Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05S2552
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERNANDES CADILHA
Descritores: GRAVAÇÃO DA PROVA
ÓNUS DA ALEGAÇÃO
CUMPRIMENTO IMPERFEITO
REJEIÇÃO DE RECURSO
Nº do Documento: SJ200511290025524
Data do Acordão: 11/29/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 6089/04
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : I - Havendo um deficiente cumprimento do especial ónus da alegação a que se refere o n.º 2 do artigo 690-A do Código de Processo Civil, quando se pretenda impugnar a decisão proferida pela primeira instância sobre a matéria de facto, há lugar ao convite para completamento ou aperfeiçoamento da alegação, por analogia com o disposto no n.º 4 do artigo 690 do mesmo diploma;

II -Nesses termos, há lugar ao convite para aperfeiçoamento da alegação, quando o recorrente, na vigência desse preceito na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto, se limita a indicar o local aproximado onde se encontram os depoimentos gravados, na convicção errónea de que a acta de audiência de julgamento não assinalava com precisão o inicio e o termo do respectivo registo.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:


1. Relatório.

"A", com os sinais dos autos, intentou a presente acção emergente de contrato individual de trabalho contra o B - Restaurante Bar, S. formulando um pedido indemnizatório fundado em despedimento ilícito.

Tendo sido efectuada a audiência de discussão e julgamento com gravação a prova, foi julgada a acção apenas parcialmente procedente em primeira instância.

Mediante recurso de apelação, a ré veio impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto, limitando-se, na respectiva alegação, a resumir os depoimentos das testemunhas que considerou relevantes, face à impossibilidade - segundo afirmou - de indicar o início e o termo das gravações, conforme o disposto no artigo 690º-A, n.º 2, do Código de Processo Civil.

O Tribunal da Relação de Lisboa rejeitou o recurso quanto à matéria de facto por considerar que a recorrente não cumpriu o ónus alegatório previsto no referido preceito da lei processual civil, mormente por não ter indicado o início e o termo da gravação da cada um dos depoimentos, que, contrariamente ao que a recorrente invocava, estavam referenciados na acta.

Nestes termos, a Relação, tomando por base a matéria de facto dada como assente, confirmou o julgado na primeira instância quanto às questões de direito.

É desta decisão que vem interposto recurso de revista, em cuja alegação, na parte útil, a recorrente entende que não havia lugar à rejeição do recurso de apelação quanto à matéria de facto, porquanto o Tribunal da Relação não se encontrava totalmente impossibilitado de reapreciar a matéria de facto e que só no caso de a recorrente ter omitido de todo os depoimentos em que se baseava é que essa rejeição liminar se justificaria.

No mais, a recorrente, repetindo tudo o que alegou perante a Relação, considera que, em face da reavaliação dos depoimentos gravados, se deverão ter como provados os factos que conduzam ao reconhecimento do direito ao pagamento de diferenças salariais e de retribuições respeitantes a trabalho em dia de descanso semanal, trabalho suplementar e trabalho nocturno.

Não houve contra-alegação e o Exmo representante do Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser concedida a revista, por entender que se justificaria, no caso, o convite para suprimento da falta detectada quanto ao cumprimento do ónus alegatório.

Colhidos os vistos dos Juízes Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

2. Fundamentação de direito.

A questão que se perfila na revista é a de saber se é admissível a rejeição do recurso de apelação quanto à matéria de facto, por incumprimento do ónus alegatório imposto pelo n.º 2 do artigo 690-A do Código de Processo Civil, tal como decidiu a Relação.

Na apelação, a recorrente pretendia que fosse reavaliada a prova produzida em audiência através dos depoimentos gravados das testemunhas C e D. Invocando, porém, a impossibilidade se de indicar o início e o termo das gravações, conforme o disposto no artigo 690º-A, n.º 1, alínea b), e n.º 2, do Código de Processo Civil, a recorrente resumiu os depoimentos de cada uma das testemunhas, indicando ainda que tais depoimentos se "encontravam na cassete n.º 1 (a meio do lado A com continuação do lado B e termo a meio deste mesmo lado)".

O Tribunal da Relação rejeitou o recurso por considerar que a recorrente não cumpriu o ónus alegatório previsto no citado artigo 690º-A, n.º 2, do Código de Processo Civil, referindo que, contrariamente ao que a recorrente afirma, a acta da audiência de julgamento, a fls 209 dos autos, contém a menção do início e o termo da gravação da cada um dos depoimentos, e não existia, por isso, impedimento a que se desse satisfação àquele ónus.

É contra este entendimento que se insurge a recorrente, alegando que não havia motivo para a rejeição liminar.

E afigura-se que lhe assiste razão.

O artigo 690º-A do CPC, aditado pelo Decreto-Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro, na sequência da admissibilidade do registo das provas produzidas em audiência de julgamento - medida inovadora que havia sido introduzida por esse diploma em vista a garantir um efectivo segundo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto -, veio impor ao recorrente que pretenda impugnar a decisão de facto um especial ónus de alegação no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à sua fundamentação (cfr. preâmbulo do diploma).

Na sua primitiva redacção, esse preceito dispunha:

"1- Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos pontos probatórios, constantes do processo ou do registo ou da gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, proceder à transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação em que se funda.
3 - (...)
4 - (...)"

À data da propositura da acção (23 de Outubro de 2001), estava, porém, em vigor a nova redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto, que, no propósito de implementar algumas medidas simplificadoras ao nível do processo civil declarativo comum que pudessem, de algum modo, favorecer a celeridade processual, veio substituir aquele regime de transcrição das passagens da gravação, por um novo sistema de indicação dos depoimentos por mera remissão para o início e termo da respectiva audição que estiver assinalado na acta.

Assim, o n.º 2 do artigo 690-A passou a estatuir:

"No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 522º"

Tem-se discutido na doutrina se esse especial ónus alegatório é susceptível de suprimento mediante convite do tribunal, por aplicação analógica do n.º 4 do artigo 690º do CPC. Em sentido afirmativo, pronuncia-se Armindo Ribeiro Mendes (Os Recursos no Código de Processo Civil Revisto, Lisboa, 1998, págs. 84 e 85) e em sentido negativo posicionam-se Lopes do Rego (Comentários ao Código de Processo Civil, Coimbra, 1999, pág. 466), e Amâncio Ferreira (Manual dos Recursos em Processo Civil, 3.ª edição, Coimbra, 2002, pág. 150, nota 301). Por sua vez, na jurisprudência, o acórdão do STJ de 16 de Outubro de 2002, no processo n.º 2244/02 (4ª), entretanto seguido por outros arestos, veio definir como solução mais equilibrada aquela que passa pela distinção entre a falta total de menção das especificações exigidas e da transcrição das passagens relevantes e o mero cumprimento defeituoso desses ónus.

E escreveu-se a esse propósito o seguinte:

"Na primeira hipótese, o recorrente desprezou completamente os encargos que a lei lhe atribuiu como requisito para poder beneficiar de um verdadeiro segundo grau de jurisdição em matéria de facto; na segunda hipótese, tentou cumprir esse ónus, mas fê-lo de forma incorrecta ou incompleta. As sanções a essas falhas devem ser proporcionais à sua gravidade: na primeira hipótese, parece claro que o legislador cominou a "rejeição" imediata do recurso da decisão da matéria de facto, à semelhança da imediata declaração de deserção do recurso no caso de falta (absoluta) de alegação (n.º 3 do artigo 690.º); na segunda hipótese, justificar-se-á a prévia formulação de convite para completamento ou correcção da alegação ou da transcrição, à semelhança do que ocorre quando a alegação apresente irregularidades (n.º 4 do artigo 690.º). Trata-se, no fundo, da posição defendida por Lopes do Rego quando, na passagem citada, sustenta a não formulação de convite ao aperfeiçoamento da alegação e a liminar rejeição do recurso da decisão da matéria de facto (apenas) quando essa alegação "não satisfaça minimamente o estipulado nos n.ºs 1 e 2", designadamente por o recorrente não "delimitar minimamente o objecto do recurso" ou não "fundamentar, de forma concludente, as razões da discordância, através da indicação dos concretos meios probatórios que, na sua óptica, o tribunal valorou erroneamente" (sublinhados acrescentados). Desde que haja uma tentativa séria de cumprimento dos ónus, ainda que não inteiramente conseguida, não se justifica a liminar rejeição do recurso, mas antes o convite ao suprimento das deficiências detectadas."

No caso vertente, o que se constata é que a recorrente, na errónea convicção de que a acta não mencionava o início e o termo dos depoimentos, limitou-se a indicar o local aproximado onde eles se encontravam.

Não parece que, nestas circunstâncias, se possa considerar que a recorrente não cumpriu minimamente o ónus alegatório. A recorrente não só identificou os depoimentos que pretendia ver reavaliados, como deu indicação suficientemente concretizada sobre o local onde eles se encontravam registados, justificando o incumprimento do disposto no artigo 690º, n.º 2, do CPC, por não se encontrar assinalada na acta a referência precisa a cada um dos depoimentos gravados.

A constatação de que a recorrente laborava em erro, nesse ponto, porquanto a acta continha, de facto, as menções necessárias ao cumprimento da exigência legal, não justifica, de nenhum modo, que se rejeite o recurso, e antes aconselha que tribunal emita despacho de aperfeiçoamento convidando a recorrente a corrigir o erro.

Essa era uma atitude que se justificava plenamente em ordem ao dever de cooperação processual, que se encontra patentemente expresso nos artigos 265º e 266º do CPC e que, ademais, constitui um princípio estruturante do novo modelo processual instituído pela reforma de 1995-1996.

Como observa Teixeira de Sousa, este dever de cooperação, tratando-se na realidade de um poder-dever ou de um dever funcional, desdobra-se em três vertentes essenciais: um dever de esclarecimento, isto é, o dever de o tribunal se esclarecer junto das partes quanto às dúvidas que tenha sobre as suas alegações ou posições; um dever de prevenção, ou seja, o dever de o tribunal prevenir as partes sobre eventuais deficiências ou insuficiências das suas alegações ou pedidos; e um dever de consultar as partes sempre que pretenda conhecer de matéria de facto ou de direito sobre a qual aquelas não tenham tido a possibilidade de se pronunciarem (Estudos sobre o novo processo civil, Lisboa, 1996, págs. 65-66).

Releva, no caso, em especial, o regime do artigo 265º, n.º 2, do CPC que impõe que o juiz providencie, "mesmo oficiosamente, pelo suprimento de falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância", e que, como afloramento de um princípio geral, deve considerar-se aplicável também os pressupostos de um acto processual, aí se incluindo o erro na forma procedimental utilizada.

Era essa, manifestamente, a situação dos autos, pelo que o recurso merece provimento.

3. Decisão

Em face do exposto, julgando prejudicado o conhecimento das demais questões, acordam em conceder a revista, revogar a decisão recorrida e ordenar que, em sua substituição, seja convidada a parte a corrigir as deficiências quanto ao cumprimento do ónus alegatório relativo à impugnação da matéria de facto.

Sem custas.

Lisboa, 29 de Novembro de 2005
Fernandes Cadilha, (Relator)
Mário Pereira,
Maria Laura Leonardo.