Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B4668
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: BETTENCOURT DE FARIA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DE PATERNIDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: SJ200802210046682
Data do Acordão: 02/21/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
O prazo do artº 1842º, nº 1, alínea a, do CC, na medida em que é limitador da possibilidade de impugnação, a todo o tempo, pelo presumido progenitor, da sua paternidade, é inconstitucional.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I
AA moveu a presenta acção ordinária de impugnação de paternidade contra BB e CC, pedindo que os réus sejam condenados a reconhecer que o autor não é o pai do 2º réu, rectificando-se o respectivo registo de nascimento, donde consta o primeiro como pai e os pais deste como avós do mesmo réu.
Na sua contestação veio a ré alegar a caducidade do direito de acção do autor.
Replicando, afirmou o autor só agora ter tomado conhecimento de que a ré mantivera relações com outros homens no período legal da concepção, acrescentando que já não tem relações sexuais com a ré desde 1990.
No despacho saneador foi julgada procedente a referida excepção peremptória da caducidade, sendo, em consequência, absolvidos os réus do pedido.
Apelou o autor, mas sem êxito.
Recorre este novamente, apresentando, nas suas alegações de recurso, as seguintes conclusões:

1 O respeito pela verdade biológica sugere a imprescritibilidade não só do direito de investigar, como o de impugnar.
2 “o direito fundamental à identidade pessoal”, “o direito à integridade pessoal, ganhando uma dimensão mais nítida, como ainda o “direito ao desenvolvimento da personalidade” leva em si que não se coloquem restrições aos direitos fundamentais, nomeadamente da identidade pessoal, pelo que as razões que se invocaram para a inconstitucionalidade do artº 1817º nº do C. C., estão outrossim, para a disposição contida no artº 1842º nº 1 al. A) do mesmo Código.
3 Não pode atribuir-se o relevo à antiga ideia de insegurança prolongada, porque este prejuízo tem de ser confrontado com o mérito do interesse e do direito de impugnar a todo o tempo, ele próprio tributário da tutela dos direitos fundamentais à identidade e ao desenvolvimento da personalidade.
4 A valorização dos direitos fundamentais da pessoa, como o de saber quem é e de onde vem, na vertente da ascendência genética e a inerente força redutora da verdade biológica, fazem-na prevalecer sobre os prazos de caducidade para as acções de estabelecimento de filiação.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

II
Com relevo para a decisão da causa, encontram-se provados os seguintes factos:

1 O 2º réu nasceu em 23.10.93.
2 O autor e a 1ª ré, encontram-se divorciados desde 02.02.99.
3 O autor declarou na petição inicial que se encontra separado de facto da 1ª ré, desde 1990.
4 O autor foi citado para a acção de regulação do poder paternal relativa ao 2º réu, cuja sentença já transitada data de 18.03.94.
4 A presente acção foi proposta em 22.06.05.

III
Apreciando

1 Face ao preceituado no artº 1842º nº 1 alínea a) do C. Civil, dúvidas não pode haver de que ocorreu a dita caducidade do direito de acção, como foi o entendimento das instâncias. Essa norma exige que a acção de impugnação da paternidade pelo marido da mãe seja intentada no prazo de dois anos a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se pela sua não paternidade. Ora, conjugando a sua afirmação de que as relações sexuais com a mãe do menor cessaram em 1990 e o facto de ter tido conhecimento da sua existência e da data do seu nascimento, pelo menos quando foi citado para a acção de regulação do poder paternal, antes de Março de 1994, desde então estava na posse de factos que lhe permitiam concluir pela sua não paternidade. Pelo que a acção teria de ser proposta, na melhor das hipóteses, até Março de 1996. E só foi intentada em 2005.
Note-se que, como foi acentuado pela 1ª instância, citando Guilherme de Oliveira – Estabelecimento da Filiação 98 - , a data que conta é a dos factos, não a do momento em que o marido chegou à conclusão de poderiam eles fundamentar a impugnação.

2 A questão que se coloca é a de saber se a caducidade em em causa estabelece um limite desproporcional ao valor constitucional que o exercício do direito de acção em causa pretende salvaguardar. Por outras palavras, trata-se de averiguar se o dito prazo de caducidade, não permite, na prática, que seja devidamente garantido esse valor.
Convém, por isso, antes do mais, ver que direito constitucional está em apreço.
O Acórdão do TC nº 23/06 de 10.01, declarou inconstitucional, com força obrigatótia geral, a norma do nº 1 do artº 1817º nº 1 do C. Civil, que prevê a extinção por caducidade do direito de investigar a paternidade a partir dos 20 anos de idade do filho, conforme o artº 26º nº 1 da Constituição, reconhecendo que o direito do filho ao apuramento da paternidade biológica é uma dimensão do “direito fundamental à identidade pessoal”. Tratando-se de estabelecer a paternidade, invoca-se, pois, o direito à identidade – na vertente de se saber de onde se vem, ou de quem se vem - , dos artºs 25º nº 1 e 26º nº 1 da Constituição – que não seria devidamente acautelado se a acção que o concretiza estivesse sujeita aos dito prazo de caducidade..
A questão que se vem colocando é a de saber se esta doutrina é aplicável às acções de impugnação da paternidade, que no artº 1842º nº 1 alíneas a), b) e c) do C. Civil, estão sujeitas a diversos prazos de caducidade, consoante sejam elas propostas, respectivamente, pelo marido, pela mãe, ou pelo filho.
No Acórdão do TC nº 473/07 – DR II Série 18.01.08 - , entendeu-se: “Há inevitavelmente uma diferença de grau entre a investigação da paternidade, em que patentemente está em causa o direito à identidade pessoal do investigante (e relativamente ao qual a imposição de um limite temporal pode implicar a violação do direito ao conhecimento da identidade dos progenitores), e a impugnação da paternidade, em que releva a definição do estatuto jurídico do investigante em relação a um vínculo de filiação que lhe é atribuído por presunção legal. (sublinhado nosso)”.
...não estará aqui em causa um direito à identidade pessoal, entendida no sentido há pouco explanado do direito ao conhecimento da identidade dos progenitores (que tem apenas relevo para a acção de investigação da paternidade), mas o direito ao desenvolvimento da personalidade na dimensão de um direito de autoconformação da identidade que não poderá deixar de ser reconhecido em relação ao presumido pai...
Seria, pois, como que se direito à identidade do filho, apesar de questionado na acção, não fosse o seu objecto directo, ou imediato. O processo destinar-se-ia sobretudo a fazer prevalecer o direito à autoconformação da identidade do pai.
Por outro lado, diz-se igualmente na decisão que se justificaria uma restrição à verdade biológica, que deixaria de ser “um valor absoluto”, em nome de outras razões, como a da protecção da família conjugal; embora não sendo o direito à identidade do filho que esteja em causa, justificam-se os limites a esse direito, na acção de impugnação com a prevalência de determinados outros valores.
Entendemos que é, efectivamente, o direito à identidade que está em causa na acção de impugnação, embora mediado pelo direito do pai presumido de ilidir a presunção de paternidade. São duas faces de uma única realidade.
A conclusão que se poderia retirar do acórdão em análise é que o direito à identidade da filiação é o direito a ter um pai. Porém, uma vez estabelecida uma paternidade por presunção legal, já não será tão relevante saber da sua correspondência com a realidade biológica. E isto em nome de valores como a segurança das relações familiares.
No Acórdão do TC nº 609/07 de 11.12.07, versando sobre a hipótese da acção de impugnação ser movida pelo filho maior ou emancipado, consignou-se que: “as razões que estiveram na origem da declaração da inconstitucionalidade do mencionado artigo 1817º, nº 1, do Código Civil estão outrossim para a disposição contida no artº 1842º nº 1, alínea c) do mesmo Código.
Não se antevê que o mencionado prazo de caducidade se justifique, quer dizer, que seja necessário e proporcional face aos valores que estão em causa, sempre que uma questão de filiação é colocada e que se afaste a possibilidade do direito ser conforme à realidade em homenagem a essas restrições. (sublinhado nosso)”.
Nesta decisão, o direito constitucional a salvaguardar é, por isso, também o direito à identidade, mas sem se fazer distinções entre as situações de investigação e as de impugnação, ou seja, como refere, “sempre que uma questão de filiação é colocada”.
É certo que a decisão em apreço, tratava apenas da hipótese da acção de impugnação ser movida pelo filho maior ou emancipado, sendo unicamente em relação a esta modalidade que declarou a inconstitucionalidade do prazo de caducidade. Contudo, as razões aduzidas devem valer também para o caso do autor da impugnação ser o pai. Com efeito, ainda aqui, para além do autor defender um direito próprio à verdade biológica em matéria de paternidade, está também a garantir um direito à identidade do presumido filho, apesar deste se apresentar processualmente como réu. Sobretudo, tratando-se de filho menor. É, portanto e sempre, uma “questão de filiação”, nos termos referidos no citado acórdão.
Nem se diga que a caducidade da acção a propor pelo pai não impede que o filho venha, mais tarde a propor a sua própria acção de impugnação, agora sem prazo. É argumento que deve funcionar em sentido contrário. O facto do investigando poder sempre impugnar, leva a considerar, até por uma questão de eficácia judiciária, que a impugnação do presumido progenitor possa sempre ser intentada.
As razões de segurança jurídica, fundadas na paz social que advém dum quadro jurídico-familar estabilizado, mesmo que não correspondendo à verdade biológica, deixam de fazer sentido perante o devir social. É este bem um caso que ilustra que a vida flui como areia por entre os dedos da lei. O que hoje causaria mais alarme social, quando os testes de ADN são de fácil acesso mesmo fora do âmbito da Justiça, é que esta fosse incapaz de reconduzir a sua verdade à verdade dos genes que de todos pode ser conhecida. Tratar-se-á duma nova ética, mas no fundo reconduz-se à ética primordial do primado da família ou comunidade natural. E isto sobreleva perante o “escândalo” de uma situação familiar com porventura dezenas de anos vir a ser “abalada”, por uma impugnação, que, pelo que já consignámos, nunca deve ser considerada tardia.
O prazo em questão apresenta-se como uma salvaguarda desproporcional deste segundo grupo de valores, face à defesa do direito constitucional do direito à identidade do artº 26º nº 1 da Constituição.
Logo esse prazo, o do artº 1842º nº 1 alínea a) do C. Civil, na medida em que é limitador da possibilidade de impugnação, a todo o tempo, pelo presumido progenitor, da sua paternidade, é inconstitucional.
Assim, não se verifica a caducidade da acção.

Termos em que procede o recurso.

Pelo exposto, acordam em conceder a revista e revogam o acórdão recorrido, determinando o prosseguimento dos autos, com exclusão da questão agora assente.

Custas nas instâncias e neste Tribunal pelos recorridos.


Lisboa, 21 de Fevereiro de 2008


Bettencourt de Faria (Relator)
Pereira da Silva
Rodrigues dos Santos