Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B4055
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: OLIVEIRA VASCONCELOS
Descritores: NAVEGAÇÃO MARÍTIMA
NAVIO
ACIDENTE MARÍTIMO
LIMITE DA INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: SJ20071127040552
Data do Acordão: 11/27/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
1. A denominada Convenção de Bruxelas (Convenção Internacional Sobre o Limite de Responsabilidade dos Proprietários dos Navios de Alto Mar) concluída em Bruxelas em 10 de Outubro de 1957, encontra-se em vigor em Portugal.
2. Aplica-se os navios de pesca costeiros
3. A má condução de um navio não integra o conceito de “culpa pessoal do proprietário” pois quando este entrega a sua direcção a um profissional, a eventual “culpa in elegendi” não pode ser considerada como “culpa pessoal”.
4. A aplicação concreta da Convenção de Bruxelas não viola a Constituição da República Portuguesa.
5. O exercício do direito por parte dos requerentes não pode ser considerado como um abuso de direito.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Em 03.09.16, no Tribunal Marítimo de Lisboa, AA e mulher BB, CC e mulher DD e Mútua dos Pescadores - Sociedade Mútua de Seguros, requereram a constituição de um Fundo de Limitação de Responsabilidade no montante de 8.267,41 Euros, pretendendo limitar a sua responsabilidade a esse montante em relação aos pedidos de indemnização resultantes de perdas e danos emergentes da abalroação entre as embarcações de pesca denominadas “Meireles Novo” e “Paz da Vida”, ocorrida ao largo da costa portuguesa.

Por decisão de 03.09.19, proferida a folhas 63 e seguintes, essa pretensão foi liminarmente admitida e deferido o pedido, tendo sido declarada a constituição de um Fundo de Limitação de Responsabilidade no referido valor.

Por despacho de 03.10.22 e após o depósito da quantia fixada, foi declarado constituído o Fundo.

Inconformados, os requeridos EE e FF vieram deduzir recurso – folhas 89 – que foi recebido como de agravo, com subida deferida – folhas 99 e 140.
Apresentaram alegações e respectivas conclusões – folhas 111 e seguintes.
Os recorridos contra alegaram – folhas 120 e seguintes.

Em sede de reclamação de créditos a reconhecer e a satisfazer proporcionalmente pelas forças do referido Fundo, foram considerados reclamados, ao abrigo do disposto no art. 8º, nº 1, do Decreto 49.029, de 26 de Maio de 1969, os créditos que se pretendiam fazer valer contra os ora requerentes no âmbito da acção declarativa de condenação que se encontrava pendente no Tribunal Marítimo, sob o n.º 1/2002.

Tal acção, apensada aos presentes autos, contém os seguintes elementos:
- A “Companhia de Seguros Fidelidade – Mundial, S.A.” propôs esta acção (com o nº 1/2002) contra os ora requerentes pedindo a condenação solidária dos mesmos no pagamento da quantia global de Esc. 34.460.000$00, acrescida de juros de mora vincendos, desde a citação até integral pagamento, sendo a Ré Seguradora até ao limite da respectiva apólice.
- Para tanto, a A. Seguradora “Fidelidade” alegou que tinha celebrado contrato de seguro do ramo marítimo (casco e responsabilidades), pelo valor global de Esc. 34. 460.000$00, com os proprietários da embarcação “Paz da Vida”, tendo esta sido perdida em virtude de abalroação e afundamento imputável exclusivamente ao mestre da embarcação “Meireles Novo” (Réu CC).
- Em cumprimento do contrato de seguro a A. liquidou aos seus segurados a quantia de Esc. 34.460.000$00, ou seja, o valor do capital.
- E assim, assiste à A, por sub-rogação contratual e legal, o direito de reclamar dos responsáveis pela perda da embarcação, os RR., o pagamento da quantia despendida em consequência do ressarcimento dos danos sofridos pelos seus segurados pelo afundamento da embarcação, nos termos agora peticionados.

A Ré “Mútua dos Pescadores” contestou a acção alegando que a abalroação se ficou a dever a caso puramente fortuito e que não há direito a indemnização por parte de qualquer dos navios envolvidos – cf. fls. 89.
Mais alegou que o contrato de seguro invocado pela A. não cobre os danos emergentes de abalroamento culposo, mas tão-somente o abalroamento fortuito, a que acresce o facto que, de acordo com a apólice, o seguro está limitado ao valor de Esc. 31.040.000$00.

Os restantes RR. vieram igualmente contestar a demanda, alegando, em síntese, que a abalroação foi fortuita e que o mestre da embarcação “Paz da Vida” contribuiu para o afundamento da mesma ao não cuidar de a manter a navegar durante a operação de reboque – cf. fls. 304.

Os proprietários da embarcação “Paz da Vida” - EE e FF - intervieram espontaneamente na referida acção, a título principal, e demandaram igualmente os ora Requerentes pedindo a condenação dos RR. AA e mulher BB, e da R. “Mútua dos Pescadores–Sociedade Mútua de Seguros” – esta última nos termos das responsabilidades transferidas pelo contrato de seguro – no pagamento da quantia global de Esc. 47.086.770$00, acrescida de juros de mora vincendos desde a citação até integral pagamento – cf. fls. 347.
Para tanto, os intervenientes alegaram que, em resultado do naufrágio, perderam a embarcação “Paz da Vida”, segura pela “Fidelidade”, e sofreram, com tal facto, danos patrimoniais emergentes e lucros cessantes que não se encontravam cobertos por qualquer seguro e que ainda se encontram por indemnizar.

Designada data para realização de julgamento, no início da respectiva audiência foi determinada, no âmbito deste processo, a suspensão da instância até ser decidido o requerimento de constituição de um Fundo de Limitação de Responsabilidade que entretanto dera entrada.
Foi também determinado pelo Tribunal “a quo” a apensação da acção ao processo de constituição do referido Fundo.

Realizada audiência de discussão e julgamento, foi, em 06.02.27, proferida sentença na qual o Tribunal “a quo” julgou:
1) Quanto ao abalroamento
- que se verificou um problema grave no plano da vigilância visual e, secundariamente, no plano da velocidade;
- a distracção dos vigias da embarcação “Meireles Novo” não permitiu a detecção atempada da presença de uma embarcação fundeada com os faróis regulamentares;
- a partir de certo momento, mercê da referida distracção, a velocidade praticada por tal embarcação acabou por se revelar excessiva, porque não permitiu qualquer manobra para evitar o abalroamento quando os vigias se aperceberam da presença da embarcação “Paz da Vida” e da eminência da colisão;
- tal omissão dos vigias da “Meireles Novo” é manifestamente culposa por estar em causa a inobservância de regras de cuidado e de navegação que estavam especialmente obrigados a observar;
- o abalroamento não pode ser considerado fortuito porque houve uma conduta náutica ilícita e culposa da tripulação do “Meireles Novo” que conduziu directamente a esse abalroamento;
- assim, o respectivo armador responde pelos danos derivados dessa omissão nos termos em que o comitente responde pelos actos do comissário;
- estando em causa a colisão entre dois navios governados pelos respectivos mestres, não é aplicável ao caso a presunção legal de culpa, quanto ao mestre do “Meireles Novo”, por força do disposto no art. 5º do Decreto-Lei nº 384/99, de 23 de Setembro;
- não foi provada nenhuma actuação ilícita dolosa ou negligente do capitão da “Meireles Novo”;
- não há qualquer culpa imputável à embarcação “Paz da Vida” ou a qualquer outro navio, pelo que, tendo sido a abalroação causada por culpa exclusiva de um dos navios os prejuízos sofridos terão de ser suportados pelo navio abalroador – o “Meireles Novo”(art. 665º do Cod. Com.);
- o armador responde pelas faltas cometidas, quer sejam do capitão, quer da tripulação ou pelo próprio armador;
- a culpa do navio basta-se com a culpa da tripulação, emergindo então a responsabilidade objectiva do armador.
2) Quanto à responsabilidade
Em face do que antecede o Tribunal “a quo” decidiu que:
- o proprietário da embarcação “Meireles Novo” é responsável pelos prejuízos causados pela abalroação;
- havendo culpa do navio abalroador isso não significa que haja culpa pessoal do armador, porquanto:
- haverá culpa pessoal do armador, por exemplo, nas situações de falta de navegabilidade do navio;
- já não haverá culpa pessoal do armador nas situações em que as faltas sejam exclusivamente imputáveis à tripulação, ainda que o armador seja responsável pelas mesmas;
- a abalroação não resultou de culpa pessoal do proprietário da embarcação “Meireles Novo”.
E concluiu na sentença nos seguintes termos:
* assiste ao proprietário da “Meireles Novo” o direito de limitar a sua responsabilidade em relação aos pedidos de indemnização reclamados, nos termos em que já foi decidido na fase liminar da presente acção (art. 1º, nº 1, da Convenção Internacional sobre o Limite de Responsabilidade dos Proprietários de Navios de Alto Mar, assinada em Bruxelas, em 10 de Outubro de 1957);
* ao proprietário do navio não poderá deixar de ser equiparado o seu segurador quando lhe seja reclamado o pagamento de um crédito sujeito a limitação de responsabilidade, na medida em que o segurador tenderá a gozar dos mesmos privilégios de que dispõe o segurado perante o respectivo credor;
* a Requerente Seguradora “Mútua” não pode opor à credora “Fidelidade” a falta de cobertura do contrato de seguro celebrado por esta última com os proprietários da embarcação “Paz da Vida”, na medida em que não constitui matéria de defesa tudo o que se prenda com a forma do contrato, sendo interpretado ou executado pelas partes;
* acresce, a tudo isso, que houve inequivocamente lugar a uma sub-rogação de fonte voluntária, para além da sub-rogação legal prevista no art. 442º do Cod. Com. e art. 589º do CC.
3) Quanto ao Fundo de Limitação de Responsabilidade:
- Atento o que antecede o Tribunal “a quo” procedeu, por fim, à repartição do fundo de limitação de responsabilidade constituído no montante de 8.267,41 Euros, e considerou como reconhecidos e verificados os seguintes créditos:
a) Seguradora “Fidelidade – Mundial” : 154.826,87 Euros (70,18%)
b) EE e FF : 54.681,24 Euros (24,79%)
c) EE : 7.070,00 Euros (3,20%).

Inconformados com as decisões proferidas nos autos, foram interpostos dois recursos de apelação:
- um, pelos requerentes AA e CC;
- outro, pelos intervenientes EE e FF.
Ambos os recorrentes apresentaram alegações e respectivas conclusões.
No recurso interposto pelos intervenientes, houve contra alegações por parte da Mútua dos Pescadores.

Por acórdão da Relação de Lisboa de 07.04.19, foi
- negado provimento ao agravo;
- julgada procedente a apelação interposta por AAe CC;
- julgada improcedente a apelação interposta pelos intervenientes EE e FF.

Novamente inconformados, estes deduziram a presente revista, apresentando alegações e respectivas conclusões.
Os recorridos contra alegaram.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

As questões

Tendo em conta que
- o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº3 e 690º do Código de Processo Civil;
- nos recursos se apreciam questões e não razões;
- os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido
são os seguintes os temas das questões propostas para resolução:
A) – Vigência da Convenção de Bruxelas
B) – Aplicação da Convenção de Bruxelas aos navios de pesca costeiros
C) – Aplicação da Convenção de Bruxelas em consonância com o artigo 12º do Decreto-lei 202/98, de 10.10
D) – Constituição do Fundo no caso de culpa do proprietário
E) – Inclusão dos danos nos previstos na Convenção
F) – Inconstitucionalidade da aplicação da Convenção
H) – Abuso de direito

Os factos

São os seguintes os factos que foram dados como provados nas instâncias:
1.A A. Companhia de Seguros Fidelidade – Mundial, SA. é uma empresa de seguros, dedicando-se ao exercício da actividade industrial de seguros (A).
2. Em 12 de Janeiro de 2001, a propriedade da embarcação de pesca costeira “Paz da Vida” PE-99-C – com 27,30 toneladas de arqueação bruta, 17,94 metros de comprimento fora a fora, 4,64 metros de boca e casco em madeira – encontrava-se registada a favor dos intervenientes EE e FF na Conservatória do Registo Comercial de Peniche.
3. Em 10 de Novembro de 2000, por referência à referida embarcação, a A. Companhia de Seguros Fidelidade (Mundial), SA e os intervenientes EE e FF subscreveram o "contrato de seguro do ramo marítimo cascos e responsabilidades" que se encontra titulado pela apólice n.º 70/7015289 e respectivas condições gerais e especiais (cujas cópias constam a fls. 10-14 e 67-72 dos autos e cujo conteúdo se considera aqui integralmente reproduzido – a apólice em questão apresenta o seguinte teor relevante “(…) capitais garantidos (…) capital total embarcação: PTE 31.040.000,00 (…).) (C).
4. Em 12 de Janeiro de 2001, a propriedade da embarcação de pesca costeira “Meireles Novo” PE-2240-C – com 123,30 toneladas de arqueação bruta, 23 metros de comprimento fora a fora, 6 metros de boca e casco em aço – encontrava-se registada na Capitania do Porto de Peniche a favor do R. AA(K).
5. Em 31 de Julho de 1998, por referência à referida embarcação, a R. “Mútua dos Pescadores – Sociedade Mútua de Seguros” e o R. AA subscreveram o "contrato de seguro do ramo marítimo cascos e responsabilidades" que se encontra titulado pela apólice n.º 25779 e respectivas condições gerais e particulares (cujas cópias constam a fls. 287-301 dos autos e cujo conteúdo se considerou integralmente reproduzido) (M).
6. Em Janeiro de 2001, a embarcação “Paz da Vida” encontrava-se em boas condições de navegabilidade (tendo-lhe sido atribuído o certificado de navegabilidade n.º 62/2000, datado de 26 de Julho de 2000, emitido pela Capitania do Porto de Lisboa).
7. A referida embarcação navegava então sob o comando do interveniente EE – inscrito com a categoria de mestre costeiro na Capitania do Porto de Peniche sob o n.º 8127 – que levava consigo mais seis tripulantes (E)
8. Cerca das 23 horas, do dia 11 de Janeiro de 2001, a embarcação “Paz da Vida” fundeou na posição 39° 08’ N e 009° 32' W.
9. Após ter fundeado, tendo para o efeito lançado um ferro com corrente e passado duas espias pelos escovéns, o mestre da “Paz da Vida” desligou os faróis de navegação e acendeu o farol de fundeado no topo do mastro de vante e o farol de iluminação do convés e distribuiu o pessoal por quartos de vigia que fixou (Q1 e Q2).
10. Cerca das 3 horas e 50 minutos, o vigia LF avistou por estibordo a embarcação “Meireles Novo”, rumo à “Paz da Vida”, mostrando ambos os faróis de borda (Q3).
11. Embora a “Paz da Vida” estivesse a mais de 6 milhas da costa, era possível ver as luzes de terra (Q39)
12. Chamado imediatamente o mestre da “Paz da Vida”, que se dirigiu para a casa do leme, este accionou uma luz rotativa denominada "farol de relâmpagos", situada no topo da casa do leme e um projector manual de busca, mantendo acesos os faróis referidos em 9) e, ao mesmo tempo, deu instruções ao vigia para que acordasse o pessoal que descansava e chamasse o motorista para que este arrancasse imediatamente com a máquina principal (Q4 e Q5).
13. Atenta a sua estrutura em aço, a embarcação “Meireles Novo” produz um sinal maior nos radares que as outras embarcações em madeira com a mesma superfície exposta (Q30).
14. Uma vez que se encontrava imobilizada, era melhor a visibilidade da “Paz da Vida” do que a da “Meireles Novo” (Q31).
15. A rota da “Meireles Novo” não foi desviada (Q41).
16. A manobra mais adequada para evitar a colisão seria o desvio da rota e não "dar à ré com toda a força" (Q42).
17. O desvio da rota da “Meireles Novo” podia ser feito em poucos segundos e, dadas as dimensões da “Paz da Vida”, uma distância de menos de 50 metros seria suficiente para aquela passar ao lado (Q44),
18. O desvio em questão podia ser feito em cerca de 20 segundos e a uma distância de cerca de 46 metros (Q44).
19. O vigia e depois o mestre da “Paz da Vida” convenceram-se, durante alguns minutos, de que a outra embarcação iria desviar a rota (Q45).
20. Como a embarcação “Meireles Novo” prosseguisse na sua rota em direcção à “Paz da Vida”, e estando iminente o embate, o mestre desta saltou para o convés da embarcação à popa, onde procurou libertar as bóias de salvação (Q6).
21. E, por isso, quando a colisão se deu, ainda o motorista da “Paz da Vida” tentava pôr em marcha o motor (Q46).
22. Cerca das 4 horas do dia 12 de Janeiro de 2001, na referida posição, a embarcação “Meireles Novo”, que então navegava à velocidade de 7 nós/hora, embateu na “Paz da Vida” (G).
23. A embarcação “Meireles Novo” embateu com a respectiva proa na secção média de estibordo da “Paz da Vida”, tendo esta, em consequência da colisão, perdido a casa do leme (H).
24. O mestre da “Paz da Vida” saltou para o varandim da “Meireles Novo” pela amura de BB, enquanto esta ainda se encontrava encanteirada sobre a “Paz da Vida” (Q14).
25. O mestre da “Paz da Vida” foi o primeiro de todos os tripulantes a sair da embarcação, sem ter avaliado completamente em que estado é que a mesma se encontrava e das eventuais possibilidades de salvamento que oferecia (Q15).
26. Os seis tripulantes restantes abandonaram de seguida a “Paz da Vida” para uma jangada pneumática, sendo posteriormente recolhidos pela “Meireles Novo” (Q16).
27. O mestre da “Paz da Vida” não chegou a ligar o motor principal até ao abalroamento (Q33).
28. Após o embate, a “Paz da Vida” ficou sem energia eléctrica e completamente às escuras (Q37).
29. O R. CC comandava a embarcação “Meireles Novo” sob as ordens e no interesse efectivo dos RR. AAe BB (L).
30. No momento que precedeu o abalroamento e quando este se deu, fazia-se sentir vaga suportada por ondulação de oeste, de 3 a 4 metros, e vento dos quadrantes oeste fresco a muito fresco (Q17).
31. As condições de tempo e mar não eram impeditivas de que o mestre da “Meireles Novo” fizesse rumo (Q7).
32. Próximo das 4 horas do dia 12 de Janeiro de 2001, o mestre, que descansava no seu camarote aberto directamente para a ponte, foi chamado de urgência por um dos vigias de quarto (JV) (Q11).
33. Foi então o mestre informado pelo vigia de que estavam na iminência de colidir com outra embarcação que se apresentava muito próxima na proa e que emitia sinais luminosos com um projector (QI2).
34. O mestre levantou-se logo e correu para a ponte (Q13).
35. A embarcação “Meireles Novo”:
a) estava equipada com tripulação conforme com o respectivo Certificado de Lotação e Segurança;
b) navegava com o radar de EB ligado, operando na escala das 6 milhas;
c) tinha ligado os transmissores/receptores de HF e VHF e toda a restante aparelhagem e equipamento se encontravam em perfeitas condições de operacionalidade;
d) e mantinha dois vigias na ponte, os pescadores JJ e JV (Q25).
36. Por referência à embarcação “Meireles Novo”, a Delegação Marítima de Sesimbra emitiu o certificado de navegabilidade n.º 66/2000, datado de 28 de Agosto de 2000 (cuja cópia consta a fls. 153 e cujo conteúdo se considera aqui integralmente reproduzido) (N)
37. A embarcação “Paz da Vida” acabou por se afundar após ter sido rebocada durante algum tempo pela embarcação “Meireles Novo”.
38. Durante o período em que foi rebocada, a “Paz da Vida”, ainda que exposta ao mar atravessado por BB, comportou-se aparentemente bem e não apresentou sinais de afundamento iminente (Q19).
39. O afundamento deu-se pelas 8.17 horas, na posição GPS 39º 11’.308 N e 09º 30'. 454 W (Q22).
40. Antes do afundamento, a “Paz da Vida” sofreu uma volta de mar que a inclinou toda para BB, começando a submergir de alheta, ficando com o bico da proa de fora, até se afundar completamente (Q24).
41. Para além da embarcação “Paz da Vida”, os intervenientes EE e FF perderam todos os equipamentos e artes, bens de tripulantes, gasóleo, óleo e pescado (Q47).
42. À data do sinistro, a “Paz da Vida” tinha a bordo 7 caças de redes de emalhar, cada uma com 30 redes, de valor não apurado, e ainda 1.000 covos com o valor global de 8.000.000$00, encontrando-se estes fundeados para a pesca (Q48).
43. Foi efectuada uma rocega para recuperar os covos com autorização do R. AANovo, tendo a embarcação "Carlina" recuperado 464 covos (Q49).
44. Os intervenientes EE e FF gastaram a quantia de 600.000$00 com a realização da rocega (Q50).
45. Os sete tripulantes da “Paz da Vida” perderam haveres (colchão, roupa de cama, vestuário, roupas de oleado e botas, baús, telemóveis e relógios) com o valor médio individual de 100.000$00 (Q51)
46. Aquando do naufrágio, a embarcação tinha cerca de 400 litros de óleo e 4.000 litros de gasóleo (Q52 e Q53).
47. Estavam a bordo 20 caixas destinadas a isco (Q55).
48. A embarcação perdeu as capturas que teria feito nessa viagem e que lhe proporcionariam um ganho de 300,00 Euros (Q56).
49. E perdeu o interveniente EE desse produto cerca de € 70,00, correspondente a 2 quinhões, e o Interveniente FF cerca de € 35,00 correspondente a um quinhão (Q57).
50. Para a construção de nova embarcação destinada a substituir a que se afundou, os Intervenientes EE e FF foram forçados a uma paralisação que durou, pelo menos, cerca de um ano (Q58).
51. Na viagem que antecedeu o afundamento dos autos, a “Paz da Vida” registou capturas cuja venda permitiu obter um produto bruto de 377.852$00 (Q60).
52. Deste produto bruto resultou, retiradas as despesas da viagem, segurança social e seguro de acidentes de trabalho, o montante de 320.000$00 (Q61).
53. De acordo com os costumes de Peniche para este tipo de embarcações, 50% daquele valor líquido cabe à armação, e o restante é para os quinhões (Q62).
54. Ainda de acordo com tais costumes, os quinhões são estabelecidos da seguinte forma:
a) mestre — 2 ;
b) motorista — 1,5 ;
c) cada um dos restantes tripulantes — 1 (Q63).
55. A lotação da embarcação “Paz da Vida” é de 7 tripulantes, incluindo o mestre (Q64).
56. Durante o ano de 2000, a embarcação “Paz da Vida” realizou 104 marés (Q65).
57. O Interveniente FF era tripulante da “Paz da Vida” (Q66).
58. Mercê da aludida paralisação, os Intervenientes José Anacleto e FF, na qualidade de armadores, deixaram de auferir cerca de € 30.000,00 (Q67).
59. E também durante esse período de paralisação, pela perda dos quinhões pessoais, nas viagens não efectuadas, o interveniente EE sofreu um prejuízo de cerca de 7.000,00 Euros e o interveniente FF sofreu um prejuízo de cerca de E 3.500,00 Euros (Q70 e Q71).
60. A A. pagou o montante de PTE 34.460.000,00 aos Intervenientes EE e FF a título de "indemnização relativa à perda total da embarcação segura “Paz da Vida” (o recibo cuja cópia consta a fls. 73 dos autos, e cujo conteúdo não foi impugnado, contém ainda a seguinte declaração dos Intervenientes: “(…) pelo recebimento desta importância nos damos por completamente indemnizados, pagos e satisfeitos e sem direito a qualquer posterior reclamação no âmbito deste processo de sinistro, subrogando a Companhia de Seguros Fidelidade, S.A., em todos os direitos, acções ou recursos (…)” (J).
62. O Interveniente EE subscreveu e apresentou o protesto de mar — cuja cópia certificada consta de fls. 269 dos autos apensados (datado de 11/01/2001) e cujo conteúdo se considera aqui integralmente reproduzido — junto da Capitania do Porto de Peniche - sabendo que o mesmo não correspondia à verdade na parte em que se escreveu "(…) o espaço de tempo compreendido entre o avistamento do barco “Meireles Novo” e a colisão é um espaço de tempo muito curto porque na altura precisa estava muita chuva (…) as condições de tempo eram de visibilidade bastante reduzida (...) chovia bastante e pouca visibilidade (...)" (Q76).


Os factos, o direito e o recurso

A) – Vigência da Convenção de Bruxelas

No acórdão recorrido entendeu-se que a denominada Convenção de Bruxelas (Convenção Internacional Sobre o Limite de Responsabilidade dos Proprietários dos Navios de Alto Mar) concluída em Bruxelas em 10 de Outubro de 1957, se encontrava em vigor em Portugal.

Os recorrentes entendem o contrário e isto porque essa vigência dependia das verificação da condição prévia de terem decorrido seis meses sobre o depósito de pelos menos dez instrumentos de ratificação, dos quais cinco, pelo menos, de Estados que tenham arqueação igual ou superior a 1.000.000 t brutas, condição que não se mostraria cumprida em qualquer aviso ou publicação em Diário da República.

Não têm razão.

A citada Convenção de Bruxelas foi aprovada para ratificação pelo Decreto Lei 48.036, de 14 de Novembro de 1967, introduzida no direito interno português pelo Decreto Lei 49.028, de 26 de Maio de 1969, alterada pelo Protocolo de 21 de Dezembro de 1979, aprovado para ratificação pelo Decreto Lei 6/82, de 21.01.

De acordo com o disposto no nº1 do artigo 11º da citada Convenção, esta entraria vigor “seis meses após a data de depósito de pelo menos dez instrumentos de ratificação, dos quais cinco, pelo menos, tenham sido depositados por Estados que tenham uma arqueação igual ou superior a 1.000.000 t brutas”.
E de acordo com o nº2 do mesmo artigo “para cada Estado signatário que ratificar a convenção depois da data do deposito do instrumento de ratificação determinando a entra em vigor tal como está estipulado no parágrafo 1) deste artigo, a presente Convenção entrará em vigor seis meses depois do depósito de tais instrumentos”.
E finalmente, de acordo com a parte final do artigo 12º da mesma Convenção, esta “entrará em vigor em cada Estado aderente seis meses depois da data do depósito do respectivo instrumento de adesão, mas nunca antes da data da entrada em vigor da Convenção, tal como ficou estabelecido no artigo 11, parágrafo 1)”

Ora, em 27 de Maio de 1968 foi publicado no então Diário do Governo, I série, um aviso emanado do Ministério dos Negócios Estrangeiros – Direcção dos Negócios Económicos, datado de 18 de Maio de 1968, com o seguinte teor:

Por ordem superior se torna público que foi depositado em 8 de Abril de 1968, junto do Governo Belga, o instrumento de ratificação por parte de Portugal da Convenção internacional sobre o Limite de Responsabilidade e dos Proprietários de Navios de Alto Mar, concluída em Bruxelas em 10 de Outubro de 1967 e aprovado para ratificação, com as reservas previstas nas alíneas a), b) e c) do nº 2 do Protocolo de assinatura, pelo Decreto-Lei nº 48.036. de 14 de Novembro de 1967.
Nos termos do nº1 do artigo 11º da Convenção, a mesma entra em vigor em 31 de Maio de 1968 entre os seguintes países:
Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, incluindo ilha de Man, Bahamas, Bermudas, territórios antárcticos britânicos, Honduras Britânicas, ilhas Salomão, Falkland e dependências, Fidji, Gibraltar; ilhas Gilberto e Ellice, Hong-Kong. ilha Maurícla, Seychelles, ilhas Virgens, bailiados de Guernesey e de Jersey, ilhas Caimão, Domíníca, Granada, Monserrate, Santa Lúcia, S. Vicente, ilhas Turcas e Caicas e Novas Hébridas (condomínio franco-britânico).
França, incluindo Novas Hébridas (condomínio franco- brítânico).
Espanha.
Singapura.
Ghana,
Suécia.
Finlândia.
Argélia.
Noruega.
Dinamarca.
República Malgaxe,
República Arabe Unida.
Países Baixos.
Suíça.
Guiana.
Irão.
República Democrática do Congo.
Israel.
Nos termos do n.º2 do artigo 11, a Convenção entra em vigor em relação a Portugal seis meses depois da data do depósito do instrumento de ratificação, ou seja em 8 de Outubro de 1968.
Além de Portugal, prevaleceram-se das reservas previstas nas alíneas a), b) e e) do n." 2 do Protocolo de assinatura da Convenção os seguintes países: França, Espanha, Ghana, Suécia, Países Baixos e Israel. Prevaleceram-se das reservas previstas nas alíneas a) e b) o Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, Singapura e Guiana. Prevaleceram-se das reservas previstas nas alíneas b) e c) a Finlândia, a Noruega e a Dinamarca.”

Temos, pois que ao contrário do que afirmam os recorrentes, foi publicado o Aviso respeitante à entrada em vigor na ordem internacional da referida Convenção de Bruxelas, com a declaração das condições prévias, decorrendo dele que em relação a Portugal essa entrada se verificou em 8 de Outubro de 1968.

Por outro lado e como acima foi dito, tal Convenção passou a vigorar na ordem interna portuguesa por força do disposto no Decreto-lei 49.028, já referido.
Vigência esta que, mais tarde e quanto ao estabelecido sobre os limites da responsabilidade, foi reafirmada no artigo 12º do Decreto Lei 202/98, de 10.07, que estabeleceu o regime da responsabilidade do proprietário do navio e disciplinou a actuação das entidades que o representam.
No Decreto 49.029, também de 26 de Maio de 1969, estabeleceu-se o Regulamento do Processo de Execução da aludida Convenção.

Em 21 de Dezembro de 1979 foi feito em Bruxelas um Protocolo que alterou a Convenção de Bruxelas.
Tal Protocolo foi aprovado, para ratificação, pelo Decreto Lei 6/82, de 21.01, tendo sido ratificado em 30 de Abril de 1982, conforme Aviso publicado no Diário da República, 1ª série, nº166, de 82.07.21 e tendo entrado em vigor no dia 6 de Outubro de 1984, conforme Aviso publicado no Diário da República, 1ª série, nº294, de 84.12.21.

B) – Aplicação da Convenção de Bruxelas aos navios de pesca costeiros

Entendem os recorrentes que a Convenção de Bruxelas, bem como o disposto no Decreto Lei 49.028, acima citado, não se aplicam ao caso em apreço, pela própria qualidade dos navios envolvidos, que são ambas embarcações costeiras e actividades de pesca, uma vez que naquela Convenção apenas se previa a sua aplicação a navios de alto mar e naquele Decreto Lei apenas não se previa a sua aplicação a navios de pesca ou outras embarcações que não transportassem passageiros.
Cremos que não têm razão.

A referida Convenção de Bruxelas veio aperfeiçoar um instituto jurídico regulado em Convenções anteriores e que se traduz na possibilidade de o proprietário de um navio constituir um fundo de limitação de responsabilidade afecto ao pagamento de quase todos os prejuízos patrimoniais e não patrimoniais emergentes de um mesmo.
Trata-se de um benefício para o proprietário desse navio e, simultaneamente, uma garantia para os credores de indemnização por “danos corporais” e por “danos materiais”.
Assim, não se vê motivo para na referida Convenção se fazer qualquer distinção entre navios de alto mar e navios costeiros, navios de pesca e navios de passageiros.
De qualquer forma e como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 92.04.02 “in” Colectânea de Jurisprudência 1992 II 159, na Convenção não se faz uma distinção clara entre “classes de navios” que estariam abrangidas por ela, sendo que até no seu artigo 8º se concede às partes contratantes de determinar quais outras classes de navios que seriam equiparadas aos “navios de alto mar” – “navires de mer” no texto original em francês da Convenção.
Esta tradução não nos parece, no entanto, adequada.

Em primeiro lugar, porque em francês “navires de mer” tanto pode significar “navios de mar”, como “navios de alto mar” ou como simplesmente “navios”.
Em segundo lugar, porque tendo em conta que esta última tradução assenta na letra da versão original da Convenção, entendemos que face às razões da constituição do Fundo a que ela se refere e acima sumariamente enunciadas, não encontra justificação para a distinção propugnada pelos recorrentes.
O interesse dos proprietários dos navios em limitar a sua responsabilidade e o interesse dos seus credores na constituição do Fundo existe independentemente de os navios serem classificados de “alto mar” ou não.
Não existem quaisquer elementos que nos permitam concluir que as partes contratantes na referida Convenção tenham querido excluir dela os navios ou embarcações de pesca costeira e apenas tenham querido incluir as embarcações do alto mar.
E estas ainda com a restrição de apenas de transporte de passageiros, como defendem os recorrentes, baseando-se no disposto no artigo 2º do Decreto-lei 49.028.
É que, quanto a este ponto e por um lado, o que o legislador nacional fez foi apenas fixar o regime a que ficavam sujeitos os navios com menos de 300 t de arqueação, ao abrigo da Reserva constante do protocolo de Assinatura e não limitar o conceito de navios aos navios de passageiros.
Por outro lado, o referido legislador não fala em “navios de passageiros”, mas apenas em “navios com menos de 300 t de arqueação que não estejam autorizados a transportar mais de doze passageiros”, o que é coisa bem diferente.
Em terceiro lugar, a qualificação do navio como “navio de mar” apenas tem interesse, para o efeito de excluir aplicação da limitação da responsabilidade do proprietário aos navios de rio ou aos engenhos de mar que não são navegáveis.
Finalmente, há que dizer que não fazendo a lei qualquer distinção entre as diversas qualificações dos navios, não deve o intérprete fazer essa distinção.
No sentido do exposto, ver René Rodiére “in” Traité Géneral de Droit Maritime, 1976, nºs 479 e 487.

C) – Aplicação da Convenção de Bruxelas em consonância com o artigo 12º do Decreto-lei 202/98, de 10.10

Entendem os recorrentes que do disposto no referido artigo não se pode concluir, como se concluiu no acórdão recorrido, pela aplicabilidade da Convenção de Bruxelas, pois tal pressuporia que era aplicável aos navios costeiros de pesca e ter a referida Convenção entrado em vigor, pressupostos estes que se não verificavam.
Não têm razão.
Como ficou acima decidido, aquando da apreciação das respectivas questões, tais pressupostos verificam-se efectivamente, pelo que perde sentido a questão posta.
Nos termos do disposto naquele artigo 12º “além das limitações da responsabilidade admitidas nos tratados e convenções internacionais vigentes em Portugal, e quando não estejam em causa pedidos de indemnização por estes abrangidos, o proprietário do navio pode restringir a sua responsabilidade ao navio e ao valor do frete a risco, abandonando-os aos credores, com vista à constituição de um fundo de limitação da responsabilidade”.
Na verdade e como bem refere a recorrida Mútua dos Pescadores nas suas contra alegações, o que o referido artigo 12º procurou fazer foi estender a limitação da responsabilidade do proprietário do navio a outros casos para além dos casos contemplados pelas normas da Convenção.
Pressupondo, evidentemente, que as regras desta Convenção vigoram em Portugal, quer como direito interno, quer enquanto direito internacional, pois doutra forma não se entenderia que naquele artigo 12º houvesse referência a tratados e convenções.

D) – Constituição do Fundo no caso de culpa do proprietário

Entendem os recorrentes que, nos termos da parte final do nº1 do artigo 1º da Convenção, não é permitida a constituição do Fundo no caso de culpa do proprietário, entendendo-se incluídos nesta expressão o capitão que representa o armador no navio e que é o responsável pela sua gestão náutica.
E, no caso concreto em apreço, tendo o albarroamento ocorrido por culpa exclusiva do comando do “Meireles Novo”, a constituição desse Fundo não era, pois, permitida.
Também não têm razão.

O referido normativo exclui a possibilidade de o proprietário do navio poder limitar a sua responsabilidade se o motivo que deu origem ao pedido tiver resultado de sua “culpa pessoal”.
Ora, como se diz na sentença da 1ª instância que se debruçou sobre as causas da abalrroação, esta ficou a dever-se a culpa da tripulação do “Meireles Novo”, não a culpa pessoal do proprietário, o que só ocorreria, por exemplo, nas situações de falta de navegabilidade do navio ou, dito de uma forma mais geral, quando o proprietário tivesse contribuído para a ocorrência do sinistro.
A má condução de um navio não integra o conceito de “culpa pessoal do proprietário”, pois quando este entrega a sua direcção a um profissional, a eventual “culpa in elegendi” não pode ser considerada como “culpa pessoal”.
Concluímos, pois, que a albarroação não resultou de culpa pessoal do proprietário do “Meireles Novo”, pelo que não ocorre, no caso concreto em apreço a limitação em causa.

E) – Inclusão dos danos nos previstos na Convenção

Entendem os recorrentes que os danos cujo ressarcimento é pedido na presente acção e por si reclamados – perdas de bens e lucros cessantes – não estão incluídos na limitação de responsabilidade prevista na Convenção de Bruxelas, que a restringe apenas à morte e lesões corporais e bens que se encontrem a bordo, não sendo a perda do navio incluída quando resulte de albarroamento.
Também não têm razão.

Como facilmente se constata pelo texto da alínea b) do nº1 do artigo 1º da referida Convenção, uma das causas da responsabilidade do proprietário que pode ser invocada para a sua limitação consiste na existência de “perdas ou danos de quaisquer outros bens” que não a “morte ou lesões corporais de qualquer outra pessoa ou infracções a quaisquer direitos causados pela acção, negligência ou dolo de qualquer pessoa a bordo do navio”.
Os recorrentes vieram pedir indemnização quer por perdas e danos de “bens a bordo do navio” – covos perdidos e haveres do recorrente FF – quer por “outros bens” ou “infracções a quaisquer direitos” – como os lucros cessantes e os quinhões e capturas perdidos.
Os pedidos estão, pois, incluídos na alínea b) do nº1 do artigo 1º da Convenção e referem-se exclusivamente a “danos materiais”, considerados no nº2 do artigo 1º desta por oposição aos “danos corporais”.

F) – Inconstitucionalidade da aplicação da Convenção

Entendem os recorrentes que a aplicação da Convenção de Bruxelas ao caso concreto em apreço violaria a Constituição da República Portuguesa na medida em que a limitação da responsabilidade do proprietário do navio era excessiva, fazendo com que os credores recorrentes vissem frustrada a possibilidade de satisfação da totalidade do seu crédito, havendo assim ofensa ao direito da propriedade privada estabelecido no artigo 62º daquela Constituição, assim como ao direito ao trabalho e à justa indemnização pelos prejuízos decorrentes dessa violação por terceiros, estabelecidos nos artigos 58º e 59º deste Diploma Fundamental.
Cremos que também não têm razão.

Como já ficou dito a Convenção de Bruxelas veio a aperfeiçoar um instituto jurídico já regulado em convenções anteriores e que se traduz na possibilidade do proprietário do navio constituir um fundo de limitação de responsabilidade afecto ao pagamento de quase todos os prejuízos patrimoniais e não patrimoniais emergentes de um mesmo acidente, a menos que o motivo que deu origem ao referido pedido tenha resultado de culpa pessoal do proprietário.

No artigo 62º da Constituição estabeleceu-se que “a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição”.
Ou seja, o direito de propriedade não é garantido em termos absolutos, mas sim dentro dos limites e com as restrições previstas e definidas noutros lugares da Constituição e na lei, quando a Constituição possa para ela remeter ou quando se tratar de revelar limitações constitucionalmente implícitas.
Desta garantia constitucional do direito de propriedade privada, há-de extrair-se, seguramente, a garantia (constitucional também) do direito do credor à satisfação do seu crédito.
E este direito há-de, naturalmente, conglobar a possibilidade da sua realização coactiva à custa do património do devedor, como de resto se prescreve no artigo 601º do Código Civil, que preceitua que “pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especiais estabelecidos em consequência da separação de patrimónios” – neste sentido, o acórdão do Tribunal Constitucional nº494/94, proferido no processo nº163/93, datado de 94.07.12 e publicado no Diário da República II série, páginas 12792 e seguintes.
Ora, o regime da limitação da responsabilidade dos proprietários e um navio estabelecido na ordem internacional pela Convenção de Bruxelas e na ordem interna pelo citado Decreto Lei 40.028 reconhece a possibilidade de esse proprietário limitar essa responsabilidade, em responsabilidade derivada, no caso concreto em apreço, da albarroação de outro navio.
Não se trata de uma restrição que faça correr um credor comum um risco desproporcionado de ver totalmente frustrada a possibilidade de satisfação do seu crédito e assim, que acabasse por afrontar o disposto no nº1 do artigo 62º da Constituição da República Portuguesa acima transcrito, com era o caso da suspensão imposta pelo nº1 do artigo 300º do Código do Processo Tributário, na redacção original.
Antes e pelo contrário, trata-se, além do mais, de criar condições para o credor, senão pela sua totalidade, pelo menos parte, ver assegurado o pagamento do seu crédito, pela constituição de uma massa afecta ao pagamento das suas dívidas.

Quanto ao direito ao trabalho e à justa retribuição, não vemos em como a constituição do Fundo pode impedir alguém de obter emprego ou de exercer uma actividade profissional, ou de procurara trabalho, ou de ser tratado com igualdade no acesso a quaisquer encargos, ou de exercer efectivamente a actividade correspondente ao seu posto de trabalho, ou de se mater no posto de trabalho alcançado.
Ou ainda violar qualquer dos direitos dos trabalhadores referidos no artigo 59º da Constituição da República Portuguesa.
As consequências do naufrágio é que podem ter influência sobre alguns desses direitos.
Não a constituição do Fundo, principalmente tendo em conta a sua vertente de garantia patrimonial.

H) – Abuso de direito

Entendem os recorrentes que a utilização da limitação da responsabilidade dos proprietários dos navios estabelecida na Convenção de Bruxelas e no Decreto Lei 49.028 configura um manifesto abuso de direito porque excede os limites impostos pela boa fé, designadamente a confiança dos armadores quando celebram um contrato de seguro e pretendem que danos por eles causados sejam indemnizados pela companhia, como os bons costumes e o fim social e económico do Direito, que não pode, de modo algum, ter sido o de tornar inexistente ou quase a responsabilidade civil de culpado de lesão grave a terceiro.
Cremos que também não têm razão.

Dispõe-se no artigo 334º do Código Civil que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Exige-se, pois, um excesso.
E que este seja manifesto.
Ora, no caso em apreço, os requerentes limitaram-se a exercer um direito que lhes era concedido pelos normativos acima referidos, não havendo quaisquer factos que nos permitam concluir que esse exercício foi manifestamente excessivo dos limites referidos no artigo 334º acima transcrito.
Acresce que da última parte do disposto no artigo 601º e do artigo 602º, ambos do Código Civil, se constata a possibilidade da limitação da responsabilidade do devedor a certos bens, o que indicia que o legislador não considerou de ordem pública a exequibilidade de todo o património do devedor.

Finalmente, para a compreensão daquela limitação de responsabilidade, não pode deixar de se ter em conta a especificidade da actividade comercial marítima, cujo risco, a não poder ser limitado, poderia por em causa a sua sobrevivência.

É que, conforme se refere num artigo publicado na revista da Ordem dos Advogados do Québec, Canadá, Tomo 62, Outono de 2002, págs. 387 e segs., com o título “La responsabilité en matière maritime”, disponível em http://www.barreau.qc.ca/pdf/publications/revue/2002-tome-62-2-p387.pdf, desde há muito que o direito marítimo concede ao proprietário do navio o privilégio de limitar o montante da sua responsabilidade relativamente aos danos resultantes da condução do navio, seja esta culposa ou negligente.
Esta regra antiga e comum nos países com tradição marítima tem visado, acima de tudo, a promoção do desenvolvimento do transporte marítimo.
Na verdade, desde há muito que se vem considerando que um armador não tem que indemnizar integralmente aqueles que sofrerem prejuízos na sequência de um abalroamento, funcionando a tonelagem do navio como o critério limitador da responsabilidade.
Podemos, evidentemente, interrogar-nos sobre a pertinência da conservação de tal privilégio – que, aliás, não é exclusivo do propietário do navio -sobretudo num contexto de grande liberalismo económico, onde a concorrência é exacerbada.
Mas essa conservação é crucial para a indústria seguradora, na medida em que a determinação de um limite máximo de responsabilidade permite ao segurador avaliar com maior certeza a extensão do risco a segurar.
E também é crucial para os proprietários dos navios, na medida em que, se não houvesse a possibilidade dessa limitação, corriam o risco de ficar arruinados sempre que ocorresse qualquer catástrofe marítima.
A origem do instituto, conforme nos dá conta René Rodiére, na obra acima citada, capitulo II, está na inicial limitação da responsabilidade do proprietário de um navio ao seu valor e ao da carga, por via do abandono do mesmo aos seus credores.
Tal sistema de limitação paulatinamente veio a ser abandonado em virtude da alteração das estruturas comerciais, como o surgimento de garantias hipotecárias, a multiplicidade e continuidade das viagens dos navios, a multiplicação de acidentes com o mesmo navio, etc.
E foi substituído por um sistema em que o proprietário podia liberar a sua responsabilidade constituindo um fundo de limitação calculado em dinheiro.

Concluímos, pois, que o exercício do direito por parte dos requerentes não pode ser considerado como um abuso de direito.

A decisão

Nesta conformidade, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pelos recorrentes.


Lisboa, 27 de Novembro de 2007


Oliveira Vasconcelos (relator)
Duarte Soares
Santos Bernardino