Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B379
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS BERNARDINO
Descritores: DECLARAÇÃO DE FALÊNCIA
EFEITOS DA SENTENÇA
JUROS DE MORA
Nº do Documento: SJ20080527003792
Data do Acordão: 05/27/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Sumário :


1. O n.º 1 do art. 151º do (revogado) CPEREF, determinando, por efeito da declaração de falência, o encerramento das contas correntes do falido e a imediata exigibilidade de todas as suas obrigações, é uma norma de protecção dos credores, que visa assegurar o princípio da par conditio creditorum, não tendo aplicação às obrigações vencidas e cumpridas antes da declaração de falência.

2. E o art. 153º, ao excluir a compensação dos créditos sobre o falido com débitos deste, a partir da data da sentença da declaração de falência, é também uma aplicação do princípio da igualdade de tratamento dos credores, só tendo aplicação em relação aos créditos recíprocos existentes à data da falência.

3. Havendo lugar à restituição à massa falida, de quantia em poder de terceiro, que este detinha como garantia do cumprimento de obrigações da sociedade entretanto caída em falência, os juros de mora sobre a quantia a restituir são devidos a partir da data da interpelação do terceiro, pelo liquidatário judicial, para proceder à restituição, e não apenas desde a data da sentença proferida na acção posteriormente intentada para obter a condenação daquele a restituir o montante devido.
Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1.

A Massa Falida de C... J. DEVESAS, L.da, representada pelo respectivo liquidatário judicial, intentou acção com processo ordinário contra S... -Empreendimentos Industriais e Imobiliários, SA, alegando, em síntese, o seguinte:
A sociedade “C... J. Devesas, L.da” procedeu à construção de um edifício destinado a comércio e habitação/apartamentos, situado no Lote ... do Loteamento do Murado, em Mozelos, Santa Maria da Feira, para S... - Sociedade de Empreendimentos Turísticos, L.da, actualmente incorporada, por fusão, na ré.
Tal obra foi levada a cabo pela “C... J. Devesas, L.da” até à data da sua conclusão, em Janeiro de 1997, altura em que foi recepcionada pela S....
No âmbito do contrato existente entre as partes, a S.../S... reservou, a título de garantia para a recuperação de defeitos da empreitada, a quantia de 6.267.506$00, que, até à data, retém em seu poder.
Entretanto, a “C... J. Devesas, L.da” foi declarada falida por decisão judicial de 08.04.1999, transitada em julgado, proferida no Processo de Falência n.º 213/98 que corre termos pelo 1º Juízo do Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia.
A ré foi formalmente interpelada, por carta de 20.04.2000, para proceder à devolução e pagamento da quantia retida, tendo respondido que a tal não pretendia obedecer.
Mas, por força do disposto nos arts. 151° e 153° do C.P.E.R.E.F., não pode a ré reter a aludida quantia, mormente a título de garantia e/ou compensação.
Conclui a demandante pedindo a condenação da ré a reconhecer a ilicitude da retenção do referido montante, a título de garantia e compensação, e a pagar-lhe a quantia global de € 42.824,91, equivalente a 8.585.624$50, correspondente à quantia indevidamente retida, no valor de Esc. 6.267.506$00 (€ 31.262,19) acrescida dos juros de mora vencidos, contabilizados desde 20.04.2000 até à propositura da acção, no total de Esc. 2.318.118$50 (€ 11.562,72), a que acrescerão os juros de mora vencidos desde esta data e vincendos até integral pagamento.

A ré contestou, deduzindo defesa por excepção (prescrição), e impugnando os factos articulados pela autora.
Concluiu pela improcedência da acção e, consequentemente, pela sua absolvição do pedido.

No prosseguimento normal do processo, foi conhecida, no saneador, e aí julgada improcedente, a excepção de prescrição; e, efectuado o julgamento, foi proferida sentença, que julgou parcialmente procedente a acção e, em consequência, condenou a ré S... a pagar à demandante massa falida o montante de € 19.131,23, acrescido de juros de mora, às sucessivas taxas legais válidas para as operações comerciais, desde 20.04.2000 até efectivo e integral pagamento.

Da sentença apelaram a ré – questionando apenas a sua condenação em juros de mora, por entender não serem devidos – e a autora, esta última em recurso subordinado.
E a Relação do Porto, em acórdão oportunamente proferido, julgou improcedente o recurso subordinado e procedente o recurso principal, revogando a decisão recorrida e condenando a ré a pagar à autora a aludida soma de € 19.131,23, acrescida de juros de mora às sucessivas taxas legais válidas para as operações comerciais, mas apenas desde 25.07.2006 (data da sentença recorrida), e até efectivo e integral pagamento.

A autora, continuando inconformada, traz agora a este Supremo Tribunal o presente recurso de revista, que, devidamente minutado, enuncia as seguintes conclusões (aqui sinteticamente indicadas):
1ª - A carta do liquidatário judicial, de 20.04.2000, não pode estabelecer o período temporal do exercício dos direitos da Massa Falida, o que vale dizer que o valor de 6.267.506$00 (€ 31.262,19), retido pela ré a título de caução, é passível de ver acrescidos juros de mora desde a data da declaração de falência da “C... J. Devesas, L.da”;
2ª - A ré não tinha direito ao montante constante da nota de débito n.º 21/00, no valor de € 13.881,42, emitida em 10.05.2000 – já depois da declaração de falência (ocorrida em 08.04.99) e da própria comunicação do liquidatário judicial (de 20.04.2000) para que devolvesse o montante indevidamente retido – para justificar um alegado crédito de que se teria pago através da quantia retida;
3ª - Demonstrando-se apenas que a obra foi realizada integralmente mas com defeitos, o que se verifica é cumprimento defeituoso, cujo regime é o dos arts. 1218º e seguintes do CC, e não incumprimento parcial;
4ª - Apesar de a autora ter reconhecido os defeitos, a ré, dona da obra, teria sempre de exigir a sua eliminação no prazo de um ano, sob pena de caducidade desse direito; e, mesmo que tal direito não tivesse caducado, a ré, para exigir do empreiteiro o valor dos trabalhos em falta, teria primeiro que obter a sua condenação à prestação de facto, não podendo, antes disso, exigir-lhe o respectivo valor ou o que pagou a terceiro pela eliminação dos defeitos;
5ª - A ré terá de ser condenada a pagar à autora a totalidade do valor de 6.267.506$00 (€ 31.262,19), indevidamente retido a título de caução, uma vez que a sua pretensão – acolhida nas instâncias – de reter no seu património valores da falida, após a declaração de falência, viola o disposto nos arts. 151º e 153º do CPEREF;
6ª - O pensamento e a intenção do legislador, traduzidos naquele art. 151º, foi tornar imediatamente exigíveis as obrigações da falida, facto que se torna evidente pela correcção, introduzida pelo CIRE, no correspondente art. 91º;
7ª - O acórdão recorrido viola, pois, o disposto nos arts. 1207º e 1218º do CC e os indicados preceitos do CPEREF, pelo que deve ser revogado e substituído por outro que condene a ré no pagamento à recorrente de € 31.262,19, acrescida de juros de mora desde a data de declaração da falência ou, quando menos, desde a data da interpelação, pelo liquidatário judicial, para a devolução do aludido montante.

A recorrida apresentou contra-alegações. Fê-lo, porém, fora de prazo, pelo que a respectiva peça processual foi, por despacho do Ex.mo Desembargador relator, mandada desentranhar e restituir à apresentante.
Corridos os vistos legais, cumpre agora conhecer e decidir do mérito do recurso.
2.

Encontram-se provados os seguintes factos:
1. Por sentença proferida em 08.04.1999 no âmbito de processo especial de falência, a correr termos no 1° Juízo do Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia, foi declarada falida a sociedade “C... J. Devesas, L.da”;
2. Esta sociedade dedicava-se à actividade de construção civil;
3. A ré é uma sociedade comercial que se dedica à exploração de empreendimentos turísticos e imobiliários, com fins industriais e comerciais;
4. No exercício das respectivas actividades industrial e comercial, “C... J. Devesas, L.da” forneceu diversos materiais de construção à ré e procedeu à construção de um edifício destinado a comércio e habitação, sito no lote ... do Loteamento do Murado, em Mozelos, Santa Maria da Feira;
5. A construção foi concluída em Janeiro de 1997 e na mesma data recepcionada pela ré, que a aceitou;
6. Os serviços prestados e os materiais fornecidos por “C... J. Devesas, L.da” ascendem à quantia de € 514.698,55 (documentos de fls. 12 a 29, que se dão por reproduzidos);
7. No âmbito do acordado entre as partes, a ré reservou a quantia de € 31.262.19, a título de garantia para a recuperação de defeitos da obra realizada pela “C... J. Devesas, L.da”;
8. A ré mantém em seu poder a quantia referida no n.º anterior;
9. A autora, por carta datada de 20.04.2000, solicitou à ré a devolução dessa quantia – cfr. documento de fls. 30, que se dá por reproduzido;
10. A ré, por carta datada de 12.05.2000, comunicou à autora ter despendido a quantia de € 14.147,92 em reparações efectuadas no edifício construído pela autora e continuar a receber reclamações referentes à obra (documento de fls. 31, que se dá por reproduzido);
11. Por faxes de 17.01.97, 14.03.97, 26.03.97 e 15.04.97, a ré comunicou à “C... J. Devesas, L.da” a existência de faltas, imperfeições e defeitos no edifício referido em 4.;
12. Por fax de 25.07.97, a ré comunicou que se verificavam fugas de água na parede da casa de banho da fracção Q do aludido prédio, a rotura da canalização da fracção H e a falta de tubos de exaustão;
13. E o levantamento de pavimentos, por fax de 06.03.97;
14. Por carta datada de 18.09.97, a ré comunicou à “C... J. Devesas, L.da” que se a mesma não iniciasse as reparações até 25.09.97, adjudicaria as mesmas a terceiros e deduziria os custos na quantia referida em 7.;
15. Com o mesmo teor a ré enviou à empresa “C... J. Devesas, L.da” cartas datadas de 26.09.97, 19.11.97, 09.12.97 e 25.03.98;
16. Por carta datada de 28.11.97, “C... J. Devesas, L.da” comunicou à ré que apenas poderia iniciar as reparações com a estabilidade das condições meteorológicas durante 2 a 3 dias;
17. A ré solicitou a realização das reparações às empresas construtoras F..., L.da, Premium Parquet - Pavimentos de Madeira, L.da e AA,
18. A quem pagou a quantia global de € 12.130,96.
3.

Como é sabido, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões da alegação do recorrente: ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, de outras, que não as suscitadas em tais conclusões, não pode conhecer o tribunal ad quem.
Mas, como também vem sendo repetidamente afirmado pela jurisprudência, os recursos são meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre.
A recorrente coloca à apreciação deste Supremo Tribunal duas questões:
- a primeira, respeitante ao montante a restituir pela ré;
- a segunda, relativa ao dies a quo dos juros de mora.
Analisemos, pois, cada uma dessas questões.

3.1. Relativamente à primeira questão, pretende a recorrente que a importância que a ré recorrida deve ser condenada a restituir-lhe é a totalidade da quantia retida a título de caução (6.267.506$00/€ 31.262,19), e não apenas a soma fixada na sentença da 1ª instância e no acórdão recorrido (€ 19.131,23).
E escuda-se, em abono da sua pretensão, em primeira linha, na matéria que integra as conclusões 3ª e 4ª da sua alegação de recurso, que acima deixámos transcritas.
Sustenta que o acórdão recorrido esquece a distinção, no contrato de empreitada, entre cumprimento defeituoso e incumprimento parcial, e que, demonstrado apenas que a obra foi realizada integralmente, mas com defeitos, o regime aplicável é o do cumprimento defeituoso, previsto nos arts. 1218º e seguintes do CC. No caso, apesar de o empreiteiro ter reconhecido os defeitos, a ré, dona da obra, teria sempre de exigir a sua eliminação, no prazo de um ano, sob pena de caducidade, sendo que, mesmo não ocorrendo a caducidade desse direito, a ré só poderia exigir do empreiteiro o valor dos trabalhos em falta depois de obter a condenação deste à prestação de facto, não podendo, antes disso, exigir-lhe esse valor ou aquilo que pagou a terceiro para lhos eliminar.
Esta é, porém, uma questão nova, que não foi submetida à apreciação da Relação, e sobre a qual, por isso mesmo, esta não emitiu qualquer pronúncia. E, como resulta do que acima se deixou evidenciado, o tribunal a que o recurso é dirigido – no caso, este Supremo Tribunal – só pode e tem de se pronunciar sobre o que foi decidido no tribunal recorrido, não podendo apreciar e julgar questões novas levantadas nas alegações.
Sempre se dirá, porém, en passant – e apenas para sublinhar que, ao suscitar tal questão, a autora bordeja, perigosamente, os limites da litigância de má fé – que, não questionada pelo empreiteiro – e, antes, por ele reconhecida – a existência dos defeitos (cfr. n.º 16 da matéria de facto assente), após a denúncia destes, efectuada pelo dono da obra (idem, n.os 11 a 15), está criada, para aquele, a obrigação de os eliminar, pelo que mal se enxerga, em tal situação, a necessidade de uma acção judicial para o condenar “à prestação de facto”. Mais ainda quando, como no caso vertente, as partes acordaram, no âmbito do contrato de empreitada, na constituição de uma caução, precisamente destinada a garantir a recuperação de defeitos da obra.
Afirma ainda a recorrente que a restituição da totalidade do valor da caução é uma decorrência do disposto nos arts. 151º n.º 1 e 153º do CPEREF.
Quer ela dizer, na sua, que a pretensão da ré – acolhida nas instâncias – de fazer seu o montante de € 13.881,42, constante da nota de débito n.º 21/00, emitida em 10.05.2000, já depois da declaração de falência e da interpelação do liquidatário judicial para restituir a totalidade do valor da garantia (€ 31.262,19), esbarra no disposto naqueles normativos.
Na verdade – justifica a recorrente – por força do citado art. 151º, cessam à data da declaração de falência todas as obrigações da falida. Mesmo que se entenda que o texto legal traduz “uma técnica jurídica menos apurada” – o que mereceu, aliás, críticas doutrinárias de Oliveira Ascensão e de Carvalho Fernandes/João Labareda – não pode deixar de entender-se que “o pensamento e a intenção do legislador do CPEREF foi, na redacção dada ao art. 151º (...), tornar imediatamente exigíveis as obrigações da falida, facto que se torna evidente pela correcção introduzida pelo CIRE que, no correspondente art. 91º, limita em muito a correspondência com o CPEREF”.
Quanto ao art. 153º, ele veda aos credores, a partir da sentença de declaração de falência, o exercício do direito de compensação.

É, porém, seguro, que os normativos em causa não aproveitam à recorrente.
Como resulta da matéria de facto assente, e vem referido nas decisões das instâncias, a situação de facto a ter em conta é a seguinte:
No âmbito do contrato de empreitada celebrado entre a ré e a sociedade “C... J. Devesas, L.da”, reservou aquela, do preço da empreitada, a quantia de 6.267.506$00 (correspondente a € 31.262,19), a título de garantia para a recuperação de eventuais defeitos da obra realizada por esta sociedade.
Surgidos os defeitos, foi a empreiteira interpelada várias vezes para os eliminar, o que, porém, não fez, nem mesmo depois de a ora ré lhe ter comunicado que, caso não iniciasse as reparações até 25.09.97, contrataria terceiros para as fazer e deduziria os custos respectivos no montante da garantia (comunicação efectuada em 18.09.97 e reiterada por cartas de 26.09.97, 19.11.97, 09.12.97 e 25.03.98, de idêntico teor).
Face ao incumprimento da “C... J. Devesas, L.da”, a ré contratou com outras empresas as reparações necessárias à eliminação dos defeitos e pagou-lhes o preço dos trabalhos por elas efectuados, no total equivalente a € 12.130,96, colhendo-se dos documentos insertos nos autos que esses trabalhos, bem como os pagamentos respectivos, foram efectuados antes da declaração de falência da empreiteira.
Quando, depois de decretada a falência, a ré foi contactada pelo liquidatário judicial, por carta de 20.04.2000, para fazer entrega da soma respeitante à garantia, comunicou-lhe, por carta de 12.05.2000, que dela já havia despendido 2.836.404$00, incluindo IVA, e enviou-lhe extracto da conta-corrente com a sociedade falida, sendo certo que, das duas notas de débito enviadas, uma delas estava datada de 10.05.2000 (fls. 98), (a outra, que se acha a fls. 105, tinha data de 31.12.98), mas foi acompanhada dos respectivos documentos de suporte (facturas emitidas pelas entidades terceiras que eliminaram os defeitos, em datas anteriores à declaração de falência).
Assim sendo, os aludidos normativos do CPEREF não logram aplicação no caso em apreço.
Na sentença da 1ª instância refere-se, a propósito, que tendo a ré enviado as apontadas cartas à empreiteira e, perante a inércia desta, adjudicado de seguida a realização das reparações a outras empresas construtoras, às quais pagou a quantia global de € 12.130,96, terá de entender-se “que a compensação parcial dos créditos foi exercida pela ré mediante as comunicações escritas atrás referidas, tendo a última ocorrido em Março de 1998 – em momento anterior, portanto, ao da declaração de falência de empreiteira”.
E invocando o apoio do acórdão deste Supremo Tribunal, de 28.05.96 (1), conclui aquela sentença que a compensação é válida, porque antes de ser declarada a falência o devedor fez valer ao credor (falido) a pretensão de que se efectivasse tal forma de extinção da obrigação.
Por isso, o montante a restituir terá de ser deduzido da quantia compensada.
Por seu turno, a Relação considerou que não é de compensação de créditos que deve falar-se, sucedendo apenas que, antes da declaração de falência de “C... J. Devesas, L.da”, a ré gastou parte da quantia (concretamente € 12.130,96) que tinha em seu poder a título de caução, e sendo, por isso, indiferente que só posteriormente a essa declaração de falência tenha sido emitida a respectiva nota de débito. E, por isso, concluiu que bem andou a sentença ao condenar a ré a restituir tão só a parte da garantia que ainda não tinha sido utilizada, na reparação de defeitos, na data da falência.
E tem razão na conclusão que avança.
A declaração de falência torna imediatamente exigíveis todas as obrigações do falido, ainda que sujeitas a prazo não vencido, e determina o encerramento de todas as contas correntes.
Assim textua o primeiro de tais preceitos – o art. 151º, no seu n.º 1.
Por seu turno, o apontado art. 153º dispõe:
A partir da data da sentença da declaração de falência, os credores perdem a faculdade de compensar os seus débitos com quaisquer créditos que tenham sobre o falido.
O n.º 1 do art. 151º determina, como se alcança do seu teor literal, por efeito da declaração de falência, o encerramento das contas correntes do falido e a imediata exigibilidade de todas as suas obrigações.
É um preceito que estatui sobre os efeitos da falência em relação aos credores do falido, determinando a perda do benefício do prazo para cumprimento, para que se determine o montante de todas as responsabilidades do falido e, seguidamente, se proceda ao rateio da quantia apurada pela liquidação do activo.
É, pois, uma norma de protecção dos credores, que visa assegurar o princípio da par conditio creditorum.
Não tem, assim, aplicação às obrigações vencidas e cumpridas antes da declaração de falência.
Do art. 153º pode dizer-se algo de semelhante.
Este preceito exclui a compensação dos créditos sobre o falido com débitos deste, a partir da data da sentença. É ainda uma aplicação do princípio da igualdade de tratamento dos credores, acima aludido.
Só tem aplicação em relação aos créditos recíprocos existentes à data da sentença, o que, como decorre do que vem exposto, não se verifica no caso em apreço.
Vale, pois, concluir, de tudo quanto fica explanado, que a pretensão da autora recorrente, quanto ao montante a restituir pela ré, está condenada ao malogro: a quantia que desta deverá receber é a mencionada no acórdão recorrido.

3.1. Resta abordar a questão dos juros moratórios, fixando a data a partir da qual são eles devidos.
Na sentença da 1ª instância, entendeu-se ser o dia da interpelação efectuada à ré, em 20.04.2000, pelo liquidatário judicial, para a restituição do montante da garantia, o dies a quo da contagem dos juros.
Para a Relação, só com aquela sentença se tornou líquida a quantia que a ré teria de devolver à autora; e, por isso, só a partir da data da dita sentença seriam devidos os juros, por força do disposto no art. 805º/3 do CC.
A razão está com o julgador da 1ª instância.
Os juros moratórios contam-se, naturalmente, desde a mora do devedor, ou seja, desde a data em que ocorre, com culpa deste, o não cumprimento da respectiva obrigação pecuniária.
De acordo com o n.º 1 do art. 805º do CC, nas obrigações sem prazo certo os juros de mora só são devidos a partir da interpelação ao devedor para pagar o capital, pois só a partir desta existe mora.
E, nos termos do n.º 3 do mesmo normativo, se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor.
Ora, no caso em análise, a ré, quando foi interpelada para entregar a quantia reclamada pela autora, sabia qual o montante que devia restituir: sabia que tinha de restituir a diferença entre o que havia recebido em garantia e aquilo que, desse montante, havia pago às empresas que tinham procedido à eliminação dos defeitos. Não estava, pois, em causa, um crédito ilíquido, como supõe a Relação.
E, tendo a ré tido conhecimento, com a interpelação, que havia sido declarada a falência, ficou também a saber que, a partir daquela data, por força das regras do direito falimentar, lhe estava vedado distrair qualquer importância do montante que ainda retinha em seu poder.
Deveria, pois, ter oferecido à autora, de imediato, esse remanescente – o que, como resulta do n.º 8 da carta com que respondeu à interpelação (doc. 20, junto com a p.i.), claramente não fez.
E, assim, constituiu-se em mora, nessa mencionada data da interpelação, sendo, por isso, desde então devidos os juros moratórios (art. 806º/1).
A data da sentença que declarou a falência não releva para o efeito tido em vista, não só face à já apontada exigência legal de interpelação ao devedor, como também porque, não tendo sido parte no processo de falência, tem de considerar-se que só com a dita interpelação teve a ré conhecimento da quebra da “C... J. Devesas, L.da”.
4.

Face a tudo quanto vem de ser exposto, concede-se em parte a revista, para que fique a valer a decisão da 1ª instância, mantendo-se, assim, a condenação da ré, aqui recorrida, a entregar à autora, ora recorrente, a quantia de € 19.131,23, mas acrescida de juros moratórios, contados desde 20.04.2000, às sucessivas taxas legais válidas para as operações comerciais, até efectivo e integral pagamento.
Custas, aqui e nas instâncias, pela recorrente e pela recorrida, na proporção do respectivo decaímento.

Lisboa, 27 de Maio de 2008

Santos Bernardino (Relator)
Bettencourt de Faria
Pereira da Silva

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(1) Publicado na Col. Jur.- Acs. do STJ, ano IV, tomo II-1996, pág. 90/91.