Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7235/08.6TBCSC.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: BOA FÉ CONTRATUAL
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 12/02/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVOGADO O ACÓRDÃO RECORRIDO
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / LOCAÇÃO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 227.º, 334.º, 762.º, 1032.º.
Sumário :

1. A invocação da figura do abuso de direito, independentemente do efeito que daí se pretende extrair, pressupõe sempre a identificação de um “direito” formalmente reconhecido a quem dele se arroga, não devendo confundir-se com a eventual violação das regras da boa fé contratual.

2. A violação das regras da boa fé contratual não decorre automaticamente do facto de o senhorio não ter informado o actual arrendatário que o locado, cedido há mais de 20 anos para o exercício do comércio a um anterior arrendatário, não detinha nem detém licença de utilização para esse efeito, a qual não foi exigida aquando da outorga do contrato de arrendamento perante o notário, nem nos sucessivos trespasses do estabelecimento comercial.

A.G.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I - AA

demandou

BB,

CC,

DD,

EE,

FF

e

GG,

pedindo a condenação destes no pagamento de uma indemnização pelos prejuízos sofridos, a título de danos emergentes e lucros cessantes, no valor de € 46.750,00 e, ainda, no pagamento de danos não patrimoniais que computa em € 5.000,00.

Alegou, em síntese, que os RR. celebraram com HH, perante o notário, um contrato de arrendamento, em 20/4/82, no qual declararam ser donos do armazém, lado esq., localizado na cave, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito no Pai do Vento, designado por lote 4, em Cascais.

Do contrato de arrendamento consta que o armazém se destinava a comércio de pronto a vestir, tendo sido exibidos à Notária a caderneta predial urbana emitida pela Repartição de Finanças de Cascais, em 20/8/1980, e tendo a Sra. Notária verificado que o local arrendado se destinava a comércio desde 29/12/80.

Por sucessivos contratos de trespasse, o estabelecimento foi transmitido ao A. que é o actual arrendatário do espaço, que nele sempre exerceu, à vista de todos, o comércio de pronto-a-vestir.

Acontece que quando procurou realizar o trespasse foi confrontado com a falta de licença de utilização para o fim a que fora destinado, já que o espaço faz parte integrante de uma fracção destinada a habitação, o que frustrou o negócio, o que foi causa de danos de que pretende ser ressarcido.

Os RR. contestaram e alegaram que nenhuma das escrituras que foi celebrada relativamente ao locado faz menção à licença de utilização, sendo certo que tal licença não era essencial à validade do contrato aquando da celebração do arrendamento do espaço.

Efectuado o julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente.

No recurso de apelação a Relação julgou a acção parcialmente procedente e condenou os RR. no pagamento da quantia de € 30.246,37.

Recorreram os RR. de revista e concluíram que a matéria de facto provada não permite que se conclua pela existência de abuso de direito, não havendo lugar a qualquer indemnização, por falta de ilicitude, de danos e de nexo de causalidade.

Houve contra-alegações.

Cumpre decidir.

II – Factos provados, numa sequência lógica:

1. Os RR. adquiriram, em 1975, por compra a Construções e Empreitadas ..., Ldª., e registaram a seu favor todas as fracções que compõem o prédio constituído em propriedade horizontal, sito no Pai do Vento, Abuxarda, Avenida de Sintra, Lote 4, freguesia de Alcabideche (actualmente sito na Rua das Calçadas, n° 432,  Pai  do  Vento, Abuxarda, Alcabideche, Cascais).

2. Os 1ºs RR. levaram a registo, em 4-11-75, pelas Ap. 19, Ap. 18, Ap. 20 e Ap. 15 e inscreveram, respectivamente, a favor do 1º a fracção C e H e ainda a favor das filhas menores, da 3ª R., - EE - as fracções D e E, da 4ª - DD - as fracções F e G e a favor da 2ª as fracções I ,  J e L.

3. O 5º R. levou a registo pela Ap. 16/041175 e inscreveu seu favor a aquisição da fracção B e a 6ª R. levou a registo pela Ap. 17/041175 e inscreveu a seu favor através da inscrição G-1, a fracção A.

4. Para além de efectuarem obras, os RR. inscreveram as duas arrecadações na Respectiva Repartição de Finanças como dois armazéns e apresentaram, a 19-9-80, junto da Câmara Municipal de Cascais um projecto de legalização da alteração ao projecto de arquitectura inicial, o qual foi indeferido, não tendo os condóminos proprietários da totalidade do capital investido no prédio conseguido legalizar a alteração do destino que pretendiam dar às duas arrecadações em causa.

5. Os RR. celebraram com HH um contrato de arrendamento, em 20-4-82, conf. doc. fls. 62 a 66, em que declararam, perante Notário, serem "donos e legítimos possuidores do armazém lado esq. do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, situado no Pai do Vento, designado por lote 4, Alcabideche, Cascais, e inscrito na matriz sob o artigo quatro mil setecentos e vinte e dois" e que "... o referido armazém está localizado na cave do mencionado prédio”.
6. Constam do contrato de arrendamento os seguintes termos:
PRIMEIRO - O arrendamento é feito pelo prazo de seis meses e teve o seu início tem um de Janeiro do ano corrente, considerando-se renovado por iguais e sucessivos períodos.
SEGUNDO - O armazém destina-se a comércio de pronto a vestir.
TERCEIRO - A renda mensal é de doze mil escudos mensais, e será paga em casa dos senhorios ou na de quem legalmente os representar, no primeiro dia útil do mês anterior àquele que disser respeito"
QUARTO - O arrendatário não poderá fazer quaisquer obras ou benfeitorias no local arrendado, sem autorização dos senhorios, dada por escrito, e as que assim se fizerem, ficarão, desde logo, a pertencer ao prédio, sem que possa por elas, exigir-se indemnização."

7. No documento em causa exarou o Notário que lhe foi exibida "caderneta predial urbana emitida pela Repartição de Finanças de Cascais, em 20-8-80, e pela mesma Repartição actualizada, pela qual verificou os elementos matriciais atrás mencionados", sendo ainda considerada a "fotocópia do duplicado da declaração a que se refere o art. 116º, do Código da Contribuição Predial" pela qual o Notário verificou que "o local arrendado se destina a comércio, desde 29-12-80".

8. A cave em questão fora participada à Rep. de Finanças de Cascais em Janeiro de 1981, sendo declarado pelo 1º R., na qualidade de administrador, que o espaço foi arrendado pela 1ª vez em 29-12-80 e que se destinava a “armazém”.

9. HH passou a utilizar, a partir de Janeiro de 1982, o local para o exercício da sua actividade de comércio de pronto-a-vestir, nunca lhe tendo dado qualquer outro uso e sendo o único e exclusivo detentor do acesso ao mesmo.

10. O espaço correspondente à cave direita foi arrendado pelos RR. como "armazém".

11. Em 1-9-87, perante Notário, HH e mulher declararam trespassar ao A. o estabelecimento comercial sito no locado, sendo exibido ao A. documento onde constava que o locado sempre esteve inscrito na Repartição de Finanças de Cascais como armazém.

12. O A. recebeu também o espaço locado e exerceu nele, com sua mulher, a actividade de comércio de pronto-a-vestir, com conhecimento de todos os RR.

13. Em 8-11-88, perante Notário, o A. e mulher declararam trespassar a II Alta Costura Ldª, (representada por aqueles) o estabelecimento comercial sito no locado.

14. Em 3-12-98, perante Notário, II Alta Costura, Ldª, (representada pelo A. e mulher) declararam trespassar ao A. o estabelecimento comercial sito no locado.

15. Os recibos de renda emitidos pelos RR. continham uma das seguintes expressões para caracterizar aquele espaço: "atelier cave esq.", "atellier", "atelier", "c/v esq.", "cave esq/", "armazém", "armazém cave esq.'", "armazém c/ esq., "armazém esq.", ou "loja" e as cartas de comunicação de aumento de renda contém expressões como "estabelecimento de que somos proprietários", "armazém", "atelier cave esq." e "cave".

16. O A. deixou de exercer a actividade como empresário em nome individual, por suspensão temporária, em 30-9-04, tendo retomado tal actividade em 2008

17. O A. recebeu uma carta datada de 18-6-08, pela qual o 1º R. lhe comunicou que o locado estava integrado na fracção autónoma C, correspondente ao r/c do prédio urbano sito na R. das Calçadas, n° 432, antigo lote 4, Pai do Vento, Cascais, conf. doc. fls. 115 e 116.

18. O A. desconhecia que o espaço em causa fizesse parte integrante da fracção C, pois que tal menção não constava do contrato de arrendamento celebrado em 1982 com HH e nunca tal situação foi abordada no decurso dos 20 anos de contacto arrendatício entre os RR. e o A.

19. O A. marido só no Verão de 2008 declarou o reinício de actividade, após lhe ter sido comunicada a intenção de venda da fracção em que se integra o local para poder exercer o direito.

20. O 1º R. sempre se apresentou ao A. como sendo o “administrador” (expressão que consta da maioria dos recibos de renda) de todo o edifício, o qual, posteriormente, conforme alegava, fazia contas com os restantes proprietários (co-RR.).

21. O A. soube, entretanto, que os RR., que antes consideravam armazém o espaço da cave dtª, passaram a considerá-lo como sendo a arrecadação do r/c A, com vista à sua alienação a terceiros e à semelhança do que ocorreu com o espaço relativo à cave esq., também esta cave foi participada à Repartição de Finanças de Cascais com o fim de "armazém".

22. No mesmo documento, vem referido que o armazém se encontrava arrendado a JJ, que exercia da actividade de montagem de tectos falsos e, logo em 20-4-82, foi arrendado, mediante escritura, a LL.

23. Da leitura da descrição registral do imóvel verifica-se que o 1º R. foi o único e exclusivo proprietário do rés-do-chão C, pelo menos, desde o ano de 1975 e até à sua venda em 2008.

24. Existem 11 fracções autónomas, cada uma com uma arrecadação e, além das 11 arrecadações (com cerca de 3 m2), existem mais 2 arrecadações, com as áreas de 56 m2 e 100 m2, referentes à cave dtª e à cave esq.ª, respectivamente.

25. O A. sempre soube que a cada uma das 11 fracções autónomas do edifício pertencia uma arrecadação na cave e essas 11 arrecadações (onde se inclui uma arrecadação afecta ao r/c esq.) existem de modo identificado em zona situada após um corredor sito a sul do locado.

26. O imóvel locado, pela sua área (cerca de 50,00 m2), quer ainda pelo facto de ter janelas para o exterior, campainha própria e caixa de correio individual, bem como contador próprio individual de energia eléctrica e água, não configura uma arrecadação como as restantes 11 anteriormente aludidas.

27. Aliás, sempre existiram dois armazéns, lojas ou ateliers na cave distintos dos verdadeiros espaços de arrecadação, sendo uma delas o locado em causa.

28. Os RR. não ignoravam que o espaço em causa se encontrava afecto a uma das fracções autónomas habitacionais do edifício constituído em propriedade horizontal.

29. O A. acordou com MM nos termos que constam do contrato de trespasse junto por cópia a fls. 129 a 131; tal contrato produziria os seus efeitos em 1-1-09 e foi acordado pelo valor de € 25.000,00, a pagar no momento da entrega da chave do imóvel.

30. MM é reformado (ex-bancário) desde o ano de 2003, sendo conhecido também pelos seus dotes musicais e sendo a sua família conhecida em Sintra pelo negócio/actividade das peles, actividade essa com que aquele MM contactou em estabelecimento de um seu avô e pela qual se interessou.

31. O A. tem montada estrutura física no espaço em causa, composta por diverso mobiliário e maquinaria de costura para tecido e pele, encontrando-se ali também diversas peças de vestuário, em tecido e pele, bem como peles para confecção e uma prensa de colagem de entretelas, bancada de engomados e mobiliário e outro material de escritório.

32. O A. investiu na actividade exercida no locado, com a convicção de que poderia trespassar o seu o negócio, como anteriormente sucedeu com o estabelecimento, ao longo de anos.

33. O A. investiu cerca de € 17.500,00 em maquinaria, equipamento e utensílios de pronto-a-vestir para o estabelecimento.

34. Tais equipamentos, se vendidos isoladamente, valerão menos do que se vendidos em conjunto no âmbito de um estabelecimento comercial ou industrial.

35. A situação descrita afectou psicologicamente o A., levando-o a recorrer a medicação, sentindo-se ele enganado com referência à situação jurídica do espaço em causa.

36. O A. marido encontra-se reformado desde 1-7-92.

III – Decidindo:

1. O pedido de condenação dos RR. no pagamento de uma indemnização pelos prejuízos causados foi sustentado no que dispõe o art. 1032º do CC sobre os vícios da coisa locada, atenta a falta de licença de utilização para o exercício de actividade comercial.

O Tribunal de 1ª instância concluiu não ter havido incumprimento do contrato de arrendamento, uma vez que na ocasião em que foi celebrado – 1982 - não era exigível, nem foi exigida a licença de utilização para o exercício do comércio. Concluiu ainda não se verificar qualquer situação qualificável como abuso de direito.

Já a Relação apontou directa e exclusivamente para a figura do abuso de direito na qual sustentou a condenação dos RR. no pagamento de uma indemnização aos AA.

Sendo os AA. os actuais arrendatários do espaço que está agregado a uma fracção cuja propriedade pertence ao 1º R., a qual foi cedida para o exercício de actividade comercial, a única questão que cumpre apreciar é se se verificam ou não os pressupostos da figura do abuso de direito; em segundo plano, importa apurar se pode asseverar-se a existência de responsabilidade civil dos RR. e do correspondente direito de indemnização dos AA.

2. De imediato nos confrontamos com um erro de julgamento que implica a revogação do acórdão recorrido e a reposição da sentença da 1ª instância.

Na verdade, tendo a Relação sustentado o direito de indemnização unicamente na figura do abuso de direito, por alegada violação das regras da boa fé contratuais, é manifesto o uso inadequado de um tal instituto, já que, numa completa inversão metodológica, não foi identificado qualquer “direito” objectivo na esfera dos RR. cujo uso abusivo ou desviante fosse susceptível de suportar as consequências que foram decretadas.

A linearidade do caso a este respeito nem sequer justifica que se teçam considerações em torno da figura do abuso de direito, tal como seriam ociosas observações atinentes aos diversos tipos através dos quais se pode manifestar (v.g. venire contra factum proprio, supressio, tu quoque …). Afinal, todo o esforço que porventura fosse empreendido nesse sentido seria inconsequente, já que sempre esbarraria com a ausência de um pressuposto fundamental, qual seja, a detecção de um “direito” na esfera dos RR. cuja (i)legitimidade do uso devesse ser apreciada.

O que realmente se torna claro perante o acórdão é o recurso inapropriado à figura do abuso de direito, cujas virtualidades, finalidades e âmbito de aplicação, embora delimitados por conceitos indeterminados como os que se encontram na formulação do art. 334º do CC, não permitem cobrir todas as situações que envolvem a violação das regra da boa fé.

O mesmo acórdão vem ainda reforçar a ideia acerca de uma tendência excessiva para se “abusar” da utilização figura do “abuso de direito”, a pretexto de se encontrar uma solução tida como substancialmente justa ou mais justa. Efectivamente na falta de outros argumentos, surge com frequência a invocação do referido instituto que, permitindo, em linhas grais, a compressão ou mesmo a supressão de um direito em violação das regras da boa fé, dos bons costumes ou do seu fim social e económico, tem como pressuposto basilar a existência de … “um direito”.

Ora, constitui um truísmo que só pode haver “abuso de direito” e só podem ser extraídas as consequências que concretamente se justificarem dessa situação quando aquele que comete o abuso, violando manifestamente as regras da boa fé, dos bons costumes ou do fim social ou económico do direito … seja titular de um “direito” reconhecido formalmente pelo direito positivo.

3. Qual o direito que, no caso concreto, teria sido invocado abusivamente?

O acórdão recorrido não o identifica, tal como não o identificaram os AA. que praticamente se limitaram a reclamar dos RR. o pagamento de uma quantia a título de indemnização com alegação de incumprimento contratual ocorrido aquando da celebração do contrato de arrendamento com o primitivo arrendatário, em 1982.

Ora, nem esse eventual incumprimento, nem tão pouco o silêncio dos RR. ou a sua inércia durante o período de vigência do contrato, perante o primitivo arrendatário e, depois, perante os sucessivos arrendatários, entre os quais o A. que ocupa agora essa posição, corresponde a qualquer direito ou tem subjacente a invocação de qualquer direito.

O que, em abstracto, poderia relevar para o caso concreto não seria o recurso à figura do abuso de direito, mas a ponderação do incumprimento por parte dos RR. de obrigações emergentes do regime jurídico do contrato de arrendamento ou a eventual violação das regras da boa fé por parte dos RR.

Todavia, a esta realidade não subjaz qualquer “direito” dos RR. cujo uso abusivo lhe possa ser imputado.

Em abstracto, apenas faria sentido questionar se o comportamento dos RR. ao longo das duas décadas anteriores corresponde ao que resultaria das regras da boa fé contratual que, em abstracto, poderia emergir do facto de os RR. não terem alertado os AA. de que o locado não tinha licença de utilização que legitimasse o destino que lhe foi atribuído no contrato de arrendamento (celebrado com outro sujeito), situação que ainda se mantinha aquando do último trespasse que foi realizado a seu favor, frustrando, assim, a realização de eventuais mais valias decorrentes do trespasse do estabelecimento comercial que acordaram com um terceiro interessado.

Efectivamente, embora possa existir uma sobreposição parcial entre uma situação de abuso de direito e a violação das regras da boa fé contratual, não existe uma relação de total identidade.

O abuso de direito e as regras da boa fé são realidades que preenchem círculos autónomos e que apenas parcialmente se sobrepõem. A pertinência da violação das regras da boa fé importa para outros efeitos que não apenas para qualificar de abusiva uma determinada actuação, designadamente para a apreciação dos comportamentos dos contraentes, antes da celebração, por ocasião da outorga do contrato (art. 227º do CC), depois da sua conclusão ou mesmo da extinção das relações contratuais (art. 762º do CC).

4. Mesmo nesta perspectiva, que é diversa daquela em que a Relação se postou, a matéria de facto apurada continua a revelar-se escassa para se concluir pela violação das regras da boa fé no âmbito contratual determinante do efeito pretendido pelos AA., ou seja, do reconhecimento de um direito de indemnização pelos prejuízos invocados.

Vejamos:

- Os RR. são proprietários das fracções do prédio urbano em que se insere o espaço de que os AA. são actuais arrendatários. Sendo o locado parte integrante de uma fracção cuja propriedade é do 1º R., o contrato de arrendamento foi celebrado por todos os condóminos que entre si têm uma relação familiar.

- Participado fiscalmente o arrendamento como espaço para o exercício do comércio, esse uso nunca foi autorizado pela autoridade municipal competente, mantendo-se aquele que decorre do título constitutivo: cave integrada na fracção A destinada a habitação.

- Certo é que foi como “armazém”, onde foi instalado um estabelecimento comercial de pronto a vestir, que o espaço foi arrendado ao primitivo arrendatário, arrendamento que neste momento pertence aos AA., depois de sucessivos trespasses que foram celebrados sem que, no entanto, alguma vez a falta de licença de utilização para estabelecimento comercial ou armazém tenha constituído impedimento para a outorga dos trespasses.

- Para além do facto de tal espaço ter sido participado como “armazém”, para efeitos fiscais, os recibos de renda emitidos pelos RR. referenciavam o locado como "atelier cave esq.", "atellier", "atelier", "c/v esq.", "cave esq/", "armazém", "armazém cave esq.'", "armazém c/esq., "armazém esq." ou "loja", e as cartas de comunicação de aumento de renda continham expressões como "estabelecimento de que somos proprietários", "armazém", "atelier cave esq." e "cave".

- O A. deixou de exercer a actividade de empresário em nome individual em 2004, a qual apenas foi formalmente retomada em 2008, depois de ter recebido uma carta do proprietário da fracção a que o espaço correspondia a fim de pode exercer o direito de preferência na venda que pretendia realizar de tal fracção, ocasião em que ficou a saber que o locado integrava a fracção A.

A matéria de facto revela que o A. e os diversos antecessores no contrato de arrendamento sempre lidaram com o espaço locado como se fosse destinado a armazém, destino que figurou no contrato de arrendamento que foi celebrado em 1982 e em cuja escritura pública ficou a constar que fora participada nas Finanças a utilização do espaço para comércio.

A correspondência entre o destino do locado e a licença de utilização não constituía, na ocasião, motivo de invalidade do contrato de arrendamento.

O mesmo destino comercial continuou a figurar nos trespasses que posteriormente incidiram sobre o estabelecimento comercial instalado no espaço arrendado, sem que alguma vez tenha sido questionada a sua validade.

Por outro lado, no que concerne aos RR., embora cientes de que não havia licença de utilização para armazém, já que se tratava de uma arrecadação afecta a uma fracção habitacional, e de que fora rejeitada nos anos 80 do Séc. XX a alteração da sua finalidade, não se apurou qualquer comportamento activo no sentido de iludirem os AA. ou os seus antecessores acerca das características do locado.

E tudo continuaria a correr naturalmente - como tinha corrido até então, com sucessivos trespasses do referido espaço, apesar da falta de licença de utilização para armazém ou para estabelecimento comercial - se não tivesse ocorrido a alteração legislativa que veio impor maior rigor relativamente ao condicionalismo necessário à efectivação do trespasse de estabelecimentos comerciais, passando a exigir a apresentação da correspondente licença de utilização.

É neste facto - e não o comportamento activo ou passivo dos RR. ou, mais concretamente, do 1º R. - que efectivamente pode ser encontrado motivo para a frustração do negócio de trespasse de estabelecimento comercial que os AA. pretenderam realizar com um terceiro.

5. Deste modo, a matéria de facto não é bastante nem para se afirmar a existência de incumprimento de alguma obrigação contratual, nem de violação das regras da boa fé determinante da constituição de uma obrigação de indemnizar por partes dos RR. e do correspondente direito dos AA.

Importa notar que, relativamente ao comportamento imputado aos RR. e designadamente ao 1º R., apenas releva para a apreciação da pretensão deduzida pelo A. o período posterior àquele em que este assumiu pela 2ª vez a posição de arrendatário, mediante trespasse que outorgou com a sociedade de que era sócio. O comportamento anterior a 1998 apenas pode relevar na medida em que caracterize os deveres que já então recaíam sobre os locadores e que persistiam ainda na data em que os AA. passaram a assumir a posição de arrendatários.

Os AA. estavam convencidos de que o estabelecimento comercial que fora instalado no locado proporcionaria, através da realização do trespasse, a obtenção de mais valias. Mas a frustração deste desiderato não tem que encontrar necessariamente um responsável, nem a responsabilidade tem que se situar necessariamente na esfera dos RR.

Os RR. tinham conhecimento de que o locado não estava licenciado para o exercício da actividade a que foi destinado pelo contrato de arrendamento celebrado com o primitivo arrendatário e que não surtira efeito a tentativa de modificação do seu uso, mas tal não obstou a que fosse celebrado o contrato de arrendamento perante o Notário.

A situação manteve-se em todas as sucessivas cedências da posição de arrendatário, sem qualquer intervenção dos RR. e com intervenção exclusiva do A., quer como trespassante, quer como trespassário, quer também como representante da sociedade que intercalarmente teve a posição de arrendatária.

Mas, ainda que os AA. nunca se tenham apercebido dos impedimentos de natureza jurídico-administrativa que se verificavam, está por demonstrar que tal se tenha ficado a dever a um comportamento voluntariamente omissivo dos RR. ou de algum deles. Menos ainda se pode concluir que tenha existido da parte dos RR. a criação ou o reforço de expectativas dos AA. (ou de anteriores arrendatários) em torno da natureza do espaço ou da viabilidade da efectivação do trespasse. Os antecedentes relacionados com a existência de diversos trespasses do mesmo estabelecimento infirmam tal conclusão.

Tão pouco é possível encontrar na matéria de facto apurada motivo para se concluir que tenha existido da parte dos RR. violação de algum dever contratual ou das regras da boa fé na execução do contrato, tudo se passando, durante mais de 20 anos, de uma forma completamente linear, sem que alguma questão tenha sido suscitada pelos AA. ou pelos seus antecessores acerca da licença de utilização do espaço, depois de os RR. terem visto negada a sua alteração na década de 80, ainda antes da outorga do contrato de arrendamento com o primeiro arrendatário.

Ou seja, durante todo o período de vigência do arrendamento, até ao momento em que os AA. se confrontaram com a inexistência de licença de utilização para o funcionamento de um estabelecimento comercial, tal requisito de natureza administrativa não gerou qualquer impedimento ao livre exercício da actividade comercial ou à celebração de trespasses, sendo manifestamente inadequado qualificar o comportamento dos RR. como violador das regras da boa fé, pois que praticamente se cingiram a ceder o espaço arrendado e a receber as correspondentes rendas contra a entrega de recibos. Recibos estes em que o locado era descrito de diversas formas, mas sem que alguma delas motivasse, por si, a existência ou a persistência de erro relevante acerca da licença de utilização.

Em suma, falecem no caso os requisitos mínimos para se alcançar o efeito pretendido pelos AA. ou qualquer outro efeito com contornos semelhantes que lhes proporcione o reconhecimento de um direito de indemnização, impondo-se, assim, a revogação do acórdão recorrido cujo resultado não encontra sustentação nem nas regras do abuso de direito , nem tão pouco nas regras da boa fé pelas quais as partes contratantes se devem pautar.

IV – Face ao exposto, acorda-se em revogar o acórdão recorrido, prevalecendo a sentença de 1ª instância que julgou a acção improcedente.

Custas da revista e em ambas as instâncias a cargo dos AA.

Notifique.

Lisboa, 2-12-13


Abrantes Geraldes

Bettencourt de Faria

Pereira da Silva