Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
98P1146
Relator: DUARTE SOARES
Descritores: CRIME DE INCÊNDIO
HOMICÍDIO
AUTORIA
DOLO DIRECTO
DOLO NECESSÁRIO
Nº do Documento: SJ199901270011463
Data do Acordão: 01/27/1999
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T CIRC PENAFIEL
Processo no Tribunal Recurso: 102/97
Data: 06/01/1998
Texto Integral: N
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO PARCIAL.
Área Temática: DIR CRIM.
Legislação Nacional: CP95 ARTIGO 208.
Sumário :

1 – Autoria, de acordo com as normas de extensão da tipicidade do art 26º do CP, compreende a prática do ilícito por intermédio de outrem não se exigindo que haja contacto directo entre quem con-cebe, determina e organiza a actividade ilícita e quem a executa.

2 – Embora sem contacto directo com os executores, é autor principal do crime, aquele que concebeu e idealizou a acção ilícita, que sempre teve a vontade da acção e dos resultados e quem, desde o início até final, manteve o completo domínio da acção criminosa.

3 - Porque são marcadamente distintos os bens protegidos nos ilíci-tos de incêndio e de homicídio, ainda que resultantes da mesma conduta criminosa, esta tipifica não só o ilícito de homicídio, tantos quantas forem as pessoas visadas ou atingidas pela acção, como o crime de incêndio.

4 – É essencial para tipificar o crime de furto de uso (art. 208º nº1 do CP) a intenção de restituir a coisa; o simples abandono de um automóvel furtado não presume essa intenção.

(Sumário da autoria do Relator)
Decisão Texto Integral:

No Tribunal Colectivo do Círculo Judicial de Penafiel, e sob acusação do Ministério Público, responderam :

A)

1- AA   nascido em 5/2/48

2- BB nascido em 28/4/72

3- CC nascido em 7/4/79

4- DD nascido em 10/12/78

5- EE nascido em 20/8/76

6- FF nascido em 9/12/71

7- GG nascido em 17/9/74 e

8 - HH nascido em 4/7/73 pronunciados pela prática de um crime de incêndio p.p. pelo art° 272° n° 1 do CP. como co-autores os arguidos AA, BB, EE, FF, GG e HH, e o CC e o DD como cúmplices; de 35 crimes de homicídio qualificado, sendo 13 consumados, pp e pp pelos art°s 131° e 132° n°s 1 e 2 al. f) do CP e 22 na forma tentada pp e pp pelos art°s 131° e 132° n°s 1 e 2 al. f), 22°, 23° e 27° do mesmo diploma; os arguidos AA, BB, EE, FF, GG e HH, de um crime de furto qualificado pp e pp pelos art°s 205° n° 1, 204° n°s 1 al.a) e 2 ai. c), com referência ao art° 202° als. a) e d) do mesmo Código; e todos eles, com excepção do AA, pela prática de uma contra ordenação p. p pelo art° 124° do CE.

Deduziram pedido de indemnização civil, entre outros;

a)-II, por si e em representação das filhas menores, JJ e LL reclamando 112.215.680300 e

b)- MM reclamando em nome dos seus filhos menores, NN e OO 40.500.000$00

B)

Foi, a final, proferido acórdão em que se decidiu:

1-Absolver o arguido EE dos crimes por que vinha acusado.

2- Absolver os arguidos CC e DD da prática, como cúmplices, do crime de incêndio e declarar extinto o procedimento criminal pela prática da contra-ordenação; e condená-los, pela prática, em co-autoria, do crime de furto qualificado p. p. pelos art°s 203° n° 1 e 204° n° 1 do CP na pena de 12 meses de prisão, suspensa na sua execução por um período de 3 anos.

3- Condenar os arguidos FF, GG e HH, como autores de um crime de incêndio, p.p. pelo art° 272° n° 1 ai. a) do CP, na pena de 8 anos de prisão; como co-autores de 13 crimes de homicídio qualificado consumado, pp. pp. pelos art°s 131° e 132° n°s 1 e 2 ai. f) do CP, na pena de 20 anos de prisão para cada um dos crimes; como co-autores de 22 crimes de homicídiio qualificado, na forma tentada, pp. pp. pelos art°s 131° e 132° n°s 1 e 2 f) e 22° e 23° n° 1 do mesmo Código, na pena de10 anos de prisão para cada um dos crimes; e como co-autores de um crime de furto p.p. pelo art° 208° n° 1 do CP, na pena de 6 meses de prisão.; e em cúmulo jurídico, na pena unitária de 25 anos de prisão.

4- Condenar o arguido AA, como autor de um crime de incêndio na pena de 8 anos de prisão; como autor de 13 crimes de homicídio qualificado, consumados, na pena de 20 anos de prisão para cada um dos crimes; como autor de 22 crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, na pena de 10 anos de prisão para cada um dos crimes; e em cúmulo jurídico, na pena unitária de 25 anos de prisão.

5 - Condenar o arguido BB, como autor de um crime de incêndio, na pena de 6 anos de prisão; como autor de 13 crimes de homicídio qualificado consumados, na pena de 16 anos de prisão por cada um dos crimes; como autor de 22 crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, na pena de 6 anos de prisão por cada um deles; pela rática de um crime de furto na pena de 1 ano de prisão; e em cúmulo jurídico, na pena unitária de 25 anos de prisão.

6 - Condenar os arguidos AA, BB , FF, GG e HH a pagar, entre outras, solidariamente, as seguintes indemnizações :

a)- a II e filhas menores 40.375.680$00

b) - a MM pelos filhos menores     21.100.000$00

Inconformados, recorreram o Ministério Público e os arguidos BB, AA, FF e ainda a demandante civil II por si e em representação das menores suas filhas-JJ e LL'.

Recorreu ainda o assistente MM do despacho que indeferiu o seu requerimento pedindo a rectificação da sentença na parte em que não atribuiu indemnização "pelo sofrimento da vítima".

O recurso de FF não foi admitido por ter sido considerado extemporâneo.

Os restantes foram admitidos para subir imediatamente nos próprios autos e, com excepção do interposto pelo assistente MM, com efeito suspensivo.

Nas respectivas motivações levantam, no essencial, as seguintes questões:

1 - O Ministério Público, cujo recurso se restringe á medida da pena aplicada ao arguido BB, sustenta que a pena única que lhe foi aplicada não respeitou os critérios legais da medida da pena não considerando que a pluralidade de crimes não revela tendência ou carreira criminosa e não atendeu ao efeito previsível da pena no comportamento futuro do arguido; acresce que ele colaborou eficazmente com o tribunal e foi sensível aos anseios da justiça.

Tais circunstâncias não foram devidamente valoradas para a determinação da pena unitária que não deveria exceder 20 anos de prisão e, por isso, violou-se o disposto no art° 71° n° 1 do CP.

2-o arguido AA que

a) - o acórdão recorrido é nulo por omissão de pronúncia sobre os factos constantes no n° 5 da acusação e n°s 2, 5, 6 e 17 da contestação  e por falta de indicação do "substracto raciona!" que conduziu à convicção do tribunal  e valorou  de  determinada forma  os  diversos  meios  de  prova apresentados.

b)- Tal nulidade obriga ao reenvio do processo para novo julgamento abrangendo a totalidade do objecto do processo.

c)- Porque se provou que nunca contactou directamente os autores materiais, o seu comportamento não é punível ou, então, apurou-se apenas que engendrou plano no sentido de destruir o estabelecimento do "Meia Culpa" com gasolina o que tipifica um crime de incêndio na previsão do art° 272° do CP e não qualquer outro ilícito mesmo o agravado pelo resultado, e só por esse crime deveria ter sido punido.

3-o arguido BB que:

a)- existe insuficiência da matéria de facto para a decisão;

b)-existem contradições insanáveis entre os factos provados e a sua fundamentação.

c)- existe erro notório na apreciação da prova no que respeita aos crimes de homicídio e de furto a si imputados;

d)- Foi condenado por crimes que não cometeu pois devia ter sido condenado apenas pelos crimes de incêndio e de furto de uso de veículo em pena não superior a 6 anos de prisão.

e)- Ainda que se entenda que a qualificação adequada é a de homicídio, é exagerada a pena aplicada pois não foram tidos em conta factores atenuantes, como o arrependimento, e o seu indispensável contributo para a descoberta da verdade;

f)- o acórdão recorrido violou, assim, os art°s 131°, 132° n°s 1 e 2 f), por si ou conjugados com os art°s 22°, 23° n°s 1 e 2 e 73° do CP e ainda os art°s 13°, 40°, 71°, 72° e 73° do CPP.

4 - a demandante civil II que

a)-  a   decisão   recorrida   não  teve  em   conta,   na   atribuição   de indemnização relativamente à vítima PP, as dores e sofrimentos por ela suportados cujo valor,  constituindo bem da herança daquele,  deve transmitir-se a suas filhas

b)- Deve, assim, ser-lhes atribuída a indemnização pelos danos morais sofridos pela vítima.

5-0 assistente MM que o acórdão recorrido não considerou, como devia, o valor dos danos correspondentes ao sofrimento da vítima pelo que à indemnização fixada deve acrescer o montante de 4.000.000$00 que é o valor de tais danos.

Respondendo às motivações dos recursos de AA e BB, defende o Exmo Procurador da Repúbica no Círculo de Penafiel, a manutenção dos julgados excepto quanto à pena unitária aplicada ao BB que, no seu entender não deverá ultrapassar os 20 anos de prisão.

D

Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a audiência nos termos doart°423°doCPP. Cumpre decidir.

Quanto ao que aos recursos respeita, é a seguinte a matéria de facto provada:

1.0 arguido AA é, desde há cerca de vinte anos, proprietário de um estabelecimento de "boite" de "alterne" denominado "Diamante Negro", sito na ....

2.0 estabelecimento foi o único do género nesta cidade até 1 de Março de 1996, data em que abriu ao público a "boite" "Meia Culpa", sita no ..., pertencente à Sociedade por Quotas "MEIA CULPA PUB, L.da", de que são sócios gerentes QQ e RR.

3. O "Meia Culpa" estava instalado numa semi-cave, com 140 m2 de área e um pé direito de 3 metros, à entrada do qual existia um vestiário, à direita, e duas casas de banho, à esquerda, seguidos de um corredor que conduz ao balcão. Do lado esquerdo deste situava-se a cozinha e, defronte e à direita, o espaço reservado a sofás e à pista de dança.

O estabelecimento dispunha de quatro portas: a referida porta principal (porta de entrada que aqui se designa de porta 1); uma outra ao lado do vestiário, em frente à primeira, no corredor, e que dá acesso ao átrio interior do prédio (porta do corredor-porta 2), encimada com uma placa com os dizeres "saída"; outra, situada entre a cozinha e o balcão e que dá acesso à garagem colectiva do edifício (porta de acesso à garagem-porta 3); e, por último, uma porta situada ao fundo da "boite", do lado direito, para quem entra, que dá também acesso ao átrio interior do prédio e encimada com uma placa com os dizeres "saída" (porta do fundo da sala-porta 4), tudo melhor assinalado na planta junta a fls. 566 (dos autos de investigação da P. J.), cujo teor se dá por inteiramente reproduzido.

Esta última porta (porta 4) encontrava-se normalmente fechada à chave e tinha um sofá colocado à sua frente.

4. Em momento não apurado, mas a partir da abertura do "Meia Culpa", o arguido AA começou a engendrar um plano no sentido de destruir este estabelecimento e com o propósito de que o mesmo jamais reabrisse.

5.         Em execução desse plano, no início do ano de 1997, o AA abordou o arguido BB, cliente assíduo do "Diamante Negro" propondo-lhe que destruísse o "Meia Culpa" nos moldes por si pretendidos.

6.         Concretizou que pretendia que tal destruição fosse efectuada pelo fogo - com utilização de gasolina -, por volta das 4 horas, e que fosse executada com violência e de forma a provocar o terror e que a "boite" ficasse sem poder trabalhar.

7.         Tendo-lhe o BB dito que não se sentia capaz, por si só, de executar o plano pretendido, o AA propôs-lhe que tratasse de encontrar indivíduos que, a troco de dinheiro executassem tal tarefa, recebendo o BB, em contrapartida, pelos seus serviços um emprego de porteiro no "Diamante Negro".

8. O BB aceitou esta proposta, e para levar a cabo a tarefa encomendada pelo AA, contactou o arguido FF, cerca de dois meses antes do dia 16/4/97, que conhecia pelo facto de saber que já tinha feito serviços de "cobranças difíceis" e, bem assim, porque sabia que era monitor de artes marciais e fazia "segurança" em estabelecimentos nocturnos.

9.         Abordou o FF e transmitiu-lhe com rigor o plano e os objectivos do AA. O FF, aceitou tal incumbência, , a troco de 700.000$00 (setecentos mil escudos), sendo que 500.000$00 seriam pagos após a prática dos factos e o restante em Junho. O FF sabia que o BB agia a mando do AA e que era este último quem pagaria o serviço.

10.       Por achar que a execução do plano exigia a intervenção de mais indivíduos, o FF, que já conhecia o "Meia Culpa", falou com o GG, praticante de boxe e "segurança" em estabelecimentos nocturnos, tendo este aceite a proposta.

11.       De seguida, ambos abordaram o arguido HH, amigo comum, que também praticava boxe e fazia "serviços de segurança" em casas nocturnas, o qual igualmente se dispôs à execução de tal tarefa.

12.       A partir de então, os três começaram a delinear a forma de melhor concretizarem o plano do AA.

Para o efeito, serviram-se do conhecimento que o arguido FF já tinha do estabelecimento. O FF chegou inclusivamente a deslocar-se ao "Meia Culpa", duas semanas antes do dia 16 de Abril, a fim de aí proceder a um melhor reconhecimento do local, o que fez tendo nomeadamente ficado ciente do facto de a porta do fundo da sala (porta 4) se encontrar normalmente fechada, do que deu conhecimento aos arguidos GG e HH.

Utilizaram-se ainda dos conhecimentos que todos tinham acerca do modo de funcionamento de estabelecimentos similares e, e da experiência adquirida enquanto "seguranças" e enquanto "cobradores de dívidas".

13.       Por saberem que à hora a que tinham que atear o incêndio encontrariam de certeza clientes, "alternadeiras" e empregados no interior da "boite", decidiram que só conseguiriam executar tal tarefa se fossem munidos de armas de fogo, quer para intimidar e aterrorizar os presentes, quer para os impedir de fugirem, quer ainda para garantir a sua própria fuga.

14.       Combinaram, por isso, que o FF providenciaria por um revólver, calibre 32 para uso do GG e o HH arranjaria uma caçadeira para o FF e um revólver de calibre 22 para si próprio.

15-Acertaram também que todos eles usariam luvas e gorros, do tipo "passa-montanhas", para não serem reconhecidos, e que o HH levaria ainda um isqueiro e um recipiente com capacidade de três a cinco litros que seria cheio com   gasolina.

16.       Quanto ao meio de transporte a utilizar, decidiram pedir ao BB que lhes arranjasse um veículo, porquanto não pretendiam viajar nos seus próprios automóveis para não serem identificados.

17.       O BB comunicou ao AA que já tinha arranjado homens para atearem o incêndio no dia 16 de Abril, à hora e nos moldes por si pretendidos, ou seja, pelas 4 horas.

18.       Uns dias antes do dia 16 de Abril o BB disse ao AA que aqueles arguidos necessitavam de um veículo automóvel para se deslocarem.

19.       Então, o arguido AA retorquiu que tratasse também disso, e que alertasse os arguidos FF, GG e HH para a existência de    um guarda-nocturno no "...".

20.       A 15 de Abril de 1997, a convite do BB, o CC e o DD, dirigiram-se até ao "Diamante Negro", onde chegaram por volta das 3 horas e 45 minutos. Aí relataram, a este arguido, todas as circunstâncias que rodearam a subtracção do Rover, designadamente que nele tinha sido efectuada uma ligação directa e, bem assim, a marca, a cor do veículo e o local preciso onde o mesmo se encontrava estacionado.

21.       Entre as seis    e as  sete horas do dia 15 de Abril, o FF    e o GG encontraram-se   com o BB nas bombas da Mobil, na Avenida dos Combatentes no Porto tendo-lhes este entregue o Rover, e referido que no mesmo tinha sido efectuada uma ligação directa.  Alertou-os para a existência do guarda-nocturno no ....

22.       Cerca das 00 horas, do dia 16 de Abril de 1997, os arguidos HH, GG, e FF, na concretização do plano gizado pelo AA e que levara à sua contratação, reuniram-se em casa do FF, onde estiveram até às 2 horas e 30 minutos, e aí combinaram os últimos pormenores, acertando definitivamente as funções que a cada um competiria executar, a saber:

-          O HH deveria espalhar a gasolina pelo estabelecimento, atear-lhe fogo e utilizar, caso se revelasse necessário, a arma de que se fazia acompanhar;

-          O SS deveria disparar o revólver logo que entrassem na boite para intimidar os presentes e fazer cobertura ao HH, de molde a que ninguém o impedisse de derramar a gasolina e chegar-lhe o fogo;

O FF deveria entrar de rompante mal a porta se abrisse, obrigar os presentes a recuar para o centro da "boite" sob a ameaça da caçadeira e posicionar-se junto ao início do balcão para, simultaneamente, proteger os co-arguidos e impedir que alguém se pusesse em fuga;

23.       Porque não poderiam deixar o Rover a trabalhar, sem alguém junto dele, combinaram ainda que levariam consigo o EE e que quando chegassem ao local lhe diriam para permanecer junto do veículo;

24.       Para a cabal execução do plano, os arguidos FF, GG e HH dirigiram-se às referidas bombas, onde este arguido encheu o bidão corri gasolina, que colocou no chão do Rover, na parte de trás do mesmo.

25.       Posteriormente, em circunstâncias que o tribunal não logrou apurar, o arguido EE apareceu nas bombas de gasolina;

26.       Este não viu o bidão que já se encontrava no Rover, nem as armas que se encontravam num saco, na parte de trás do mesmo veículo;

27.       Então, o arguido FF convidou-o a acompanhá-los e a viajar conjuntamente com o HH no veículo deste. Durante o percurso, o HH nunca lhe contou o que iam fazer;

 28.       Seguiram para a Lixa, transportando no Rover as aludidas armas e restante material, sendo que o GG conduziu este veículo, o FF conduziu um Opel Corsa GT, sua propriedade, de matrícula VG-... e o HH conduziu um Ford Orion, com o número de matrícula ...-AO, pertencente a seu pai, onde também viajava o EE.

29.       Chegados à Lixa, estacionaram o Corsa e o Orion, e passaram a viajar os quatro no Rover, dispondo-se da seguinte forma: o GG ao volante, o EE ao lado deste, os restantes dois arguidos no banco de trás.

30.       Durante este último percurso, nada disseram ao EE sobre o que iam fazer. O EE não se apercebeu de que no Rover tinha sido efectuada uma ligação directa;

31.       Quando chegaram junto do ..., por volta das 3 horas e 55 minutos, desceram a rampa de acesso ao "Meia Culpa" - o único estabelecimento aberto naquele local e hora -, na qual se encontravam vários veículos estacionados que os arguidos viram e que, desde logo, concluíram serem pertença de clientes da boite.

32.       O GG inverteu a marcha do Rover e deixou-o estacionado ao cimo da referida rampa, a cerca de 20 metros da porta da entrada para o "Meia Culpa", com o motor a trabalhar e em posição de arranque imediato.

33.       No exterior da viatura, e em local não visível pelo EE, perto da porta da entrada da "boite", os arguidos FF, GG e HH colocaram nas cabeças os respectivos gorros que desceram até ao pescoço de forma a que apenas ficassem destapados os olhos e a boca, puseram as luvas, muniram-se das armas, que previamente haviam entre si distribuído e que se encontravam devidamente municiadas, e encaminharam-se para a porta de entrada do "Meia Culpa".

34.       O HH transportou ainda o bidão com a gasolina e, com o propósito de mais facilmente derramar tal líquido, ao chegar junto da "boite", retirou a ponteira daquele bidão a qual arremessou para um terreno contíguo à rampa, onde veio a ser recuperada .

35.       Por seu turno, o EE, que se não apercebera do referido em 34, permaneceu junto do veículo, onde os arguidos o deixaram e lhe disseram para pôr o carro a trabalhar caso o mesmo"fosse abaixo",

36.       Os restantes três arguidos aproximaram-se da porta principal do "Meia Culpa", onde aguardaram que fosse aberta com a saída de algum cliente, para assim conseguirem entrar, porquanto tal porta estava sempre fechada e era provida de um óculo, sendo certo que, encontrando-se encapuzados, o porteiro não lhes franquearia a entrada.

37.       Pelas 4 horas, os clientes TT e UU preparavam-se para abandonar o estabelecimento, tendo o porteiro, VV, aberto a porta principal da "boite" para esse efeito.

38.       Acto contínuo, os já referidos três arguidos irromperam peia "boite",tendo o GG e o FF encostado as armas que levavam ao peito daqueles clientes e do porteiro, no qual foi derramada gasolina pelo HH, e obrigaram-nos a recuar para o centro do estabelecimento, ao mesmo tempo que o arguido FF gritava: Daqui ninguém sai! Tudo lá para dentro!".Neste preciso momento, as "alternadeiras" XX e YY, que tinham acabado de conversar com o porteiro imediatamente antes de este ter aberto a porta de entrada, ao verem o arguido FF encapuzado fugiram da "boite", pela porta que dá para a garagem (porta 3), sem que qualquer um dos arguidos ou qualquer outra das pessoas que se encontravam no estabelecimento disso se tivessem apercebido.

Os arguidos FF, GG e HH desconheciam a existência desta última porta (porta 3).

39.       À medida que os arguidos se iam encaminhando para a parte central da "boite", puderam certificar-se que ali se encontravam bastantes pessoas.

40.       Efectivamente, nessa altura, estavam dentro da "boite" trinta e três (33) pessoas, - sendo certo que neste momento já as "altemadeiras YY e XX se haviam escapado da "boite" - a saber:

CLIENTES

1- RR, um dos sócios;

2- TT;

3- UU;

4- ZZ;

5- PP;

6- AAA;

7- BBB;

8- DDD;

9-EEE;

10- FFF;

EMPREGADOS: 11- GGG;

12- HHH;

13- III;

14- JJJ;

15- LLL;

16- VV;

"ALTERNADEIRAS:"

17- MMM;

18- NNN;

19- OOO;

20- PPP;

21- QQQ;

22-CCC;

23-RRR;

24-SSS;

25-TTT;

26-UUU;

27-VVV;

28-XXX;

29-YYY;

30-ZZZ;

31-AAAA;

32-BBBB;

33-CCCC;

41.       Ao mesmo tempo que empurravam as pessoas para trás e determinados que estavam em executar cabalmente as instruções dadas, os arguidos prosseguiram o plano previamente traçado pelo AA e fielmente transmitido pelo BB e, dirigindo-se a todos os presentes, um dos arguidos gritou: "Ides morrer todos fritos !"

42.       Em simultâneo, o GG, com o propósito de intimidar e de obstar a que alguém perturbasse a tarefa do HH, disparou na direcção das prateleiras, sobre o balcão, partindo várias garrafas.

43.       Aterrorizados pelas armas, pela aparência dos arguidos e pelas expressões proferidas, a grande maioria das pessoas presentes ou se refugiou por detrás dos sofás ou correu para os locais mais afastados dos arguidos.

44.       Alertado pelos tiros acorreu ao local, vindo do escritório, o ofendido RR, que entrou na "boite" pela porta sita por detrás do balcão e logo foi atingido pelo FF, com a coronha da caçadeira, na parte lateral do pescoço, enquanto um dos arguidos, FF ou o GG lhe dizia: "Oh Toni, é hoje que vais morrer!"

45.       Em consequência desta pancada, o RR caiu no chão da "boite" e, de seguida, foi regado com gasolina pelo HH.

46.       O arguido FF, com a caçadeira empunhada e apontada na direcção das pessoas, manteve-se sempre próximo do início do balcão (tendo como referência o sentido da porta da entrada) ; o GG, também com a sua arma empunhada, avançou para proteger o HH, enquanto este caminhava para o centro da "boite", ao mesmo tempo que ia derramando a gasolina sobre o balcão, o chão, os cortinados e os sofás.

Ao fazê-lo salpicou com gasolina algumas das pessoas que se encontravam presentes no estabelecimento. Outras escorregaram na gasolina que já se encontrava derramada no solo, caíram ao chão e, desta forma, ficaram com as suas roupas e partes do corpo molhadas de gasolina.

47.       Acto contínuo, o HH ateou fogo à gasolina com o isqueiro e os arguidos FF e GG fugiram pela porta principal.

48.       Devido ao tipo. de materiais de que eram feitos, o mobiliário e os adornos da "boite" - napas, polietilenos, esponjas, veludos, bambus, madeiras e outros materiais sintéticos de fácil combustão - e ainda devido à natureza altamente inflamável da gasolina, as chamas irromperam rapidamente por todo o interior da "boite", a que de imediato se sucedeu uma grande libertação de fumos e gases tóxicos.

49.       Nesse momento, todas as pessoas presentes entraram em pânico e tentaram fugir, procurando aceder apenas às seguintes portas da "boite": a da entrada (porta 1), a do corredor (porta 2), e a que dava acesso à garagem (porta 3).

50.       Entre essas pessoas, contava-se o BBB que procurou fugir na direcção da porta principal.

51.       Ao aperceber-se disso, o HH, que também pretendia pôr-se em fuga, empunhou a arma de fogo que até então tinha mantido no cinto das calças e disparou na direcção do referido BBB, que fugia à sua frente, quando este já se encontrava a menos de cinco metros daquela porta, atingindo-o na região lombar esquerda, após o que o HH conseguiu abandonar a "boite".

52.       Correram todos para o Rover, no qual se introduziram juntamente com o EE e, sempre com o GG ao volante, arrancaram em alta velocidade pela E. N. n° 15, rumo à Lixa, onde, na ..., abandonaram tal veículo.

53 - Entretanto, no "Meia Culpa", o incêndio continuava a deflagrar, consumindo rapidamente todo o seu interior e queimando os corpos daqueles que não conseguiram pôr-se em fuga e daqueles que, tentando-o fazer, irromperam pelo meio das chamas.

54. Os Bombeiros Voluntários de Amarante, alertados por diversas chamadas, chegaram ao local pelas 4 horas e 22 minutos, onde combateram o incêndio, tendo para o efeito rebentado a porta do fundo da sala (porta 4) a pontapé, já que se encontrava fechada à chave, a fim de se estabelecer alguma ventilação. O sofá não chegara a ser removido.

Do interior da "boite" retiraram 12 cadáveres, assim distribuídos:

- três, a cerca de dois/três metros da porta do fundo da sala (porta 4); - dois, a meio do percurso entre esse local e a pista de dança;

- dois, também a cerca de três metros da porta do fundo da sala (porta - 4)( localizados por detrás de sofás, que se encontravam    encostados à parede onde está implantada aquela porta (porta 4);

- dois, do lado direito da pista de dança, a cerca de dois metros da parede onde se situa a referida porta (porta 4);

- um, sentado num sofá, encostado à parede onde está implantada a mesma porta (porta 4) e a cerca de dez metros desta;

- dois, ao lado esquerdo da pista de dança, no canto oposto àquele em que se situa aquela porta (porta 4).

55.       Enquanto o incêndio deflagrava, o BB e DDDD, que naquela noite tinham ido, uma vez mais, ao "Diamante Negro" saíram desse local por volta das 4 horas e 30 minutos. Foram conjuntamente com EEEE e FFFF, "alternadeiras" naquela "boite", para a casa desta, onde estiveram até perto das 6 horas.

56.       Entre as seis horas e as seis e trinta horas, o BB telefonou de um estabelecimento de café, sito em Amarante, para a residência do arguido AA, conforme previamente combinado. Tal como tinha sido acordado entre ambos, este respondeu "já levo aí as chaves". Este código significava que o BB deveria dirigir-se à rotunda defronte do "Diamante Negro", a fim de se proceder à entrega da quantia em dinheiro previamente acordada, e que, por sua vez, deveria ser entregue aos arguidos pesar, GG e HH.

57.       Também como tinha sido acordado previamente com o Artur porge, o AA já sabia que o "serviço" tinha sido executado nos ermos contratados, porquanto tinham estabelecido que o sinal comprovativo da sua consumação era o toque da sirene dos bombeiros.

 58.       O BB, fazendo-se deslocar no veiculo de marca Citroen AX, matrícula ...-BE, conduzido pelo DDDD, dirigiu-se ao "Diamante Negro", onde, pouco tempo após, surgiu o AA conduzindo um Volkswagen Golf, de cor azul, matrícula ...-BL, que lhes fez sinal de luzes para o seguirem.

59.       Encaminharam-se pela Estrada Nacional n° 210 que liga Amarante ao Marco de Canaveses e, a cerca de 600 metros, em Cepelos, pararam os veículos lado a lado, num retiro do lado direito da via, próximo da rua onde se situa a residência do AA.

60.       Nesse local, o BB abeirou-se do veículo do AA e este, conforme o estabelecido, entregou-lhe um maço de notas do Banco de Portugal, com valor corrente, que perfaziam a importância de 500.000$00 (quinhentos mil escudos) e que constituía uma das parcelas para pagamento do "serviço" encomendado.

61.       Após, o BB dirigiu-se para o Porto, onde, conforme o acordado, entregou os 500. 000$00 ao FF, em casa deste, dinheiro esse que o FF, nesse mesmo dia, dividiu da seguinte forma; duzentos mil escudos (200.000$00) para si; duzentos mil escudos (200.00$00) para o GG e cem mil escudos (100. 000$00) para o HH.

62 - Quantias estas que todos despenderam em proveito próprio.

63. Em consequência directa e necessária do descrito incêndio provocado pelos arguidos, resultou a morte de 13 pessoas que se encontravam na "boite" e ferimentos mais ou menos graves em 12 outras e, ainda, a destruição de todo o recheio do "Meia Culpa" e, designadamente, sofreram:

a), a CCC, as lesões constantes do relatório de autópsia de fls. 1624 a 1644 (vol. XI dos autos de investigação da P.J.)   -   cujo   teor  aqui   se   dá   por   reproduzido   -  designadamente   as queimaduras aí descritas, que foram causa adequada da sua morte;

c). o PP, as lesões constantes do relatório de autópsia de fls. 1889 a 1893, dos autos de investigação da P.J. - cujo teor aqui se dá por reproduzido - designadamente as queimaduras aí descritas, que foram causa adequada da sua morte, ocorrida a 24/4/97, oito dias após os factos;

64.       Os arguidos FF, HH, GG, BB e AA eram conhecedores do modo de funcionamento do "Meia Culpa" e de estabelecimentos congéneres.

Com efeito, o arguido AA é proprietário de uma "boite" de "alterne"; os arguidos FF, GG e HH prestavam serviços de segurança em bares, discotecas e "boites", sendo, de resto, com os proventos auferidos nessa actividade, acrescidos dos provenientes com as vulgarmente denominadas "cobranças difíceis", que obtinham meios de subsistência, e o BB era cliente habitual deste tipo de estabelecimentos.

65.       Os arguidos, BB, FF, GG e HH eram clientes habituais de "boites".

Por isso, todos sabiam que nesses estabelecimentos, nomeadamente no "Meia Culpa", é prática habitual a permanência de clientes para além das 4 horas, horário normal de encerramento e, necessariamente, que o pessoal de serviço (empregados e "alternadeiras") ali permanecia até bem depois daquele horário.

66.       Neste tipo de casas e concretamente no "Meia Culpa", as "alternadeiras" recebem, ao fim de cada noite e só após a saída de todos os clientes, uma prestação fixa diária e as respectivas comissões nas vendas de bebidas, o que determina a permanência, para além do horário de encerramento, quer daquelas, quer dos patrões e/ou empregados que procedem ao apuro diário e pagamentos.

67.       Igualmente conheciam todos estes arguidos o tipo de materiais utilizados neste género de estabelecimentos - napas, veludos, esponjas e outros materiais sintéticos - que sabiam ser de rápida combustão, causadora de intensa libertação de fumos e gases tóxicos.

68.       Os arguidos AA, BB, FF, GG e HH, estavam cientes da natureza altamente inflamável da gasolina, substância essa escolhida pelo arguido AA e aceite pelos demais, para atearem o descrito incêndio, por todos saberem da sua rápida combustão e do seu efeito devastador.

69.       Os arguidos FF, GG e HH agiram livre e conscientemente, de comum acordo, em conjugação de esforços, em execução de plano previamente delineado e com o propósito conseguido de destruírem pelo fogo o "Meia Culpa".

70.       Os arguidos FF, GG e HH bem sabiam e aceitaram que o incêndio, ateado nas descritas condições iria provocar forçosamente a morte das pessoas que se encontravam no local, como efectivamente provocou em relação a treze delas, o que só não ocorreu relativamente às restantes vinte e duas por circunstâncias alheias ao descrito comportamento daqueles arguidos e porque os sobreviventes, apesar de tudo e devido à sua coragem e instinto de sobrevivência, conseguiram aceder a alguma das portas da "boite", ainda que para tal tivessem enfrentado as chamas e inalado os fumos.

Também os arguidos AA e BB que agiram livre e conscientemente, sabiam e aceitaram que o incêndio a atear nas circunstância impostas pelo primeiro iria provocar necessariamente a morte das pessoas que se encontrassem no local e que só por circunstâncias alheias à vontade dos arguidos FF; GG e HH alguém se salvaria.

71. Agiram pela forma descrita, não obstante bem saberem que a morte, nessas circunstâncias, seria forçosamente precedida de grande desespero, sofrimento e agonia provocados pelas queimaduras e pela inalação de gases tóxicos.

72.0 arguido AA, determinado que estava em provocar o encerramento do "Meia Culpa" pelo fogo e pelo terror, e os arguidos BB, FF, GG e HH, determinados que estavam em levar a cabo tal plano, agiram com desprezo pela vida e o sofrimento alheios, que não hesitaram em sacrificar para a realização daquele objectivo.

73.       Durante toda a sua actuação, os arguidos FF, GG e HH obedeceram ao plano e respeitaram integralmente os objectivos traçados peio AA, que lhes foram transmitidos pelo BB.

74.       Os arguidos FF, GG e HH utilizaram o veículo Rover, bem sabendo que o mesmo não pertencia ao BB por ter sido furtado e que actuavam contra a vontade do respectivo proprietário.

75.       Os arguidos, AA, BB, FF, GG, HH, CC e DD sabiam serem os seus comportamentos proibidos por lei.

76.       O arguido AA é casado e antes de preso vivia com a mulher e dois filhos "adoptivos", um dos quais filho desta. Explora o "Diamante Negro" há cerca de 20 anos.Vive em casa própria e tem a 4a classe da instrução primária.

Não tem antecedentes criminais e negou a sua apurada conduta.

77.0 arguido BB tem uma filha de quatro anos de idade a cargo, que vive com a mãe.

À data da detenção encontrava-se desempregado, embora anteriormente tivesse tido vários empregos. Tem o 6º ano de escolaridade.

Mão tem antecedentes criminais.

Confessou parcialmente a sua apurada conduta. As suas declarações revestiram particular relevo para o esclarecimento dos factos e dos seus intervenientes,  tendo sido de grande importância para a descoberta da verdade.

78. A assistente II foi casada com PP.

Nos momentos que precederam o atear do fogo, o PP viveu momentos de angústia e terror, tendo a noção de que ia morrer queimado e tentou ainda fugir. Foi conduzido ainda com vida ao hospital de Amarante, do qual seguiu para o hospital de S. João; devido à gravidade dos seus ferimentos foi conduzido para o hospital    da Universidade de Coimbra, Unidade de Queimados, onde acabaria por morrer no dia 24/4/97.

Durante esse período o PP esteve consciente, apercebeu-se do seu estado, sofreu dores horríveis, tendo-se apercebido que a sua situação clínica era irreversível.

83. Os demandantes NN e OO, ( representados pelo seu pai MM), são filhos da falecida CCC e nasceram respectivamente, em 23/11/92 e 18/1/91.

A CCC, então com 21 anos, trabalhava como "alternadeira" no "Meia Culpa". Antes da sua morte sofreu momentos de terror, medo e desespero.

Conhecendo do objecto dos recursos começaremos por abordar aqueles em que se levantam questões relativas à matéria de facto e susceptíveis de conduzir a anulação do julgamento e, eventualmente, a reenvio do processo.

1 - Começar-se-á, assim, pelo recurso interposto por AA que argui a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia sobre os factos constantes do n° 5 da acusação bem como sobre os factos dos n°s 2, 5, 16 e 17 da sua contestação e ainda por não indicar o substracto racional que levou a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados.

A matéria constante dos art°s 5o da acusação e 2o da contestação deste arguido respeita às diferentes posições da acusação e da defesa quanto á alegação de que a clientela do "Diamante Negro" diminuiu em consequência da abertura do "Meia Culpa".

Não obstante se entender que tal facto não era essencial para um rigoroso enquadramento das condutas nem decisivo para o apuramento das responsabilidades, a verdade é que o tribunal, como claramente se vê do elenco dos factos não provados, pronunciou-se a propósito respondendo, curiosamente, pelo modo mais favorável ao aguido.

Quanto aos factos dos ar°s 5o, 6o e 17° da sua contestação, para além de se revelar que, pelo menos o tribunal se pronunciou sobre a matéria do art° 16 ao dar como não provado o alheamento do AA em relação ao anterior incêndio no Meia Culpa, é indubitável que se não tratava de factos indispensáveis à incriminação e, ainda que provados, em nada adiantariam à posição do arguido

Porque se tratava de questão de conhecimento não obrigatório, a omissão de pronúncia nunca poderia, aqui, gerar nulidade.

A nulidade resultaria, ainda, de não se ter indicado o "substracto racional" que esteve na base da convicção dos julgadores e valorou de determinada forma os diversos meios probatórios apresentados.

A questão da convicção íntima dos julgadores, isto é, o conjunto dos motivos que levaram a que a decisão sobre os factos se formasse num certo sentido é, face ao princípio da livre apreciação da prova (art° 127° do CPP), e exceptuadas as situações a que se refere o n° 2 do art° 410° do CPP, insindicável em sede de recurso.

Há que assinalar que, na audiência, o ilustre mandatário do ora recorrente, ao produzir alegações orais, disse que a referência que fez na motivação ao art° 5o da contestação se deveu a mero lapso de escrita, pois, na verdade queria antes referenciar o art° 6o da mesma peça onde consta a matéria sobre a qual se omitiu pronúncia.

Porém, mal se percebe tal pretensa rectificação já que o que ali se alega foi objecto de apreciação pelo colectivo e mereceu as respostas que constam sob os n°s 4 e 6 do.elenco dos factos provados.

A propósito é de justiça realçar que na fundamentação da decisão quanto aos factos, se descreve com rara minúcia e cuidado todos os elementos que estiveram na sua base, fazendo-se ainda a indicação precisa, perante meios de prova contraditórios, dos motivos por que se fez prevalecer a versão acolhida.

De todo o modo, porque não existem e nem sequer se invocam, qualquer dos vícios a que se refere o n° 2 do art° 410° do CPP, está vedado a este Supremo Tribunal o reexame da matéria de facto.

Pretende depois o recorrente, porque nunca contactou, directamente, os autores materiais, que o seu comportamento não é punível.

Mas é evidente que não tem razão já que o conceito de autoria, de acordo com as cláusulas normativas da extensão da tipicidade contidas no art° 26° do CP, compreende a prática do ilícito por intermédio de outrem não se exigindo, obviamente, que haja contacto directo entre quem concebe, determina e organiza a actividade ilícita, e quem a executa.

O acórdão recorrido desenvolve exaustivamente a questão da responsabilidade deste arguido, seja no plano da tipicidade, da ilicitude ou da culpa.

Nele, como autor moral, embora sem contactos directos com os executores, residiu a vontade decisiva do desencadeamento da acção criminosa, delineando, nos aspectos essenciais, os seus precisos contornos.

Ele antecipou, como consequência necessária da actividade planeada, a morte de quantos se encontrassem na "boite" e sabia que só por circunstâncias alheias à vontade dos executores alguém escaparia com vida, e todo os actos que a sua acção desencadeou até ao terrível resultado final estão ligados, sem margem para quaisquer dúvidas pelo elemento decisivo para a definição e determinação das várias responsabilidades que é a causalidade adequada.

Ao invocar que nunca teve contactos directos com os autores materiais, parece pretender que a sua intervenção só poderia configurar instigação a uma instigação o que é geralmente rejeitado como modalidade de comparticipação criminosa (vide Eduardo Correia in Direito Criminal -Tentativa e Frustração - Comparticipação Criminosa..pgs. 154).

No caso, porém, a intervenção do AA não foi a de mero instigador que se limita a incentivar ou a aconselhar alguém a decidir-se pela prática de uma acção ilícita.

Aqui, toda a concepção e idealização da acção lhe pertencem. Ele é a inteligência e a vontade da acção e dos resultados. Ele detém desde o início até final o completo domínio da acção criminosa.

Não oferece dúvidas, quer no plano da tipicidade, quer no da ilicitude, o enquadramento das acções desencadeadas nas normas dos art°s 272° n° 1 a)e132°n°1 do CP.

Tratou-se, assim, quanto ao AA, de conduta típica, ilícita por ele desencadeada com dolo directo quanto ao ilícito de incêndio e necessário quanto aos de homicídio.

Daí que seja insustentável pretender que deve ser incriminado, apenas, pelo ilícito de incêndio já que, como se provou, o elemento volitivo que lhe respeita abarcou todos os aspectos da acção criminosa incluindo os resultados.

E, porque os bens protegidos pelos ilícitos de incêndio e homicídio têm, entre si, marcada e bem distinta autonomia, a sua intervenção tipifica, como bem se decidiu, não só os crimes de homicídio, tantos quantas as pessoas visadas pela acção, nas formas consumada e tentada, como o de incêndio.

Porque nenhum outro aspecto se impugna no acórdão recorrido, o recurso não pode ser provido.

2- O recurso do Ministério Público impugna a decisão, apenas, quanto á da pena aplicada ao arguido, e também recorrente, BB e por isso analisar-se-ão, conjuntamente os dois recursos.

Invoca este recorrente os vícios da insuficiência da matéria de facto para a decisão, o da contradição insanável entre os   factos provados  e a fundamentação, e o do erro notório na apreciação da prova quanto aos crimes de homicídio e de furto que lhe são imputados.

São estes os vícios que permitiriam, nos termos do art° 410° n° 2 do CPP, alargar a cognição do Supremo Tribunal à matéria de facto.

acontece,   porém,   que   o   recorrente   não  especifica   os   pontos concretos que permitiriam identificar tais vícios e, por outro lado, uma análise minuciosa do acórdão -    pois eles terão de resultar do próprio texto da decisão recorrida -, não permite concluir pela sua verificação.

Sob a capa da invocação desses vícios, o que o recorrente visa é impugnar a decisão quanto aos factos fora daquele condicionalismo, mas a isso obsta o disposto no art° 433° do CPP que restringe a cognição do Supremo Tribunal às questões de direito.

Improcedem assim, nesta parte, as conclusões do recurso.

Pretende ainda o recorrente que de tais factos não se podia concluir pela prática de um crime de furto de veículo mas apenas de um crime de furto de uso.

No entanto, os factos a propósito provados, conduzem, claramente, a que se conclua pela prática do crime de furto de veículo p.p. pelo art° 203° do CP.

Com efeito, é essencial para a tipificação do lícito do furto de uso a restituir o objecto furtado sendo que, no caso em apreço tal está provada.   Na verdade  (vide supra  E  n° 52) após a consumação do assalto e incêndio ao Meia Culpa, os arguidos fugiram no veículo furtado abandonando-o na Lixa.

No respeitante à pretendida  incriminação,  apenas,  pelo crime de indubitável, perante os factos provados, o seu envolvimento em toda a acção criminosa quer no que respeita às acções praticadas, quer quanto aos resultados pretendidos e alcançados.

Ele foi o elemento decisivo para a organização de todas as acções desencadeadas, tanto no que respeita ao "recrutamento" dos operacionais como na transmissão fiel  dos objectivos visados pelo autor moral  das condutas ilícitas.

E, como indubitavelmente resulta da prova feita, ele anteviu como consequência necessária   da   sua   conduta,   a   morte   de   quantos   se encontrassem no local e que só por circunstâncias alheias à vontade dos autores alguém escaparia com vida.

E, na ausência de vícios que permitam alargar a cognição do Supremo Tribunal aos factos, eles não podem aqui ser postos em causa e preenchem, claramente, os tipos legais de crime de incêndio e de homicídio qualificado.

E não se diga que o elemento qualificador de homicídio consome o tipo legal de incêndio, pois, como já se referiu, os bens protegidos numa e noutra norma são claramente distintos.

No que se refere à pena aplicada, pretende o recorrente, e desta vez com razão, que não  foram   devidamente   ponderados  os  factores  ou  circunstâncias que, no que lhe diz respeito, atenuam a sua responsabilidade.

Aliás, o ilustre Magistrado do MP chama a atenção para o facto de o tribunal Colectivo, tendo exactamente em atenção a circunstância que decisivamente serviu para justificar um menor rigor na aplicação das penas parcelares, já a tal não atendeu quando fixou a pena unitária.

Há que atender a que, perante a aterradora dimensão das consequências das acções dos arguidos, o elevado número dos ilícitos preenchidos, as molduras penais que a cada um corresponde e à draconiana [imitação que a regra do cúmulo jurídico impõe, é inevitável uma aproximação, para não dizer igualação, das penas concretas aplicadas a cada um dos agentes.

No entanto, concordando com o ponto de vista do MP, impõe-se, quanto a este arguido, uma clara diferença de tratamento em confronto com os demais, sobretudo para que tenha expressão nos autos, as consequências da justa atenuação respeitante ao especial valor da sua confissão e a decisiva colaboração que deu para a descoberta da verdade.

Não é possível, porém, ir ao encontro do recorrente quando pretende a redução das penas parcelares para 0 e 3 anos de prisão, respectivamente, para os crimes de homicídio consumado e tentado, e de 15 como resultado do cúmulo jurídico.

É que não há motivos para atenuação especial e, por isso, em homenagem ao princípio da proporcionalidade, e obediência ao disposto no art° 77° n° 1 do CP, e considerada ainda a necessidade de se conseguir um tratamento diferenciado relativamente aos demais arguidos, se entende que as penas parcelares aplicadas, mantendo-se embora, deverão resolver-se, em cúmulo jurídico, na pena unitária de 20 anos de prisão.

Procede, pois, na totalidade o recurso do MP e em parte o do arguido BB.

3- Quanto ao recurso da assistente II em representação de suas filhas menores JJ e LL, o seu objecto limita-se à questão da valoração dos danos correspondentes ao sofrimento da vítima PP e a de saber quem pode reclamar a respectiva indemnização.

Face á dimensão de tragédia que a conduta dos arguidos provocou e o clima de terror que se criou, bem como os atrozes sofrimentos físicos e morais que acompanharam, inevitavelmente, os últimos momentos do PP que só faleceu passados oito dias, não é desajustado o montante de 4.000 contos reclamados pelas recorrentes.

E a ele têm direito as recorrentes como herdeiras do falecido PP.

Procede, assim, o seu recurso.

4- No que respeita ao recurso de MM em representação dos filhos menores NN e OO, ele tem por objecto o despacho que desatendeu o seu requerimento no sentido de ser rectificado o acórdão por alegadamente conter erro material decorrente de ter omitido pronúncia sobre o pedido de indemnização pelos danos morais correspondentes ao sofrimento da vítima CCC.

Tal requerimento foi indeferido desde logo por se considerar que a omissão apontada não configurava qualquer erro material.

E não poderia decidir-se de outro modo pois, como é de todo evidente, não era caso de erro material.

Do que se trataria era de um motivo de nulidade por omissão de pronúncia sobre questão de conhecimento obrigatório.

Tal nulidade, após a sentença, só poderia ser impugnada mediante recurso que, porém, não foi interposto.

E, como é óbvio, não pode agora dela conhecer-se pois este recurso não tem por objecto a impugnação da sentença mas apenas a do despacho referido e, como vimos, ele não merece censura.

No mais mantém-se o muito douto acórdão recorrido.

Por tudo o exposto, acordam em negar provimento aos recursos do arguido AA e do assistente MM e em conceder provimento total aos recursos do Ministério Público e da demandante civil II, e parcial ao do arguido BB, pelo que se altera o acórdão recorrido com a condenação deste arguido na pena unitária de 20 (vinte) anos de prisão, e fé fixando em 44.375.680$00 (quarenta e quatro milhões, trezentos e setenta é cinco mil, seiscentos e oitenta escudos) a indemnização a favor de II e suas filhas menores.

Custas pelos recorrentes AA, BB fixando em 10 UCs a taxa de justiça quanto ao primeiro e em 2 UCs para o segundo.

No que respeita aos pedidos eiveis, as custas dos respectivos recursos são-no pelos demandados quanto ao de II e pelo recorrente quanto ao de FF.

Lisboa, 27 de Janeiro de 1999

Duarte Soares (Relator)

Armando Leandro

Augusto Alves

Lourenço Dias