Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B281
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: ARRENDAMENTO PARA COMÉRCIO OU INDÚSTRIA
PEDIDO
INTERPRETAÇÃO
RESOLUÇÃO
DECLARATÁRIO
LICENÇA DE UTILIZAÇÃO
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
QUESTÃO NOVA
PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
MORA DO DEVEDOR
MORA DO CREDOR
PRESUNÇÃO
ILAÇÕES
Nº do Documento: SJ200702220002817
Data do Acordão: 02/22/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. O princípio do pedido, corolário do princípio do dispositivo, envolve a imprescindibilidade da sua formulação em juízo, e, dada a sua relevância no âmbito do processo, deve ser claramente expresso - forma inteligível.
2. Se a sua formulação suscitar alguma dúvida, deve o juiz proceder à sua interpretação à luz do expressado a título de causa de pedir, e, se for caso disso, segundo a impressão do declaratário normal.
3. Pedida pelo autor a declaração de resolução do contrato de arrendamento, afirmando ser o seu objecto mediato integrado por quatro fracções prediais, com base na falta de pagamento da renda relativa a todas elas, a par do despejo imediato do locado, este vocábulo significa aquelas fracções.
4. Entregue o locado pelo senhorio ao inquilino na sequência de contrato de arrendamento para o exercício da indústria, com a menção de que estava pedida a licença de utilização, não pode o último deduzir relevantemente a excepção de não cumprimento perante o pedido de resolução fundado na falta de pagamento da renda formulado pelo primeiro.
5. Não tendo o réu invocado na contestação a mora do autor por não ter vindo nem mandado receber a renda, motivo por que o tribunal da 1ª instância dela não conheceu, não podia a Relação conhecer dela no recurso de apelação, por se tratar de uma questão nova.
6. Tendo a Relação conhecido da mencionada questão e havendo impugnação do decidido no recurso de revista, não pode dela conhecer-se no seu âmbito, sob pena de violação do princípio da preclusão previsto no nº 1 do artigo 489º do Código de Processo Civil.
7. O pagamento pelo réu da renda vencida no decurso da acção acrescida da indemnização moratória é insusceptível de fundar a ilação da sua situação de mora quanto ao pagamento às rendas vencidas antes da sua propositura.
8. Tendo o réu afirmado na contestação não ter pago as rendas ao autor por virtude de este lhe não entregar os recibos de quitação, ilidiu, ipso facto, a presunção de que o último não veio nem mandou, na data do vencimento, receber a renda do locado no seu domicílio.*

* Sumário elaborado pelo Relator.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I
Empresa-A intentou, no dia 29 de Junho de 2004, contra Empresa-B, acção declarativa constitutiva condenatória, com processo ordinário, pedindo a resolução do contrato de arrendamento celebrado com a ré em 4 de Setembro de 2002 relativo á cave, ao rés-do-chão e a quatro andares do prédio sito na Rua ...nºs ... a ... e na Rua do ..., nºs ... a ..., Porto, por falta de pagamento da renda, e a condenação da ré a entregar-lhos e a pagar-lhe € 24 000 de rendas vencidas, as rendas vincendas e os juros de mora à taxa legal.
A ré, em contestação, afirmou ter adiantado pagamentos à autora para obtenção da licença de utilização, ser a quantia hipoteticamente em dívida de € 4 500, a não entrega pela autora de recibos de renda e da licença de utilização essencial para o exercício da sua actividade, o acordo de pagamento das rendas por via da alienação das suas acções, e invocou o direito de retenção acordado no contrato de arrendamento até perceber € 7 500 000, e pediu a condenação da autora por litigância de má fé no pagamento da indemnização de € 2 500.
A autora negou o referido adiantamento de pagamento e a não entrega dos recibos de renda, ser da responsabilidade da ré a falta de licença de utilização, a quem cabia obtê-la depois de realizar as obras, ter o direito de retenção sido convencionado apenas para o caso de denúncia e como mera cláusula penal, não ter existido acordo verbal de venda de acções aquando da abertura do estabelecimento, e pediu a condenação da ré no pagamento de € 5 000 a título de indemnização por litigância de má fé.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença no dia 27 de Janeiro de 2006, por via da qual foi declarado resolvido o contrato de arrendamento e condenada a ré a despejar o locado e a pagar á autora € 24 000 e o valor das rendas vincendas em singelo até ao trânsito em julgado da sentença e em dobro desde então.
Apelou a ré, e a Relação, por acórdão proferido no dia 10 de Julho de 2006, confirmou a sentença recorrida na parte em que declarou resolvido o contrato de arrendamento e que condenou a ré a pagar à autora € 24 000 e as rendas vincendas e juros, mas revogou-a na parte condenatória a despejar o locado em consequência da anulação parcial da decisão da matéria de facto, invocando o disposto nos artigos 201º, nº 2 e 712º, nº 4, do Código de Processo Civil.

Interpôs a apelante recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- o pedido não se depreende da formulação dispersa de factos na petição inicial, devendo ser expresso de forma clara, precisa e rigorosa, de harmonia com o princípio do dispositivo, e a sua interpretação extensiva é ilegal por extravasar o âmbito e o espírito do artigo 661º do Código de Processo Civil;
- como a recorrida não identificou no pedido a fracção ou fracções cujo despejo pretende, ignora-se a que locado nele se refere, e o tribunal não podia condenar em quantidade superior ou em objecto diferente do que foi pedido;
- o depósito não condicional das rendas no incidente de despejo imediato não implica o reconhecimento da mora nos termos do artigo 1042º do Código Civil, e presume-se que a recorrida não foi nem mandou receber a renda no dia do vencimento e, por isso, constituiu-se em mora, nos termos do artigo 813º daquele diploma;
- era legítima a sua recusa de pagamento das rendas por virtude da recusa pela recorrida de lhe facultar os recibos por via do que esta se constituiu em mora, e o oferecimento pelo locatário ao locador da renda e da indemnização não significa o reconhecimento da mora, pelo que não está ilidida a presunção do nº 2 do artigo 1039º do Código Civil;
- o fim das fracções arrendadas implica a existência de licença de utilização e a sua falta implica o encerramento do espaço, não é mero impedimento à fruição plena do locado, sem ela o gozo não é assegurado e é obrigação do senhorio obtê-la;
- não se trata de vício que não permite realizar cabalmente o fim a que é destinado o locado, a que se refere o artigo 1032º do Código Civil, é caso de encerramento e perda total do seu gozo, só podendo ser entendido como vício nos termos daquele artigo se o fim pudesse ser, ao menos, parcialmente, realizado;
- a recorrida não pôs a salvo de perigo o fecho ao público do imóvel que arrendou para comércio porque não logrou obter a licença de utilização, razão por que a recorrente, com base no incumprimento da obrigação principal da recorrida, pode recusar o pagamento da renda exigida, porque há o sinalagma com a prestação daquela de entregar e assegurar o gozo do locado;
- indeferido que foi o pedido de licença de utilização, a recorrida não pode assegurar o gozo do locado, e a recorrente tem o direito de recusar o pagamento da renda com base na excepção de não cumprimento.

II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:
1. Representantes da autora e da ré declararam, no dia 4 de Setembro de 2002, por escrito:
- primeira ser possuidora do prédio urbano composto de casa de cave, rés-do-chão e quatro andares, sito na Rua de ...., nºs ... a ...., e Rua do ...., nºs ... a ..., Porto, inscrito na matriz sob o artigo 6239º e descrito sob o nº 354 na Conservatória do Registo Predial;
- o imóvel tem o pedido de utilização entrado na Câmara Municipal do Porto em 15 de Abril de 2002;
- o contrato foi celebrado tendo em atenção o estado de deterioração de grande parte do edifício, o tempo em que já se encontra fechado, o enquadramento do imóvel na renovação da baixa portuense e a necessidade de avultados investimentos que a segunda outorgante irá proceder;
- a primeira outorgante, por um período limitado de 18 meses, com início em 1 de Janeiro de 2003, renovando-se por períodos de seis anos, dá de arrendamento um espaço de cave, rés-do-chão, 1º e 4º andares, conforme plantas que se anexam e que rubricadas identificam o espaço a locar;
- o regime de renda aplicável é o de renda livre, e a renda a aplicar ao presente é de € 7 200 anuais respeitante ao quarto andar e de € 21 000 referente à cave, rés-do-chão e 1º andar, dividido em duodécimos, e as rendas estipuladas apenas são devidas a partir de 31 de Maio de 2003 no que diz respeito ao arrendamento da cave, rés-do-chão e 1º andar, e 31 de Janeiro de 2004 quanto ao arrendamento do 4º andar;
- o contrato de arrendamento poderá ser denunciado na forma e pelos meios previstos na lei, mormente através de carta registada com aviso de recepção, quando a denúncia for da autoria da inquilina, e a revogação do contrato exercida pela inquilina terá que ser realizada com uma antecedência mínima de 90 dias sobre a data em que se pretende fazer produzir os efeitos de tal acto;
- o objecto do arrendamento destina-se exclusivamente: o rés-do-chão e cave ao ramo da restauração e serviços conexos, o 4º andar ao ramo hoteleiro e o 1º andar a escritórios e similares, não podendo a inquilina dar-lhe outro uso, podendo sublocá-lo desde que obtida a prévia autorização da senhoria;
- serão da conta da segunda outorgante todas as despesas com as ligações iniciais de água, electricidade e instalações de telefone, bem como todos os respectivos consumos e chamadas efectuadas;
- as benfeitorias, incluindo as voluptuárias, devidamente autorizadas, ficarão integradas na fracção, devendo a senhoria pagá-las, fixando-se, em caso de denúncia do contrato, todavia, o montante de € 7 500 000 como valor máximo que a primeira contraente terá de pagar pelas ditas benfeitorias depois de devidamente auditados os documentos que comprovadamente provem as despesas feitas com as referidas benfeitorias, podendo a inquilina exercer o seu direito de retenção sobre o arrendado enquanto não lhes forem pagas as importâncias devidas pelo seu investimento.
2. Em 29 de Abril de 2003, a ré entregou a AA, através do cheque nº 8350032830, a quantia de € 12 500, e através do cheque nº 8350032830, sacado sobre o Empresa-C, no dia 15 de Janeiro de 2004, data do seu vencimento, a quantia de € 5000.
3. O imóvel não tem licença de utilização, e a ré ainda não entregou à autora as rendas de Junho de 2003 a Junho de 2004, da cave, do rés-do-chão e do 1º andar, e, de Fevereiro a Junho de 2004, do 4º andar.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se a recorrida tem o não o direito de impor à recorrente a resolução do contrato celebrado entre ambas.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação formuladas pela recorrente, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- natureza e efeitos do contrato celebrado entre a recorrente e a recorrida;
- excedeu ou não o tribunal recorrido o pedido formulado pela recorrida?
- conexão entre o contrato de arrendamento de prédios urbanos para o exercício da indústria e a licença de utilização;
- pode ou não a recorrente obstar à resolução do contrato por virtude de falta de licença de utilização das fracções prediais que constituem o seu objecto mediato?
- está ou não a recorrida em situação de mora no que concerne ao recebimento das rendas?
- tem ou não a recorrida o direito de impor à recorrente a resolução do contrato entre ambos celebrado?
- síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Comecemos pela determinação da natureza e dos efeitos do contrato celebrado entre a recorrida e a recorrente, cuja estrutura sugere o seu confronto com o regime do arrendamento urbano.
O referido contrato foi celebrado no domínio da vigência do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro – RAU.
O Novo Regime do Arrendamento Urbano não é aplicável ao caso vertente, porque os factos que estão em causa na acção ocorreram antes da sua entrada em vigor (artigos 12º, nº 1, do Código Civil e 59º da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro).
É, por isso, aplicável no caso em análise o Regime do Arrendamento Urbano aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro.
Resulta das declarações negociais imputadas pelos respectivos representantes estatutários à recorrida e à recorrente ter a primeira cedido à última, mediante remuneração, pelo período limitado de 18 meses, renovável por períodos de seis anos, quatro fracções prediais, com vista ao ramo de hotelaria, restauração, serviços conexos e escritórios.
Dessas declarações negociais resulta ainda, por um lado, que a remuneração anual relativa ao 4º andar era de € 7 200 e a concernente à cave, rés-do-chão e ao 1º andar no montante de € 21 000.
E, por outro que a remuneração relativa à cave, rés-do-chão e 1º andar era dividida em duodécimos, que essas rendas só eram devidas desde 31 de Maio de 2003 e desde 31 de Janeiro de 2004 quanto ao 4º andar.
Em consequência a recorrida, na posição de senhoria, e a recorrente, na posição de arrendatária, celebraram um contrato de arrendamento para o exercício da indústria com duração limitada (artigos 1º, 3º, nº 1 e 117º do RAU).
Resultam do referido contrato, por um lado, para a recorrida a obrigação de entrega à recorrente das mencionadas fracções prediais e de lhe assegurar o gozo para o fim a que foram destinadas (artigos 5º, nº 1, do RAU e 1031º do Código Civil).
E, por outro, para a recorrente a obrigação, além do mais, de entregar à recorrida o valor da renda convencionada (artigos 5º, nº 1, do RAU e 1038º, alínea a), do Código Civil).

2.
Atentemos agora na sub-questão de saber se o tribunal recorrido excedeu ou não o pedido formulado pela recorrida.
A recorrente alegou que a Relação, ao considerar que o pedido de resolução do contrato de arrendamento formulado pela recorrida abrangia todas as fracções prediais arrendadas, infringiu o disposto no artigo 661º, nº 1, do Código de Processo Civil, por não poder condenar em quantidade superior ou em objecto diferente do que fora pedido.
Motivou essa conclusão na circunstância de a recorrida não haver identificado em sede de pedido a fracção ou as fracções cujo despejo pretendia e se ignorar o locado a que nele se refere.
O pedido consiste essencialmente no efeito que o autor ou o reconvinte pretendem extrair dos factos articulados em juízo, ou seja, a providência que solicitam ao tribunal.
O designado princípio do pedido, corolário do princípio dispositivo, envolve a imprescindibilidade da sua formulação em juízo por uma das partes no confronto da outra (artigo 3º, nº 1, 463º,nº 1, 464º e 467º, nº 1, alínea e), do Código de Processo Civil).
Na envolvência do referido princípio, a sentença ou o acórdão não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, sob pena de incorrem em vício de limites e na consequente nulidade (artigos 661º, nº 1 e 668º, nº 1, alínea e), do Código de Processo Civil).
Dada a sua relevância no âmbito do processo, deve ser expresso com clareza, isto é, de forma inteligível.
Mas se, porventura, a sua formulação suscitar alguma dúvida, deve o juiz proceder à sua interpretação, tendo em conta o expressado a título de causa de pedir e à luz dos princípios consignados nos artigos 236º, nº 1 e 238º, nº 1, do Código Civil.
Ora, no caso vertente, a recorrida pediu a declaração de resolução do contrato de arrendamento, cujo objecto mediato se consubstancia em quatro fracções prediais, com base na falta de pagamento da renda relativa a todas elas, e o despejo imediato do locado.
Neste contexto, tendo em conta a causa de pedir articulada pela recorrida, resulta claramente abranger o pedido por ela formulado de resolução do contrato de arrendamento todo o seu objecto mediato – as fracções prediais - e que estas constituem o locado a que se reporta o pedido de despejo.
Assim, ao invés do a recorrente alegou, a recorrida identificou em sede de pedido as fracções cujo despejo pretendia, e as instâncias não condenaram em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, pelo que não infringiram o disposto no artigo 661º, nº 1, do Código de Processo Civil.

3.
Vejamos agora a conexão entre o contrato de arrendamento e a licença de utilização.
A propósito da licença de utilização, expressa a lei só poderem ser objecto de arrendamento urbano os edifícios ou suas fracções cuja aptidão para o fim visado pelo contrato seja atestado pela licença municipal de utilização (artigo 9º, nº 1, do RAU).
Alegando as partes a urgência na celebração do contrato, pode a referida licença ser substituída por documento comprovativo de que foi requerida em conformidade com o direito à utilização do prédio nos termos legais e com a antecedência mínima prevista na lei (artigo 9º, nº 2, do RAU).
A existência da referida licença de utilização ou, quando não seja possível, do documento comprovativo do seu requerimento devem ser referidos no texto do contrato (artigo 9º, nº 4, do RAU).
A inobservância do regime acima referido por causa imputável ao senhorio, determina a sua sujeição a coima, salvo se o atraso não lhe for imputável (artigo 9º, nº 5, do RAU).
O arrendatário pode, nesse caso, resolver o contrato e exigir do senhorio indemnização nos termos gerais ou requerer a sua notificação para a realização de obras necessárias ao licenciamento, mantendo-se a renda inicialmente fixada (artigo 9º, nº 6, do RAU).
Resulta dos referidos normativos que a lei se limita a associar a falta de licença de utilização por causa imputável ao senhorio à resolução do contrato de arrendamento pelo arrendatário e ao seu direito a exigir-lhe indemnização nos termos gerais, ou à notificação daquele para a realização de obras necessárias à regularização das fracções em causa.
A referida indemnização é, naturalmente, a que decorre de responsabilidade civil contratual, nos termos dos artigos 562º, 798º e 801º, nº 2, do Código Civil.
Ora, no caso vertente, não estamos perante qualquer pretensão da recorrente no sentido da resolução do mencionado contrato de arrendamento ou da exigência de indemnização no confronto da recorrida.
Assim, não pretende a recorrente extrair directamente da falta de licença de utilização do locado algum dos efeitos a que o normativo ora analisado se reporta.

4.
Atentemos agora sobre se a recorrente pode ou não obstar à resolução do contrato por virtude de falta de licença de utilização das fracções prediais que constituem o seu objecto mediato.
Como não está em causa no recurso a resolução do contrato de arrendamento por causa diversa da falta de pagamento de rendas, não temos que nos pronunciar sobre a argumentação utilizada no acórdão e pela recorrente em torno do vício da coisa locada a que se reporta o artigo 1032º do Código Civil.
Conforme acima se referiu, a principal obrigação do arrendatário é a de pagar ao locador a renda relativa ao contrato de arrendamento (artigos 5º, nº 1, do RAU e 1038º, alínea
a), do Código Civil).
A lei do arrendamento prevê a falta de pagamento pelo arrendatário no tempo e lugar próprios e a não realização do depósito liberatório, e estatui, para essa hipótese, poder o senhorio resolver o contrato de arrendamento (artigo 64º, nº 1, alínea a), do RAU).
Resulta dos factos provados que a recorrente não entregou à recorrida, por um lado, as rendas relativas aos meses de Junho de 2003 a Junho de 2004 concernentes à cave, ao rés-do-chão e ao 1º andar.
E, por outro, que a recorrente não entregou à recorrida as rendas relativas aos meses de Fevereiro a Junho de 2004 do 4º andar do mencionado prédio, nem, em qualquer caso, procedeu ao seu depósito a favor dela.
Em consequência, estamos, em princípio, perante uma causa de resolução do contrato de arrendamento – falta de pagamento de rendas e de depósito liberatório – a que se reporta o artigo 64º, nº 1, alínea a), do Regime do Arrendamento Urbano.
É a falta de licença de utilização das fracções prediais objecto mediato do contrato de arrendamento que a recorrente invoca como fundamento do seu direito à suspensão da sua obrigação de pagamento das rendas em causa.
A este propósito está assente ter sido consignado no texto do contrato de arrendamento em causa, celebrado no dia 4 de Setembro de 2002, que o imóvel tinha pedido de utilização entrado na Câmara Municipal do Porto em 15 de Abril de 2002, e que o referido imóvel não tem licença de utilização.
Assim, alegou a recorrente a excepção dilatória de direito material legalmente designada por excepção de não cumprimento.
A proposto da referida excepção, expressa a lei que se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe e não oferecer o seu cumprimento simultâneo (artigo 428º, nº 1, do Código Civil).
Trata-se, relativamente aos contratos bilaterais sem prazo diferente para a realização das prestações, de uma faculdade legalmente atribuída às partes, de uma recusar a sua prestação enquanto a outra não efectuar a que lhe incumbe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.
O requisito inexistência de prazos diferentes para a realização das prestações significa não poder invocar a excepção quem deva cumprir em primeiro lugar; mas não impede que a invoque quem deva cumprir em segundo lugar.
O contrato de arrendamento em causa é de natureza sinalagmática, em termos de à prestação de renda a cargo do arrendatário corresponder a prestação de entrega do locado por parte do locador.
Sabe-se que foi requerida a licença de utilização do prédio e que ela ainda não existe, mas ignora-se se o pedido foi ou não apreciado por quem de direito e, no caso positivo, qual o resultado dessa apreciação.
Com efeito, a recorrente alegou que o pedido de concessão da mencionada licença foi indeferido, mas isso não tem expressão nos factos provados.
Ademais, os factos provados não revelam que a falta de licença de emissão pelo município tenha afectado o gozo do locado pela recorrente para os fins previstos no contrato de arrendamento.
A recorrida entregou à recorrente o objecto mediato do contrato de arrendamento – as fracções prediais – antes da obtenção da licença de utilização, mas em quadro de aceitação dessa obtenção pela última.
Como a recorrida entregou o locado à recorrente no quadro da mencionada aceitação da falta de licença de utilização, e os factos não revelam que a última está a ser impedida de usufruir do locado nos termos convencionados por virtude da não emissão daquela licença, não ocorre o pressuposto da excepção de não cumprimento a que se reporta o artigo 428º, nº 1, do Código Civil.
Esta asserção conforma-se com o disposto no artigo 762º, nº 2, do Código Civil, segundo o qual, no cumprimento das obrigações, assim como no exercício dos direitos correspondentes, as partes devem proceder de boa fé.

5.
Vejamos agora se a recorrida está ou não na situação de mora no que concerne ao recebimento das rendas.
Alegou a recorrente que a recorrida se constituiu em mora por não ter emitido os recibos da renda.
Quem cumpre a obrigação tem o direito de exigir quitação daquele a quem a prestação é feita, podendo o autor do cumprimento recusar a prestação enquanto a quitação não for dada (artigo 787º do Código Civil).
A quitação ou recibo é um documento particular no qual o credor declara ter recebido a prestação.
Recusando-se o credor, sem motivo justificado, a receber a prestação, entra em mora, sendo facultado ao devedor livrar-se, por esse motivo, da obrigação desde que proceda à consignação em depósito (artigo 841, nº 1, alínea b), do Código Civil).
Por seu turno, a lei especial do arrendamento estabelece que o arrendatário pode depositar a renda quando ocorram os pressupostos da consignação em depósito ou lhe seja permitido fazer cessar a mora ou fazer caducar o direito à resolução do contrato por falta de pagamento de renda, nos termos, respectivamente, dos artigos 1041º, nº 1 e 1048º do Código
Civil, ou quando esteja pendente acção de despejo (artigo 22º do RAU).
O artigo 1041º, nº 1, do Código Civil reporta-se à mora do locatário quanto ao pagamento da renda e ao direito do locador de exigir o valor das rendas em atraso acrescido de indemnização igual a 50% do que for devido, salvo se o contrato for resolvido com base na falta de pagamento.
O artigo 1048º do Código Civil reporta-se, por seu turno, à caducidade do direito de resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento da renda se o locatário, até à contestação da acção destinada a fazer valer esse direito, pagar ou depositar as somas devidas e a indemnização prevista no nº 1 do artigo 1041 do mesmo diploma.
No caso vertente, não pode proceder a invocação pela recorrente da mora da recorrida por virtude da recusa de emissão de recibo, visto que os factos provados não revelam que a primeira tenha oferecido à última o pagamento de alguma renda.
A recorrente também alegou que a recorrida está em mora quanto ao recebimento das rendas por não ter mandado alguém recebê-las na sua sede.
Esta questão não foi suscitada pela recorrente no tribunal da 1ª instância. Nem era lógica a sua suscitação, visto que ela afirmou na contestação ter pago algumas rendas e não ter pago as outras por virtude de a recorrida se haver recusado a dar-lhe quitação, ou seja, a emitir o respectivo recibo.
Toda a defesa deve ser deduzida na contestação, exceptuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado, só podendo ser deduzidas as excepções, incidentes ou meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente (artigo 489º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Como a recorrente não invocou essa questão na contestação, não podia o tribunal da 1ª instância conhecer dessa problemática, e, em conformidade com o princípio da preclusão, dela não conheceu.
Ora como a referida problemática não foi suscitada na sentença proferida no tribunal da 1ª instância, não podia ser objecto de conhecimento no recurso de apelação, porque quanto à Relação se configurava como uma questão nova (artigos 676º, nº 1 e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Todavia, a Relação conheceu da referida questão, expressando ter sido ilidida a presunção do nº 2 do artigo 1039º do Código Civil por virtude de a recorrente ter procedido ao depósito das rendas e da indemnização
Como está em causa a infracção do princípio da preclusão, apesar de a Relação ter conhecido da mencionada questão, não pode este Tribunal reapreciá-la. Não obstante, dir-se-á o seguinte.
O credor constituiu-se em mora quando, sem motivo justificado, não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação (artigo 813º do Código Civil).
O credor não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação pelo devedor, por exemplo, se, devendo a prestação ser realizada no local do domicílio ou da sede do último, não diligencia em ir ou mandar lá alguém com vista ao recebimento, caso em que se constitui em mora.
Por isso, também nesse caso, pode o devedor livrar-se da obrigação em causa por via da consignação em depósito (artigo 841º, nº 1, alínea b), do Código Civil).
No caso vertente, tendo em conta o clausulado no contrato de arrendamento, a recorrente e a recorrida não convencionaram lugar algum para o pagamento à última pela primeira das rendas, nem se conhece algum uso ou costume aceite pela generalidade dos cidadãos.
Salvo o que resultar dos usos ou de convenção, o pagamento da renda ou aluguer deve ser efectuado no último dia de vigência do contrato ou do período a que respeita, no domicílio do locatário à data do vencimento (artigo 1039º, nº 1, do Código Civil).
No caso de a renda dever ser paga no domicílio ou na sede do arrendatário e não tiver sido efectuado, presume-se que o senhorio não veio nem a mandou receber no dia do vencimento (artigo 1039º, nº 2, do Código Civil).
Trata-se de uma presunção legal, pelo que a recorrente estava dispensada de provar que a recorrida não mandou alguém à sede daquela a fim de receber as rendas vencidas (artigo 350º, nº 1, do Código Civil).
Todavia, a referida presunção é ilidível mediante a prova do contrário (artigo 350º, nº 2, do Código Civil).
No caso de o locatário estar em mora no que concerne ao pagamento das rendas antes da propositura da acção de resolução do contrato de arrendamento com fundamento na falta de pagamento da renda, a lei faculta-lhe a extinção daquela situação de atraso de pagamento.
Com efeito, ele pode operar a referida purgatio da mora por via do depósito do valor das rendas em falta com o acréscimo da indemnização correspondente a metade do valor daquelas e do requerimento de notificação judicial do depósito ao locador no prazo de cinco dias (artigos 1041º, nº 1 e 1042º, nº 1, do Código Civil).
Se o locatário assim proceder, a lei estabelece a presunção juris tantum do oferecimento pelo locatário do pagamento ao locador e a recusa do mesmo pelo último, com a consequência da extinção da mencionada situação de mora (artigo 1042º, nº 1, do Código Civil).
É neste condicionalismo que a lei prescreve que o depósito das rendas e da indemnização não condicional envolve, por parte do locatário, o reconhecimento de que se constituíra em mora (artigo 1042º, nº 2, do Código Civil).
No dia 11 de Novembro de 2004, no incidente de resolução imediata do contrato de arrendamento, a recorrente procedeu ao depósito não condicional da renda em singelo acrescida de indemnização.
A lei especial do arrendamento, a propósito das rendas vencidas no decurso da acção, expressa, por um lado, deverem as mesmas ser pagas ou depositadas nos termos gerais, sob pena de o senhorio poder, omitida a referida obrigação pelo inquilino, ouvido este, requerer o despejo imediato.
E, por outro, caducar aquele direito do senhorio se, até ao termo do prazo para a sua resposta, o inquilino pagar ou depositar as rendas em mora e a importância de indemnização devida e disso faça prova (artigo 58º do RAU).
Enquanto o nº 2 do artigo 1042º do Código Civil se reporta à mora do locatário antes da propositura da acção com vista à resolução do contrato de arrendamento, o artigo 58º do Regime do Arrendamento Urbano refere-se à falta de pagamento das rendas vencidas no decurso da mencionada acção, implicante da imediata resolução do contrato de arrendamento.
Perante a diversidade dos referidos pressupostos, inexiste fundamento legal para se concluir que o pagamento pela recorrente da renda vencida no decurso da acção acrescida da indemnização legalmente prevista, a fim de evitar a imediata resolução do contrato de arrendamento, implica o reconhecimento da sua situação de mora.
Procede, assim, nesta parte a alegação neste sentido desenvolvida pela recorrente no recurso.
Isso não significa, porém, que não esteja ilidida a presunção invocada pela recorrente no sentido de que a recorrida não mandou alguém junto da recorrida com vista ao recebimento das rendas em causa.
Com efeito, a recorrente afirmou na contestação - foi essa a sua defesa neste ponto - que pagou algumas rendas à recorrida e que não pagou outras por virtude de a última lhe haver recusado a entrega dos recibos.
Mas isso significa o reconhecimento de que o não pagamento por ela das rendas não resultou de a recorrida não haver mandado alguém com vista ao seu recebimento ou de ter, de algum modo, dificultado o pagamento à recorrente.
Assim, a referida defesa da recorrente revela-se incompatível com o facto presumido de a recorrida não haver colaborado com aquela no sentido de lhe poder realizar o pagamento das rendas.
Em consequência, ao invés do que a recorrente alegou, embora por razões diversas das consideradas no acórdão recorrido, ilidida está a presunção a que se reporta o artigo 1039º, nº 2, do Código Civil.

6.
Atentemos agora na questão de saber se a recorrida tem ou não o direito de impor à recorrente a resolução do contrato de arrendamento para o exercício da indústria entre ambas celebrado.
Não estão verificados os pressupostos do funcionamento da excepção dilatória de direito material do não cumprimento da prestação de renda, tal como não está verificada a excepção peremptória da mora da recorrida quanto ao recebimento das rendas.
Ocorre, por isso, o fundamento de resolução do contrato de arrendamento em causa por falta da recorrente de pagamento das rendas do locado à recorrida, a que se reporta o artigo 64º, nº 1, alínea a), do Regime do Arrendamento Urbano.

7.
Vejamos finalmente a síntese da solução para o caso decorrente dos factos provados e da lei.
Não ocorre na espécie o vício de limites invocado pela recorrente porque as instâncias não excederam, no que concerne à resolução do contrato de arrendamento, o pedido formulado pela recorrida.
Apesar da conexão entre o contrato de arrendamento de prédios urbanos para o exercício da indústria e a respectiva licença de utilização, não pode a recorrente obstar à resolução do contrato por virtude de falta daquela licença com fundamento na excepção de não cumprimento, porque outorgou no contrato de arrendamento com conhecimento dessa falta e continua a usufruir do gozo do locado.
O Supremo Tribunal de Justiça não pode conhecer da questão relativa à ilisão da presunção de que a recorrida não se apresentou na sede da recorrente para receber as rendas, porque esta última não a suscitou na contestação, apesar de a Relação, não obstante, dela conheceu no recurso de apelação.
Nas a recorrida não está em situação de mora no que concerne ao recebimento das rendas, e tem o direito de impor à recorrente o seu direito de impor à recorrente a resolução do contrato de arrendamento urbano para o exercício da indústria entre ambas celebrado.

Improcede, por isso, o recurso.
Vencida, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).


IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e condena-se a recorrente no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 22 de Fevereiro de 2007.

Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
Armindo Luís