Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
048562
Nº Convencional: JSTJ00027787
Relator: ANDRADE SARAIVA
Descritores: REENVIO DO PROCESSO
ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
ERRO NOTÓRIO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ199601310485623
Data do Acordão: 01/31/1996
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N453 ANO1996 PAG338
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: DIR PROC PENAL - RECURSOS.
Legislação Nacional: CPP87 ARTIGO 374 N2 ARTIGO 410 N2 N3 ARTIGO 436.
Sumário : Haverá "erro notório na apreciação da prova" (alínea c) do n. 2 do artigo 410 do Código de Processo Penal), demonstrado pelo texto da decisão, quando o Colectivo não dá como provado um facto, apesar de, na fundamentação, dizer que ele foi presenciado por duas testemunhas e omitir as razões por que duvidou delas.
Decisão Texto Integral: Acordam os juizes que compõem a 1. subsecção criminal do Supremo Tribunal de Justiça:
No processo comum colectivo n. 156/95, do 1. Juízo do
Tribunal de Círculo de Portimão, por douto acórdão de
29 de Maio de 1995 o Tribunal Colectivo decidiu: a) julgar improcedente a douta acusação e absolver os
Arguidos A e B do crime que lhes é imputado dos artigos 22, 23, 74, 131 e 132 ns. 1 e 2 alínea c) do Código Penal; b) julgar improcedente o pedido de indemnização civil formulado pelo ofendido C contra os
Arguidos; c) ordenar a restituição imediata dos Arguidos à liberdade, e a estes das peças de vestuário apreendidas, caso as reclamem.
Inconformado interpôs recurso C, ofendido e demandante civil, que motivou, concluindo:
1 - o douto acórdão recorrido absolveu os Arguidos A e B, com base no princípio "in dubio pro reo", por se ter criado no espírito do douto Tribunal uma dúvida razoável que obstou à decisão condenatória dos Arguidos;
2 - dúvida essa que resultou da contradição das declarações das testemunhas D e E e as declarações do ofendido;
3 - porém da correcta apreciação da prova, necessário será concluir que o ofendido estando embriagado e de costas para os Arguidos não pode saber quem de facto o empurrou, fazendo uma mera suposição de tais factos, ao passo que as testemunhas estavam sóbrias, digo, testemunhas estando sóbrias, sendo vigilantes em serviço no local, estando necessariamente alerta, e de frente para os Arguidos e ofendido, tendo visto todo o desenrolar dos acontecimentos conforme o afirmaram, dão uma garantia de certeza, de cem por cento, pelo que, qualquer homem médio colocado na posição de apreciador do presente caso, optaria indubitavelmente por concluir pela condenação dos Arguidos com base no depoimento das testemunhas, já que estas e só estas, pelo posicionamento que tinham do local onde se desenrolaram os factos podem provar os mesmos;
4 - porém, o douto acórdão agora recorrido dá como provado, a posição no local onde ocorreram os factos, quer das testemunhas quer do ofendido, tal como se descreve no artigo precedente, aceita como verdadeiras as declarações das testemunhas, e depois absolve os
Arguidos;
5 - para além do mais, pelo menos quanto à questão da queda ter sido provocada por um empurrão, independentemente de ter sido um ou outro Arguido que o tivesse dado, há unanimidade na prova feita, já que, quer as testemunhas quer o ofendido estão de acordo que este último caiu porque foi empurrado;
6 - tendo o ofendido apresentado pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime, nos termos do artigo 71 do Código de Processo Penal, a absolvição dos
Arguidos da prática do mesmo, prejudicou definitivamente o pedido de indemnização civil apresentado, pelo que, sendo o ofendido de opinião de que a decisão do douto Tribunal enferma de vícios, outra via não lhe restava senão recorrer da decisão.
Deve ser decretado o reenvio do processo nos termos do artigo 436 do Código de Processo Penal.
Inconformado interpôs também recurso o Ministério
Público que mostrou, concluindo: a) ao não se dar como provada que a queda do ofendido aconteceu por intervenção de terceiros, devido a empurrão por parte de um dos Arguidos, houve por parte do colectivo erro notório na apreciação da prova; b) houve contradição manifesta e insanável na fundamentação da decisão, no que concerne à explanação dos motivos de facto em que se alicerça o acórdão, ao recorrer o Colectivo aos depoimentos das mesmas testemunhas para basear a sua convicção tanto no que diz respeito aos factos provados como os não provados; c) o princípio "in dubio pro reo" tem de ser passível de controlo, não sendo neste caso pertinentes as dúvidas que levaram o Colectivo a absolver os Arguidos; d) de tudo se conclui que o acórdão violou o disposto no artigo 374, n. 2 do Código de Processo Penal, pelo que deverá ser declarado nulo, dando lugar a novo julgamento, nos termos do artigo 379 alínea a) do
Código de Processo Penal.
Deve declarar-se nulo o douto acórdão recorrido, que determinou a absolvição dos arguidos, sendo ordenada a realização de novo julgamento.
Os recursos foram admitidos para subir imediatamente, nos próprios autos e sem efeito suspensivo.
Apresentaram resposta os Arguidos demandados civis que concluíram: a) o douto acórdão recorrido não enferma de erro notório na apreciação da prova, porquanto, não se provou que os Arguidos tenham empurrado o queixoso, nem se provou porque razão se deu a queda do queixoso e, muito menos, se provou que a queda se tenha dado por intervenção de terceiros e que esses terceiros tenham sido os Arguidos; b) o douto acórdão recorrido não enferma de contradição manifesta e insanável na fundamentação da decisão, porquanto, se baseou na prova produzida em audiência de julgamento; c) o douto acórdão recorrido fez, correcta interpretação do princípio fundamental "in dubio pro reo"; d) o douto acórdão recorrido não violou o disposto no artigo 374, n. 2 do Código de Processo Penal.
Deve ser negado provimento aos recursos.
O Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto teve vista no processo.
A requerimento do recorrente C foram produzidas alegações escritas.
Apresentaram-nas o Excelentíssimo Procurador-Geral
Adjunto no sentido do reenvio; o recorrente C no mesmo sentido por a decisão absolutória resultar de erro na apreciação da prova, uma vez que conclui em sentido contrário a prova produzida; e os Arguidos pugnando pela improcedência dos recursos.
Colhidos os vistos, cumpre decidir, após realização da audiência.
Factos provados pelo Tribunal Colectivo:
1 - no dia 22 de Maio de 1994, cerca das 4 horas, os
Arguidos passaram e permaneceram, por certo lapso de tempo, junto à esplanada do Hotel "...", em Albufeira;
2 - enquanto por ali permaneceram, travaram conhecimento com o ofendido C, com quem trocaram breve conversa, após o que este se afastou, na companhia de um indivíduo de nacionalidade francesa, cuja identidade não foi apurada e desceu em direcção à praia;
3 - o ofendido regressou momentos depois, ainda na companhia do indivíduo francês e voltaram a estar na mesma plataforma, os Arguidos que ainda aí se encontravam o ofendido e o "francês", estes virados para a praia, com cerca de um metro de altura;
4 - em circunstâncias não apuradas, o C caiu sobre o muro, projectando-se para além deste, na praia, a uma altura de cerca de 4 metros;
5 - os Arguidos afastaram-se do local;
6 - como consequência da queda, o ofendido sofreu traumatismo de 1. grau, com fractura da 11. vértebra dorsal;
7 - tais lesões foram determinantes directas de paraplegia completa dos membros inferiores do ofendido, bem como de paraplesia da bexiga e do recto, incapacitando a 100 porcento o C para o trabalho, com carácter de irreversibilidade;
8 - os Arguidos não têm antecedentes criminais;
9 - quer os arguidos, quer o ofendido haviam ingerido durante algumas horas antes do acidente, bebidas alcoólicas, apresentando-se o segundo em estado acentuado de embriagues;
10 - o indivíduo francês vendo cair o C desceu à praia para o socorrer;
11 - momentos depois e estranhando que o ofendido e o
"francês" não aparecessem, D e E, identificados nos autos, desceram à praia e providenciaram por socorro e assistência médica ao primeiro;
12 - o indivíduo francês viria também a ausentar-se do local, depois do ofendido ser transportado em ambulância.
Factos não provados pelo Colectivo:
13 - os arguidos houvessem formulado o propósito de molestarem o ofendido;
14 - quando passou por aqueles tivesse sido por eles abordado;
15 - o Arguido A tivesse passado ao seu co-Arguido um copo que trazia na mão e de imediato tenha desferido um empurrão no ofendido;
16 - este tenha caído em consequência de um empurrão sofrido; que os Arguidos verificando que o C jazia imobilizado na praia e convictos de que o mesmo se encontrava sem vida, tivessem abandonado o local a rir;
17 - da conversa entre eles tivessem resultado divergências com o C pela sua diferente nacionalidade e do facto de na noite de 22 de Maio de
1994 ter privado com duas mulheres em detrimento dos Arguidos.
O recurso para o Supremo Tribunal de Justiça visa, sem prejuízo do disposto no artigo 410, ns. 2 e 3 do Código de Processo Penal, exclusivamente o reexame de matéria de direito.
A delimitação do âmbito do recurso é feita pelas conclusões da motivação do recorrente, não podendo o tribunal de recurso conhecer de matéria nelas não inserida.
A questão a decidir é a de saber se existe algum dos vícios apontados - erro notório na apreciação da prova e contradição insanável da fundamentação - e que levarão, a existirem, ao reenvio do processo para novo julgamento.
O digno recorrente refere haver nulidade do douto acórdão recorrido por ter violado o disposto no artigo 374, n. 2 do Código de Processo Penal, mas o certo é que nas conclusões antecedentes fala é no erro notório da apreciação da prova e na contradição manifesta e insanável da decisão, o que são vícios da decisão, e não causas de nulidade da mesma.
Tudo gira à volta da fundamentação da matéria de facto constante do douto acórdão recorrido "As testemunhas D e E afirmaram ter visto o Arguido A dar um forte empurrão nas costas do ofendido, este afirma que apanhou uma pancada na zona lateral esquerda do pescoço, dada pelo Arguido B".
E conforme consta do douto acórdão foi devido a esta divergência que os Arguidos foram absolvidos.
Se o Tribunal Colectivo não tem naquela fundamentação explicitado o teor das declarações das testemunhas e do ofendido, tudo estava resolvido, pois os vícios apontados não resultam da decisão, só do seu texto ou em conjugação com as regras da experiência comum.
No entanto face à referência feita do teor das declarações, já assim não pode ser, pois o Tribunal
Colectivo aponta duas causas possíveis da queda do ofendido: uma é o forte empurrão nas costas do ofendido dado pelo Arguido A (afirmação das testemunhas D e E) e outra a pancada dada na zona lateral esquerda do pescoço do ofendido, pelo Arguido B (afirmação do próprio ofendido), não sendo de excluir que a causa da queda seja uma ou outra ou até ambas.
O ofendido para cair da plataforma onde estava para a praia, e duma altura de cerca de quatro metros, teve de ultrapassar o muro da plataforma com cerca de um metro de altura, o que leva a supor ter de haver um certo balanço, a que é adequado o forte empurrão dado nas suas costas pelo Arguido A como afirmam as testemunhas D e E.
Também não se percebe como conciliar a afirmação destas testemunhas com o facto não provado "O Arguido A... de imediato tenha desferido um empurrão no ofendido", pois de acordo com o próprio acórdão este facto é afirmado pelas duas testemunhas, que nada mostra terem faltado à verdade. Certo é também que o empurrão referido pelas testemunhas pode não ter sido a causa da queda, tudo dependendo da relação existente entre ele e a queda, até no espaço e no tempo.
Estas divergências só com nova produção de prova poderão ser ultrapassadas, e ela só pode ser ferida na primeira instância pelo que se impõe o reenvio do processo para novo julgamento.
Existe erro notório na apreciação da prova resultante do próprio texto da decisão ao não dar como provado que o Arguido A tenha desferido um empurrão no ofendido quando na fundamentação, expressamente se refere que as testemunhas D e E afirmaram ter visto o Arguido A dar um forte empurrão nas costas do ofendido; para se dar como não provado o empurrão, face à afirmação das testemunhas o Tribunal
Colectivo na fundamentação da matéria de facto tinha de dizer porque não aceitava como verdadeira tal afirmação.
Já não vemos que exista contradição insanável na fundamentação pelo facto de nas mesmas testemunhas se ter baseado o Tribunal Colectivo para formar a convicção tanto quanto aos factos provados como não provados, pois uns e outros são independentes e autónomos quer no espaço quer no tempo e ser perceptíveis e relatados pelas mesmas pessoas, desde que a eles tenham assistido.
Conclusão:
Concede-se provimento aos recursos interpostos pelo
Ministério Público e pelo demandante civil C e, por isso, determina-se o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artigo 436 do
Código de Processo Penal, relativamente à totalidade do objecto do processo, por existir no douto acórdão recorrido o vício do erro notório na apreciação da prova.
Sem tributação.
Notifique-se.
Lisboa, 31 de Janeiro de 1996.
Andrade Saraiva,
Lopes Rocha,
Costa Figueirinhas,
Castro Ribeiro.
Decisão impugnada:
Acórdão de 29 de Maio de 1995 de Portimão.