Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
882/14.9TJVNF-G.G1.G1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
INSOLVÊNCIA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
CONTRATO-PROMESSA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
DIREITO DE RETENÇÃO
CONSUMIDOR
DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
MORA
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
Data do Acordão: 04/02/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / NÃO CUMPRIMENTO / FALTA DE CUMPRIMENTO E MORA IMPUTÁVEIS AO DEVEDOR / IMPOSSIBILIDADE DO CUMPRIMENTO / MORA DO DEVEDOR.
DIREITO FALIMENTAR – EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / EFEITOS SOBRE OS NEGÓCIOS EM CURSO / PRINCIPIO GERAL QUANTO A NEGÓCIOS AINDA NÃO CUMPRIDOS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 801.º E 808.º, N.º 1.
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 102.º E SS..
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


-. ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA N.º 4/2014, DE 20-03;
- DE 25-11-2014, PROCESSO N.º 629/04.0T8BRG.G1.S1;
- DE 29-07-2016, PROCESSO N.º 6193/13.0TBBRG-H.G1.S1;
- DE 11-05-2017, PROCESSO N.º 1308/10.2T2AVR-R.P1.S1, IN SASTJ, CIVEL, WWW.STJ.PT;
- DE 19-06-2018, PROCESSO N.º 16/14.0TVLSB.L1.S1;
- DE 11-09-2018, PROCESSO N.º 25261/11.6T2SNT-D.L1.
Sumário :

I - A aplicação do segmento uniformizador do AUJ n.º 2014, de 20-03, mostra-se limitada aos contratos promessa que não se encontrem definitivamente incumpridos à data da declaração da insolvência.

II – Não se verifica incumprimento definitivo de contrato-promessa antes da declaração da insolvência da sociedade promitente-vendedora quando resulta do processo que, face à situação de mora em que esta já se encontrava, o promitente-comprador não só não a interpelou admonitoriamente, como, dois meses após a declaração da insolvência, procedeu à marcação da escritura visando a celebração do contrato definitivo, que não ocorreu por falta de comparecimento dos representantes da promitente-vendedora.

III – Configurando os contratos promessa negócios jurídicos em curso, para efeitos do disposto nos artigos 102.º e ss. do CIRE, há que fazer observar a jurisprudência fixada no AUJ n.º 4/2014; como tal, o reconhecimento do direito de retenção ao promitente-comprador depende da sua qualidade de consumidor ao intervir nos negócios que firmou com a sociedade declarada insolvente.

IV – É consumidor para tal efeito o promitente-comprador que destina o imóvel a uso particular, no sentido de não o comprar para revenda nem o afectar a uma actividade profissional ou lucrativa.

V – Na intervenção limitada do STJ no domínio factual é-lhe permitido reenviar o processo ao tribunal recorrido quando seja entendido que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito.

VI -Porque o uso de tal expediente pressupõe um juízo de antecipação da decisão de direito, carece de cabimento legal o aditamento de factos que, ainda que provados, se mostrem insusceptíveis de influir na decisão de mérito.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,

I – relatório

1. AA, nos termos do artigo 146º, nº1 e 2, alínea b) e 148º, ambos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE) propôs acção de verificação ulterior de créditos contra BB, Lda., declarada insolvente em 20-01-2015, a Massa Insolvente da BB, Lda. e Credores da Insolvente da BB, Lda, formulando os seguintes pedidos:

- ser declarada a resolução dos contratos-promessa de compra e venda celebrados a 10-8-2006, dos quais fazem parte o aditamento de 2-3-2014;

- ser-lhe reconhecido o direito a receber a quantia de € 335.000,00 a título de restituição em dobro do montante prestado a título de sinal e respectivos juros de mora vencidos, sempre acrescido de juros vincendos à taxa legal até efectivo e integral pagamento, devendo tal crédito ser graduado no lugar privilegiado que lhe compete, nos termos dos artigos 755º e 759º do Código Civil;

- ser-lhe reconhecido o direito a receber a quantia de € 45.000,00 a título de indemnização por benfeitorias realizadas na fracção em causa, sempre acrescido de juros vincendos à taxa legal até efectivo e integral pagamento;

- ser-lhe reconhecido o direito de retenção sobre as fracções autónomas correspondentes a duas habitações do tipo T2, identificadas pelas letras … e …, situadas respectivamente, nos blocos … e …, freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº …- fracções … e …,  inscritas na respectiva matriz urbana sob os artigos … e …, para garantia do seu crédito de € 335.000,00 e bem assim dos respectivos juros de mora vincendos;

- ser admitido, verificado e graduado no lugar que lhe competir, atento o direito real de garantia existente, o crédito ora reclamado, sempre acrescido de juros vincendos até efectivo e integral pagamento.

Fundamentou a acção no incumprimento, pela sociedade devedora BB, Lda. de dois contratos promessa de compra e venda relativos a dois imóveis (fracções … e …, inscritas na matriz urbana sob os artigos … e …) pelo preço, respectivamente de €100.000,00 e €90.000,00, celebrados em 04-09-2006 e 30-07-2007.

2. A credora CC, SA e a Massa Insolvente deduziram contestação pugnando pela improcedência da acção.

3. Proferido despacho saneador com identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas de prova e realizado julgamento foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo as Rés do pedido.

4. Inconformado, apelou o Autor, tendo o Tribunal da Relação de Guimarães (por acórdão de 04-10-2018) julgado parcialmente procedente a apelação, declarando resolvidos os contratos-promessa de compra e venda celebrados, reconhecendo ao Autor o direito a receber a quantia de €335.000,00, a título de restituição em dobro do montante prestado a título de sinal e respectivos juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal até efectivo e integral pagamento, crédito a graduar sem direito de retenção sobre os mesmos.

5. O Autor veio interpor recurso de revista formulando as seguintes conclusões (transcrição):

“1ª. Estando provado que em relação a contrato promessa que tem por objecto duas fracções autónomas e que devia ser cumprido pela promitente vendedora até final de Janeiro de 2014, cabendo à mesma promitente a marcação da escritura; estando provado que a propriedade horizontal de que as fracções prometidas vender fazem parte foi constituída em 2010; estando provado que essas fracções autónomas foram penhoradas em 2013, motivo por que a promitente vendedora nem sequer marcou a escritura em 2014; estando provado que, em Janeiro de 2014, em lugar de marcar a escritura, a promitente vendedora antes declarou que “não tinha condições económicas que lhe permitissem desonerar o imóvel da hipoteca constituída a favor da entidade bancária”, ocasião em que fez um aditamento ao contrato, entregando as chaves das fracções que prometeu vender para que o promitente adquirente as acabasse porque “não tem disponibilidade financeira que lhe permita sequer a conclusão da obra”; constando dos autos que a insolvência foi requerida pelo próprio credor hipotecário, é inequivocamente seguro de concluir que o incumprimento era, desde o final de Janeiro 2014, impossível.

2ª. De facto, estando a promitente vendedora em agonizantes dificuldades financeiras, não é concebível que alguma vez estaria em condições de cumprir a promessa de transmissão, livre de ónus e encargos, da propriedade das duas referidas fracções autónomas, sendo de concluir que, neste caso, a fixação de um prazo pelo outro contraente seria um acto inútil, uma pura perda de tempo - expressão retirada do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Março de 2005, acima citado

3ª. Em face de um incumprimento definitivo anterior à insolvência, não há que ponderar a respeito da qualidade de consumidor por aplicação do Acórdão Uniformizador n.º 4/2014, tirado a propósito de um incumprimento posterior a uma insolvência, pois que vigora, “tout court”, o disposto na alínea f), do n.º 1, do artigo 755.º, do Código Civil.

4ª. Para os efeitos da aplicação do Acórdão Uniformizador n.º 4/2014, consumidor é "a pessoa singular que actue para a prossecução de fins alheios ao âmbito da sua actividade profissional", ou seja que não destina os andares à revenda - expressão retirada do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29 de Maio de 2014 -sem deixar de fora “o promitente-comprador que, tendo embora arrendado o imóvel prometido comprar, não desenvolve qualquer actividade profissional ou empresarial relacionada com o mercado imobiliário” - expressão retirada do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 29 de Janeiro de 2015 - pois que dele se excluem apenas “aquele que adquire bem no exercício da sua actividade profissional de comerciante de imóveis.” - expressão retirada do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28 de Março de 2017.

5ª. Estando provado que o promitente adquirente de duas fracções autónomas, que é uma pessoa singular, beneficiou da entrega antecipada das fracções para as poder concluir pois que estavam inacabadas; estando provado que deu de arrendamento uma delas, donde decorre que concluiu essa fracção; estando provado que ao receber as fracções clausulou com o promitente alienante que podia para as fracções pedir água, luz e gás, é de concluir que as fracções autónomas não se destinavam a revenda, antes ao uso, próprio ou por cedência do gozo (arrendamento); convicção que sai reforçada pela circunstância de uma das fracções, como se provou, ter sido efectivamente dada de arrendamento.

6ª. Tendo em vista a aplicação do Acórdão Uniformizador n.º 4/2014, quando o tribunal entender que para a decisão relativa à verificação do direito de retenção, importa apurar se o reclamante se dedica ou não a uma qualquer actividade, e não o tendo o reclamante alegado factos a esse respeito, deve o mesmo tribunal, no uso do poder-dever que resulta das disposições da alínea b), do n.º 2, do artigo 590.º e do artigo 6.º, ambos do Código de Processo Civil, determinar a notificação para aperfeiçoamento da reclamação; da igual modo e detectando-se essa insuficiência no Tribunal da Relação, deve este, no uso do poder-dever da alínea a), do n.º 2, do artigo 662.º, do mesmo Código, determinar a ampliação da matéria de facto; e, num caso como noutro, sempre iluminados pelos princípios do acesso à justiça, da cooperação, do dever de auxílio e da boa fé processual, dos princípios antiformalista, pro actione e do in dúbio pro habilitate instantiae (cf. artigos 4.º, e 6.º a 8.º do Código de Processo Civil).

7ª. E, se isto é assim em geral, é-o por maioria de razão quando, afinal de contas, o que está em causa é um requisito (o de o bem se destinar a um consumidor) que não consta do texto da lei (alínea f), do n.º 1, do artigo 755.º), antes foi acrescentado por jurisprudência (ainda que bem e iluminada pelo espírito do legislador).

8ª. De resto, “Se a parte não foi bem patrocinada e o articulado apresentado é tecnicamente imperfeito e impreciso, mas ainda assim não é inepto, por nele estarem indicados de forma intelegível os factos essenciais que suportam a pretensão e as razões de direito em que a mesma se funda, tem o julgador o poder-dever de auxiliar aquela parte, para que as deficiências técnicas do seu patrocínio não comprometam irremediavelmente os seus direitos ao acesso à justiça e a uma igualdade substancial. Nessa medida, o julgador deve apelar à cooperação e boa fé processual de todos os intervenientes processuais, para que a peça imperfeita possa ser corrigida, adoptando uma postura antiformalista e em favor da promoção do conhecimento do mérito do processo.” - Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, de 27 de Setembro de 2012, disponível no portal [www.dgsi.pt], com a referência processo 03937/08.

9ª. A deliberação recorrida violou o disposto nas normas indicadas nas conclusões anteriores, para lá do disposto no n.º1 do artigo 790.º do Código Civil.

6. Não foram apresentadas contra alegações.

 

II – APRECIAÇÃO DO RECURSO

De acordo com o teor das conclusões das alegações (que delimitam o âmbito do conhecimento por parte do tribunal, na ausência de questões de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º2, 635.º, n.4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil – doravante CPC) mostra-se submetida à apreciação deste tribunal a seguinte questão:
ð Do reconhecimento à Recorrente do direito de retenção sobre os imóveis objecto dos contratos promessa celebrados com a devedora insolvente  

1.1 Os factos provados

1-Por sentença de 20-1-2015 foi declarada a insolvência da sociedade “BB, Lda.”.

2- A insolvente é dona de duas fracções descritas na CRP de ... sob o nº …, fracções … e …, inscritas na matriz urbana sob os artigos … e ….

3- A 4-9-2006 e 30-7-2007 foram celebrados dois contratos-promessa de compra e venda entre a insolvente na qualidade de promitente vendedora e o Autor como promitente-comprador no âmbito do qual aquela prometia vender e este comprar as fracções supra identificadas.

4- O preço para a fracção A era de € 100.000,00 e para a fracção P era de € 90.000,00, que seria pago nas seguintes condições: fracção … - € 75.000,00 a título de sinal na data da outorga do contrato-promessa e recebido pela insolvente nessa data; e a parte restante na data da outorga da respectiva escritura pública; fracção P- € 70.000,00 a título de sinal na data da outorga do contrato promessa, recebido pela insolvente nessa data; a parte restante na data da outorga da escritura pública.

5- As escrituras públicas de compra e venda seriam realizadas até ao dia 30-1-2014.

6- Incumbia à insolvente a marcação da escritura definitiva de compra e venda, devendo para tanto avisar o promitente-comprador da data, hora e local.

7- Ficou convencionado atribuírem eficácia real aos contratos promessa.

8- Os contratos promessa de compra e venda foram devidamente assinados e as assinaturas do Autor e dos legais representantes da insolvente foram reconhecidas um mês e outra anos após a celebração dos contratos.

9- Perante as dificuldades da insolvente no cumprimento do contratualizado, no que concerne à data prevista para a realização da escritura pública, de compra e venda das fracções … e …, o Autor e aquela, a 2-3-2014, alteraram os referidos contratos-promessa nos termos do qual convencionam a entrega efectiva do imóvel, alterando simultaneamente as condições do contrato-promessa: “(…)Considerando que: 1º Entre os aqui outorgantes foram celebrados em 4 de Setembro de 2006 e 30 de Julho de 2007 dois contratos promessa de compra e venda referente à fracções “…” e “…” do imóvel sito no Lugar ..., freguesia de ..., concelho de ..., cujo solo se encontrava então descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº …- fracções “…” e “…”; 2º- Considerando que se encontram por concluir integralmente os acabamentos das referidas fracções; 3º- Considerando que está largamente ultrapassado o prazo de conclusão dessas mesmas fracções pela primeira outorgante, por estar contratualmente fixado o limite para 30 de Janeiro de 2014 para a outorga da competente escritura; 4º- Considerando que a título de sinal referente às supra indicadas fracções “…” e “…” o segundo outorgante já liquidou à primeira outorgante, respectivamente, a quantia de € 75.000,00 e € 70.000,00; 5º- Considerando que na presente data a primeira outorgante não tem disponibilidade financeira que lhe permita sequer a conclusão da obra, quer o resgate da hipoteca que sobre elas incide e indispensáveis à outorga da escritura; 6º- Considerando que o segundo outorgante mantém o interesse na aquisição das referidas fracções; Acordam os outorgantes o seguinte: 1º- A primeira outorgante entrega, materialmente, nesta data as fracções identificadas no considerando 1º deste contrato com todas as chaves do mesmo concedendo-lhes a posse única e exclusiva a partir da presente data, ficando o segundo outorgante expressamente autorizado a, querendo, proceder à substituição das respectivas fechaduras; 2º- O segundo outorgante, por conta do preço remanescente a liquidar a final, fica autorizado a concluir os acabamentos das referidas fracções. 1º Os acabamentos respeitarão obrigatoriamente o caderno de encargos e qualidade de materiais previstos no projecto bem como o existente nas demais fracções do imóvel; 3º- O segundo outorgante fica autorizado a requisitar contador de água, luz e gás nas indicadas fracções bem como para eles requisitar serviços de comunicações nomeadamente de televisão por cabo. 1º- Até à instalação dos respectivos contadores o segundo outorgante fica expressamente autorizado pela primeira a utilizar a energia eléctrica e água das zonas comuns e, ou, de obra.(…)”.

10- Nos termos convencionados, a escritura pública de compra e venda seria realizada, até ao dia 30 de Janeiro de 2014, incumbindo à promitente vendedora insolvente a marcação da escritura definitiva de compra e venda, devendo para tanto avisar o promitente-comprador, ora Autor, da data, hora e local.

11- Mais ficou convencionado e foi cumprido que na data de assinatura das adendas, a insolvente entregava ao segundo outorgante aqui Autor as respectivas chaves das fracções prometidas vender, tomando este posse imediata e efectiva das mesmas.

12- Findo o mês de Janeiro de 2014 a insolvente não diligenciou por qualquer forma pela celebração ou marcação da escritura pública de compra e venda, tal como lhe incumbia.

13- No Cartório Notarial do Dr. DD, em ..., os representantes da insolvente não compareceram para outorgar “uma escritura de compra e venda” marcada para esse dia 26/03/2015.

14- A insolvente limitou-se a reiterar a sua impossibilidade de marcação e realização da venda prometida nos precisos termos acordados, faltando à outorga da referida escritura pública.

15- Chegados a Março 2014 a insolvente protelava a realização da escritura pública de compra e venda alegando que não tinha condições económicas que lhe permitissem desonerar o imóvel da hipoteca constituída a favor da entidade bancária, pelo que primou pela sua ausência no cartório e data previamente agendadas e notificadas ao promitente-comprador.

16- A escritura de compra e venda não foi realizada.

17- Desde a data da entrega das chaves, a 2-3-2014, o Autor tratou de arrendar a fracção ….

18- O Autor procedeu ao registo dos respectivos contratos e seu aditamento.

19- O credor sociedade CC, SA financiou directamente a construção do empreendimento imobiliário em que se integram as fracções autónomas.

20- Na data de outorga dos contratos promessa o prédio descrito na CRP de ... sob o nº … da freguesia de ... ainda não se encontrava constituído em propriedade horizontal.

21- A constituição em propriedade horizontal só ocorreu a 5-3-2010.

22- O Autor sabia à data da celebração dos contratos promessa sobre o prédio descrito na CRP de ... sob o nº … da freguesia de ... que se encontrava registada a favor do Banco CC uma hipoteca que garantia uma responsabilidade superior a um milhão de euros.

23- O Autor sabia da existência e subsistência dos ónus e encargos constituídos e registados a favor do Banco sobre as fracções que prometeu comprar.

24- As fracções encontravam-se penhoradas em execução hipotecária movida pelo Banco CC desde Outubro de 2013.

25- A … recebeu uma comunicação escrita de EE, datada de 18-3-2015, onde a mesma reclama a existência de um contrato promessa de compra e venda sobre a fracção …, onde figura como promitente compradora.

1.2. Factos não provados

A- Que as assinaturas foram reconhecidas presencialmente perante o Notário.

B- Só não tendo sido outorgada a escritura de compra e venda por a insolvente se ter recusado a tal.

C- Agendamento esse concedido sob a cominação de, não sendo respeitado, ter o aqui Autor por definitivamente incumpridos o contrato-promessa celebrado, com base na perda de interesse da sua parte, com o consequente direito a exigir a resolução desses contratos promessa e a restituição em dobro do montante global prestado a título de sinal e de reforço de sinal.

D- Apesar das diversas interpelações quer pessoalmente quer por escrito para que marcasse a escritura pública de compra e venda.

E- Chegados a Março de 2014, a insolvente alegava todas as mais variadas desculpas, falta de algum documento, falta de disponibilidade do representante legal para não realizar a escritura.

F- A partir dessa data a insolvente passou a justificar a não realização da escritura pública com a existência de penhoras no âmbito dos processos de execução, um movido pelo Banco CC e outro sob o nº 3806/11.1TJVNF do 3º juízo cível do tribunal judicial de … corriam os seus termos.

G- As declarações por parte da insolvente de que não cumpria ou não podia cumprir com aquilo a que estava obrigada, a venda dos prédios urbanos prometidos livre de ónus e encargos, mesmo após a interpelação, nos termos supra referidos, que lhe foi dirigida pelo Autor levou à perda de interesse deste no cumprimento dos contratos promessa referidos.

H- O Autor realizou as seguintes obras nas fracções: pintura, granito e soalhos nos pavimentos e pagou todos os impostos ínsitos à compra e venda.

I- Tem vindo a usufruir de todas as virtualidades das referidas fracções, tratando-as como coisa sua.

J- Aí pernoitando, fazendo as suas refeições, entrando e saindo às horas que entende, recebendo as visitas de amigos e familiares, tendo aí colocado todos os seus haveres.

K- O Autor mobilou e equipou as fracções.

L- Guardando a sua viatura no lugar de garagem.

M- Limpando, arejando e cuidando da mesma.

N- À vista de todos.

O- Sem oposição de quem quer que seja.

P- Pagando inclusive os gastos inerentes às fracções, nomeadamente água, luz e gás.

Q- Que o único intuito da insolvente e do Autor da presente demanda é prejudicar directamente os créditos e as garantias hipotecárias do Banco CC, S.A.

2. O direito


ð Do reconhecimento ao Recorrente do direito de retenção sobre os imóveis

2.1 Na acção estão em causa os efeitos do incumprimento de dois contratos-promessa de compra e venda de prédio urbano[1]-[2], celebrados em 04-09-2006 e 30-07-2007, entre o Autor (promitente-comprador) e a devedora BB, Lda. (promitente-vendedora), declarada insolvente por sentença de 20-01-2015.

Ao invés do concluído na sentença (que o incumprimento definitivo dos contrato-promessa por parte da promitente-vendedora é anterior à declaração de insolvência desta), o acórdão recorrido considerou que a situação integrava a previsão do artigo 102.º, n.º1, do CIRE, estando-se perante negócio(s) em curso, pelo que o incumprimento definitivo dos contratos promessa e consequentes efeitos (direito à devolução do sinal em dobro) resultaram da declaração da insolvência e da apreensão dos imóveis para a massa insolvente sendo, por isso, posterior à declaração da insolvência.

Relativamente ao direito de retenção sobre os imóveis aprendidos de que a Autora se arroga (enquanto promitente-comprador com tradição da coisa objecto do contrato) para garantia do respectivo crédito, socorrendo-se da doutrina fixada no AUJ n.º 4/2014, de 20-03, concluiu o acórdão pela inverificação do pressuposto necessário ao reconhecimento desse direito: a qualidade de consumidor.

Referiu a tal respeito:

(…) o Acórdão Uniformizador n.º 4/2014 interpretou restritivamente o preceito do artigo 755.º, n.º 1, al. f) do C.Civil no sentido de que fica a coberto da prevalência conferida pelo direito de retenção o promissário de transmissão do imóvel que, obtendo a tradição da coisa, seja simultaneamente consumidor.

Tem vindo a ser entendido, sobre esta questão, que o conceito de consumidor deve ser aquele que se encontra consagrado na Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96 de 31.07) e no Dec.-Lei n.º 24/2014 de 14.02, que procedeu à transposição para a ordem jurídica interna da Directiva n.º 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 25.10.2011.

O artigo 2.º, n.º 1 da Lei de Defesa do Consumidor considera consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios.

E, segundo a mencionada Directiva, transposta pelo Dec.-Lei n.º 24/2014 de 14.02, consumidor é qualquer pessoa singular que atue com fins que não se incluam no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal.

No quadro da insolvência, para efeito de reconhecimento do direito de retenção ao promitente-comprador, o Acórdão do STJ, de 13/07/2017, definiu como consumidor aquele que adquiriu bens ou serviços para satisfação de necessidades pessoais e familiares (uso privado) e para outros fins que não se integrem numa atividade económica levada a cabo de forma continuada, regular e estável.

Acrescentando-se, sempre ressalvando as particularidades de cada caso, que não se integra nesse conceito quem dá de arrendamento o imóvel, por essa aquisição e afetação não terem a ver propriamente com "consumo", isto é, com satisfação de necessidades privadas, visando antes a obtenção de rendimentos que essa afetação propicia. Quem assim atua no mercado, não pode ser considerado em situação de fraqueza ou vulnerabilidade que justifique a proteção acrescida concedida aos consumidores.

O conceito tem assim subjacente a necessidade de proteção da parte débil economicamente ou menos preparada tecnicamente.

No caso em apreço, o Autor não logrou provar a qualidade de consumidor na medida em que apenas ficou provado que, desde a entrega das chaves, em 02 de Março de 2014, tratou de arrendar a fração ….

Nada mais logrou o Autor demonstrar que o caracterizasse como consumidor a justificar uma proteção acrescida, designadamente o arrendamento da fração … ter sido efetuado fora do âmbito da sua atividade profissional normal, de se tratar de um acto isolado não integrando um uso regular com carácter lucrativo.

2.2 Insurge-se a Recorrente pugnando pela inaplicabilidade do decidido no AUJ n.º 4/2014 com fundamento em que, tal como havia sido decidido em 1ª instância, o incumprimento dos contratos promessa foi anterior à declaração de insolvência.

         Defende ainda que, a considerar-se aplicável o referido AUJ por se entender o incumprimento decorrente da declaração de insolvência, não poderá deixar de lhe ser reconhecido o direito de retenção sobre os imóveis apreendidos por resultar dos autos que não destinou nenhuma das fracções à revenda.

         Invoca ainda, para o caso de não se considerar demonstrado o destino dado aos imóveis, que seja ordenada ao Tribunal da Relação a ampliação da matéria de facto.

2.3 Resulta incontroverso no processo que os (dois) contratos promessa de compra que a então BB, Lda., posteriormente declarada insolvente, celebrou com a aqui Recorrente, em que ocorreu a entrega antecipada dos (dois) imóveis, foram definitivamente incumpridos, conferindo à promitente-compradora, em consequência da resolução dos contratos, o direito à restituição, em dobro, do montante entregue a título de sinal.

         Assim, a questão que, neste âmbito, assume dissídio reporta-se ao reconhecimento ao Autor do direito de retenção relativamente aos imóveis objecto dos contratos promessa para garantia do montante que já se mostra reconhecido, questão que se prende com a de saber se o incumprimento definitivo dos contratos-promessa é, ou não, posterior à declaração de insolvência (a 20-01-2015).

         Conforme já sublinhado, as instâncias deram resposta dissonante a esta última questão, sendo que a mesma tem relevância para o reconhecimento do direito de retenção de que o Autor se arroga pois que, a seguir o entendimento do acórdão recorrido (estar em causa negócios em curso em que o incumprimento dos contratos-promessa decorre da situação de insolvência), o reconhecimento do direito dependerá da qualidade do Autor enquanto consumidor (face à aplicabilidade do AUJ n.º 4/2014).

Com efeito, quanto à delimitação do âmbito de aplicação do segmento uniformizador do referido AUJ n.º 2014, de 20-03, tem vindo a ser consistentemente decidido neste Supremo Tribunal que o mesmo se circunscreve às situações em que o credor promitente-comprador não obteve cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência[3] pois que, salienta o acórdão desta 6ª Secção, de 11-05-2017, o AUJ 4/2014 fez instituir um regime especial em sede insolvencial, por forma a que apenas os promitentes-compradores consumidores cujo contrato tenha sido resolvido após a declaração de insolvência, pudessem gozar de privilégio em relação à hipoteca, em sede de graduação de créditos.[4]

        Na sequência do decidido no acórdão deste tribunal de 11-09-2018 (Processo n.º 25261/11.6T2SNT-D.L1)[5], tal delimitação retira da alçada do AUJ os contratos promessa que se encontrem incumpridos à data da declaração da insolvência[6] uma vez que, nesses casos, não se pode configurar a situação de o administrador da insolvência não os cumprir.

A este respeito, na caracterização do negócio jurídico em curso para efeitos do disposto nos artigos 102.º e seguintes do CIRE, explicita o supra citado acórdão de 20-07-2016 “Mas importa ir mais longe e questionar quais são estes contratos que o administrador da insolvência não cumpre.

A resposta é dada pelo artigo 102.º do CIRE. Ainda que este não contenha um princípio tão geral como a sua epígrafe sugere e a solução que consagra tenha que ser integrada e completada pelos artigos seguintes – mormente em matéria de contrato-promessa pelo artigo 106.º - o certo é que o regime ai estabelecido é fundamentalmente um regime para contratos em curso ou em fase de execução, em que não há ainda cumprimento total do contrato por qualquer uma das partes. É essa execução que é suspensa e é o cumprimento, que ainda seria exigível ao devedor insolvente que o administrador pode recusar – quer essa recusa seja uma resolução ou antes deva ser concebida como uma reconfiguração contratual.

E daí que a doutrina tenha sublinhado que o regime dos artigos 102.º e seguintes do CIRE não se aplica a contratos que já foram resolvidos anteriormente à data da declaração de insolvência, encontrando-se agora em uma fase de liquidação.

A este respeito observa FERNANDO DE GRAVATO MORAIS que «o incumprimento definitivo (imputável ao promitente-vendedor) da promessa de compra e venda (por exemplo, com a alienação do bem (…) com a recusa séria e categórica em cumprir ou com a resolução ilegítima daquele promitente) que importe a extinção do contrato-promessa antes da declaração de insolvência – no caso de entrega da coisa ao promitente-comprador que sinalizou a promessa – gera a aplicação das regras civilistas» acrescentando que «verificada a insolvência posteriormente á extinção do contrato não cabe aplicar o disposto no art. 106.º, dado que o regime integrado no capítulo IV, referente aos “efeitos sobre os negócios em curso” pressupõe que o cumprimento ainda seja possível».

Também L. MIGUEL PESTANA DE VASCONCELOS afirma que «se tiver havido resolução do contrato por qualquer uma das partes antes da declaração de insolvência, não estamos perante um negócio em curso no sentido do Capítulo IV do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas»”.       

        Reportando-nos à situação sob apreciação, ao invés do que pretende o Recorrente e do entendimento sufragado na sentença, não é possível concluir no sentido de que o incumprimento definitivo dos contratos promessa em causa tenha ocorrido em data anterior à declaração da insolvência face ao que resulta da factualidade assente.

         Vejamos.

2.4 Nos contratos promessa celebrados, não tendo as partes convencionado o direito de resolver os vínculos contratuais firmados, a sua destruição encontrava-se dependente da verificação de fundamento legal legitimado na situação de incumprimento definitivo que pode ser alcançada por diversas vias: não cumprimento no prazo limite fixado, impossibilidade de cumprimento, falta de cumprimento de obrigação que, pelas circunstâncias que a rodeiam, revele a clara intenção de não cumprir; falta de cumprimento depois de ter sido expressamente interpelado para o efeito; recusa de cumprimento; desinteresse objectivo da parte (que pode ser caracterizado pelo decurso de um prazo excessivo revelador da falta de vontade de cumprir ou do desinteresse da contraparte) - cfr. artigos 801 e 808.º, n.º1, do Código Civil.

        A realidade fáctica apurada evidencia que até à declaração da insolvência da promitente-vendedora não se verificou nenhuma das supra referidas ocorrências.

        Na verdade, embora as partes tenham fixado um prazo para realização da escritura – até ao dia 30 de Janeiro de 2014 –, decorre dos factos provados que perante as dificuldades da promitente vendedora no cumprimento, em 2 de Março de 2014, foi celebrado um aditamento aos contratos, intitulado de “Termo de Entrega de Imóvel”, alterando as condições dos mesmos e onde foi expressamente reconhecido pelas partes:

- estar largamente ultrapassado o prazo de conclusão das fracções objecto dos contratos;

- não ter a promitente-vendedora, à data, disponibilidade financeira que lhe permita a conclusão da obra e o resgate da hipoteca que incide sobre os imóveis e indispensáveis à outorga da escritura;

- manter o promitente-comprador o interesse na aquisição das referidas fracções.

Com base nestes considerandos as partes acordaram a entrega efectiva das fracções ao promitente-comprador, que ficou autorizado a concluir os acabamentos das fracções por conta do preço remanescente a liquidar a final.

Verifica-se pois que, em inícios de Março de 2014, perante a mora da promitente-vendedora, o promitente-comprador manteve interesse na aquisição das fracções, isto é, na manutenção dos contratos-promessa, não obstante conhecedor da impossibilidade, à data, da promitente-vendedora outorgar a escritura, interesse que, aliás, persistiu até à marcação da escritura (sem prejuízo da declaração da insolvência da sociedade promitente-vendedora)

Com efeito, após Março de 2014, apenas foi apurado que os representantes da insolvente não compareceram para a outorga da escritura marcada para o dia 26-03-2015 e que a insolvente se limitou a reiterar a impossibilidade de marcação e realização da venda prometida nos precisos termos acordados, faltando à outorga da escritura (factualidade vertida no ponto n.º 14 da matéria de facto provada).

Perante esta realidade fáctica não é possível concluir no sentido pretendido pelo Recorrente, isto é, de que à data da insolvência os contratos já se encontravam definitivamente incumpridos uma vez que não foi demonstrada uma recusa inequívoca e peremptória de não cumprir por parte da promitente-vendedora, mantendo o Autor interesse na conservação dos contratos.

Por conseguinte, tal como entendido no acórdão recorrido, não ocorreu incumprimento definitivo dos contratos antes da declaração da insolvência e, enquanto negócios jurídicos em curso, para efeitos do disposto nos artigos 102.º e ss. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), há que fazer observar a jurisprudência fixada no AUJ n.º 4/2014[7], de 20/03/2014, mostrando-se, por isso, relevante para o reconhecimento ao Recorrente do direito de retenção a circunstância do mesmo ser considerado consumidor ao intervir como promitente comprador nos negócios que firmou com a sociedade declarada insolvente.    

2.5 À questão de saber qual o conceito de consumidor adoptado pelo AUJ n.º 4/2014 de 20/03/2014, que tem dividido a Jurisprudência, não podemos deixar de sufragar o posicionamento assumido no acórdão recorrido, aderindo ao conceito restrito do mesmo, ou seja, definindo para efeitos de reconhecimento do direito de retenção o promitente-comprador que destina o imóvel a uso particular, no sentido de não o comprar para revenda nem o afectar a uma actividade profissional ou lucrativa.

         Assim sendo, tal como concluído no acórdão recorrido, não tendo o Autor demonstrado o uso e fruição dos imóveis nos termos por si alegados (cfr. factualidade não provada identificada em J a P[8]), isto é, a sua qualidade de consumidor (sendo que resulta apurado que o Autor tratou de arrendar uma das fracções, a …) – factualidade ínsita no ponto n.º17 da matéria provada), mostra-se inviabilizada a possibilidade de ver reconhecido o direito de retenção sobre os referidos imóveis.   

2.6 Defende ainda o Recorrente que a factualidade provada (em face do clausulado no sentido de lhe ter sido dada autorização para poder requisitar água, luz e gás para as fracções) mostra-se suficiente por forma a concluir o destino que pretendia fazer das referidas fracções (uso próprio/habitação ou cedência do gozo/arrendamento). Pretende ainda o Autor, se assim não se entender, que este tribunal determine ao tribunal recorrido a ampliação da matéria de facto com vista a apurar a(s) actividade(s) a que se dedica por forma a ter oportunidade de demonstrar que não destinou, profissionalmente, as referidas fracções a revenda. Sustenta-se para o efeito no disposto no artigo 662.º, n.º2, alínea c), do CPC.

         Carece, porém, de razão uma vez que alicerça as suas pretensões descurando o âmbito dos poderes de conhecimento deste Supremo Tribunal no domínio fáctico e a irrelevância da matéria factual que pretende ver ampliada.

Com efeito, ao STJ, enquanto tribunal de revista, competindo-lhe conhecer apenas de matéria de direito, não lhe cabe dar como assentes factos deduzidos de outros factos julgados provados[9], encontrando-se circunscrito à matéria de facto fixada pelas instâncias. Nessa medida e no caso, não assume cabimento inferir o pretendido juízo fáctico quanto à utilização dada às fracções que prometeu comprar.

Por outro lado, ainda que na intervenção limitada deste tribunal no domínio factual seja possível cassar a decisão recorrida e reenviar o processo ao tribunal recorrido quando se entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito (cfr. artigo 682º nº 3 do CPC), uma vez que essa ponderação pressupõe uma antecipação da decisão de direito[10], carece de cabimento legal o aditamento de factos que, ainda que provados, se mostrem insusceptíveis de influir na decisão de mérito[11].

Assim sendo, tendo presente o conceito (restrito) de consumidor a ter em conta para o efeito, mostrar-se-ia irrelevante a matéria que o Recorrente pretende ver ampliada.

        Improcedem, pois, na sua totalidade, as conclusões das alegações.                 

IV. DECISÃO
Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar a revista improcedente, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pelo Recorrente


Lisboa, 2 de Abril de 2019

Graça Amaral (Relatora)
Henrique Araújo
Maria Olinda Garcia

________________________
[1] Que, respectivamente, tiveram por objecto fracção do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º …, designada pela letra … e a fracção desse mesmo prédio designada pela letra …, sendo que à data da celebração dos contratos o imóvel ainda não se encontrava constituído em propriedade horizontal, tendo a mesma apenas ocorrido em 05-03-2010.
[2] Contratos-promessa em que as partes declararam atribuir eficácia real.
[3] Cfr. neste sentido Acórdão do STJ de 29-07-2016, Processo n.º 6193/13.0TBBRG-H.G1.S1.
[4] Processo n.º 1308/10.2T2AVR-R.P1.S1, a cujo sumário se pode aceder através de https://www.stj.pt/?page_id=4471.
[5] Acórdão em que interveio o presente colectivo de Juízes.
[6] Não sendo de observar a jurisprudência fixada no AUJ n.º 4/2014, no caso sob apreciação, há que o submeter ao regime geral ínsito no artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil, que não faz depender o direito de retenção atribuído ao beneficiário da promessa de transmissão do direito de propriedade sobre o imóvel da circunstância de o mesmo não ser um consumidor.
[7] Que uniformizou jurisprudência nos seguintes termos: «No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º, n.1, alínea f) do Código Civil».  
[8] Do seguinte teor: J- Aí pernoitando, fazendo as suas refeições, entrando e saindo às horas que entende, recebendo as visitas de amigos e familiares, tendo aí colocado todos os seus haveres.
K- O Autor mobilou e equipou as fracções.
L- Guardando a sua viatura no lugar de garagem.
M- Limpando, arejando e cuidando da mesma.
N- À vista de todos.
O- Sem oposição de quem quer que seja.
P- Pagando inclusive os gastos inerentes às fracções, nomeadamente água, luz e gás.
[9] Acórdão do STJ de 25-11-2014, Processo n.º 629/04.0T8BRG.G1.S1.
[10] Ainda que possa ser feita em alternativa em função dos factos que venham a ser apurados. De salientar que, em caso de anulação, o Supremo não se limita a reenviar os autos para a Relação; por norma deve definir, desde logo, o direito aplicável, definição que deverá ser acatada pela 2ª instância – cfr. artigo 683.º, nº 1, do CPC.
[11] Não tendo influência relevante na decisão de mérito a matéria seria inútil; como tal, não poderia a anulação ser decretada (artigo 130.º do CPC) - cfr. Acórdão do STJ de 19-06-2018, Processo nº 16/14.0TVLSB.L1.S1.