e não com o promitente comprador BB. Releve-se ainda como elemento sintomático da falta de conhecimento do contrato-promessa celebrado entre a autora e BB que o preço de venda das frações foi de 16.500.000$00 (escritura de 21-12-1995) enquanto que o preço de venda acordado no contrato-promessa celebrado entre a autora e BB em 25-10-1988 foi de 34.600.000$00.

35. BB é que tinha efetivo interesse em não outorgar a escritura de compra e venda em seu nome, pois, se o fizesse, ficaria obrigado a honrar o contrato-promessa que outorgara com a autora em 25-10-1988 num momento em que seguramente não era proprietário das frações contrariamente ao que declarou no contrato-promessa celebrado com a autora, sendo possivelmente apenas promitente comprador da fração “A” por cessão da posição contratual no dito contrato-promessa de 25-8-1983.

36. Atentemos nestes factos:

- BB outorga contrato-promessa de compra e venda com a autora em 25-10-1988, invocando ser proprietário das frações “A” e “C” do identificado imóvel sito nas E... da P... em Lisboa (cláusula primeira).

- BB entrega à autora (traditio) as frações “A” e “B” (ver cláusula 7ª: “ com a assinatura deste contrato, dá-se a tradição do referido imóvel, podendo o segundo outorgante e promitente compradora tomar posse do mesmo para aí realizar as obras de adaptação, e só estas, que entenda convenientes).

- BB do preço acordado de venda de 34.600.000$00, logo recebeu de sinal 1.200.000$00, acordando receber o remanescente em 21 prestações mensais sucessivas de 400.000$00 que são consideradas reforço do sinal (cláusula quarta parágrafo 1º)

- Mais ficou estipulado no contrato-promessa de 25-10-1988 que a escritura de compra e venda seria outorgada no dia 15-7-1990 e com a sua outorga pago o restante do preço, ou seja, 25.000.000$00 (cláusula quarta).

- Depois de a autora ter procedido à marcação de escritura pública de compra e venda com BB para 9-3-1994, decorrida já a data estipulada no contato-promessa para a sua realização e interpelado o promitente vendedor para designar data, BB informa em 7-3-1994 a autora de que não é proprietário das referidas frações ( ver 10 da matéria de facto supra).

- No dia 23-6-1995 BB outorga o mencionado contrato-promessa, na qualidade de promitente comprador, com os proprietários das frações, estipulando-se o preço de venda de 16.500.000$00 e estipulando-se ainda, como foi referido, que a escritura de compra e venda seria outorgada pelo promitente comprador ou por quem ele viesse a indicar ( cláusulas segunda e terceira).

- A escritura de compra e venda foi celebrada pelo preço de 16.500.000$00 no dia 21-12-1995 outorgando como comprador III Lda. sociedade representada no ato pelo gerente BB.

- A referida sociedade está registada desde 30-3-1995, dispondo BB de 85% do capital e sua mulher, também demandada, de 10% do capital, sendo BB sócio-gerente.

- A referida sociedade, anteriormente à escritura de 21-12-1995 por via da qual adquiriu as frações em causa nos autos, adquirira imóvel para revenda em 30-12-1994, dia em que se constituiu por escritura outorgada notarialmente ( fls. 328).

37. A autora, como se disse, pretende com a desconsideração ou levantamento da personalidade jurídica da sociedade alcançar o que não conseguiu alcançar pela via da também invocada simulação relativa, ou seja, que o contrato de compra e venda se haja por outorgado entre BB (como comprador) e os demais réus intervenientes (como vendedores).

38. Se a sentença de 1ª instância não atendeu a esta pretensão considerando que o referido instituto até este momento é desconhecido na ordem jurídica nacional, o Tribunal da Relação, assumiu outra perspetiva:

Na ausência de prova de que a sociedade tenha sido constituída com o propósito único ou principal de defraudar o direito da Aª, também não tem cabimento o pedido de desconsideração da personalidade jurídica da sociedade.

Esta situação representa uma construção jurídica visando impedir que a constituição de uma pessoa coletiva, com a inerente personalidade jurídica, seja efetuada com o propósito de eximir o devedor do cumprimento de obrigações já constituídas.

Como temos vindo a insistir, não se provou que a constituição da sociedade “BB Limitada” tenha tido um tal propósito até porque, visando a sua constituição a prática de uma atividade no domínio imobiliário, a sociedade logo a seguir à sua constituição adquiriu um imóvel em Cascais. Por outro lado, e sem querermos ser fastidiosos repetindo a mesma argumentação, apenas se provou que BB incumpriu a obrigação decorrente do contrato-promessa, nomeadamente quando interpelado para comparecer no cartório notarial para celebrar a escritura, num momento em que o não podia fazer, já que não era proprietário das frações.

39. O Tribunal da Relação não exclui a aplicação deste instituto; entende, porém, que a circunstância de a referida sociedade já ter exercido atos de atividade comercial não permite concluir que ela foi constituída para obstar a que BB outorgasse a escritura em seu nome.

40. Tal entendimento afigura-se correto mas o que está aqui em causa é saber se à luz dos factos provados deve ou não deve considerar-se que BB se serviu da referida sociedade que constituiu e controlava e só ele representava para, ocultando-se sob o manto da personalidade jurídica da sociedade, adquirir as frações, bem sabendo, apenas porque figurava como comprador a sociedade e não ele próprio, que, assim agindo, continuava o promitente comprador, aqui autora, impedido de lhe exigir a execução específica do contrato-promessa.

41. A desconsideração da personalidade jurídica é efetivamente um instituto não regulamentado na lei portuguesa, mas isso não significa que o nosso direito civil não disponha, na sua positividade, de regras fundamentais que o permitem acolher; pensemos, designadamente para o caso que estamos a tratar, no artigo 406.º/1 do Código Civil que afirma a princípio de que os contratos devem ser pontualmente cumpridos, ou seja, quem celebra um contrato-promessa de compra e venda, recebendo parte do preço a título de sinal e estipulando, desde logo, a data em que a propriedade será transmitida, não pode deixar, sob pena de incumprimento, de envidar todos os esforços para que, no momento fixado, esteja em condições de cumprir; o contrato-promessa outorgado por quem não é proprietário não é nulo pois não existe uma impossibilidade originária de cumprimento do contrato prometido, o que se verifica é que desse contrato promana necessariamente a obrigação de o promitente vendedor realizar os atos necessários tendo em vista a celebração da escritura definitiva o que passa obviamente pela aquisição da propriedade do bem prometido vender.

42. Mantendo-se o interesse do promitente comprador na outorga do contrato definitivo, ainda que esteja ultrapassado o momento em que as partes acordaram realizar a escritura de compra e venda, não deixa de se verificar uma situação de mora, posto que não haja incumprimento definitivo que ocorrerá quando o promitente vendedor declarar ou se evidenciar objetivamente que não pode ou não quer adquirir o bem prometido vender ou ainda quando for interpelado para o efeito sob cominação (artigo 808.º do Código Civil).

43. Ora, para além do invocado preceito, há ainda que entrar em linha de conta com os artigos 334.º e 762.º do Código Civil. O promitente vendedor está obrigado a adquirir a propriedade do imóvel a fim de a transmitir ao promitente comprador e, por isso, não pode, sob pena de grosseira violação do princípio da boa fé, querer beneficiar das vantagens que advêm da aquisição da propriedade e simultaneamente afirmar por essa via a sua vontade de incumprimento definitivo do contrato.

44. Por outras palavras: o réu BB, ocultando-se sob a sociedade que controla (homem oculto), tira proveito da aquisição das aludidas frações e ao mesmo tempo pratica ato revelador, e que lhe convém, de incumprimento definitivo - pois se o réu BB não adquiriu para si, podendo fazê-lo, os imóveis que prometeu vender é porque jamais quer cumprir o contrato-promessa que firmou com a autora.

45. Não se diga que esta situação é idêntica a outra qualquer situação de incumprimento, incluindo aquelas em que os promitentes vendedores, pela venda a terceiro da coisa prometida, criam uma situação de incumprimento definitivo.

46. É que, no caso vertente, revela-se que o incumprimento definitivo é consequência da aparência de um ato e não do ato real visto que o promitente comprador, querendo adquirir o imóvel, não podia deixar de o adquirir em seu nome; assim procedendo, estaria em condições de honrar o contrato-promessa que celebrou pelo que o incumprimento por intervenção da sociedade se integra no âmbito da abusiva utilização da personalidade coletiva.

47. Muito singelamente dir-se-á que o autor quer as vantagens da aquisição da propriedade dos imóveis sem as desvantagens inerentes a essa situação; quer adquirir a propriedade mas não quer cumprir aquilo a que o proprietário está obrigado por contrato-promessa.

48. A jurisprudência tem reconhecido o abuso da personalidade coletiva: assim, no Ac. do S.T.J. de 30-11-2010 (Fonseca Ramos), revista n.º 1148/03.5TVLSB.S1- 6ª secção onde se refere que “ a desconsideração ou levantamento da personalidade coletiva das sociedades comerciais - disregard of legal entity - tem na sua base o abuso do direito da personalidade coletiva […] e que a desconsideração, como instituto assente no abuso do direito - art. 334.º do CC -, tem em si abrangida a violação das regras da boa fé no interagir com terceiros, implica a existência de uma conduta censurável que só foi possível alcançar mediante a separação jurídica do ente societário - através da personalidade jurídica que a lei lhe atribui - e a pessoa dos sócios, para assim almejar um resultado contrário a uma reta atuação; ou ainda, o Ac. do S.T.J. de 21-2-2006 (Paulo Sá), revista n.º 3704/05 onde se menciona que, na vertente do abuso de personalidade, podem perfilar-se algumas situações em que a sociedade comercial é utilizada pelo(s) sócio(s) para contornar uma obrigação legal ou contratual que ele, individualmente assumiu.

49. Menezes Cordeiro diz-nos que “ o levantamento é um instituto de enquadramento, de base aparentemente ‘geográfica’, mas com todas as vantagens científicas e pedagógicas dele decorrentes. Guardadas as devidas distâncias, outro tanto se passa com a própria boa fé. Reunindo institutos de origens muito diversas - culpa in contrahendo, abuso do direito, alteração das circunstâncias, complexidade intraobrigacional e interpretação do contrato - a boa fé permitiu afeiçoá-los a todos, inserindo-os, de modo mais cabal, na complexidade do sistema”.

50. E prossegue o ilustre autor, justificando porque não se deve reconduzir o levantamento a cada um dos vários institutos jurídicos que a nossa lei civil acolhe: “ apesar da apontada fragmentação dogmática, apenas a ideia global de levantamento permite: alcançar novas e mais apuradas hipóteses de responsabilidade civil; obter perspetivas aprofundadas de interpretação normativa; conquistar vias mais finas de concretização da boa fé. Ainda que como ( mero) instituto de enquadramento, o levantamento tem uma efetiva eficácia dogmática: a natureza sistemática do pensamento jurídico a tanto conduz” (Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo III, Pessoas ,2004, pág. 646/648).

51. Uma dos grupos a que Menezes Cordeiro reconduz a pluralidade de situações justificativas do levantamento da personalidade é aquele em que se divisam “ situações de abuso do direito ou, se se preferir; de exercício inadmissível de posições jurídicas” (loc. cit, pág. 647).

52. Sobre o abuso da personalidade coletiva, Menezes Cordeiro refere ainda o seguinte:

o atentado a terceiros verifica-se sempre que a personalidade coletiva seja usada, de modo ilícito ou abusivo, para os prejudicar. Como resulta da própria fórmula encontrada, não basta uma ocorrência de prejuízo, causada a terceiros através de pessoa coletiva; para haver levantamento será antes necessário que se assista a uma utilização contrária a normas ou princípios gerais, incluindo a ética dos negócios. Sub-hipótese particular é a do recurso a ‘testas de ferro’ que autorizariam a procurar o real sujeito das situações criadas[…]. O abuso do instituto da personalidade coletiva é uma situação de abuso do direito ou de exercício inadmissível de posições jurídicas, verificadas a propósito da atuação do visado, através duma pessoa coletiva” (O Levantamento da Personalidade Coletiva no Direito Civil e Comercial, 2000, pág. 122/123).

53. Estas palavras, a nosso ver, ajustam-se em cheio ao caso que se nos depara pois, da matéria de facto, resulta que BB no seu exclusivo interesse fez figurar a sociedade que constituiu e que dominava na escritura de compra e venda para não aparecer como proprietário das frações, evitando cumprir aquilo que se tinha obrigado a cumprir.

54. Sustentando que o abuso da personalidade jurídica coletiva constitui categoria dogmática autónoma em relação ao abuso do direito, Ana Morais Antunes, considera que essa perspetiva “ abre portas à consideração de uma fonte de ilicitude ínsita à proibição do abuso da personalidade jurídica coletiva, para além e com independência das duas modalidades de ilicitude admitidas no direito comum” (“ O Abuso da Personalidade Jurídica Coletiva no Direito das Sociedades Comerciais” in Novas Tendências da Responsabilidade Civil, 2007, pág. 63). Veja-se ainda “Desdramatizando o Afastamento da Personalidade Jurídica (e da Autonomia Patrimonial” por Catarina Serra e “Desconsideração da Personalidade Jurídica - Sinopse Doutrinária e Jurisprudencial” por Armando Manuel Triunfante e Luís de Lemos Triunfante in Julgar, 9, respetivamente, pág. 111/130 e pág. 131/146).

55. Pedro Cordeiro, A Desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais, 2005, 2ª edição, Universidade Lusíada Editora define “ homem oculto” como “ aquele ( ou aqueles) - pessoa(s) singular(es) ou coletiva (s) - que pode (m) formar "de per si" a vontade social, desfuncionalizando a sociedade”. E salienta que o “ homem oculto só se apura […] em face de cada situação concreta”

56. No caso vertente, o levantamento da personalidade há de traduzir-se, sob pena de inutilidade, que se considere BB o efetivo interveniente na escritura de compra e venda, o que nos conduz a resultado idêntico àquele que se obteria pela prova da simulação relativa.

57. Isto evidencia, a nosso ver, a relevância deste instituto cuja intervenção se justifica designadamente em situações de marcado abuso da personalidade coletiva como é a que está em apreço e em que a intervenção de outros institutos não se afigura viável, pois só pela desconsideração da personalidade jurídica da sociedade compradora (natureza subsidiária) é possível que o oculto comprador seja atingido pela luz da verdade e do Direito.

58. Finalmente, e no tocante à execução específica do contrato-promessa, nenhuma objeção se suscitou, aliás compreensivelmente, pois, entregue à promitente compradora há largos anos as frações em causa, recebido o valor das prestações, impondo-se ao réu BB a aquisição das frações para honrar as suas obrigações, constituiria muito provavelmente manifesto abuso do direito do cônjuge opor-se à alienação, invocando, o que não fez, o disposto no artigo 1682.º-A/1, alínea a).

59. Estamos face a questão não suscitada à qual apenas nos referimos para que não subsista dúvida quanto ao entendimento do Tribunal quanto a este ponto no caso concreto, pois, acompanhando-se as considerações de Abrantes Geraldes, temos que em determinadas circunstâncias pode revelar-se ilegítimo o recurso a preceitos que frustrem direitos do promitente comprador “sem que outros, de maior amplitude, se lhe oponham” (“Execução Específica de Contrato-Promessa de Compra e Venda Celebrado apenas por um dos Cônjuges” in Lex Familiae, Revista Portuguesa de Direito da Família, Ano 1, Nº 1, 2004, pág. 95/106, designadamente pág. 100).

60. Assim, e a título meramente exemplificativo,

a ilegitimidade da invocação da falta de intervenção ou de consentimento pode ser o resultado da prova isolada ou conjugada de factualidade que se traduza no seguinte: […]o cônjuge do promitente vendedor manifestou, de forma expressa ou tácita, a sua concordância com a outorga do contrato-promessa; ou, então, desde a data da celebração do contrato decorreu um significativo período de tempo que permitiu criar na contraparte a convicção de que seria celebrado o contrato definitivo” (Abrantes Geraldes, loc. cit., pág. “Execução Específica de Contrato-Promessa de Compra e Venda Celebrado apenas por um dos Cônjuges” in Lex Familiae, Revista Portuguesa de Direito da Família, Ano1, Nº 1, 2004, pág. 101).

61. Ora, no caso em apreço, o contrato-promessa de compra e venda cuja execução específica se pretende e está viabilizada mercê da integração das frações prometidas comprar no património de BB e mulher e do qual advieram para o património do casal as quantias pagas pelo preço acordado, tal contrato-promessa é de 25-10-1988.

62. É, pois, manifesto que, decorridos tantos anos e não tendo sido invocado desconhecimento de todas estas ocorrências, não pode deixar de se reconhecer a aceitação tácita da mulher à transmissão da propriedade a favor da autora, nenhuma objeção tendo sido por ela suscitada a este propósito tanto aos termos dos contratos-promessa em que interveio o marido, como à constituição da sociedade com domínio do marido, seu gerente, que adquiria imóveis para revenda.

63. Fica-nos ainda uma última questão que advém da circunstância de , antes de ser proferida sentença de 1ª instância, não ter sido fixado prazo para a consignação em depósito do preço por ter entendido o Tribunal que a apreciação desse pedido estava prejudicada face à decisão assumida nos autos ( ver fls. 1344); significa isto que o Tribunal entendeu que a notificação para esse efeito deve suceder e não preceder a decisão sobre execução específica. Não tem sido este o entendimento da jurisprudência, afigurando-se que a decisão acompanhou a posição de Almeida e Costa in R.L.J., Ano 133.º, pág. 254 e segs. Assim, por força do caso julgado formal ( artigo 672.º do C.P.C.), tal prazo há de ser fixado, sob cominação de improcedência da ação nos termos do artigo 830.º/5 do Código Civil, pelo tribunal de 1ª instância, transitada em julgado que esteja a presente decisão.

Concluindo:

I- Justifica-se o levantamento da personalidade coletiva de sociedade que outorgou escritura de compra e venda em 21-12-1995, constatando-se que essa sociedade era mero testa de ferro do oculto comprador, seu sócio dominante com 85% do capital, considerando-se, por via do levantamento ou desconsideração da personalidade dessa sociedade, celebrado o contrato entre o oculto comprador e os demais intervenientes na compra e venda.

II- O abuso da personalidade coletiva da sociedade revela-se pela circunstância de que, com a intervenção dela, e não do seu sócio maioritário - homem oculto - na escritura de 1995, pretendia impedir-se que os imóveis adquiridos se integrassem no património desse sócio que, muitos anos antes (1988), outorgara contrato-promessa de compra e venda com traditio desses mesmos imóveis (apesar de ao tempo não ser deles ainda proprietário), sujeitando-se, se não se acobertasse em 1995 sob o manto da personalidade coletiva da “ sua” sociedade, ao pedido de execução específica (artigo 830.º do Código Civil) por parte do promitente comprador de 1988, atenta a mora em que há muito incorria o promitente vendedor.

Decisão: concede-se parcialmente a revista, julgando-se, pelas razões expostas, outorgado o contrato de compra e venda de 21-12-1995 não com a sociedade compradora, mas com BB, aqui 1º réu, como comprador, e com os demais intervenientes, como vendedores; ordena-se o cancelamento do registo predial nos termos indicados na alínea c) do pedido constante da petição; reconhece-se a validade do contrato-promessa celebrado no dia 25-10-1988 e o incumprimento do promitente vendedor, ora 1º réu (pedido deduzido na alínea e); pela presente decisão consideram-se produzidos os efeitos da declaração negocial do promitente vendedor faltoso, ora réu BB, referente à promessa titulada pelo contrato-promessa de 25-10-1988 logo que efetuada em conformidade com a lei o depósito da parte do preço ainda não paga nos termos assinalados; nega-se a revista no que respeita à condenação dos réus intervenientes na escritura de 21-12-1995.

Custas no Supremo e nas instâncias fixando-se as dos 1º e 2º RR em 4/5 e as da A. em 1/5 do total.

Lisboa, 10 de janeiro de 2012,

Salazar Casanova (Relator)

Fernandes do Vale

Marques Pereira