Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1522/12.6TBMTJ-B.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: AÇÃO EXECUTIVA
TÍTULO EXECUTIVO
EXIGIBILIDADE DA OBRIGAÇÃO
INTERPELAÇÃO
CITAÇÃO
DEVEDOR
CONTRATO DE MÚTUO
RESOLUÇÃO
PRESTAÇÕES PERIÓDICAS
DIREITO DE REEMBOLSO
AMORTIZAÇÃO DE QUOTA
VENCIMENTO DA DÍVIDA
RECURSO DE REVISTA
REVISTA EXCECIONAL
DUPLA CONFORME
Data do Acordão: 01/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I – A citação do devedor na acção executiva deve considerar-se suficiente para afastar a situação de inexigibilidade, em sentido forte, por aplicação da norma da al. b) do n.º 2 do art.º 610.º CPCiv, solução essa conforme aos fins da acção executiva e a que melhor se coaduna com o que a lei dispõe para as obrigações alternativas da escolha do devedor (art.º 714.º) e para o caso paralelo da prestação de facto sem prazo (art.º 874.º).

II – O mesmo era de aplicar na vigência da redacção de 61 do art.º 804.º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, ou seja, antes do aditamento do n.º 3 do art.º 804.º CPCiv95/96, por aplicação da norma do art.º 805.º n.º 1 CCiv.

III - No mútuo liquidável em prestações, a lei admite o reembolso antecipado do capital se o devedor não pagar as prestações ou quotas de amortização, pelo que a mesma lei não faz depender o reembolso antecipado da resolução do contrato (art.º 781.º CCiv) – passa a existir, tão só, a imediata exigibilidade de todas as prestações.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


                  

As Partes, o Pedido e o Objecto do Processo

O Banco Comercial Português, S.A., intentou a presente acção, com processo de execução e forma comum contra AA e BB.

Apresentou como título executivo duas escrituras públicas titulando dois empréstimos concedidos ao executado AA, garantidos por hipoteca:

O primeiro empréstimo, no montante de € 110.000,00, por escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca e fiança outorgada no dia 04/08/2005 (doc. 1).

Invoca que o Executado pagou ao Banco o capital e os juros, até à prestação vencida no dia 03/08/2011, deixando de pagar as prestações vencidas posteriormente e até ao momento presente, encontrando-se ainda em dívida o montante de capital de € 106.312,26, pelo que o empréstimo se venceu, tornando-se imediatamente exigível toda a dívida, nos termos do artigo 781.º do Código Civil.

O Executado foi interpelado pelo Banco Exequente para o pagamento, por diversas vezes, verbalmente e por escrito, em virtude do vencimento da totalidade do empréstimo.

Vencida a obrigação e tendo o Executado entrado em mora, o Banco, nos termos acordados, exerceu o seu direito de contar juros dia a dia, sobre o referido capital em dívida, à taxa contratual de 5,565% ao ano, em vigor à data do incumprimento, acrescida de uma sobretaxa de 4% a título de cláusula penal.

O segundo empréstimo, no montante de € 45.000,00, foi concedido ao executado por escritura pública de mútuo com hipoteca e fiança, outorgada em 04/08/2005.

Os Executados pagaram ao Banco o capital e os juros devidos a que estavam obrigados, até à prestação vencida no dia 03/09/2008, deixando de pagar as prestações vencidas posteriormente e até ao momento presente, encontrando-se ainda em dívida o montante de capital de € 42.854,50.

O empréstimo venceu-se, tornando-se imediatamente exigível toda a dívida, nos termos do artigo 781º do Código Civil.

O Executado foi interpelado pelo Banco Exequente para o pagamento, por diversas vezes, verbalmente e por escrito, em virtude do vencimento da totalidade do empréstimo.

Vencida a obrigação, os Executados entraram em mora e o Banco, nos termos acordados, exerceu o seu direito de contar juros dia a dia, sobre o referido capital em dívida, à taxa contratual de 5,765% ao ano, em vigor à data do incumprimento, acrescida de uma sobretaxa de 4% a título de cláusula penal.

A Executada BB constituiu-se fiadora e principal pagadora dos dois empréstimos, obrigando-se perante o Banco como responsável pelo cumprimento dos mesmos, expressamente renunciando ao benefício da excussão prévia.

Para a liquidação do valor, invocou o Exequente:

1º Empréstimo

- € 30.534,16 de juros de mora sobre o capital em dívida de € 106.312,26, desde 03/08/2007, à taxa de 9,565% ao ano (5,565% + 4%), até ao limite de 3 anos, acrescidos de € 1.221,37 de imposto do selo, à taxa legal de 4%.

Acrescem ainda juros vincendos até integral pagamento, bem como o respectivo imposto do selo.

2º Empréstimo

- € 12.554,23 de juros de mora sobre o capital em dívida de € 42.854,50, desde 03/09/2008, à taxa de 9,765% ao ano (5,765% + 4%), acrescidos de € 502,17 de imposto do selo, à taxa legal de 4%.

Acrescem ainda juros vincendos até integral pagamento, bem como imposto do selo.

O Executado AA deduziu oposição à execução.

Alegou nunca ter sido interpelado sobre o vencimento ou a exigibilidade antecipada das prestações acordadas nos mútuos dados à execução, ou sobre a resolução dos contratos com fundamento em incumprimento definitivo, pelo que o montante exequendo é inexigível e as escrituras apresentadas à execução não são aptas a ser títulos executivos.

Contestando, o Exequente sustentou que, por cartas de 18 de Abril de 2007, 30 de Abril de 2007 e 14 de Junho de 2007, interpelou o Embargante para proceder ao pagamento dos valores em dívida, acrescido dos juros já vencidos (indicou o valor da prestação em falta, juros, despesas e capital vincendo), informando-o que considerava vencidos todos os créditos concedidos e que iria proceder à cobrança coerciva dos mesmos; após o envio das referidas cartas de interpelação e resolução, o Embargante procedeu ao depósitos de valores por conta das dívidas emergentes dos contratos de mútuo em causa, os quais permitiram liquidar as prestações até 3 de Julho de 2007, no primeiro mútuo, e até 3 de Agosto de 2008, no segundo; desde então nada mais foi pago por conta dos referidos contratos; em cada um dos contratos exequendos, as partes estipularam o vencimento e a exigibilidade antecipados de todas as prestações acordadas em caso de não pagamento de uma das prestações na data do respectivo vencimento; ainda que assim não se entenda, a dívida considera-se vencida desde a citação; sobre o imóvel hipotecado foi registada penhora no âmbito dum processo de execução fiscal, tendo, em Novembro de 2008, sido citado para reclamar créditos, o que fez; em 19 de Dezembro de 2008 adjudicou o imóvel hipotecado; porém, em 5 de Março de 2012 foi anulado todo o processo de execução fiscal, após o que instaurou a presente execução; o Embargante tinha cabal conhecimento da dívida.


As Decisões Judiciais

Em 1ª instância, foi proferida sentença em que se decidiu julgar a oposição à execução procedente apenas quanto aos juros de mora reclamados e calculados sobre os montantes incobrados nos mútuos dados à execução.

O Embargante recorreu de apelação, mas a Relação confirmou na íntegra, sem voto de vencido, a decisão anterior.

A confirmação foi feita com base em fundamentos idênticos aos adoptados em 1ª instância.


A Revista 

O Embargante interpõe agora recurso de revista excepcional, fazendo-o, do que se pode deduzir do alegado, ao abrigo das normas do artº 672º nº 1 als. a), b) e c) CPCiv – a este respeito, junta cópia do acórdão fundamento (Ac.R.G. 12/3/2020, pº 1278/17.6T8GMR-B.G1).

A Formação prevista no disposto no art.º 372.º n.º 3 CPCiv admitiu a revista, com base nas normas das als. a) e c) do n.º 1 do art.º 672.º CPCiv.


Formula o Recorrente as seguintes conclusões de recurso:

1. O presente recurso tem como fundamento a nulidade do Acórdão proferido nos autos pelo Venerando Tribunal da Relação ... por omissão de pronúncia no que respeita ao que considerou serem questões novas, designadamente a relativa à omissão da prestação, pelo banco exequente, da informação/interpelação necessária ao Recorrente para o cumprimento das prestações acordadas nos contratos de mútuo/ crédito à habitação, à violação dos deveres legais pelo Banco exequente/Recorrido, à interpelação admonitória, à mora do credor, à resolução do contrato, e ao abuso de Direito.

2. Versa, ainda, sobre a violação, a correcta, ou incorrecta, aplicação da lei substantiva, ou da sua não aplicação, por omissão, designadamente das normas constantes do D.L. Nº 298/92, versão do D.L nº 1/2008 de 03/01, que, então na sua 26ª versão, bem como do Aviso nº 2/2010 do Banco de Portugal, publicado no Diário da República, II série, de 2010-04-16 (RCE nº 2001//193/CE de 1/3), e, ainda, os artigos 334º, 798º e 813º do Código Civil.

3. O presente recurso de Revista Excepcional é interposto ao abrigo do disposto no artigo 672º do Código de Processo Civil, com os seguintes fundamentos:

4. Estão em causa interesses de particular e importantíssima relevância social, não apenas para o ora Recorrente, mas para toda a sociedade, para todos os cidadãos em geral; actualmente, por imposições próprias do funcionamento da sociedade, todos os cidadãos são, somos, clientes bancários, e, uma vasta parte dos mesmos recorre ao crédito bancário para inúmeros fins, com especial destaque, precisamente pela sua relevância social, para o crédito à habitação.

5. Tendo em vista a necessidade de promover, conciliar, e equilibrar, a proteção dos clientes das instituições bancárias com a proteção dos interesses dos seus clientes, existe um quadro normativo composto por legislação diversa, quer nacional, quer da União Europeia, ou decorrente da transposição obrigatória de directivas comunitárias, nomeadamente o DL nº 298/92 de 31/12, que consagra os especiais deveres de diligência, de informação, de neutralidade, de lealdade, de discrição e de protecção e respeito consciencioso dos interesses dos clientes, ou, ainda, de entre os Avisos e Instruções do Banco de Portugal sobre esta matéria, o Aviso nº 2/2010, publicado no DR nº 74/201, Série II, de 2010-04-16, que reforça os deveres de informação a observar pelas instituições de crédito na negociação, celebração e, sublinha-se, vigência, dos contratos de crédito à habitação.

6. Neste contexto, e atenta ainda a consagração constitucional do direito à habitação (Artigo 65º da CRP), importa que os tribunais, através das decisões que proferem, imponham uma exigência e um rigor absolutos no que respeita à conduta das instituições bancárias nas relações com os seus clientes, demonstrando, assim, que as normas constantes do quadro legislativo que regula a sua actividade não são letra morta, e que essa relação é verdadeiramente sinalagmática, sendo cada uma das das partes titular de um conjunto de direitos, aos quais correspondem, para a contraparte, as correspectivas obrigações, pelo que os contratos celebrados com os clientes não afectam ou diminuem a sua validade ou eficácia.

7. Tendo em conta as naturais, e reais, tendências para o abuso do poder, sempre existentes onde predomina um esmagador poder financeiro e institucional, a responsabilidade social daí resultante, bem como importantíssimo papel da sua actividade como motor da economia e, assim, da sociedade, do seu progresso e bem-estar, aos bancos deve ser exigida uma conduta exemplar, e irrepreensível, com elevados padrões técnicos e éticos, nomeadamente no cumprimento dos deveres que lhes estão legalmente consignados e são respeitantes à relações com os seus clientes: desde logo o dever de proceder segundo os ditames da boa-fé, o dever de informação, de zelo, diligência, de lealdade, de aviso, alerta, e de proteção dos interesses dos seus clientes; e aos tribunais cabe agir em conformidade, apreciando e decidindo também exemplarmente, com a maior exigência e todo o rigor, acerca da conduta das instituições bancárias no cumprimento, ou não, desses deveres.

8. Atendendo à importância da relação entre as entidades bancárias e os clientes, com especial incidência nos créditos à habitação, e reconhecendo o poder, a relevância e a responsabilidade social da banca, o legislador, quer a nível nacional quer da União Europeia, entendeu ser necessário proteger os clientes/consumidores mediante a adopção de legislação bastante e explícita, estabelecendo deveres e impondo condutas aos bancos.

9. E, importa sublinhar, esta necessidade de proteção dos clientes e consumidores ganha ainda maior expressão na altura de pandemia que atravessamos pois, inevitavelmente, na decorrência da crise económica que inexoravelmente se aproxima, muitas situações de incumprimento irão certamente ocorrer, certamente de parte a parte, aos bancos se exigindo, tal como antes, mas se possível mais agora e no futuro, uma postura de grande responsabilidade social, e o cumprimento atento e rigoroso dos deveres legais que lhe estão cometidos.

10. Aliás, considerando a posição de vulnerabilidade e desproteção decorrentes do facto de os contratos de crédito constituírem verdadeiros contratos de mera adesão, o reforço da proteção dos clientes mediante a exigência do cumprimento pelos bancos dos deveres que lhes estão adstritos, torna-se absolutamente vital, e, para além duma obrigação legal, um imperativo moral e social.

11. Os direitos das instituições não são direitos maiores, e as suas obrigações não são menores; pelo contrário, tendo em vista a ratio legis e o escopo das referidas normas.

12. Não pode, por essa razão, o banco ora Recorrido, estando ele mesmo em prévio incumprimento, como demonstraremos, vir alegar o vencimento da totalidade das prestações acordadas ao abrigo do disposto no artigo 781º do Código Civil.

13. Ora, o que está em causa no caso dos autos é exactamente o incumprimento desses deveres pelo Recorrido, mormente pela omissão de qualquer comunicação, com o Recorrente como destinatário, a total ausência de qualquer tipo, forma ou meio de comunicação sobre as prestações a pagar, ou sobre prestações em dívida, quer mediante o envio de extractos bancários - a que está obrigada, e que constitui o meio usual de prestação da informação necessária ao cumprimento pelo mutuário - quer por carta ou por qualquer outro meio, ou de outra qualquer forma.

14. Em suma, no caso concreto o banco alegou mas não provou o envio de extractos bancários e de cartas admonitórias; em 19-12-2008, o banco adjudicou o imóvel em sede de processo de execução fiscal e procedeu ao registo na respectiva conservatória; o processo de execução fiscal foi anulado, sendo o banco notificado deste facto em 08-03-2012; sem qualquer comunicação dirigida ao arguido, sem o envio de extractos ou cartas, ou por outro meio ou forma, nomeadamente para comunicar ao cliente e ora recorrente que devia retomar o pagamento das prestações, sem exigir qualquer pagamento, sem dar qualquer oportunidade para o recorrente cumprir, ou a sua fiadora, o banco/exequente ora recorrido, apresentou em tribunal o requerimento executivo em 20-06-2012, apenas cerca de 3 meses depois!

15. Esta conduta do banco é inquestionavelmente ofensiva dos ditames da boa-fé, da moral e dos bons costumes, dos deveres legais a que está obrigada e que acima foram discriminados, constitui um manifesto e clamoroso abuso do Direito, e não pode ser consentida, aceite e calada, merecendo ser censurada e não admitida e ratificada pelos tribunais do nosso Estado e Direito.

16. Por estas razões, a Sentença e o Acórdão proferidos e recorridos, não são conformes com a melhor aplicação do Direito e não servem a Justiça, devendo ser revogadas e substituídas por uma decisão que tenha em consideração o acima expendido.

17. A interposição do presente recurso de Revista Excepcional tem ainda cabimento legal na medida em que se trata de um conjunto de questões que possuem uma clara relevância jurídica e a sua apreciação é evidentemente necessária para a melhor aplicação do Direito, e importam, não apenas para a realização da Justiça no caso concreto, interessando à realização da Justiça e à sociedade como um todo, pois respeitam a situações de vida que têm um grande impacto social, podem colocar em causa a confiança dos cidadãos, já tão abalada, nas instituições - nos tribunais, no sistema financeiro, e nos demais órgãos do Estado; esse conjunto de questões são:

18. O não cumprimento pelo Recorrido, na sua qualidade de instituição bancária, das obrigações legais que lhe estão consignadas, nomeadamente os acima mencionados deveres de informação, lealdade, diligência, respeito criterioso dos interesses dos clientes, vide DL nº 298/92 de 31/12, e, de entre os sucessivos Avisos e Instruções do Banco de Portugal, o Aviso nº 2/2010, publicado no DR nº 74/201, Série II, de 2010-04-16, que reforça os deveres de informação a observar pelas instituições de crédito na negociação, celebração e vigência de contratos de crédito à habitação, e suas consequências jurídicas no plano da relação com estes; isto é, o que está em causa é, afinal, saber se apenas o não cumprimento por parte do clientes das suas obrigações perante os bancos é relevante e tem consequências jurídicas, ou se o não cumprimento (prévio) por parte das instituições bancárias dos seus deveres legais tem também consequências jurídicas, desde logo no plano da relação entre as partes; ou seja, se, na prática e perante os casos concretos, os tribunais consideram e valorizam esse incumprimento, daí extraindo as devidos efeitos e consequências para a melhor aplicação do Direito e o restabelecimento da ordem jurídica, para que assim seja feita a desejada Justiça.

19. Não se trata apenas de considerações genéricas, mas também de questões muito concretas e relevantes para a aplicação do Direito, sendo ainda de considerar para além das acimas mencionadas:

20. Cumpre saber se esse eventual não cumprimento dos deveres legais por parte do banco é, ou não é, quando comprovado, como é o caso, um facto constitutivo da mora do credor e/ou um factor impeditivo do accionamento do artigo 781º do Código Civil, e, assim, do vencimento de todas as prestações. Ou seja,

21. Alegados pelo Recorrente os factos negativos constituintes da mora do credor prevista no artigo 813º do Código Civil - por omissão da prática dos actos necessários ao cumprimento da obrigação, nomeadamente a informação sobre o valor da prestação a pagar, a taxa de juro aplicável, a eventual existência de prestações em dívida, o envio de extractos – e não tendo o Recorrido logrado fazer prova desses factos não obstante o respectivo ónus sobre si recair, a prévia situação de mora do credor, é, ou não, impeditiva do vencimento e exigibilidade imediata de todas prestações por aplicação do disposto no artigo 781º do Código Civil.

22. E o banco recorrido está, como pretende o ora Recorrente, ou não está, obrigado à interpelação admonitória prevista no artigo 798º do Código Civil?

23. Por outro lado, parece existir contradição entre o Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação ..., do qual ora se recorre, e o Acórdão da Relação de Guimarães de 12-03-2020 (Processo 1278/17.6T8GMR-B.G1), o qual se junta, a propósito da interpelação admonitória, que citamos: “A notificação em falta respeita à oportunidade que deveria ter sido dada aos devedores” [mutuante e fiadora] “de terem sido colocados em condições de poder cumprir o contrato segundo o plano prestacional acordado, dando-lhes conhecimento de que, a partir de determinada data, se não procedesse ao pagamento dos valores até então em dívida, consideraria antecipadamente vencidas as restantes prestações, a fim de permitir ao devedor principal e aos fiadores, em segunda linha, assumirem o cumprimento do contrato.”

24. A este propósito o Acórdão ora recorrido nada nos diz, antes respondendo, logo após a referência à alegação do Recorrente, à conclusão com o nº 64º que se refere à interpelação relativa ao vencimento da totalidade das prestações acordadas.

25. Todavia, aquela exigência, de interpelação admonitória, é necessária e adequada, é mesmo indispensável, à certificação de que o devedor principal tem conhecimento da situação de incumprimento, não estando, por ex. em erro, ou mesmo desconhecendo a existência da obrigação e/ou o seu conteúdo, como foi também o caso do ora Recorrente como demonstraremos, e, por maioria de razão, mais premente e necessário se torna adquirir essa certeza de que existe a obrigação e o incumprimento da mesma, relativamente à fiadora, a qual carece em absoluto dessa interpelação para tomar conhecimento do incumprimento, podendo, assim, pôr-lhe cobro, por forma a não se ver, repentina e inusitadamente, perante a exigência de proceder ao pagamento da totalidade da dívida.

26. No que respeita a saber se a citação tem, ou não tem a virtualidade de substituir esta interpelação, e se tem, ou não tem, como efeito tornar exigíveis as prestações vincendas; vejam-se, neste sentido, entre outros, que tomam posição no sentido negativo e, assim, favorável à pretensão do Recorrente, o Acórdão do STJ de 12-07-18, o Acórdão do STJ de 11-07-2019, o Acórdão do TRG de 12-03-2020, e o Acórdão do TRG de 14-03-2019, e o Acórdão do TRP de 30-05-07).

27. Neste contexto, fazemos referência ao Acórdão do Supremos Tribunal de Justiça datado de 11-07-2019, que se junta, que nos parece ser contraditado pelo decidido no Acórdão ora recorrido, no que se refere à questão de saber se, quando a inexibilidade resulta da falta de interpelação, a obrigação se deve considerar vencida com a citação do executado, quando diz, citando Lopes do Rego (in “Requisitos da Obrigação Exequenda”, Revista Themis, Ano IV, nº 7, 2003, pág. 70-71), a propósito do desaparecimento da menção expressa da possibilidade de a interpelação ser substituída pela citação, com a nova redação dada ao artigo 804º do CPC pelo DL nº 38/2003 de 08/03, e com referência ao seu entendimento de que, no essencial, tal regime se mantinha: “Importa, porém, realçar um aspecto relevante, decorrente da nova estrutura do processo executivo, no que respeita ao diferimento possível do contraditório do executado, nos casos previstos, nomeadamente, nos artigos 812º-A, nº 1, alíneas c) e d) e 812º-B: não sendo obviamente legítimo lançar mão de diligências tipicamente executivas (realização da penhora) sem que o crédito exequendo esteja vencido, é evidente que – nos casos em que ocorre diferimento do contraditório do executado para momento posterior à efectivação da penhora – terá o credor de proceder à interpelação extra-judicial do devedor, antes de iniciada a instância executiva”.

28. Ora, salvo melhor opinião, e ao contrário do que foi sustentado no Acórdão recorrido, o aresto acima mencionado, refere-se, na parte citada, de forma clara e expressa, aos casos em que a penhora tem início antes de realizado plenamente o contraditório – e este realiza-se mediante a apresentação de embargos e até ao final da instrução – e não aos casos em que a citação precede penhora. A penhora do imóvel hipotecado ocorreu em 02.08.2018, e a oposição mediante embargos ainda em 2018 e a realização da audiência de Julgamento em 10.09.2020, conforme se pode retirar dos autos.

29. E este é precisamente o caso em apreço nos autos, em que o contraditório do executado e ora recorrente, que tem início com a oposição à penhora e se realiza plenamente na audiência de julgamento, foi diferido e teve lugar em momento posterior à efectivação da penhora.

30. Por outro lado, não parece que, diferentemente do que defende o Acórdão recorrido, que citamos “a citação, desde que seja anterior às diligências de penhora, ou seja como primeiro acto introdutório, como foi o caso, continua a ser considerada válida para efeito de interpelação, mormente para efeitos de aplicação do artº 781º do CC, desde que tal intenção resulte do requerimento executivo, como ocorre no caso dos autos.” (sublinhado nosso), pois, entende o ora Recorrente, a referida intenção não resulta, de forma alguma, do requerimento executivo apresentado pelo ora Recorrido.

31. Quanto à questão do abuso de direito não ter sido apreciada pelo Venerando Tribunal da Relação por entender tratar-se de questão nova, e, como tal, precludida, fazemos referência ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-04-2018, Processo: 1530/15.5T8STS-C.PI.S1, na parte do Sumário com interesse para o caso, onde se pode ler, e citamos “III – Tendo a Relação na decisão da apelação se recusado a apreciar esse abuso do direito com o pretexto de que se trata de questão nova não colocada na 1ª instância, há que revogar essa decisão para que a Relação aprecie essa questão, que é do conhecimento oficioso.”

32. No mesmo sentido, considerando que a “questão do abuso do direito, que é de conhecimento oficioso, não está sujeita ao princípio da preclusão consagrado, quanto aos meios de defesa do réu, no art. 573º, visto caber nas exceções previstas no seu nº 2”, seguiu o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 12-07-2018, Processo 2069/14.1T8PRT.P1.S1, que acabámos de citar.

33. Em contrário àqueles doutos Acórdãos, decidiu o Venerando Tribunal da Relação, determinando, que citamos: “Aliado a todo o alegado em sede de recurso veio por fim, em termos totalmente inovadores, invocar o abuso de direito – nas suas conclusões 46ª a 55ª. A natureza do recurso como meio de impugnação de uma decisão judicial, determina a limitação quanto ao seu objecto decorrente do facto de apenas poder incidir sobre questões que tenham anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal de recurso com questões novas. Com efeito, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo as de conhecimento oficioso o que não é manifestamente o caso. Como refere Abrantes Geraldes (in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed. Pág. 119 e ss) «a diversidade de graus de jurisdição determina que, em regra, os Tribunais Superiores apenas devam ser confrontados com questões que as partes tenham discutido nos momentos próprios». A invocação de questões novas além de desvirtuarem a finalidade dos recursos, também determinam a supressão de um grau de jurisdição, pois convoca o Tribunal apreciar pela primeira vez tal questão, o que está ausente do princípio que preside aos recursos em processo civil.

Do exposto, é manifesto que no presente recurso apenas serão apreciadas as questões já discutidas nos autos e que serviram de base à oposição: a interpelação e resolução. Logo, não são de considerar as conclusões supra aludidas, mas sim as reportadas às questões apreciadas, ou seja a partir da 56ª conclusão.

34. Entendeu o Venerando Tribunal ad quem o Recorrente alegou um conjunto de factos ou questões novas, e decidiu, por essa razão, abster-se de apreciar, pronunciar-se e decidir sobre essas mesmas questões; sucede, porém, que, na verdade, todos esses factos ou questões tidos e denominados como novos ou novas, foram factos alegados ou questões abordadas pelo Recorrente: são, todos eles, para além de verdadeiros, factos que foram alegados e questões que foram referidas tempestivamente e em sede própria, e, por essa razão, aqui se argui a nulidade do Acórdão recorrido por omissão de pronúncia relativamente aos mesmos. Vejamos:

35. Diz-nos o Venerando Tribunal da Relação ... no Acórdão ora recorrido: “Ora, nas suas nas conclusões o apelante pretende trazer à colação vários fundamentos que não foram invocados em sede de oposição, pelo que na 1.ª à 14ª conclusão invoca questões atinentes à ausência de informação prestada no decorrer do contrato, nomeadamente ausência de notificação dos movimentos ao mesmo atinente, invocando que deixou de receber qualquer correspondência do Banco desde o inicio de 2007, pretendendo que se consideram as declarações do próprio ( conclusão 13ª), sem que tal corresponda a uma alteração dos factos, ou correlação com o alegado em sede de oposição. Nas 15ª à 20ª conclusão invoca, frise-se, pela primeira vez, a existência de um pagamento e forma como o mesmo deve ser imputado na dívida exequenda, afirmando a ausência de prestação de contas do Banco bem como a falta da devida quitação dos pagamentos efetuados.

Nas conclusões 21ª à 31ª veio invocar a actuação indevida do banco, aliado à celebração de um contrato de adesão, circunstância que mais uma vez não resulta ter sido invocada nos autos.

No tocante às conclusões 32ª à 46ª invoca questões relacionadas com a actuação do Banco e ausência de informação deste quanto ao ocorrido no processo de execução fiscal, circunstâncias ausentes da sua oposição. Aliado a todo o alegado em sede de recurso veio por fim, em termos totalmente inovadores, invocar o abuso de direito – nas suas conclusões 46ª a 55ª.”

36. Quanto às questões invocadas pelo ora Recorrente da 1.ª à 14ª conclusão, relativamente às quais o aresto recorrido afirma que o Recorrente “invoca questões atinentes à ausência de informação prestada no decorrer do contrato, nomeadamente ausência de notificação dos movimentos ao mesmo atinente, invocando que deixou de receber qualquer correspondência do Banco desde o início de 2007”, cumpre esclarecer:

37. Nos embargos apresentados pelo Recorrente, de fls., pode ler-se sob o nº 11.: “Sucede que, e ao contrário do que refere (mas não prova) o Exequente no requerimento executivo apresentado, nunca ao aqui embargante, nem à fiadora dos referidos contratos, foi exigido qualquer valor pelo exequente, nem, tão pouco, foi este interpelado, de nenhuma forma, do vencimento das prestações acordadas.” Nota: É evidente que, por mero lapso de escrita, foi redigido “foi este interpelado”, quando se pretendia dizer “foram aqueles interpelados”.

38. E no nº 12. da mesma peça processual, o ora Recorrente declarou: “Falta de exigência e de interpelação que, como se passará a demonstrar, não poderá deixar de ter consequências.”

39. Assim, atenta a redacção adoptada, e sobretudo tendo em conta o emprego da conjunção “e” e da expressão “nem, tão pouco”, cremos que não importa um especial esforço de interpretação, o entendimento de que, ali, o ora Recorrente se referiu às prestações que se foram vencendo pelo normal decurso do tempo, e/ou às eventualmente em dívida, por clara anteposição à preposição seguinte “(...) interpelado, de nenhuma forma, do vencimento das prestações acordadas”, que, se refere à totalidade da dívida por vencimento antecipado das prestações.

40. Ou seja, há duas menções distintas, a duas omissões distintas; clarificando: A primeira menção “exigência de qualquer valor”, apenas pode dizer respeito ao pagamento de prestações (à solicitação de pagamento das prestações que se vão vencendo, ou das que estivessem em dívida) pois, obviamente, não se refere ao vencimento antecipado das prestações que são mencionadas de seguida.

41. Ou seja, só se pode concluir – e foi o que fez a Exequente/Recorrida, e também a M. Juíza a quo, como demonstraremos – que a referência à “exigência de qualquer valor” trata do pagamento de prestações e, não respeitando ao vencimento de todas as prestações, só pode dizer respeito ao vencimento de prestações pelo decurso do tempo, em cada mês, e/ou a eventuais prestações em dívida.

42. Para além do acima expendido, sempre se dirá que deve entender-se que, obviamente, estes factos foram ainda alegados no conjunto da defesa, a qual deve ser apreciada como um todo, sendo os mesmos factos – a referência a extractos bancários, onde consta a informação relativa à prestação a pagar no mês seguinte, e a interpelações para cumprimento ou admonitórias - as mais relevantes concretizações instrumentais, a designação ou nomeação dos factos integradores dum facto essencial: a ausência de toda e qualquer comunicação por parte do banco Recorrido respeitante à “exigência de qualquer valor”, quer para o cumprimento da obrigação mensal de pagamento das prestações, quer relativamente ao seu putativo incumprimento.

43. E, assim, todos estes factos, quer o facto essencial, quer os factos concretos que o integram, foram alegados nos termos das referidas menções constantes dos embargos de executado, constam das contra-alegações apresentadas pelo Recorrido na Contestação aos Embargos, e foram objecto da prova em Audiência de Discussão e Julgamento.

44. E o resultado seria o mesmo ainda se que aí o não o tivessem sido, atenta a atribuição legal do ónus da prova ao exequente.

45. De facto, tendo alegado que não lhe nunca lhe “foi exigido qualquer valor”, “não cabia ao Recorrente provar, pois sobre ele não recaía o ónus da prova, que não foram efectuadas quaisquer comunicações, quais as comunicações que não foram efectuadas, e deviam ter sido, pelo Recorrido, bastando-lhe, para tanto, alegar, como fez, que não lhe “foi exigido qualquer valor pelo exequente, nem, tão pouco, foi este interpelado, de nenhuma forma, do vencimento das prestações acordadas.” (onde se lê “foi este interpelado” leia-se “foram aqueles interpelados).

46. E os factos invocados pelo ora Recorrente como não tendo sido praticados pelo Recorrido – o usual envio de extractos mensais onde constam as prestações que se vencem no mês seguinte, e a comunicação ou interpelação relativa à eventual existência de prestações vencidas com pagamento em atraso - são apenas e exactamente, a concretização e enunciação dos factos que explicitamente decorrem das obrigações legais consignadas pela legislação vigente ao Recorrido, e que este incumpriu. A sua invocação e discriminação em sede do recurso teve por objectivo a concretização e melhor clarificação do facto negativo alegado – a omissão, pelo exequente/ Recorrido, da exigência de qualquer valor, por qualquer meio, ou de qualquer forma, em qualquer momento, até à apresentação do requerimento executivo.

47. De facto, a omissão de qualquer comunicação por parte do Recorrido, que o Recorrente alegou, desde o simples envio de extractos mensais até à interpelação para retomar o pagamento das prestações após a anulação da execução fiscal – na terminologia utilizada “a exigência de qualquer valor” - são obrigações legais decorrentes dos princípios e disposições legais aplicáveis à actividade do Recorrido, são obrigações incondicionais e explicitas que decorrem directamente da lei, cabendo ao banco Recorrido, também por disposição expressa da lei, o ónus da prova relativamente ao seu cumprimento – Artigo 8º, nº 3 do Aviso nº 2/2010 do Banco de Portugal, publicado no Diário da República nº 74/201, Série II, de 2010-04-16.

48. Ora, fica bem demonstrado que não são factos ou questões novas se atentarmos que o próprio embargado/recorrido o reconhece, pois assim contra-alegou expressamente na Contestação aos Embargos , com referência directa ao alegado pelo recorrente nos Embargos, sob os nºs 11 e 12 acima mencionados, nos seguintes termos (citamos com sublinhados e negrito nossos): “14º O embargante alega que nunca o Banco lhe exigiu qualquer valor e que nunca foi expressamente avisado, designadamente por escrito, para efectuar o pagamento do capital mutuado, em virtude do vencimento da totalidade dos empréstimos”; clarificador é o acto de também o Recorrido empregar a conjunção “e”.

49. É bom de ver que, se na segunda parte desta alegação, o embargado e recorrido se refere ao aviso para pagar a totalidade das prestações, então, a primeira parte apenas se pode referir à exigência, ou comunicação, ou aviso, por qualquer meio, referente ao pagamento das prestações vencidas pelo normal decurso do tempo, ou seja, ao cumprimento da obrigação mensal de pagamento das prestações, e/ou a prestações em dívida.

50. Quanto aos factos concretizadores do facto essencial alegado – a não exigência de qualquer valor - estes são factos que podem ser alegados pelas partes até ao final da Instrução, desde que seja respeitado o princípio do contraditório, são de conhecimento oficioso do Tribunal e pode, e devem, ser por este apreciados.

51. Veja-se, neste sentido, por exemplo, o Acórdão do TRC, datado de 23-02-2016 (Processo nº 2316/12.4TBPBL.C1), cujo Sumário se reproduz parcialmente e onde se pode ler (negrito nosso):

“1.- Os factos complementares ou concretizadores são aqueles que especificam e densificam os elementos da previsão normativa em que se funda a pretensão do autor - a causa de pedir - ou do reconvinte ou a excepção deduzida pelo réu como fundamento da sua defesa, e, nessa qualidade, são decisivos para a viabilidade ou procedência da acção/reconvenção/defesa por excepção.

2.- Se não forem oportunamente alegados e se nem as partes nem o tribunal, ao longo da instrução da causa, os introduzirem nos autos, garantindo o contraditório, a decisão final de mérito será desfavorável àquele a quem tais factos (omitidos) beneficiavam.

3. Sem prejuízo de às partes caber a formação da matéria de facto, mediante a alegação, nos articulados, dos factos principais que integram a causa de pedir, a reforma do processo civil atribuiu ao Tribunal a assunção de uma posição muito mais activa, por forma a aproximar-se da verdade material e alcançar uma posição mais justa do processo.

4. Reconhecendo-se agora ao Juiz, para além da atendibilidade dos factos que não carecem de alegação e de prova a possibilidade de considerar, mesmo oficiosamente, os factos instrumentais, bem como os essenciais à procedência da pretensão formulada, que sejam complemento ou concretização de outros que a parte haja oportunamente alegado e de os utilizar quando resultem da instrução e da discussão da causa e desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório.

52. Comprova, ainda, que não se trata de questão nova, ou questões novas, o facto de a M. Juíza a quo haver enunciado no Despacho Saneador de 10-03-2020, a fls. - reconhecendo deste modo, expressamente, a necessidade de o ora Recorrido demonstrar que havia interpelado o ora Recorrente para cumprir - os temas da prova a produzir em audiência de discussão e Julgamento, nos seguintes termos (citamos com sublinhado nosso): “Apurar:

1. Se o embargante foi informado do vencimento das prestações acordadas nos mútuos apresentados à execução; 2. Se o embargante foi interpelado, por carta, para pagamento da quantia em dívida/ totalidade dos empréstimos e informado da resolução dos contratos.”

53. A M. Juíza, quer ao enunciar os temas da prova, quer na douta Sentença, distinguiu, assim, entende o ora recorrente que bem, entre o facto de o embargante ter sido, ou não, informado do vencimento das prestações acordadas, e o facto ter sido, ou não, interpelado para o pagamento da totalidade da dívida e informado da resolução dos contratos.

54. Esta distinção foi feita pela M. Juíza exactamente nos mesmos termos, e corresponde objectivamente, à efectuada pelo Recorrente nos Embargos, e, também, pelo Recorrido na Contestação aos Embargos.

55. Embora possa ser agora, e em termos práticos, irrelevante, cabe referir que este tema, da prestação da informação devida, quer através do envio de extractos bancários, quer de cartas a informar do vencimento das prestações e da existência de prestações em dívida, ou de qualquer outra forma de interpelação para pagamento das prestações devidas – foi mesmo, obviamente, objecto da prova em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, como se pode comprovar através da audição da respectiva gravação, designadamente na inquirição das testemunhas apresentadas pelo Recorrido, pela mandatária do Recorrido, pela M. Juíza e pela mandatária do ora Recorrente e se pronunciaram concretamente – aliás as suas declarações apenas versaram esta matéria - acerca da política do banco ora Recorrido no que respeita ao envio de cartas de interpelação para o cumprimento, para informação de eventuais prestações com pagamento em atraso, e sobre o envio de extractos bancários e seu teor: a) CC (18m17s em diante) – sobre a questão concreta em apreço: 20m45s a 27m33s; b) DD (28m15s em diante) – sobre a questão concreta em apreço: 31m28s a 33m35s e 33m53s a 36m00s.

56. Tendo a questão da ausência de qualquer exigência ou aviso para pagamento de prestações sido objecto das alegações quer do Recorrente quer do Recorrido, tendo sido referida como objecto da produção da prova pela M. Juíza a quo, e, até, óbvia e consequentemente, objecto da prova em sede de Audiência de Discussão e Julgamento (mas mesmo que o não tivesse sido, já que ao recorrido cabia o ónus da prova), o facto de a M- Juíza a quo não se haver pronunciado sobre essa mesma questão constituí uma nulidade por omissão de pronúncia (artigo 615º, nº 1, d) do Código Civil), a qual é do conhecimento oficioso do tribunal de recurso.

57. Por outro lado, o facto de o Recorrido ter junto aos autos cartas e extractos (Docs. nºs 1 a 3 juntos aos autos com a contestação aos embargos, de fls. ), que não provou ter enviado, e em relação aos quais releva o facto de terem datas anteriores “ao depósito de valores por conta das dívidas emergentes do incumprimento dos contratos de mútuo” (citação; Contestação aos Embargos, nº 22.) - bem como o próprio teor dessas cartas (próprio de interpelações extrajudiciais para o cumprimento), permitem concluir, sem qualquer dúvida, tal com a inquirição das testemunhas antes mencionada, que o Recorrido sabia que sobre si impendia a obrigação de efectuar essas comunicações e prestar essa informação, e era sua obrigação saber; tal conhecimento é comprovado, ainda, pelo que o Recorrido alegou sob o 16. da mesma peça processual, com referência a estes documentos, como passamos a citar. “(…) o banco interpelou o Embargante para proceder ao pagamento dos valores em dívida, acrescido dos juros já vencidos (…)”.

58. Não pode, por isso, fundamentar-se a decisão proferida, e ora recorrida, na consideração, não expressa mas tácita, de que a ausência da “exigência de qualquer valor” não é uma alegação válida, ou mesmo que não corresponde à omissão de qualquer comunicação e à prestação da informação necessária ao cumprimento, designadamente consistente no envio de extractos ou de carta(s) de informação sobre o vencimento das prestações, ou de prestações em dívida, e de interpelação para o pagamento, e que, assim, todos esses factos constituem questões novas, que não foram tempestivamente alegados pelo ora Recorrente, e que não foram objeto de contraditório por parte do Recorrido, que não foram contemplados no objeto do litígio nem nos temas da prova, ou, sequer, que não foram objeto de prova nem de discussão e julgamento, e que, por essa, ou essas razões, não foram considerados Acórdão ora recorrido, ou mesmo na Sentença recorrida.

59. Porque, na verdade, tais factos foram objecto de alegações, quer do Recorrente, quer do Recorrido, e também enunciados como tema da prova e até objecto da produção de prova em sede de Audiência de Discussão e Julgamento.

60. Conforme já referido, ao tempo da interposição do requerimento executivo estava já em vigor o Aviso nº 2/2010 do Banco de Portugal, publicado no Diário da República nº 74/201, Série II, de 2010-04-16, o qual reforça especificamente os deveres de informação a observar pelas instituições de crédito na negociação, celebração e vigência de contratos de crédito à habitação, nomeadamente:

a) No nº 2 do artigo 3º, que tem por epígrafe “Dever de informação”, o qual dispõe que, “A informação a prestar pelas instituições de crédito no âmbito da negociação, celebração e vigência de contratos de crédito à habitação, de crédito conexo e de outro crédito hipotecário deve ser completa, verdadeira, atual, clara, objectiva e apresentada de forma legível.”

b) No artigo 7º, sob a epígrafe “Informação a prestar durante a vigência do contrato”, o qual, sob o nº1, estabelece a obrigação de disponibilização de um extracto mensal que contenha, entre outras informações, as seguintes, para o caso as mais relevantes:

i) O número e data de vencimento da prestação subsequente à data de emissão do extracto;

ii) A identificação e montante de eventuais comissões e despesas a pagar na data de vencimento da prestação subsequente à data da emissão do extracto; e,

iii) A comunicação da alteração da taxa de juros.

c) No artigo 7º, nº 5, consigna que “No caso de comunicações relativas ao incumprimento de obrigações contratuais, as instituições de crédito devem informar o cliente sobre as prestações ou outros valores em dívida à data de emissão dessa informação, bem como os montantes devidos a título de mora, com identificação da respectiva taxa e base de cálculo.”

d) O artigo 8º, nº 3, o mesmo diploma legal determina que “Compete às instituições de crédito a prova da disponibilização aos clientes da informação prevista no artigo 3º, no nº 2 do artigo 4º e nos artigos 5º, 6º e 7º do presente Aviso. “

e) Finalmente, quanto à sua aplicação no tempo, dispõe o próprio diploma no nº 2 do artigo 11º, que “Aos empréstimos já celebrados à data da entrada em vigor d presente Aviso, é aplicável o disposto no nº2 do artigo 3º e o disposto nos artigos 7º a 9º do presente Aviso”.

61. Ora, bem sabendo que sobre si impendiam, e impendem, os referidos princípios legais e obrigações inerentes ao exercício da actividade bancária, designadamente nas relações com o seu cliente, aqui recorrente, nomeadamente os deveres de informação, de lealdade, de diligência e de cooperação, a ora recorrida nada fez para dar cumprimento aos mesmos, pelo que, obvia e naturalmente, não detém uma posição jurídica que a habilite a, legitimamente, requerer a execução dos contratos de crédito hipotecários com base na falta de pagamento de prestações, na medida em que o mesmo dependia, pelas razões acima expostas, do cumprimento desses mesmos deveres.

62. A propósito do dever de informar a que estão obrigados os bancos, e correspondentes direitos à informação de que são titulares os clientes, releva, entre outros, o Acórdão do TRL de 10-06-2014 (processo 785/12.1TVLSB.L1-6, cujo Sumário transcrevemos:

“1 – A entidade bancária tem o dever de informar sempre que, no contexto negocial da relação estabelecida, tal comportamento se apresente como necessário ao desenvolvimento dessa relação, nomeadamente quando da informação prestada ao cliente possa depender uma correcta execução das ordens recebidas ou um maior rigor técnico dos serviços prestados, tudo num quadro amplo de salvaguarda dos interesses do cliente.

2 - Quando o banco informe, deverá fazê-lo com veracidade e rigor, por força da sua condição de profissional diligente que pauta a respectiva actuação, no âmbito daquela relação, pelos vectores derivados do princípio geral da boa fé negocial, da confiança ínsita à relação e da salvaguarda dos interesses dos clientes.

3 - A difusão de informação, essencial ao sistema bancário, é uma actividade que pode ser lesiva para outrem, nomeadamente para o cliente, se a informação prestada for falsa ou deficiente, e tiver levado o seu destinatário a tomar decisões que, a final, se revelam danosas para si.

4 - Os deveres de informação e de competência técnica que, entre outros, impendem sobre os bancos nas suas relações com os seus clientes estão associados à estrita esfera contratual e ao quadro de responsabilidade daí decorrente para a sua eventual violação.

5 - Provada a omissão ou o deficiente cumprimento daqueles deveres, funcionará a presunção de culpa prevista no artigo 799º, nº 1, do Código Civil (sumário da Relatora).

63. Sublinha-se agora o óbvio: a junção daqueles documentos pelo exequente/embargado – cartas e extractos de 2007 e 2008, que tinham, sublinhe-se, datas anteriores ao pagamento efectuado conforme constante do extracto 2008/2 junto aos autos pelo próprio recorrido com a contestação aos embargos como doc. Nº 2, e alegado/confessado sob o nº 22 da mesma contestação - permite concluir que este nada mais tinha para apresentar e juntar aos autos, no que diz respeito a documentação relativa às comunicações a que estava legalmente obrigado; sobrelevando-se aqui, uma vez mais, o facto de lhe caber o respectivo ónus da prova.

64. Na verdade, prova de qualquer envio, de qualquer documento, em qualquer altura e até à apresentação do requerimento executivo, foi algo que o Recorrido não logrou produzir.

65. Apresentou os referidos documentos, extractos e cartas de 2007 e 2008, inválidas face ao alegado e sublinhado supra (nº 60) mas não provou o seu envio nem a sua recepção pelo recorrente.

66. E, com essas omissões de comunicação, de informação, de interpelação e de envio, o recorrido violou os princípios da cooperação, lealdade, boa-fé e informação a que estava vinculado por força da legislação aplicável a todas as entidades bancárias.

67. É do conhecimento geral, do cidadão médio, comum, e, por maioria de razão, dos Tribunais, que a prestação da pertinente informação e/ou interpelação para pagamento das prestações por parte do exequente/recorrido, era, e é, absolutamente essencial e mesmo indispensável a qualquer mutuário de crédito à habitação, para poder cumprir a obrigação de pagar as prestações, e era-o também ao executado/ recorrente: este dependia da transmissão, por aquele, das informações relativas às prestações pagas, à prestação a pagar no mês seguinte, ao seu valor, e/ou a prestações eventualmente em dívida, para, tomando o devido conhecimento, poder, subsequentemente, dar cumprimento à correspectivas obrigações.

68. E isto é válido e relevante para toda a vigência do empréstimo, mas é-o sobretudo depois de o ora Recorrente haver efectuado o referido depósito, e de não ter sido informado da imputação do cumprimento efectuada pelo Recorrido; vejamos se de facto este depósito é, como afirma o Acórdão recorrido, ou não é, como entende o Recorrente, uma questão nova:

69. Sob o nº 15. do recurso, o Recorrente limita-se a invocar um facto que foi alegado, e se tem como confessado pelo próprio recorrido, e que, como tal, o Recorrente pode aproveitar, referir e invocar, assim servindo a Verdade e a Justiça: o pagamento efectuado por si efectuado para regularização das prestações em atraso em 2007/2008, no montante de 12.000 euros, consta do doc. Nº 2 junto aos autos pelo Exequente/recorrido com a contestação aos embargos, o qual declara, na mesma peça processual, e citamos:”(...) o embargante procedeu ao depósito de valores por conta das dívidas emergentes do incumprimentos dos contratos de mútuo (...)” (nº 60).

70. Ora, a omissão de qualquer comunicação, da “exigência de qualquer valor”, é deveras relevante, pois, sem que o banco exequente haja procedido, nos termos das prescrições legais, a qualquer comunicação sobre prestações a pagar, ou em dívida, e tendo adjudicado o imóvel, logo após esse depósito, em sede do processo de execução fiscal que veio a ser anulado, o Recorrente não tinha meio de saber, e não soube nunca até à interposição do requerimento executivo, se tinha prestações em dívida, ou prestações a pagar.

71. A tal se refere o Recorrente na conclusão 21º do recurso, em que se limita a invocar uma facto dado como provado pelo Tribunal a quo, que ali citou e se refere precisamente à adjudicação do imóvel pelo banco exequente/embargado, na sequência de reclamação de crédito no âmbito do mencionado processo de execução fiscal.

72. E este é o ponto mais relevante: aquela informação, a solicitação do pagamento, na expressão utilizada “a exigência de qualquer valor”, era ainda mais necessária e indispensável depois do Recorrido haver sido notificado da anulação do processo de execução fiscal, e, consequentemente, da anulação da sua adjudicação e aquisição do imóvel por essa via; essa obrigação decorre expressamente da lei, e é, no mínimo, decorrente do mais elementar princípio da boa-fé.

73. E, note-se bem: o Recorrido foi notificado da anulação da execução fiscal, e, cerca de três meses depois, sem qualquer comunicação ao ora Recorrente, sem lhe exigir qualquer valor, ou à fiadora, aquele interpôs o requerimento executivo que aqui nos traz.

74. E importa referir, para efeitos do acima expendido, que o próprio Recorrido declarou na Resposta à Alegações de recurso, “foi proferida a sentença recorrida, onde foi considerada provada a seguinte matéria que não foi objeto de impugnação por parte do Recorrente:

a) (…); b) (…); c) (…);

Em 5 de Março de 2012 foi anulado todo o sobredito processo de execução fiscal.”

75. Aqui chegados, pergunta-se: como pode entender-se que esta não é, por parte do banco exequente/embargado/recorrido, uma actuação que colide com os mais elementares deveres de boa-fé, de lealdade, de diligência, do dever de cuidar dos interesses do cliente?

76. O Recorrente entende que sim, é!

77. Por essa razão, o Recorrente invoca a legislação aplicável e a jurisprudência do STJ sobre o tema – conclusões 26º e 27º e 40º a 42º, bem como as disposicões do Código Civil aplicáveis nas conclusões 45ª a 48ª, e o abuso do direito, que mais à frente abordaremos, da 46ª à 54ª.

78. E importa ainda considerar que, ainda que se entenda que a citação do Recorrente supre, no caso em apreço, a falta de interpelação conducente à exigibilidade imediata de todas as prestações devidas até final do prazo do contrato - no que não se concede - a mesma citação não supre as demais e antecedentes obrigações legais do Recorrido acima mencionadas, entre as quais destacamos a de informar e a de interpelar para o cumprimento, bem como a de enviar os extractos bancários mensais dos quais devem constar as prestações vencidas e em dívida, e a de fazer a interpelação admonitória prevista no artigo 808º, nº 1 do Código Civil.

79. Obrigações essas cujo cumprimento permitiria ao Recorrente, ou à fiadora, fazer face ao cumprimento, permitindo o pagamento das prestações à medida que as mesmas se vencessem, ou a regularização de eventuais prestações com pagamento em atraso.

80. Constitui, pois, um manifesto e clamoroso abuso de direito, isso sim, pretender que a citação supre, sem mais, a falta daquelas informações/interpelações – em especial nas concretas circunstâncias do caso acima melhor descritas – branqueando, assim, o incumprimento das obrigações do Recorrido, cujo escopo é exactamente facultar ao devedor a informação necessária ao cumprimento das exactas obrigações a que diz respeito o incumprimento invocado pelo credor, colocando o devedor, e a fiadora, perante a inevitabilidade de ver vencida a totalidade das prestações contratualizadas.

81. Para efeitos da apreciação desta questão, importa ter em consideração que com interesse para a decisão a proferir resultaram provados os seguintes factos na Sentença proferida pela M. Juíza a quo, que citamos:

“a) (...) b) (…)

c) Sobre o imóvel hipotecado a favor do banco exequente foi registada penhora à ordem do Processo de Execução fiscal nº ..., intentado pela Fazenda Nacional contra o embargante, ali tendo o banco embargado reclamado créditos e, em 19 de Dezembro de 2008, adjudicado tal imóvel.

d) Em 5 de Março de 2012 foi anulado todo o sobredito processo de execução fiscal.”

82. E, extraído da mesma Sentença, “com interesse para a decisão a proferir, não se provou que:

O banco embargado tenha remetido ao embargante as cartas juntas com a contestação aos embargos (Docs. 1 a 3)/ interpelado o embargante para pagamento da dívida e informado da resolução dos contratos.”

83. Perante tudo o acima expendido, considera o ora Recorrente que o banco exequente, ao violar os deveres de conduta supra explicitados, e ao apresentar, sem mais, o requerimento executivo, e ao pretender que o primeiro deve ser tido como interpelado com a citação para os efeitos da aplicação do artigo 781º do CC, não agiu de acordo com os princípios da boa-fé, antes o fez em claro e inaceitável e até clamoroso abuso do direito.

84. De facto, e em conclusão, admitindo por mera hipótese, o que faz sem conceder, que o banco exequente, ao recorrer ao disposto no artigo 781º do CC, e ao resolver os contratos, havia exercido um direito legítimo, então, entende o ora Recorrente, que o teria feito em abuso do direito.

85. Dispõe o artigo 33º do CC, sob a epígrafe “Abuso de direito”, que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

86. É este o caso em apreço, de forma manifesta e clamorosa, considera o ora Recorrente, sem vislumbrar como possa haver outro entendimento, e é-o em todas as suas dimensões factuais, e relativamente a todas as previsões da referida disposição legal.

87. Embora seja consabido que as ordenações características doutrinárias dos “tipos” de abuso do direito, mais não são que referências às situações mais típicas, que não esgotam, nem excluem, as demais ocorrências de facto que deverão ser analisadas caso a caso, sempre se dirá que, na situação dos autos, estamos perante uma sobreposição de supressio e tu quoque, embora se possa considerar que não só; Vejamos:

88. Estamos perante uma posição jurídica que não foi exercida, nem comunicada a intenção desse exercício, no período que antecedeu a adjudicação do imóvel no âmbito do processo de execução fiscal, em 2007/2008, nem, durante em que o período em que foi proprietária do imóvel, apenas o fazendo subsequentemente à notificação da anulação desse processo fiscal, em 2012, quando, decorridos menos de três meses dessa anulação apresentou o requerimento executivo, sem de tal facto (a anulação do processo fiscal, da sua adjudicação e do registo do imóvel) dar prévio conhecimento ao devedor Recorrente, sem fazer qualquer comunicação ou dar oportunidade de cumprimento, o que que contraria a boa fé - Este é um caso típico de supressio, já que as supra mencionadas circunstâncias, quer as exógenas, quer as endógenas à conduta do banco exequente, indiciaram que essa posição jurídica não seria exercida, sendo violada, mediante a insólita e repentina apresentação em Tribunal do requerimento executivo, a confiança estabelecida.

89. Por outro lado, ao exercer essa posição jurídica, o banco exequente prevaleceu-se da situação jurídica que ela própria criou mediante a violação dum vasto conjunto de disposições legais, quer normas gerais do Direito Civil, quer normas reguladoras da actividade bancária, que lhe impõem um conjunto de deveres especiais de informação, diligência, lealdade, de aviso, de alerta, de proteção dos interesses do Recorrente.

90. Estamos, pois no caso em apreço, perante um claro abuso do direito; como ensina o Prof. Menezes Cordeiro (in Revista da Ordem dos Advogados, ano 65, vol. II, - Do abuso do direito: estado das questões e perspectiva): “Tu quoque deve ser aproximado do segundo princípio mediante, entre a boa fé e os casos concretos: o da primazia da materialidade subjacente (118). A ordem jurídica postula uma articulação de valores materiais, cuja prossecução pretende ver assegurados. Nesse sentido, ele não se satisfaz com arranjos formais, antes procurando a efectivação da substancialidade. Pois bem: a pessoa que viole uma situação jurídica perturba o equilíbrio material subjacente. Nessas condições, exigir à contraparte um procedimento idêntico ao que se seguiria se nada tivesse acontecido equivaleria ao predomínio do formal: substancialmente, a situação está alterada, pelo que a conduta requerida já não poderá ser a mesma. Digamos que, da materialidade subjacente, se desprendem exigências ético-jurídicas que ditam o comportamento dos envolvidos.”

91. Para apreciar a conduta do Recorrido, importa considerar o que o mesmo afirma na sua Resposta às Alegações, que citamos: “não é consonante com as regras da boa fé e bons costumes, e como tal abusivo, o Recorrente/Mutuário vir alegar em sua defesa que o Banco não o interpelou extrajudicialmente para pagar a dívida, sabendo-se responsável pelo cumprimento das obrigações que assumiu desde o momento da celebração dos contratos e sabendo, há mais de 12 anos, que o Banco Recorrido, perante o incumprimento dos contratos, declarou vencida e exigível a totalidade da dívida, podendo a todo o tempo exonerar-se da mesma, pagando-a.”

92. O Recorrido faz esta afirmação, gratuita e leviana, se não mesmo grotesca, olvidando o facto de ser muito, muitíssimo diferente, quer para o Recorrente, quer também para a fiadora, como para qualquer pessoa que recorre a um crédito à habitação, pagar mensalmente as prestações que se vão vencendo, ou até mesmo, sendo o caso, pagar algumas prestações eventuamente em atraso, de ter que pagar a “totalidade da dívida”. Parece bastante óbvio que o Recorrente celebrou um contrato de mútuo para aquisição de habitação por não ser detentor dos meios financeiros necessários a essa aquisição. O mesmo será dizer que, obviamente, não dispunha então, nem dispõe agora, dos meios necessários para se “exonerar” da “totalidade da dívida”!

93. Em suma, não é juridicamente, nem éticamente aceitável – porque corresponde a uma conduta do banco Recorrido que fere manifestamente o princípio e os ditames da boa-fé, e viola os seus deveres de informação, de lealdade, de diligência, de advertência, de alerta, e de proteção dos legítimos interesses do seu cliente, no caso, o Recorrente - depois de ter sido notificado da anulação do processo executivo pela Autoridade Tributária (AT), no qual havia adjudicado o imóvel e procedido ao seu registo na respectiva Conservatória conforme resultou provado nos autos, e considerando que se tratou dum processo fiscal ao qual o ora Recorrente não deu aso, tendo-lhe sido dada razão e, consequentemente, anulado o mesmo processo fiscal pela AT, haja, decorridos menos de três meses desde aquela notificação de anulação, apresentado em tribunal o requerimento executivo, sem qualquer comunicação ao ora recorrente e seu cliente, ou à fiadora, para retomar o pagamento das prestações, sem lhes comunicar a eventual existência de qualquer dívida, e sem lhes dar oportunidade de cumprimento do acordado nos contratos de mútuo celebrados.

94. Este é, objectivamente, face às circunstâncias do caso, aos factos que resultaram provados e não provados, nos autos, um caso de flagrante, clamoroso e manifesto de abuso do direito, uma clara violação da ordem jurídica que é do conhecimento oficioso e merece o repúdio e a censura dos Tribunais, aos quais cabe aplicar o Direito e realizar a Justiça.

95. Leia-se, no contexto e no sentido da pretensão do ora Recorrente e do acima expendido, o Acórdão do STJ de 12-02-2009, Revista n.º 3714/08 - 6.ª Secção Helder Roque (Relator):

“I - A relação bancária - relação do Banco com o seu cliente - iniciando-se, normalmente, com a celebração de um contrato de abertura de conta, intensifica-se ao longo do tempo, volvendo-se numa relação contínua que, podendo ser preenchida com os mais diversos negócios, mantém, todavia, uma certa unidade, configurando-se, assim, como uma relação contratual duradoura.

II - Entre as partes - banqueiro e cliente - há deveres de conduta decorrentes da boa fé, em articulação com os usos ou os acordos parcelares que venham a celebrar, designadamente deveres de lealdade, com especial incidência sobre a parte profissional, o banqueiro.

III - Este fica vinculado a deveres de actuação conformes com aquilo que se espera da parte de um profissional tecnicamente competente, que conhece e domina as regras da ars bancaria, e que deve ter em vista a defesa e o respeito dos interesses do seu cliente; a tutela da confiança é um dos valores fundamentais a ter em conta no desenvolvimento da relação bancária.

IV - Essa especial relação complexa, de confiança mútua e dominada pelo intuitus personae, impõe à instituição financeira padrões profissionais e éticos elevados, traduzidos em deveres de protecção dos legítimos interesses do cliente, em consonância com os ditames da boa fé: deveres de diligência e cuidado, deveres de alerta, aviso, advertência e prevenção para certos riscos e sua repartição, deveres de informação, deveres de discrição, sigilo ou segredo profissional, cuja inobservância ou violação poderá pôr em causa a uberrima fides do cliente e o intuitus personae da relação e originar a responsabilidade da instituição financeira imprudente ou não diligente.

96. É, assim, entendimento do ora requerente, que os factos e motivações de direito acima expendidas, são suficientes para determinar, em termos substanciais, a existência de abuso do direito e a subsequente extinção da execução.

97. Prevenindo, por mera cautela de patrocínio, e sem conceder, a hipótese de não serem admitidas as considerações que antecedem, quer as relativas às nulidades invocadas, quer quanto ao abuso do direito, abordamos agora a questão relativa à resolução dos contratos de mútuo; a este propósito, diz-nos o Acórdão recorrido, que citamos: “Ao contrário do defendido pelo apelante o direito executivo que a exequente pretende fazer valer na acção reporta-se ao vencimento antecipado das obrigações assumidas, sem que resulte invocada a resolução. Com efeito, o vencimento e a exigibilidade de todas as prestações acordadas no contexto dos contratos de mútuo dados à execução resultaram da verificação do que ficou contratualizado na cláusula 9, alínea a) dos respetivos documentos complementares e, bem assim, do disposto no artigo 781.º do CC, e não da resolução contratual que não constitui agasalho do direito invocado pela exequente.

Outrossim, em nada relevam as conclusões de recurso que se reportam à validade ou não da resolução, ou sequer a necessidade de interpelação admonitória, pois é com base na exigibilidade decorrente do incumprimento de uma das obrigações/pagamento de prestações assumidas, e o vencimento antecipado que daí decorre, que assenta a execução. Logo, improcedem as conclusões de recurso que se reportam à resolução, dado a mesma não fundamentar o pedido da exequente.”

98. Mas a verdade é que, ao contrário do afirmado neste aresto, o banco exequente/embargado/recorrido invocou a resolução dos referidos contratos, conforme consta da contestação aos embargos por si junta aos autos, de fls., que citamos:

“20. Contrariamente ao alegado pelo embargante, o Banco não só o interpelou para em prazo razoável, pôr fim à mora, traduzida na falta de pagamento atempada das prestações em dívida em ambos os contratos,

21. como também procedeu à resolução dos mesmos, em virtude da persistência no incumprimento por carta datada de 14.06.2007.”

22. Cabe, neste contexto, esclarecer que em momento posterior ao do envio das referidas cartas de interpelação e resolução, o embargante procedeu ao depósito de valores por conta das dívidas emergentes do incumprimento dos contratos de mútuo – cfr. Extractos que se protesta juntar.”

99. Também a Mmª Juíza a quo se referiu nestes termos à pretensão do recorrido resolver os contratos ao enunciar os temas da prova, se deveria apurar, “Se o embargante foi interpelado, por carta, para pagamento da quantia em dívida/ totalidade dos empréstimos e informado da resolução dos contratos.”

100. Considerando que o Recorrido fundamentou a execução no incumprimento (definitivo) e não na mora (Contestação aos embargos nº 45) e atendendo a que a alegação desta pretensão e da resolução dos contratos foi formulada pelo Recorrido na contestação aos embargos, ou seja, depois da citação do Recorrente, e entendendo-se, como sucede na Sentença e no Acórdão recorridos que a citação vele como interpelação conducente à exigibilidade imediata de todas as prestações (no que não se concede), então, considerado interpelado que estava já o executado, e na medida em que o pedido da exequente se fundamenta também expressamente na resolução dos contratos, não subsiste razão alguma para que a aquela alegação e pretensão não sejam também consideradas válidas, daí se extraindo os devidos efeitos jurídicos.


Por contra-alegações, o Exequente pugna pela rejeição e pela improcedência do recurso.


Foram os seguintes os Factos Julgados Provados no processo:

1.O Banco Comercial Português, S.A. instaurou a acção executiva a que os presentes embargos correm por apenso, além de outra, contra AA, para obter o pagamento coercivo da quantia de € 193.798,69, acrescida de juros de mora vincendos, com base em escrituras públicas de mútuo com hipoteca e fiança e documentos complementares que as instruem, juntas com o requerimento executivo e que aqui dou por inteiramente reproduzidas.

2. O embargante deixou de pagar as prestações acordadas no âmbito dos aludidos mútuos, em 3 de Agosto de 2007 (Escritura Pública - Doc. 1) e em 3 de Setembro de 2008 (Escritura Pública - Doc. 2), encontrando-se em dívida, a título de capital € 106.312,26 (Doc. 1) e € 42.854,50.

3. Sobre o imóvel hipotecado a favor do banco exequente foi registada penhora à ordem do Processo de Execução fiscal nº ..., intentado pela Fazenda Nacional contra o embargante, ali tendo o banco embargado reclamado créditos e, em 19 de Dezembro de 2008, adjudicado tal imóvel. D

4. Em 5 de Março de 2012 foi anulado todo o sobredito processo de execução fiscal.


Foi considerado como Não Provado, com interesse para a decisão a proferir, que: a. O banco embargado tenha remetido ao embargante as cartas juntas com a contestação aos embargos (Docs. 1 a3) /interpelado o embargante para pagamento da dívida e informado da resolução dos contratos.


Conhecendo:


Em necessária apreciação preliminar, o Recorrido invoca que o recurso deverá ser rejeitado, nos termos da norma do art.º 641.º n.º 2 al. b) CPCiv, por se verificar, na formulação de conclusões de apelação, uma repetição do corpo das alegações.

Acompanhamos porém, nesta matéria, o que se discorreu no recente Ac. S.T.J. 28/10/21, pº 8975/17.4TSTB.E1.S1 (desta mesma 2ª Secção, relatado pelo Consº Rijo Ferreira), onde se ponderou ter-se generalizado, na prática judiciária, uma atitude condescendente em que os Tribunais Superiores desconsideram o incumprimento dos ónus de alegação e conclusão, avançando para a decisão em face do que têm como, e do que depreendem da decisão recorrida e da alegação, as questões que constituem o objecto do recurso.

Tal fica a dever-se a razões de ordem prática:

Por um lado, o reconhecimento da impotência para obviar a um reiterado afastamento dos padrões legalmente estabelecidos por parte dos advogados, aliado a uma percepção de nessa matéria não ser admissível a existência de critérios de exigência diversificados em função de idiossincrasias individuais, que redundariam num tratamento desigualitário e arbitrário dos cidadãos no seu acesso ao recurso.

Por outro lado, e sobremaneira, a consideração de que a utilização de um critério mais rigoroso redundaria num prejuízo para a parte recorrente, que veria o acesso ao recurso negado em função de um comportamento que não lhe será imputável.

Assim, não sendo caso de total inexistência, só em casos extremos em que de todo em todo não se consiga vislumbrar qualquer conteúdo útil na alegações e/ou conclusões se deve lançar mão da rejeição do recurso.

Nos demais casos cabe ao tribunal delimitar o âmbito do recurso em função do que, em face da decisão recorrida e do conteúdo da alegação e suas conclusões, ainda que deficientes, depreende serem as questões relevantes.

Sem embargo, porém, do respeito pelo contraditório, sendo certo que, no caso dos autos, o Autor, ora Recorrente, apresentou contra-alegações de apelação nas quais impugnou a matéria alegada, revelando integral compreensão da mesma.

Diga-se que esta é também a repetida posição do blog do ippc, por Miguel de Teixeira de Sousa (veja-se aquela que é, na presente data, a última entrada, n.º 217, de 24/5/2021).

No caso dos autos, esta visão ainda mais se acentua por se tratar de revista excepcional, na qual este S.T.J. apenas fará incidir a sua atenção nos aspectos realçados no prévio acórdão da Formação, posto que apenas estes aspectos reúnem as características referidas em cada uma das alíneas no n.º 1 do art.º 672.º CPCiv que elas, e apenas, fundamentam a possibilidade de interposição de revista excepcional.

Prosseguir-se-á assim na apreciação da matéria do recurso.



I


Portanto, e em função do adrede decidido, a questão de direito a apreciar situa-se em saber se a obrigação exequenda se tornou exigível em virtude da citação para a execução do Embargante, na qualidade de mutuário, para efeitos do art.º 781.º CCiv e nos termos conjugados dos art.ºs 805.º n.º 1 CCiv e 610.º n.º 2 al. b) CPCiv, como se decidiu no acórdão recorrido, ou se a falta de interpelação do devedor, antes da execução, afecta a validade ou a suficiência do título executivo.

Outro aspecto relevante, para citar o acórdão da Formação, será o de saber em que termos é que deverá ser deduzido o requerimento executivo, nomeadamente quanto à liquidação de prestações vincendas, para que a citação do executado possa equivaler a uma interpelação, para efeitos da norma do art.º 781.º CCiv.



II


Sobre o primeiro aspecto, cita-se o argumentário jusconclusivo do acórdão recorrido:

“Importa ter presente que a acção executiva de que estes autos constituem a oposição, deu entrada em 2012, logo as normas processuais aplicáveis no que concerne aos títulos executivos, às formas do processo executivo, ao requerimento executivo e à tramitação da fase introdutória é aplicável o CPC/95, por força do artº 6º nº 3 da Lei nº 41/2013, que aprovou o actual CPC, cuja entrada em vigor ocorreu a 1/09/2013 (cf. Artº 8º da Lei nº 41/2013).”

“Donde, a questão suscitada deverá ser apreciada à luz do CPC/95, nomeadamente a forma de processo e tramites processuais, principalmente a circunstância de a citação ter sido antecipada em relação à penhora e não nos termos constantes da lei adjetiva actual, como defende o apelante.”

“Importa ter presente o constante da decisão recorrida: «(…) no caso, não foi convencionado regime diferente do previsto no art.º 781.º do Código Civil, nada tendo sido acrescentado ao sentido de que sendo a dívida liquidada em prestações a falta do pagamento de uma delas importa o vencimento de todas, ou seja, o vencimento dos empréstimos. Ora, a mera exigibilidade imediata não pode confundir-se com vencimento automático de todas as prestações, o qual só ocorrerá por força da interpelação do devedor pelo credor. Com a interpelação do devedor para que cumpra imediatamente toda a obrigação, realizando todas as restantes prestações, é que o credor manifesta verdadeiramente a sua vontade de aproveitar o benefício que a lei lhe atribuiu. Com efeito, tem-se entendido, maioritariamente, que, no caso de obrigação pecuniária pagável em prestações sucessivas, o vencimento imediato das restantes prestações à falta do pagamento de uma delas, nos termos do art.º 781.º do Código Civil, constitui um caso de exigibilidade antecipada, mero benefício que a lei concede ao credor e que há-de ser exercido mediante interpelação do devedor, ficando aquele com o direito de exigir a realização, não apenas da prestação a que o devedor faltou, mas de todas as restantes prestações, cujo prazo ainda se não tenha vencido. Assim, se o mutuante/exequente queria ver imediatamente vencidas todas as prestações subsequentes às não realizadas, devia ter interpelado o devedor (no caso, o embargante) para proceder ao respectivo pagamento. Só com a interpelação do devedor para que cumpra imediatamente toda a obrigação, realizando todas as restantes prestações, é que o credor manifesta verdadeiramente a sua vontade de aproveitar o benefício que a lei lhe atribuiu. Em suma, para o vencimento imediato de todas as prestações, nos termos do art.º 781.º do Código Civil, o credor tem de interpelar o devedor.».

“Ao contrário do defendido pelo apelante o direito executivo que a exequente pretende fazer valer na acção reporta-se ao vencimento antecipado das obrigações assumidas, sem que resulte invocada a resolução. Com efeito, o vencimento e a exigibilidade de todas as prestações acordadas no contexto dos contratos de mútuo dados à execução resultaram da verificação do que ficou contratualizado na cláusula 9, alínea a) dos respetivos documentos complementares e, bem assim, do disposto no artigo 781.º do CC, e não da resolução contratual que não constitui agasalho do direito invocado pela exequente.”

“O busílis da questão reside nesta problemática: saber se a citação vale como interpelação.”

“A resposta é, em nosso entender, neste caso positiva, pois toda a construção jurídica efectuada no âmbito do recurso pelo apelante assenta nas normas do CPC actual e não das que advém da aplicação do CPC, na redação que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12.12.”

“Sob aplicação da lei adjetiva vigente à data da interposição da acção, a citação do Recorrente ocorreu antes do início das diligências executivas, pois o agente de execução, com data de 13-07-2012, informou e certificou nos autos que foi concretizada a citação do executado, sendo que a penhora do imóvel hipotecado apenas ocorreu em 02.08.2018.”

“Ora, é certo que o então artigo 804.º, n.º 3 do CPC/95, até 2003, acautelava expressamente a possibilidade de a interpelação ser substituída pela citação, operando-se então o vencimento da obrigação com a citação no processo executivo. Possibilidade que está de igual modo hoje prevista no artigo 610.º, n.º 2, alínea b) do CPC.”

“A reforma de 2003 suprimiu o nº 3 do artº 804º, que dispunha que se considerava “vencida com a citação do executado” a obrigação cuja “inexigibilidade derive da falta de interpelação”. Tal ocorreu com a redação introduzida no artigo 804.º pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8.3, situação que se manteve inalterada na redação decorrente do Decreto-Lei nº 226/2008, de 20.11, e assim permaneceu até ao atual CPC de 2013.”

“Comentando essa eliminação, Carlos Lopes do Rego sublinhou que «no essencial, tal regime se mantém, por força do estipulado no artigo 805.º, n.º 1, do Código Civil, que confere plena relevância à interpelação judicial – a qual, como é óbvio, se poderá naturalmente consubstanciar na citação para o processo executivo.» (Requisitos da Obrigação Exequenda, publicado na Themis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, ano IV, n.º 7, 2003, Almedina, pp. 70-71).”

“Realçou, porém, a estrutura do processo previsto nos artigos 812.º-A, n.º 1, alíneas c) e d), e 812.º-B do CPC, introduzida pelo citado Decreto-Lei n.º 38/2003: «não sendo obviamente legítimo lançar mão de diligências tipicamente executivas (realização da penhora) sem que o crédito exequendo esteja vencido, é evidente que – nos casos em que ocorre diferimento do contraditório do executado para momento posterior à efetivação da penhora – terá o credor de proceder à interpelação extra-judicial do devedor, antes de iniciada a instância executiva.» (obra e pp. citadas).”

Tem-se por adequada a exposição supra, à qual se adere, sem prejuízo de outros argumentos que juntamos infra.



III


É certo que, tendo em conta a redacção do art.º 802.º CPCiv61, que permaneceu vigente até à reforma de 2013, não poderia promover-se uma execução enquanto a obrigação não fosse exigível – como afirma o acórdão recorrido, e é inteiramente de subscrever, é tão inexigível a obrigação que ainda não está vencida, como aquela que depende, para a sua exigibilidade (em sentido forte) de um comportamento adicional, interpelativo, do credor.

E não menos certo é que a reforma de 2003, que suprimiu o n.º 3 do art.º 804.º (o qual considerava “vencida com a citação do executado” a obrigação cuja “inexigibilidade derive da falta de interpelação”), veio aproximadamente repor a redacção dos n.ºs 1 e 2 do art.º 804.º CPCiv, tal como existente antes da reforma de 95/96.

Ora, mesmo na vigência da redacção de 61 dada ao art.º 804.º n.ºs 1 e 2 CPCiv, ou seja, antes do aditamento do n.º 3 do art.º 804.º CPCiv95/96, a quase generalidade da doutrina sempre entendeu que valia como interpelação a citação para a acção executiva, como interpelação judicial que é, por aplicação da norma do art.º 805.º n.º 1 CCiv – assim, Castro Mendes, Acção Executiva, Lições de 69/70, pg.9, e Lopes-Cardoso, Manual da Acção Executiva, 1986, pgs. 202 e 206ss. – na jurisprudência, p.e., o Ac.R.P. 26/6/90 Col.III/227 (Matos Fernandes), optando pelo que considerou “a opção menos conceptualista e literal, em salvaguarda do desejável princípio da economia processual”.

Mesmo José Alberto dos Reis, no seu Processo de Execução, 1.º. 1985, pg.467, defendendo embora que, requerida pelo credor, antes da interpelação do devedor, a execução para pagamento de uma dívida sem prazo certo, se infringia o disposto no art.º 802.º CPCiv (promovia-se a execução sem que a obrigação se tivesse tornado exigível – e, portanto, cabia ao juiz indeferir liminarmente a petição), também entendia que não existia fundamento decisivo para que a citação, posto que tivesse sido efectuada, não produzisse, na acção executiva, o efeito que as normas dos art.ºs 481.º al. c) (na redacção de 39 – 485.º al. c), na redacção de 61) e 662.º n.º2 al. b) CPCiv produziam na acção declarativa.

E acrescentava – “Não há fundamento decisivo para que a citação não produza, na acção executiva, o efeito que as alíneas citadas lhe atribuem na acção declarativa. O credor devia interpelar o devedor antes de entrar na via da execução; mas desde que o executado é citado para pagar dentro de dez ou cinco dias, não se vê razão para que a citação não haja de substituir a interpelação e equivaler a ela, uma vez que recaia sobre o exequente a responsabilidade pelas custas e honorários do advogado do executado”.

Elucidativamente, escrevia Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, IV, pg.11, ao pronunciar-se sobre se as regras do processo declarativo ofendiam o preceito categórico do art.º 802.º CPCiv: “Deve dizer-se que, em princípio, a solução negativa é a que melhor se ajusta ao texto do art.º 802.º: se a execução só pode promover-se sendo exigível a obrigação, o que só sucede quando esta está vencida, nas obrigações puras, em que o devedor só fica constituído em mora depois de interpelado, a execução só pode promover-se após aquela interpelação.”

“Mas talvez não seja a de seguir.”

“Efectivamente, parece demasiado formal.”

“Não se vê razão para não se considerar, neste caso, a citação como a interpelação judicial a que se refere o n.º 1 do art.º 805.º do Código Civil.”

Por outro lado, Artur Anselmo de Castro (A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 1970, pg.53), criticando a posição de José Alberto dos Reis quanto ao inicial dever de o juiz indeferir in limine a petição, entendia que a citação do devedor deveria considerar-se suficiente para afastar a situação de inexigibilidade na acção executiva, por não haver razão que justifique a não aplicação em processo executivo da norma da al. b) do n.º 2 do art.º 662.º CPCiv, acrescentando: “aliás, esta solução, já de si mais conforme com os fins da acção executiva, quando se sabe que o devedor não quer pagar, é a que melhor se coaduna com o que a lei dispõe para as obrigações alternativas da escolha do devedor (art.º 803.º) e para o caso paralelo da prestação de facto sem prazo (art.º 939.º)”.



IV


Observe-se também o seguinte:

O acórdão fundamento (Ac.R.G. 12/3/2020, pº 1278/17.6T8GMR-B.G1) foi proferido no pressuposto da resolução do contrato de mútuo celebrado entre a entidade bancária e o cliente, executado.

Por isso, ali se escreveu: “Efectivamente a resolução do contrato “consiste na destruição da relação contratual, validamente constituída, operada por um acto posterior de vontade de um dos contraentes, que pretende fazer regressar as partes à situação em que elas se encontrariam se o contrato não tivesse sido celebrado” (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol, II, pág. 238).”

“Não opera, assim, automaticamente (ope legis), pelo que se torna indispensável uma declaração de vontade da mutuante, comunicando aos mutuários a resolução do contrato.”

“O que não foi feito, como decorre dos factos apurados, pelo que se tem de considerar, no caso em apreço, que nem o contrato foi resolvido, por inexistir a correspondente declaração de vontade da mutuante, aqui apelada, nem a totalidade da dívida se pode considerar exigível, por inexistir interpelação nesse sentido.”

E, nesse aspecto, é inegável que a resolução deve operar apenas por meio de declaração unilateral, receptícia, do credor – art.º 436.º CCiv, declaração essa que não consta, obviamente e como decorre dos factos provados e do demais constante do relatório, da citação para a execução.

Só que, sendo certo que, no mútuo liquidável em prestações, a lei só admite o reembolso antecipado do capital se o devedor não pagar as prestações ou quotas de amortização, a mesma lei não faz depender o reembolso antecipado da resolução do contrato, por tal necessidade de resolução não resultar da norma do art.º 781.º CCiv – passa a existir, tão só, a imediata exigibilidade de todas as prestações (assim, Vaz Serra, Exposição de Motivos, Bol.50/172).

Daí que a inexistência de declaração resolutória, a que se reporta o acórdão fundamento, irreleve, no caso dos autos.

Foi também em sede de resolução do contrato que se pronunciaram os Ac.S.T.J. 11/7/2019, pº 6496/16.1T8GMR-A.G1.S1, e Ac.R.G. 14/3/2019, proferidos no mesmo processo.



V


A posição que adoptámos, tal como exposto em III da presente fundamentação, é a que decorre da larga maioria das decisões disponíveis para consulta, dos tribunais superiores, salientando-se entre outras (mutatis mutandis, sobretudo na destrinça entre notificação do devedor e notificação necessária do fiador):

- S.T.J. 11/3/2021, pº 1366/18.1T8AGD-B.P1.S1 (Fernando Baptista);

- S.T.J. 14/10/2021, pº 475/04.9TBALB-A.P1.S1 (Fernando Baptista - acórdão subscrito pelos aqui relator e primeiro adjunto), e Ac.R.P. 11/5/2021 (Igreja Matos), proferido no mesmo processo;

- Ac.R.P. 21/6/2021, pº 24105/19.5T8PRT-A.P1 (Jorge Seabra);

- Ac.R.E. 11/2/2021, pº 1511/19.0T8STB-A.E1 (Tomé de Carvalho);

- Ac.R.E. 17/1/2019, pº 1560/16.0T8BJA-A.E1 (Tomé Ramião);

- Ac.R.C. 27/5/2015, pº 6659/12.9TBLRA-A.C1 (Luís Cravo).

Acresce que, no caso dos autos, nem sequer se pode discutir, por apoio na posição de Lopes do Rego (Requisitos da Obrigação Exequenda, Themis, n.º 7, 2003, pgs. 70-71), que, “pela estrutura do processo previsto nos artigos 812.º-A, n.º 1, alíneas c) e d), e 812.º-B do CPC, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 38/2003: não sendo obviamente legítimo lançar mão de diligências tipicamente executivas (realização da penhora) sem que o crédito exequendo esteja vencido, é evidente que – nos casos em que ocorre diferimento do contraditório do executado para momento posterior à efetivação da penhora – terá o credor de proceder à interpelação extra-judicial do devedor, antes de iniciada a instância executiva.”

Na verdade, a citação do Embargante e Executado no processo foi efectuada em momento anterior e prévio à realização da penhora, pelo que outros considerandos nesta matéria resultariam em ostensivo obiter dictum.

Não deixe de se salientar, porém, que certas decisões têm aceitado o efeito de interpelação da citação efectuada após a penhora – nesse sentido, veja-se o Ac. S.T.J. 16/2/2020, pº 5995/03.0TVPRT-B.P1.S1 (desta mesma Secção do S.T.J., relatado pela Consª Catarina Serra).



VI


Quanto à questão de saber em que termos deverá ser deduzido o requerimento executivo, nomeadamente quanto à liquidação das prestações vincendas, para que a citação possa equivaler a uma interpelação.

Pensamos que o Exequente se houve dentro dos limites da cláusula 9.ª, al.a), do contrato, onde se lê que a hipoteca poderá ser executada se não forem pagas as prestações nas datas previstas, caso em que a falta de pagamento de uma delas importa o vencimento imediato de todas.

Trata-se, manifestamente, de uma cláusula de estilo, que não afasta, e apenas reforça, o regime geral do art.º 781.º CCiv.

Nesse sentido, o teor do petitório executivo líquida o valor em dívida, por acordo com a citada cláusula do contrato e com a norma legal aplicável.

Não se trata, assim, como afirmámos, de exercitar o direito potestativo relativo à resolução do contrato, mas apenas interpelar quanto à perda de benefício do prazo, decorrente do contrato.

Nesse sentido, não se impunha a comprovação da interpelação prévia (art.º 804.º n.ºs 1 e 2 CPCiv03 ou actual art.º 715.º n.ºs 1 e 2 CPCiv), ou mesmo o pedido de citação com especificações diversas daquelas que constam da liquidação efectuada, por aplicação da norma do art.º 781.º CCiv.



VII


O Recorrente invoca ainda a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia no respeitante a matérias que o acórdão recorrido entendeu serem “questões novas” e ainda quanto à omissão de aplicação ao caso de determinadas normas legais (vejam-se, sumariando, as conclusões do presente recurso 1.ª e 2.ª).

Tais matérias relativas a nulidades da sentença e do acórdão, apreciadas que foram, expressamente, pela Relação, encontravam-se abrangidas pela “dupla conforme” prevista no art.º 671.º n.º 3 CPCiv, pelo que apenas ganhariam relevância desde que prejudicassem o âmbito da presente revista excepcional, nos termos delineados pela Formação deste S.T.J.

Como visto, esse não é o caso, pelo que a apreciação conforme, em duplo grau, das matérias invocadas, e o recurso à revista excepcional, nos impede de conhecer do respectivo conteúdo substancial.


Em suma:

I – A citação do devedor na acção executiva deve considerar-se suficiente para afastar a situação de inexigibilidade, em sentido forte, por aplicação da norma da al. b) do n.º 2 do art.º 610.º CPCiv, solução essa conforme aos fins da acção executiva e a que melhor se coaduna com o que a lei dispõe para as obrigações alternativas da escolha do devedor (art.º 714.º) e para o caso paralelo da prestação de facto sem prazo (art.º 874.º).

II – O mesmo era de aplicar na vigência da redacção de 61 do art.º 804.º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, ou seja, antes do aditamento do n.º 3 do art.º 804.º CPCiv95/96, por aplicação da norma do art.º 805.º n.º 1 CCiv.

III - No mútuo liquidável em prestações, a lei admite o reembolso antecipado do capital se o devedor não pagar as prestações ou quotas de amortização, pelo que a mesma lei não faz depender o reembolso antecipado da resolução do contrato (art.º 781.º CCiv) – passa a existir, tão só, a imediata exigibilidade de todas as prestações.


Decisão:

Nega-se a revista.

Custas pelo Recorrente.


S.T.J., 27/01/2022

                                     

Vieira e Cunha (relator)

Abrantes Geraldes

Manuel Tomé Soares Gomes