Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2411/10.4TBVIS.C1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: RESPONSABILIDADE DO PRODUTOR
NEXO DE CAUSALIDADE
TEORIA DA CAUSALIDADE ADEQUADA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
DEVER DE INFORMAÇÃO
PRODUTO DEFEITUOSO
RESPONSABILIDADE OBJECTIVA
RESPONSABILIDADE OBJETIVA
EQUIDADE
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 03/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO / NEXO DE CAUSALIDADE.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / ELABORAÇÃO DA SENTENÇA / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO.
Doutrina:
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 2ª Edição, 1973, p. 712, 713,744 e 756;
- Calvão da Silva, Responsabilidade Civil do Produtor, Colecção Teses, Almedina, 1990, p. 659, 711-712 ; Compra e Venda de Coisas Defeituosas, Conformidade e Segurança, 5ª edição, Almedina, 2008, p. 198 e 207;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 3ª Edição, Coimbra Editora, p. 548;
- Vera Lúcia Raposo, A Responsabilidade do Produtor Por Danos Causados Por Dispositivos Médicos, RIDB, Ano 2 (2013), n.º 5, p.4312, in www.idb-fdul.com.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 563.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 608.º, N.º 2, 635.º, N.º 4, 639.º, N.ºS 1 E 2 E 663.º.
RESPONSABILIDADE DECORRENTE DE PRODUTOS DEFEITUOSOS, APROVADO PELO DL N.º 383/89, DE 06 DE NOVEMBRO: - ARTIGO 1.º.
Referências Internacionais:
DIRECTIVA 85/374/CEE: - ARTIGO 9.º, ALÍNEA A).
DIRECTIVA 2001/95/CE: - ARTIGO 2.º, ALÍNEA B).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 25-03-2010, PROCESSO N.º 5521/03.0TBALM.S1, IN CJSTJ, TOMO I, P. 153 E WWW.DGSI.PT;
- DE 25-10-2018, PROCESSO N.º 2416/16.1T8BRG.G1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - Elemento constitutivo da responsabilidade civil em geral é o nexo de causalidade entre o facto e o dano. No caso presente da responsabilidade do produtor, o nexo causal entre o defeito do produto e os danos vem enunciado expressamente no artigo 1º do DL 383/89, de 6 de Novembro, que prescreve: “O produtor é responsável, independentemente de culpa, pelos danos causados por defeitos dos produtos que põe em circulação”.

II - A fórmula usada no artigo 563º do Código Civil deve interpretar-se no sentido de que não basta que o evento tenha produzido (naturalística ou mecanicamente) certo efeito para que este, do ponto de vista jurídico, se possa considerar causado ou provocado por ele; para tanto, é necessário ainda que o evento danoso seja uma causa provável, como quem diz adequada desse efeito.

III - O autor, na acção de responsabilidade civil dirigida contra o produtor, com vista a obter ganho de causa, terá de alegar e provar os seus elementos constitutivos, a saber: os danos, os defeitos e o nexo causal entre estes e aqueles.

IV - Se, em relação aos danos e aos defeitos, a produção de prova cai no âmbito da normalidade, já a prova do nexo causal se apresenta, na maior parte das vezes, como sendo muito difícil: perante isso, as regras da experiência de vida, o id quod plerumque accidit e a teoria da causalidade adequada poderão permitir a preponderância da evidência, uma espécie de causalidade.

V - Constatando-se a existência de deficiências na rotulagem - desde logo, por não se encontrar redigida em língua portuguesa –, tal omissão há-de ter-se como causa adequada da omissão por parte da autora de comportamentos conformes à real perigosidade do produto, concluindo-se pela existência de nexo causal entre a informação deficitária constante do seu rótulo (aliada à falta de informação verbal aquando da venda por parte da Ré CC) e a projecção do produto sobre o corpo da autora aquando do manuseamento da embalagem por parte desta.

VI - Os defeitos de informação ou de instrução, resultantes do não cumprimento ou cumprimento imperfeito do dever de alertar, advertir ou instruir, são, pois, vícios extrínsecos, não ínsitos no produto, diferentemente dos defeitos de concepção e de fabrico que são vícios intrínsecos, inerentes à própria estrutura do produto (in re ipsa).

VII - Um produto que desrespeite alguma norma de segurança, nomeadamente por violação das regras de informação constantes da rotulagem, terá de presumir-se “defeituoso” para efeitos da responsabilidade objectiva do produtor.

VIII - Não existindo informação suficiente sobre a perigosidade do produto (a omissão das instruções em língua portuguesa tornam-na insuficiente, por dificultar a sua compreensão para o cidadão comum) e tendo o sinistro ocorrido “enquanto manuseava a embalagem do produto”, é apropriado estabelecer um nexo de causalidade entre a falta de informação e os danos.

IX - A aplicação de puros juízos de equidade não traduz, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito”. Por isso, se o STJ é chamado a pronunciar-se sobre o cálculo da indemnização que haja assentado decisivamente em juízos de equidade, não lhe compete a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar, mas tão-somente a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo, formulado pelas instâncias face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I - RELATÓRIO

AA intentou acção declarativa sob a forma de processo comum contra BB, LDA e CC, LDA, pedindo a condenação solidária das rés a pagar-lhe a quantia de € 95.000,00, na qual computou os danos morais por si sofridos, acrescida de juros legais, desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Alegou, em síntese, que foi atingida por um produto que continha ácido sulfúrico, produzido e comercializado pela ré “BB” e adquirido à ré CC”. Tal produto destinava-se a desentupir canos e foi vendido sem qualquer ficha técnica. No momento em que a autora procedia à abertura da embalagem, a tampa soltou-se e o seu conteúdo atingiu-a, causando-lhe graves lesões corporais. O sinistro deveu-se ao não cumprimento das normas de segurança no fabrico da embalagem do produto, designadamente da sua tampa.

Cada uma das rés apresentou a sua contestação, excepcionando a prescrição do direito indemnizatório de que se arroga a autora, por terem decorrido mais de três anos desde a data do sinistro até ao momento de interposição da acção, nos termos do disposto no artigo 498º nº 1 do Código Civil. Arguiram a respectiva ilegitimidade processual, por serem meras importadoras, distribuidoras e redistribuidoras do produto em questão, não tendo qualquer responsabilidade na sua produção, fabrico, classificação, rotulagem e embalagem, respeitando a relação material controvertida em debate ao produtor. Arguiram a ineptidão da petição inicial, por a autora não ter esclarecido em que condições lhe foi processada a indemnização laboral, em que valor esta foi fixada e qual a entidade que a liquidou, e ainda por não ter esclarecido a factualidade relativa à participação criminal que alegou ter efectuado.

Argumentaram que não lhes cabe qualquer responsabilidade no sinistro em causa, tanto mais que foi a autora que solicitou a terceiro a abertura do frasco e que, de forma imprudente, o manuseou, derramando sobre si própria o líquido que continha.

 A autora foi elucidada pela co-ré CC sobre o risco de utilização do produto, desconhecendo as rés se foi o produto por ambas distribuído que causou os danos invocados, cujas características eram do conhecimento da autora, por o vir manuseando ao longo dos anos na sua actividade profissional.Do rótulo do produto constavam indicações precisas, designadamente quanto à sua perigosidade e quanto ao facto de se destinar a uso profissional. 

Concluem pela procedência das excepções invocadas ou, caso assim não se entenda, pela improcedência da acção.

A autora replicou, alegando, em síntese, que o facto ilícito por si invocado constitui crime, pelo que é aplicável o prazo de prescrição de cinco anos previsto no artigo 498º nº 3 do Código Civil. As rés são partes legítimas por terem colocado no mercado um produto com defeito na embalagem e sem a necessária ficha técnica, concluindo ainda que a petição inicial não padece de ineptidão.

Foi proferido despacho saneador, no qual foram julgadas improcedentes as excepções de prescrição, de ineptidão da petição inicial e de ilegitimidade.

Foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo as rés do pedido.

Foi proferido acórdão da Relação de Coimbra de 18.09.2018, que julgou a apelação parcialmente procedente, revogando a decisão recorrida e condenando solidariamente as rés a pagar à autora a quantia de € 60.000,00 por danos não patrimoniais, acrescida de juros legais desde a citação e até integral pagamento.

Não se conformando com tal acórdão, dele recorreram as rés e a autora, esta através de recurso subordinado.

CONCLUSÕES DAS RÉS:

1ª - Como é sabido, a obrigação de indemnizar, de acordo com o disposto no artº 483º do CC, depende da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: o facto (voluntário do agente); a ilicitude desse facto; a imputação do facto ao lesante; o dano; um nexo de causalidade entre aquele facto e este dano (cfr., dentre outros, P. Lima e A. Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, págs. 444 e sgs.).

2ª - Com efeito, dispõe o artº 563º do CC que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.

3ª - Constitui entendimento corrente na doutrina e na jurisprudência que, nos casos em que se possa firmar uma responsabilidade pelo risco, também exige verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, à excepção da ilicitude e da culpa, ou seja, para que se afirme a responsabilidade pelo risco basta a ocorrência de um facto naturalístico (lícito ou ilícito) e de um nexo de causalidade entre o facto e o dano (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Almedina, vol. I, 10º edição, pg. 636; Almeida e Costa, Direito das Obrigações, Almedina, 11ª edição, 612; acórdão do STJ, de 2006.10.10, Silva Salazar, www.dgsi.pt.jstj, proc. 06 A 2764, da Relação do Porto, de 2008.09.30, Pinto dos Santos, www.dgsi.pt.jtrp, proc. 0825401).

4ª - A matéria respeitante ao nexo de causalidade adequada, como tal designada pela doutrina e tida como adoptada no artigo 563º do CC, envolve duas componentes: uma, de feição naturalística, respeitante ao nexo entre o facto-condição e o resultado por ele provocado; outra, de alcance estritamente normativo, tendente a saber se esse facto, em abstracto, é causa adequada daquele resultado (Vide, a este propósito, o acórdão do STJ, de 09/07/2014, relatado pelo Juiz Cons. Fernandes do Vale, no processo n.º 5395/08.5TB LRA.C1.S1, entre outros ali citados, disponível na Internet – http://www.dgsi. pt/jstj).

5ª - Decorrentemente, o juízo sobre a causalidade integra, por um lado, matéria de facto, certo que se trata de saber se, na sequência de determinada dinâmica factual, um ou outro facto funcionou efectivamente como condição desencadeadora de determinado efeito;

E, por outro, matéria de direito, designadamente a determinação, no plano geral e abstracto, se aquela condição foi ou não causa adequada do evento, ou seja, dada a sua natureza, era ou não indiferente para a sua verificação.

6ª - Enquanto que a componente naturalística, abarcando a fixação dos factos e a sua valoração probatória, escapa à sindicância do tribunal de revista, nos termos dos artigos 674º, nº 3, e 682º, n.º 1 e 2, do CPC, já a vertente normativa é passível de apreciação por este Supremo Tribunal (Vide, entre muitos outros, o acórdão do STJ, de 07/05/2014, relatado pelo Juiz Cons. Gabriel Catarino, no processo n.º 1253/07.9TVLSB.L2.S1, disponível na Internet -   http://www.dgsi. pt/jstj.).

7ª - À luz da causa de pedir tal como foi desenhada pela autora, a causa natural determinante que esteve na base do acidente decorreu do facto de a embalagem do produto não estar dotada de uma “tampa de segurança” ou de esta não estar a funcionar adequadamente, o que motivou que, quando aquela procedia à sua abertura, aquela tenha saltado (estoirou no dizer da autora) atingindo-a na cara, projectando sobre si o líquido que estava no seu interior.

8ª - É verdade que a autora também alegou a falta da entrega da ficha técnica e a omissão do dever legal de informar a cliente a manusear o produto e o tipo de produto.

9ª - Porém, quanto a estes dois últimos aspectos, a autora não retira - em termos de alegação fática – da sua omissão qualquer consequência causal do acidente. Pois que a causa do acidente centra-a a autora na omissão ou no mau a funcionamento da “tampa de segurança” da embalagem do produto;

10ª - A autora também não põe em evidência, como tendo tido interveniência causal do acidente, o facto de o rótulo do produto não estar redigido em língua portuguesa. Sendo este um facto discutido no decurso da acção já e em face da própria contestação apresentada pelas rés.

11ª - Conjugada a matéria de facto assente consignada no acórdão recorrido, duas conclusões é possível tirar, com a simples recurso às regras da lógica, e que estão fortemente condicionadas pela forma como a causa de pedir da acção foi desenhada pela autora na petição inicial:

- Não obstante do rótulo do produto constar a menção de “corrosivo” e os dizeres “DD”, bem como instruções de manuseamento aí se mostrando expresso que o mesmo se destinava a uso profissional e alertando para o facto de conter 90% (ou mais) da sua constituição, em ácido sulfúrico, tanto o nome do produto como as demais informações a eles respeitantes se encontravam aí apostas em espanhol;

Contudo,

Não foi possível apurar quais as razões que motivaram que, quando manuseava a embalagem do produto “DD”, o seu conteúdo foi subitamente projectado para fora da embalagem, atingindo a autora na zona torácica, pescoço, braço esquerdo, barriga e pernas, designadamente – e ao contrário do alegado pela autora - que tal se tenha ficado a dever à omissão ou defeito da tampa de segurança da embalagem;

12ª - Ou seja, assentando, necessariamente, o “nexo de causalidade” entre o facto imputado ao agente (no caso as aqui recorrente) e o dano, em “factos” que revelam aquela relação causa/consequência, esses factos devem, também eles constar da própria “decisão de facto” da sentença.

13ª - E não se diga que esta ausência de alegação e prova dos factos integradores do “nexo de causalidade” são supridos – como se fez, a nosso ver erradamente, no acórdão agora recorrido - pelo recurso às “presunções judiciais” na fase da fundamentação jurídica da decisão.

14ª - Tem sido entendido pela doutrina e pela jurisprudência, as presunções judiciais não se reconduzem a um meio de prova próprio, consistindo antes em ilações que o julgador extrai a partir de factos conhecidos (factos de base da presunção) para dar como provados factos desconhecidos (factos presumidos), nos termos do artigo 349º do CC. A presunção centra-se, pois, num juízo de indução ou de inferência extraído do facto de base ou instrumental para o facto essencial presumido, à luz das regras da experiência (Sobre a noção de prova por presunção vide, por todos, Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, p. 214, e Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1985, pp. 500-501).

15ª - Ou seja, as presunções operam na fundamentação da decisão da matéria de facto e não na fundamentação da matéria de direito; e se operam, hão-de levar à consignação como “provados” dos “factos presumidos”;

16ª - Ora, no caso dos autos os factos integradores do nexo de causalidade entre o facto naturalístico imputado às recorrentes e o evento causador do dano da autora não foram dados como provados, pelo que não podem ser “presumidos” na discussão jurídica da causa, tal como foi feito pelo tribunal recorrido.

17ª - Podemos até admitir que, em certas situações possa haver como que um “aligeirar” do “ónus da prova” a cargo do lesado; porém, o que já nos parece não ser de admitir é que o lesado seja “desonerado” do dever de “alegar” esse nexo de causalidade;

18ª - E muito menos podemos aceitar, que alegando o lesado concretos factos integradores de um determinado “nexo de causalidade” que a final não se vêm a provar, seja o agente responsabilizado com base num comportamento ilícito cujo contributo causal para o evento não ficou minimamente demonstrado.

19ª - Em face da presunção consignada pelo tribunal recorrido no ponto 4 do sumário consignado a final do acórdão agora impugnado duas conclusões se impõem:

- A lógica probabilística referida pelo tribunal deveria ter ficado assente em fatos concretos, alegados pela autora e dados como provados pelo Tribunal, que depois fossem subsumidos às normas dos artigos 482º nº 1 e 563º do Cód. Civil?

- À luz da matéria de facto dada como assente, designadamente no ponto 13º da base de facto da decisão recorrida, não é possível concluir que o acidente deveu-se a uma omissão por parte da autora dos procedimentos adequados;

20ª - Assim, por falta de um dos pressupostos da responsabilidade civil, mesmo assentando ela no “risco”, parece-nos que a acção deverá ser julgada improcedente, sob pena de se poder estar a, porventura, a cobrir um dano da autora para cuja ocorrência as rés em nada contribuíram.

21ª - Ao decidir nos termos em que o fez, o tribunal recorrido violou o disposto nos artigos 483º nº 1 e 563º, ambos do Cód. Civil.

Terminam, pedindo que seja concedida revista e, em consequência, revogada a decisão recorrida, substituindo-a por outra que absolva as rés/recorrentes do pedido.

A autora respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.

RECURSO SUBORDINADO DA AUTORA – CONCLUSÕES:

1ª - Os danos não patrimoniais da autora, recorrente, tal como foram dados como assentes pelas instâncias, são gravíssimos e agravar-se-ão no futuro;

2ª – As lesões/sequelas da autora e causas adequadas daqueles danos não patrimoniais advieram da conduta gravemente negligente e grosseira das rés, por violação dos seus mais elementares deveres de informação sobre o tipo de produto por elas comercializado, sua composição e cuidados no seu manuseamento;

3ª – A situação económica das rés, recorridas é, segura e presumivelmente, desafogada, tanto mais que não alegaram, nem provaram que assim não seja;

4ª – A situação económica da autora/recorrida é deveras miserável, privada que ficou, por via daquelas lesões/sequelas, de continuar a exercer a sua actividade profissional ou qualquer outra, compatível com os problemas físicos, psicológicos e psíquicos advindos, que se agravarão no futuro, a sua idade, e o seu défice funcional permanente, físico e psíquico, indemnizável como dano autónomo;

5ª – Não existem, in casu, quaisquer outras circunstâncias que aconselhem o julgador a limitar (equitativamente) a compensação devida pelas rés/recorridas por tais danos não patrimoniais, tão graves e permanentes;

6ª – Daí que o acórdão recorrido, ao fixar o montante daquela compensação em apenas € 60.000,00, recorrendo à equidade, violou, salvo o devido respeito, o disposto no artº 494º do Código Civil;

7ª - Pelo que, revogando-se nessa parte, e fixando a indemnização/compensação devida à autora/recorrente no montante de peticionado (€ 95.000,00) farão justiça.

As rés responderam, pugnando pela improcedência do recurso subordinado.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II -FUNDAMENTAÇÃO

A) Fundamentação de facto

As instâncias deram como provados os seguintes factos:

– No dia 14/8/2006, pelas 12 horas, em … (…), a autora AA foi vítima de um acidente (alínea A dos factos assentes);

– O produto de limpeza com nome comercial “DD” tem uma chamada tampa de segurança, sendo necessário premir com bastante força a tampa e só depois rodá-la (alínea B dos factos assentes);

– Pelo dito acidente, a autora apresentou participação criminal nos serviços do Ministério Público de Viseu, a que deu lugar o inquérito nº 568/08.3TAVIS, tendo sido aí proferido, em 15/3/2011, despacho de arquivamento (alínea C dos factos assentes);

– A ré participou o acidente ao tribunal de trabalho de Viseu, dando origem ao processo de AT nº 171/07.5TTVIS, onde lhe foi fixada uma indemnização por IPP (alínea D dos factos assentes);

– A autora, no exercício das suas funções de trabalho de limpeza, actividade que exercia por conta própria, nas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas em 1º, foi atingida por um produto que continha ácido sulfúrico (artigo 1º da base instrutória);

– A autora, por intermédio da acção de EE, então seu companheiro, havia adquirido nesse mesmo dia do acidente, da parte da manhã, no estabelecimento da ré CC”, um produto de limpeza comercializado pela ré “BB Portugal”, com o nome comercial “DD” (artigo 2º da base instrutória);

– Esse produto destinava-se a desentupir canos, e assim foi solicitado à vendedora, a ré CC” (artigo 3º da base instrutória);

– Do seu rótulo constavam a menção de “corrosivo” e os dizeres “DD”, bem como instruções de manuseamento aí se mostrando expresso que o mesmo se destinava a uso profissional e alertando para o facto de conter 90% (ou mais) da sua constituição, em ácido sulfúrico, sendo que, tanto o nome do produto como as demais informações a eles respeitantes se encontravam aí apostas unicamente em espanhol (artigos 4º, 28º e 29º da base instrutória);

– No momento mencionado em 6º não foi entregue pela ré CC” qualquer ficha técnica, nem advertiu da sua composição (artigo 5º da base instrutória);

10º – Da ficha técnica, obtida posteriormente, resulta que tal produto tem na sua composição cerca de 90% de ácido sulfúrico (artigo 6º da base instrutória);

11º – Tal ficha técnica foi alterada após o acidente quanto à composição do produto (artigo 7º da petição inicial);

12º – A autora muniu-se de luvas de protecção (artigo 8º da base instrutória);

13º – No dia referido em 1º, em condições que, em concreto, não foi possível apurar, quando manuseava a embalagem do produto “DD”, o seu conteúdo foi subitamente projectado para fora da embalagem, atingindo a autora na zona torácica, pescoço, braço esquerdo, barriga e pernas (artigo 9º da base instrutória);

14º – Ato contínuo, a autora pediu socorro, tirou a roupa, tendo sido de imediato levada para o Hospital de Viseu por um terceiro, e daí foi transferida para Coimbra, onde ficou internada (artigos 10º e 11º da base instrutória);

15º – Durante o seu internamento hospitalar na unidade funcional de queimados, a autora foi sujeita a quatro sessões de balneoterapia com indução anestésica, e duas sessões operatórias que consistiram em:

- 23/8/2016, escarectomia do membro superior esquerdo, tórax, abdómen e região cervical;

- 28/8/2006, auto enxertos cutâneos no abdómen e membro superior esquerdo (artigo 12º da base instrutória);

16º – A autora teve alta para o domicílio em 31/8/2006 (artigo 12º da base instrutória);

17º – Em 4/9/2006, a autora foi observada na consulta externa de queimados, onde foi feito penso (artigo 12º da base instrutória);

17.A - De então para cá foi submetida a várias intervenções cirúrgicas, e no momento está a fazer correcções a cicatrizes (artigo 13º da Base instrutória);

18º – A autora sofreu lesões, concretizadas em queimaduras de 2º grau e 3º grau em aproximadamente 6% da superfície corporal, abrangendo a região cervical, tronco anterior, braço esquerdo e pernas, provocadas pelo referido produto (artigo 14º da base instrutória);

19º – A autora padece hoje com carácter definitivo e permanente de sequelas de vária ordem, designadamente:

Pescoço: cinco cicatrizes de aspecto quelóide na face anterior e lateral, a maior com sete centímetros e a menor com dois centímetros;

Tórax: doze cicatrizes de aspecto quelóide na face anterior, a maior com dezassete centímetros e a menor com um centímetro;

Abdómen: cicatriz operatória com 51 centímetros e sete cicatrizes supra umbilicais a maior com oito centímetros e a menor com um centímetro;

Membro Superior Esquerdo: várias cicatrizes de aspecto quelóide, a maior com vinte centímetros e a menor com um centímetro;

Membro Inferior Direito: cicatrizes de aspecto quelóide, a maior com dezasseis centímetros e a menor com quatro centímetros e outra na perna com sete centímetros (artigo 15º da base instrutória);

20º – Nos HUC de Coimbra, a autora foi submetida a plásticas reconstrutivas, tendo dado entrada em 14/8/2006, transferida do Hospital de Viseu (artigo 16º da base instrutória);

21º – Por força das lesões sofridas no acidente, a autora teve dores que se situam no grau 5, numa escala de sete valores (artigo 17º da base instrutória);

22º – As cicatrizes mencionadas no facto 19º, de que a autora ficou portadora, provocam-lhe um dano estético permanente situado no grau cinco, numa escala de sete valores (artigo 18º da base instrutória);

23º – Na zona das cicatrizes, a pele da autora ficou muito sensível ao calor, pelo que nunca pode andar com o tronco à mostra, nem de biquíni na praia, tendo vergonha de o fazer (artigo 19º da base instrutória);

24º – A autora sente-se triste, angustiada e perdeu vontade de viver (artigo 20º da base instrutória);

25º – Na sequência do evento descrito, a autora deixou de trabalhar em limpezas (artigo 21º da base instrutória);

26º – A autora entrou e entra frequentemente em depressão (artigo 23º da base instrutória);

27º – Ao longo dos anos, no exercício da sua actividade, a autora vem utilizando diversos produtos químicos, de natureza perigosa (artigo 25º da base instrutória);

28º – Não tendo sido a primeira vez que utilizou o produto “DD”, desentupidor de canos (artigo 26º da base instrutória);

29º – Em Janeiro de 2006, a ré já havia vendido à autora “DD”- desentupidor de canos, conjuntamente com outros produtos (artigo 27º da base instrutória);

30º – A ré CC” comercializava o produto “DD”, de que era importadora e distribuidora nacional a ré “BB” (artigo 30º da base instrutória).

B) Fundamentação de direito

As questões colocadas e que este tribunal deve decidir, nos termos dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, aplicável por força do seu artigo 5º nº 1, em vigor desde 1 de Setembro de 2013, são as seguintes:

- O nexo de causalidade;

- O montante dos danos.

O NEXO DE CAUSALIDADE

Alegam as recorrentes que falta este pressuposto para as rés poderem ser responsabilizadas pela ocorrência do acidente dos autos: não se provou o nexo de causalidade entre o facto imputado às recorrentes e o evento causador dos danos da autora.

A tese das rés estará condenada ao insucesso, por ter sido feita a prova do nexo de causalidade entre o facto e os danos causados à autora, como se irá demonstrar.

Calvão da Silva[1] escreveu: “Elemento constitutivo da responsabilidade civil em geral é o nexo de causalidade entre o facto e o dano. No caso presente da responsabilidade do produtor, o nexo causal entre o defeito do produto e os danos vem enunciado expressamente no artigo 1º do DL 383/89[2], de 6 de Novembro, que prescreve: “O produtor é responsável, independentemente de culpa, pelos danos causados por defeitos dos produtos que põe em circulação”. Vale isto por dizer que nem todos e quaisquer danos sobrevindos ao defeito do produto são incluídos na responsabilidade do produtor; são-no tão-somente os causados ou provocados pelo defeito. Daí que o nexo de causalidade seja requisito ou pressuposto da responsabilidade e funcione ainda como medida da obrigação de indemnizar.

Mas nada mais adianta sobre a questão o DL nº 383/89. E nada mais diz porque a Directiva Comunitária transposta não a regula, deixando o seu tratamento para os direitos nacionais dos Estados-membros. Por isso, saber mais, de entre todos os danos sofridos pelo lesado, se podem dizer resultantes do defeito do produto, é problema cuja resposta deve ser encontrada nas regras ius commune, pelo que, não sendo específico do nosso tema, seria ocioso recordar mais do que o estritamente indispensável. E o estritamente indispensável é que, entre nós, o conceito de causa juridicamente relevante se determina segundo a teoria da causalidade adequada (artº 563º do Código Civil”.

Dispõe o artigo 563º do Código Civil que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.

Consagra este preceito a teoria da “causalidade adequada” ou seja, para que um facto seja causa adequada de um determinado evento, “não é de modo nenhum necessário que o facto, só por si, sem a colaboração de outros, tenha produzido o dano”, sendo essencial que o “facto seja condição do dano, mas nada obsta a que, como vulgarmente sucede, ele seja apenas uma das condições desse dano”[3].

Ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, que “a fórmula usada no artigo 563º deve, assim, interpretar-se no sentido de que não basta que o evento tenha produzido (naturalística ou mecanicamente) certo efeito para que este, do ponto de vista jurídico, se possa considerar causado ou provocado por ele; para tanto, é necessário ainda que o evento danoso seja uma causa provável, como quem diz adequada desse efeito”[4].

Em matéria de ónus da prova, Calvão da Silva[5] elucida da seguinte forma:

“ Neste ponto, a Directiva Comunitária contém norma específica, o artº 4º, que estatui: “ Cabe ao lesado a prova do dano, do defeito e do nexo causal entre o defeito e o dano”. É a reafirmação da regra clássica do onus probandi, pois o nexo de causalidade entre o defeito e o dano é facto constitutivo do direito à indemnização do lesado, incumbindo a este, por conseguinte, fazer a sua prova, de acordo com as regras gerais. Entre nós, tais regras estão vertidas no artº 342º do Código Civil, cujo nº 1 provê: “Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”. Por isso, teve-se por desnecessário transpor o mencionado artigo da Directiva para o DL nº 383/89.

Convenhamos, porém, que a prova do nexo de causalidade se afigura não raramente muito difícil, como sucede, verbi gratia, quanto às lesões causadas por medicamentos e produtos químicos. Considerado um punctum dolens, na apreciação da prova valem as regras do direito comum, mas devendo ter-se sempre presente que o lesado deve ser ajudado na espinhosa tarefa de demonstrar o nexo causal, no mínimo através da prova de primeira aparência. Por isso, uma vez fixada a existência do defeito do produto e do dano, as regras da experiência da vida, o id quod plerumque accidit e a teoria da causalidade adequada – teoria que reconduz a questão do nexo causal a um juízo de probabilidade – poderão permitir a preponderância da evidência que, no fundo, é uma espécie de presunção da causalidade. (…). Nesta matéria, não nos encontramos, pois, no domínio das certezas, em que o resultado seja obtido através de fórmulas exactas, mas antes num campo em que a normalidade ou a regularidade é a linha de orientação do julgador”.

O acórdão do STJ de 25.03.2010[6] decidiu que “o autor, na acção de responsabilidade civil dirigida contra o produtor, com vista a obter ganho de causa, terá de alegar e provar os seus elementos constitutivos, a saber: os danos, os defeitos e o nexo causal entre estes e aqueles.

Se, em relação aos danos e aos defeitos a produção de prova cai no âmbito da normalidade, já a prova do nexo causal se apresenta, na maior parte das vezes, como sendo muito difícil: perante isso, as regras da experiência de vida, o id quod plerumque accidit e a teoria da causalidade adequada poderão permitir a preponderância da evidência, uma espécie de causalidade”.

No caso dos autos, verificou-se a existência de deficiências na rotulagem.

Efectivamente, provou-se que:

“ Do seu rótulo constavam a menção de “corrosivo” e os dizeres “DD”, bem como instruções de manuseamento aí se mostrando expresso que o mesmo se destinava a uso profissional e alertando para o facto de conter 90% (ou mais) da sua constituição, em ácido sulfúrico, sendo que, tanto o nome do produto como as demais informações a eles respeitantes se encontravam aí apostas unicamente em espanhol (artigos 4º, 28º e 29º da base instrutória) – Facto provado sob o nº 8.

Quanto à ficha técnica do produto, provou-se o seguinte:

– No momento mencionado em 6º não foi entregue pela ré CC” qualquer ficha técnica, nem advertiu da sua composição (artigo 5º da base instrutória) – Facto provado nº 9.

– Da ficha técnica, obtida posteriormente, resulta que tal produto tem na sua composição cerca de 90% de ácido sulfúrico (artigo 6º da base instrutória) - Facto provado nº 10.

– Tal ficha técnica foi alterada após o acidente quanto à composição do produto (artigo 7º da petição inicial) - Facto provado nº 11.

O acidente ocorreu do seguinte modo:

– A autora muniu-se de luvas de protecção (artigo 8º da base instrutória) - Facto provado nº 12.

– No dia referido em 1º, em condições que, em concreto, não foi possível apurar, quando manuseava a embalagem do produto “DD”, o seu conteúdo foi subitamente projectado para fora da embalagem, atingindo a autora na zona torácica, pescoço, braço esquerdo, barriga e pernas (artigo 9º da base instrutória) - Facto provado nº 13.

Como bem se refere no acórdão da Relação de Coimbra, constatando-se a existência de deficiências na rotulagem - desde logo, por não se encontrar redigida em língua portuguesa –, tal omissão há-de ter-se como causa adequada da omissão por parte da autora de comportamentos conformes à real perigosidade do produto, concluindo-se pela existência de nexo causal entre a informação deficitária constante do seu rótulo (aliada à falta de informação verbal aquando da venda por parte da Ré CC) e a projecção do produto sobre o corpo da autora aquando do manuseamento da embalagem por parte desta.

Sobre esta matéria, relevam outros fundamentos jurídicos.

Assim, a ré BB, na qualidade de importadora do produto, e a ré CC, enquanto comercializadora do mesmo, enquadram-se no conceito de “produtor”, respondendo nos termos do regime legal da responsabilidade objectiva do produtor pelos danos causados nos produtos que coloca em circulação, contido no artigo 2º do Decreto-Lei nº 383/89, de 06 de Novembro.

Vejamos qual o conceito específico de defeito consagrado no diploma.

Dispõe o nº 1 do seu artigo 4º:

“ Um produto é defeituoso quando não oferece a segurança com que legitimamente se pode contar, tendo em atenção todas as circunstâncias, designadamente a sua apresentação, a utilização que dele razoavelmente possa ser feita e o momento da sua entrada em circulação”.

A alª c), do artigo 3º do DL 69/2005, de 17 de Março[7], considera produto perigoso “qualquer bem não abrangido pela definição de produto seguro a que se refere a alínea b)”, apresentando-nos a seguinte definição de “produto seguro”:

 “Qualquer bem que, em condições de utilização normais ou razoavelmente previsíveis, incluindo a duração, se aplicável a instalação ou entrada em serviço e a necessidade de conservação, não apresente quaisquer riscos ou apresente apenas riscos reduzidos compatíveis com a sua utilização e considerados conciliáveis com um elevado grau de protecção da saúde e segurança dos consumidores, tendo em conta, nomeadamente:

i) As características do produto, designadamente a sua composição;

ii) A apresentação, embalagem, a rotulagem e as instruções de montagem, de utilização, de conservação e de eliminação, bem como eventuais advertências ou outra indicação de informação relativa ao produto;

iii) Os efeitos sobre outros produtos quando seja previsível a sua utilização conjunta;

iv) As categorias de consumidores que se encontrarem em condições de maior risco ao utilizar o produto, especialmente crianças e idosos.

O defeito do produto pode ser intrínseco, por resultar do seu conteúdo, características e composição, mas também extrínseco, se deriva da sua apresentação, embalagem, rotulagem e de eventuais instruções de utilização[8].

No mesmo sentido, Calvão da Silva:[9] “ os defeitos de informação ou de instrução, resultantes do não cumprimento ou cumprimento imperfeito do dever de alertar, advertir ou instruir, são, pois, vícios extrínsecos, não ínsitos no produto, diferentemente dos defeitos de concepção e de fabrico que são vícios intrínsecos, inerentes à própria estrutura do produto (in re ipsa)”.

O mesmo autor[10] refere que “naturalmente, o juiz atende ao produto em si, às suas características e composição, mas também à sua apresentação (…) o defeito não deriva só do produto em si, do seu conteúdo ou natureza intrínseca, mas também do seu “continente”, da forma externa como é apresentado ao público em todo o processo de comercialização. Com esta explicitação, a falta da segurança legitimamente esperada abrange tanto a que deriva de vícios intrínsecos (defeitos de concepção e defeitos de fabrico) como a que resulta dos vícios extrínsecos (defeitos de informação): o público espera que a “segurança externa” do produto, infundida pela sua apresentação, publicidade, descrição e informação, não falte, tal como crê na sua “segurança interna”.

O DL nº 69/2005, de 24 de Abril, transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva nº 2001/95/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de Dezembro, relativa à segurança dos produtos e serviços colocados no mercado.

No seu artigo 4.º (Obrigação geral de segurança) preceitua:

1 - Só podem ser colocados no mercado produtos seguros.

2 - Sem prejuízo do disposto no nº 4, considera-se conforme com a obrigação geral de segurança o produto que estiver em conformidade com as normas legais ou regulamentares que fixem os requisitos em matéria de protecção de saúde e segurança a que o mesmo deve obedecer para poder ser comercializado.

Quanto à ficha de dados de segurança, dispõe o artigo 13º do DL nº 82/2003, de 23 de Abril que as informações fornecidas nas fichas de dados de segurança se destinam, sobretudo, aos utilizadores profissionais e devem permitir-lhes tomar as medidas necessárias para proteger a saúde e o ambiente e garantir a segurança nos locais de trabalho.

Relativamente à obrigação de entrega da ficha de dados de segurança, dispõe o nº3 da citada norma, que “O responsável pela colocação no mercado de uma preparação perigosa nos termos do nº 2 do artº 1º, deve fornecer ao utilizador profissional uma ficha de dados de segurança elaborada de acordo com o número anterior, o mais tardar por ocasião da primeira entrega da preparação, e, posteriormente, após qualquer revisão efectuada na sequência de novas informações significativas relativas à segurança e protecção da saúde e do ambiente”. A nova versão, datada e identificada como “Revisão … (data)”, deve ser distribuída a todos os utilizadores profissionais que tenham recebido a preparação nos 12 meses precedentes”.

Na comercialização das preparações perigosas em território nacional a ficha de dados de segurança deve ser redigida em língua portuguesa – nº 6 do artº 13º e nº 1 do artigo 18º da Portaria 732-A/96, de 11 de Dezembro.

O produto em apreço – comercializado sob a designação DD e destinado a desentupir canos – é composto de uma mistura de ácido sulfúrico e ácido fosfórico, com prevalência do primeiro[11] (50 a 90% de ácido sulfúrico e 10 a 50% de ácido fosfórico, segundo a ficha técnica original do produto, datada de 01.03.96[12]).

Os símbolos de perigo devem ser impressos a negro em fundo amarelo-alaranjado (artº 9º, nº7, DL 82/2003).

O artigo 10º preceituando sobre a aplicação dos requisitos de rotulagem, refere que o rótulo deve estar solidamente fixado numa ou mais faces da embalagem, de tal forma que as informações em questão possam ser lidas na horizontal quando a embalagem estiver colocada na sua posição normal (nº1 do artº 10º)

As indicações obrigatoriamente constantes dos rótulos das embalagens das preparações abrangidas pelo presente Regulamento, comercializadas em território nacional, devem ser redigidas em língua portuguesa (nº 6 do artigo 10º).

Neste âmbito, poder-se-á, ainda, acrescentar que o direito à informação, em geral e em particular, constitui componente incontornável da defesa do consumidor, porquanto pode condicionar de forma decisiva os comportamentos das pessoas – como o ilustra bem este caso. De outro modo, pode ficar em crise a efectivação dos assinalados valores da vida/saúde/segurança.

Ora, a informação devida constitui emanação dos deveres de informação consignados nos artigos 7º e 8º da Lei da Defesa do Consumidor (Lei 24/96, de 31 de Julho), os quais, sendo omitidos, conferem ao consumidor o direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais, ao abrigo do artigo 8º nº 5 da mesma Lei, onde se estabelece que:

“O fornecedor de bens ou prestador de serviços que viole o dever de informar responde pelos danos que causar ao consumidor, sendo solidariamente responsáveis os demais intervenientes na cadeia da produção à distribuição que hajam igualmente violado o dever de informação”.

Poder-se-á ainda dizer que se trata de um produto defeituoso, cujo defeito está relacionado com a falta de informação ao nível da rotulagem e a falta de entrega da ficha técnica à autora por parte da vendedora (artigo 913º do Código Civil) e, nessa medida, será também convocável, como fundamento da reparação de danos, o artigo 12º da Lei de Defesa do Consumidor.

Quanto ao grau de segurança a ter em conta, Calvão da Silva afirma “a lei não exige que o produto ofereça uma segurança absoluta, de risco zero: apenas a segurança com que legitimamente se pode contar (artº 4º nº 1 do DL nº 383/89), pois há “riscos reduzidos compatíveis com a sua utilização e considerados conciliáveis com um elevado nível de protecção da saúde e segurança dos consumidores (artº 2º alª b) do Dec. Lei nº 69/2005; artº 2º, alª b), da Directiva 2001/95/CE)[13]”.

Podemos, pois, afirmar que um produto que desrespeite alguma norma de segurança, nomeadamente por violação das regras de informação constantes da rotulagem, terá de presumir-se “defeituoso” para efeitos da responsabilidade objectiva do produtor.

“Um produto pode ser ilegitimamente inseguro por falta, insuficiência ou inadequação de informações, advertências ou instruções sobre o seu uso e perigos conexos. Em si mesmo não defeituoso, porque bem concebido e fabricado, o produto pode, todavia, não oferecer a segurança legitimamente esperada porque o seu fabricante o pôs em circulação sem as adequadas instruções sobre o modo do seu emprego, sem as advertências para os perigos que o seu uso incorrecto comporta, sem a menção das contra-indicações da sua utilização, sem as informações sobre as suas propriedades perigosas – v.g., toxicidade, inflamabilidade – e efeitos secundários, etc.[14]

Voltando ao caso dos autos e à questão em apreço nas conclusões das alegações das recorrentes (o nexo de causalidade), tendo em atenção, em especial, os factos provados sob os nºs 8º a 13º, tal como consta do acórdão recorrido, “constatando-se a existência de deficiências na rotulagem – desde logo, por não se encontrar redigida em língua portuguesa –, tal omissão há de ter-se como causa adequada da omissão por parte da autora de comportamentos conformes à real perigosidade do produto, concluindo-se pela existência de nexo causal entre a informação deficitária constante do seu rótulo (aliada à falta de informação verbal aquando da venda por parte da ré CC) e a projecção do produto sobre o corpo da autora aquando do manuseamento da embalagem por parte desta.

Demonstrado o defeito – omissão das instruções em língua portuguesa – é de considerar como provável que a deficiência dos avisos e instruções de manuseamento no rótulo aposto no produto (aliadas ao facto de o produto ter sido vendido sem a ficha técnica, esta sim em português, e sem qualquer alerta para os respectivos perigos) foi a causa de uma eventual omissão por parte da autora dos cuidados conformes à real perigosidade do produto e que terão levado à projecção do líquido sobre o seu corpo.

Não existindo informação suficiente sobre a perigosidade do produto (a omissão das instruções em língua portuguesa tornam-na insuficiente, por dificultar a sua compreensão para o cidadão comum) e tendo o sinistro ocorrido “enquanto manuseava a embalagem do produto”, é apropriado estabelecer um nexo de causalidade entre a falta de informação e os danos.

Caso a informação constante do rótulo se encontrasse redigida em português, e alertando para a real perigosidade do produto, levaria o utilizador a precaver-se, colocando protecção adequada no corpo ou rodeando-se de cuidados para impedir que o líquido saísse para fora do recipiente de modo descontrolado”.

Deste modo, podemos concluir que a autora demonstrou que o acidente não teria ocorrido se as rés tivessem cumprido com as obrigações a que estavam adstritas.

Por isso, temos por verificados todos os requisitos da responsabilidade civil, incluindo o nexo de causalidade, pelo que, nesta parte se confirma o douto acórdão recorrido, improcedendo as conclusões das alegações de revista das rés.

O MONTANTE DOS DANOS

A autora pediu a condenação solidária das rés a pagar-lhe a quantia de € 95.000,00, na qual computou os danos não patrimoniais por si sofridos, acrescida de juros legais, desde a citação até efectivo e integral pagamento. Tais danos consistem nas dores que sofreu, pelas cicatrizes que ostenta e que a impedem de andar com o tronco à mostra, pelo facto de ter sido obrigada a deixar de trabalhar nas limpezas, encontrando frequentemente em depressão.

A sentença julgou a acção improcedente e absolveu as rés do pedido.

O douto acórdão decidiu nos seguintes termos:

“ Dentro de um juízo de equidade (artigo 496º do CC), considerando as lesões sofridas – queimaduras de 2º e 3º grau em aproximadamente 6% da superfície corporal, e que lhe deixaram um Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 21,8 pontos (Exame do IML de fls. 296 a 298), os tempos de internamento, as várias intervenções cirúrgicas a que vem sendo sujeita para minimizar as cicatrizes que ostenta, as dores sofridas pela autora, de grau 5, numa escala de 1 a 7, o dano estético, também de nível 5, numa escala de 1 a 7, e os estados depressivos que lhe tem acarretado, considera-se adequada a fixação de uma indemnização no valor de 60.000,00 €”.

A autora, no recurso subordinado, pugna pela condenação das rés no montante de € 95.000.00, correspondente ao pedido formulado na petição inicial.

Cumpre decidir.

Conforme refere Vera Lúcio Cardoso[15]:

“ O dano da lesão corporal é ainda indemnizável na sua vertente não patrimonial. Ou seja, também aqui estão incluídos os danos não patrimoniais derivados de tais lesões - dores, sofrimento, angústia - como esclarece Calvão da Silva[16]. Esta solução resulta, quer da ausência de diferenciação legal do tipo de danos a indemnizar, quer (e talvez sobretudo) da utilização da expressão “lesão pessoal[17], mais ampla do que a utilizada no artigo 9º/a da Directiva 85/374/CEE, que se refere simplesmente a “lesão corporal”, o que permite defender que apenas abrange danos causados ao corpo, ao passo que entre nós se têm em conta os danos sofridos pela pessoa, na sua integralidade.

Na esteira do decidido no Ac. do STJ 25.10.2018[18], “se o STJ é chamado a pronunciar-se sobre o cálculo de uma indemnização assente em juízos de equidade, não lhe compete a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar, mas tão-somente a verificação exacta acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo”.

A aplicação de puros juízos de equidade não traduz, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito”. Por isso, se o STJ é chamado a pronunciar-se sobre o cálculo da indemnização que haja assentado decisivamente em juízos de equidade, não lhe compete a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar, mas tão-somente a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo, formulado pelas instâncias face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto.

Ora, considerando os gravosos ferimentos e dores sofridas pela autora em consequência do acidente, bem espelhados nos nºs 13 a 26º da Fundamentação de facto, é de concluir que a fixação, pela Relação, do quantum indemnizatório, a título de danos não patrimoniais, em € 60.000,00 se situou dentro do que impunham os referidos limites e pressupostos, num adequado juízo prudencial e casuístico.

Nesta conformidade, improcede o recurso subordinado, confirmando-se o douto acórdão da Relação.

III - DECISÃO

Atento o exposto, nega-se provimento à revista e ao recurso subordinado, confirmando-se o douto acórdão recorrido.

Custas pelas recorrentes na respectiva proporção.

Lisboa, 14 de Março de 2019

Ilídio Sacarrão Martins (Relator)

Nuno Manuel Pinto Oliveira

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

_________________
[1] Responsabilidade Civil do Produtor, Almedina, 1990,pág.s 711-712.
[2] Transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva nº 85/374/CEE, do Conselho, de 25 de Julho de 1985.

[3] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 2ª Edição, 1973, página 744 e 756
[4] Código Civil Anotado, Volume I, 3ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, em anotação ao artigo 563º, pág. 548.
[5] Ob cit, págs. 712 e 713.
[6] Proc.º nº 5521/03.0TBALM.S1, in www.dgsi.pt/jstj e CJ STJ I/2010, pág. 153.
No mesmo sentido, Vera Lúcia Raposo, “A Responsabilidade do Produtor Por Danos Causados Por Dispositivos Médicos”, RIDB, Ano 2 (2013), nº5, p.4312, disponível in  http://www.idb-fdul.com/.
[7] Diploma que estabelece as garantias de segurança dos produtos e serviços colocados no mercado, transpondo para a ordem jurídica nacional a Diretiva nº 201/95/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 03 de Dezembro, relativa à segurança geral dos produtos.
[8] Ac STJ de 05.01.2016, Proc.º nº 2790/08.3TVLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt/jstj
[9] Compra e Venda de Coisas Defeituosas (Conformidade e Segurança), 5º Edição, Revista e Aumentada, Almedina, pág. 207
[10] Ob e loc cit pág. 201-202.
[11] Cfr., Conclusões do Relatório de Exame Pericial ao produto “weslim – desatascador” junto a fls. 468 a 484.
[12] Fls. 385v a 387.
[13] “Compra e Venda de Coisas Defeituosas, Conformidade e Segurança”, 5ª edição, Revista e Aumentada, Almedina, 2008, p. 198.
[14] Calvão da Silva, “Responsabilidade Civil do Produtor”, Colecção Teses, Almedina, 1990, pág.659.
[15] Citada na nota de rodapé nº 6, mas agora na pág. 4320.
[16] Responsabilidade Civil do Produtor, p. 678
[17] Artigo 8º do DL 383/99.
[18] Proc.º nº 2416/16.1T8BRG.G1.S1, in www.dgsi.pt/jstj