Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
97P675
Nº Convencional: JSTJ00032918
Relator: OLIVEIRA GUIMARÃES
Descritores: CONCURSO DE INFRACÇÕES
PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE
CONSUMPÇÃO
SUBSIDIARIEDADE
PENA DE DEMISSÃO
CONSTITUCIONALIDADE
PRESIDENTE DA CÂMARA
MANDATO
PERDA DE DIREITO
Nº do Documento: SJ199801270006753
Data do Acordão: 01/27/1998
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N473 ANO1998 PAG148
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO PARCIAL.
Indicações Eventuais: EDUARDO CORREIA IN PROJECTO DE COD PEN 1963. FIGUEIREDO DIAS IN NOVOS RUMOS DA POLÍTICA CRIMINAL E DO DIR PENAL DO FUTURO PAG34.
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/PATRIMÓNIO.
Legislação Nacional: L 34/87 DE 1987/07/16 ARTIGO 2 ARTIGO 5 ARTIGO 10 ARTIGO 26 N1 ARTIGO 29 F.
CONST89 ARTIGO 30 N4.
CP82 ARTIGO 30 N1.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO TC 284/89 IN DR IIS DE 1989/06/12.
ACÓRDÃO TC DE 1992/06/30 IN BMJ N418 PAG452.
Sumário : I - O concurso aparente de infracções pressupõe que sobre a mesma situação possa convergir mais do que uma norma, verificando-se entre elas uma relação de especialidade, de subsidiariedade ou de consumpção: uma delas prevalecerá então sobre a outra (ou sobre as outras) e exclui-la-á (ou exclui-las-á).
II - Em geral, não pode ser esquecido que o mecanismo da consumpção não branqueia nem elimina a tonalidade delituosa própria do tipo penal consumido. O que se entende é que basta a formulação de um juízo de censura único, não dissociado embora na sua essência das infracções participantes - as consumptoras ou as consumidas - mas mitigadas estas pela própria circunstância da sua aglutinação naquele sobre dito juízo único.
III - A consumpção imposta pela parte final do n. 1 do artigo 26 da Lei 34/87 é feita em função do crime que se insira na definição genérica traçada no artigo 2 daquela Lei e os ilícitos ali aludidos são, eles próprios, face aos termos em que ali se definem e ainda que previstos na Lei penal geral, crimes de responsabilidade de titulares de cargos políticos, com os efeitos penais que, para esses crimes, são estabelecidas e que da condenação por eles decorrem (artigos 28 a 31).
IV - Tem-se como imperativo mandamento constitucional o de que a perda de direitos civis, profissionais e políticos, deixou de poder ter lugar como efeito automático de determinadas penas, entendendo-se compreendidas no âmbito desta proibição constitucional, não só a perda desses direitos como efeito necessário de certas penas, mas também a sua perda automática por via de condenação por determinados crimes.
V - A perda de mandato prevista na alínea f) do artigo 29 da
Lei 34/87, de 16 de Julho de 1987 é inconstitucional quando interpretada no sentido da demissão ser efeito automático da condenação pelo crime do artigo 5 da mesma Lei.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Perante o Colectivo do Tribunal de Círculo de Braga, responderam, em processo comum, os identificados arguidos A, B, C, D, E e F.
Realizado o respectivo julgamento, saíram absolvidos os arguidos D, E e F.
Mas condenados foram:
O arguido A, pela prática de um crime de burla, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 217 ns. 1 e 4, 206 e 73, do
Código Penal revisto, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 1000 escudos o que perfaz a quantia de 150000 escudos;
O arguido B: a) Pela prática de um crime de falsificação, previsto e punido pelo artigo 256 ns. 1 e 4, do Código Penal revisto na pena de 18 (dezoito) meses de prisão. b) Pela prática de um crime de burla, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 217 ns. 1 e 4,
206 e 73, do Código Penal revisto e artigo 5 da Lei n. 34/87, de 16 de Julho, na pena de 7 (sete) meses de prisão. c) Operado cúmulo jurídico destas penas, recaiu sobre o arguido a pena única de 21 (vinte e um) meses de prisão. d) Nos termos do artigo 29, da Lei n. 34/87, de 16 de Julho, foi decretada a perda de mandato do arguido como Presidente da Câmara Municipal de ... . e) A pena de 21 (vinte e um) meses de prisão, achada em decorrência do cúmulo jurídico efectivado, foi declarada suspensa pelo período de 4 anos, sob condição de, em 60 dias, o arguido demonstrar nos autos ter entregue a quantia de 1000000 escudos à Santa Casa da Misericórdia de Vila Verde. f) Na suspensão não se abrangeu a decretada perda de mandato.
O arguido C, pela prática de um crime de burla, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 217 ns. 1 e 4, 206 e 73, do
Código Penal revisto, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de 1000 escudos o que perfaz a quantia de 100000 escudos.
A ofendida G, Companhia de Seguros, S.A. com sede na Rua ... Lisboa, deduziu pedido cível de indemnização contra os arguidos; porém, tendo sido paga a indemnização peticionada, foi a respectiva instância julgada extinta por inutilidade superveniente da lide (cfr. despacho de folha 417).
Conformados se mostraram com a decisão, os condenados arguidos A e C mas o mesmo não sucedeu quanto ao arguido B que, daquela, interpôs recurso, na motivação e conclusão do qual e, em síntese, coloca em causa a matéria de facto que o Colectivo deu como provada, invocando a existência dos vícios referidos nas alíneas b) e c) do n. 2 do artigo 410, do
Código de Processo Penal;
Questiona, na matéria de direito, a verificação dos elementos objectivos e subjectivos essenciais dos crimes de burla e falsificação de documentos, bem como os do crime de abuso de poderes, arguindo ainda de inconstitucional, a norma do artigo 29 da Lei n. 34/87, de 16 de Julho;
Discorda da fixada condição para a suspensão da execução da pena (pagamento de 1000000 escudos à Santa Casa da Misericórdia de Vila Verde, a demonstrar, em 60 dias, ter sido feito), considerando o montante estipulado como exorbitante e reclamando a sua redução (artigo 51 n. 2, do Código Penal);
Impetra, enfim, a sua absolvição (total ou parcial).
Contramotivou, proficiente e doutamente, a digna
Procuradora da República cujo entendimento conclusivo se consubstanciou no seguinte:
O tribunal apreciou devidamente a prova produzida;
O acórdão recorrido encontra-se suficientemente fundamentado e o seu texto, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, não revela a existência dos vícios invocados pelo recorrente;
Os factos provados integram todos os elementos objectivos e subjectivos da prática dos crimes pelos quais o arguido foi condenado;
A decisão impugnada submeteu a matéria factica provada a correcto tratamento jurídico, fazendo acertada interpretação dos preceitos penais, sendo o "quantum" da pena principal adequado e justificada a sua suspensão;
Por se encontrar devidamente fundamentado, o artigo 29 da Lei n. 34/87, de 16 de Julho, não padece de inconstitucionalidade material;
O montante fixado como condição de suspensão da execução da pena, apresenta-se bem calculado, equilibrado e justo, atento o circunstancialismo de facto provado;
O acórdão recorrido não violou qualquer norma legal;
Deve ser negado provimento ao recurso.
Subidos os autos a esta alta instância, neles não divisou o ilustre Procurador Geral Adjunto razão obstativa de que prosseguissem para audiência.
Realizado exame preliminar e recolhidos os legais vistos, a ela se procedeu, pois, em conformidade com o formalismo devido.
Cumpre decidir.
Como é sabido, o âmbito dos recursos afere-se e delimita-se pelas conclusões que os recorrentes entendam dever extrair das respectivas motivações; já consignamos as formuladas pelo ora recorrente e, por elas, também, já nos apercebemos das questões a abordar.
Por outro lado, nunca é despiciendo relembrar que o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista que é, só reexamina, em princípio, matéria de direito, podendo, contudo intrometer-se em área factológica - e até por sua iniciativa oficiosa - verificadas as hipóteses referidas no artigo 410 ns. 2 e 3, do (Código de Processo Penal (cfr. artigo 433, desta lei processual).
Dito isto e por via disto, logo convirá, como ponto de partida, relançar os olhos sobre os factos dados como provados, em ordem a ajuizar se estes avalizam a decisão recorrida ou se, antes e ao invés, esta consente as criticas que lhe são endereçadas no recurso ou outras que eventualmente se justifiquem apontar-se-lhe.
Vem certificada a realidade facticial seguinte:
Em 5 de Março de 1993, no lugar de Vilela, freguesia de
Prado, S. Miguel, concelho e Comarca de Vila Verde, decorriam os trabalhos camarários para a abertura de umas valas, com colocação de manilhas de cimento, num caminho vicinal;
Cerca das 14 horas desse mesmo dia, o arguido A passou por essa obra com o seu tractor EE e ofereceu colaboração para o transporte do atrelado camarário que se encontrava carregado de manilhas;
Quando se prestava a engatar manualmente o atrelado ao tractor, a cabeçalha do atrelado caiu-lhe sobre o pé direito, produzindo-lhe esmagamento de dois dedos;
Volvidos alguns dias, quando já se encontrava em período de convalescença o arguido A indagou junto dos serviços jurídicos da Câmara Municipal de ... sobre a existência de um contrato de seguro camarário que cobrisse os riscos do acidente que sofrera, tendo sido informado pelo jurista Doutor H da inexistência de tal seguro, por não ser funcionário da referida autarquia;
Em fins de Março, princípios de Abril de 1993, o arguido A, com perfeito conhecimento que não tinha sido contratado para efectuar o referido trabalho e que o mesmo nem era próprio das suas funções de Presidente da Junta de freguesia de..., dirigiu-se ao Vereador .... com a finalidade de obter indemnização pelo acidente que sofrera;
O mesmo vereador remeteu o arguido A para o então chefe de Departamento, J que por sua vez entrou em contacto telefónico com o arguido C, por ser o representante da Companhia de Seguros G (com o qual a Câmara Municipal de ... havia celebrado vários contratos de seguro), com o propósito de o A ser incluído numa das apólices;
Apesar de ter sido informado das circunstâncias do acidente em causa e da falta de qualquer vínculo laboral do sinistrado com a Câmara Municipal de ..., o arguido C acedeu a dar-lhe cobertura através da apólice n...., fornecendo instruções àquele chefe de departamento no sentido de ser elaborada uma participação como se de acidente de trabalho se tratasse, fazendo constar da mesma que o arguido A era funcionário do referido município, o que bem sabia não corresponder à verdade;
Aquele chefe de departamento ordenou verbalmente ao encarregado de armazém da Câmara Municipal de ... - arguido D - que elaborasse a referida participação de acidente de trabalho;
Depois de lhe ter sido comunicado o teor que deveria fazer constar da participação, o arguido D colocou algumas reservas ao preenchimento dessa participação, pois sabia não corresponder à verdade a invocada qualidade de trabalhador da Câmara do A e sugeriu que o mais correcto seria uma participação de acidente de viação;
Porém insistindo na obrigação do cumprimento da ordem dada, o chefe de departamento ditou e o arguido D, num impresso modelo de participação de acidentes de trabalho fornecido pela Companhia de
Seguros G, escreveu alguns dos dizeres que constam da participação a que alude a cópia de folha 33, designadamente que o arguido A sofreu o acidente "quando procedia ao transporte de materiais para obras no caminho do lugar de Vilela com o tractor agrícola David Brown GV, o reboque desengatou-se do tractor, tendo-lhe caído em cima do pé direito";
Essa participação foi depois entregue na secção de recursos humanos da Câmara Municipal de ..., afim de aí ser preenchida na parte em falta, bem como assinada e remetida à Companhia de Seguros G;
Em 30 de Abril de 1993, a arguida E
Pereira, funcionária da aludida secção, cumprindo ordens dadas pelo mesmo chefe de departamento (J) elaborou o ofício a que se reporta o documento de folha 6, endereçado à dita companhia, nele se fazendo constar, além do mais, que o arguido A era funcionário do quadro do município, como tractorista;
Essa arguida sabia que o teor desse ofício que lhe foi mandado elaborar não correspondia à realidade;
A carta e a participação foram depois presentes ao arguido B para as assinar na qualidade de Presidente da Câmara Municipal de ...;
Sabendo as circunstâncias em que tinha ocorrido o acidente e que, por isso, o conteúdo desses documentos não correspondia à verdade, designadamente a indicada qualidade de funcionário do município do arguido A, o arguido B assinou a carta e a participação, os quais foram seguidamente remetidos à Companhia de Seguros G;
Esta Companhia, em 9 de Setembro de 1993, devolveu o boletim de alta do arguido A, com a justificação de que deveriam dar-lhe seguimento para a Caixa Geral de Aposentações, uma vez que aquele havia sido classificado como funcionário do quadro da Câmara Municipal de ...;
Perante essa devolução e com vista a encontrarem uma solução que assegurasse o pagamento das indemnizações e da pensão ao arguido A através da Companhia de Seguros, os arguidos B e C reuniram-se;
Na sequência dessa reunião, realizada em 17 de Setembro de 1993, num sala anexa ao gabinete do presidente da Câmara, os arguidos B e C entenderam que o problema seria ultrapassado, comunicando-se à seguradora que tinha havido lapso na menção do arguido A como funcionário da Câmara, mas que o acidente tinha ocorrido quando o mesmo prestava serviço a favor da autarquia, como trabalhador eventual, o que sabiam não corresponder à verdade;
Assim, o arguido B ordenou à funcionária F que elaborasse o ofício a que se reporta o documento de folha 9, ditando-lhe o teor do mesmo, endereçado à dita seguradora, onde se fazia constar que "aquando da remessa da participação do acidente através do ofício n. 1231, de 30 de Abril último, por lapso foi indicado que o Senhor A era funcionário do quadro, quando na realidade se tratava de um trabalhador eventual que prestou serviço para esta Câmara Municipal no período que foi de 22 de Fevereiro a 5 de Março de 1993";
Seguidamente o arguido B assinou o ofício, subscrevendo todo o seu conteúdo;
Após a recepção desse ofício a Companhia de Seguros G, convencida que agia no cumprimento das obrigações assumidas no contrato de seguro, participou a ocorrência do acidente ao Tribunal de Trabalho de Braga, onde foi distribuído como processo emergente de acidente de trabalho à 2. Secção do 2. Juízo;
Em 17 de Janeiro de 1994 no referido tribunal tiveram lugar um exame médico o qual confirmou estar o sinistrado afectado de uma IPP de 4% e uma tentativa de conciliação perante o Ministério Público no decurso da qual o mesmo arguido declarou, além do mais, que ganhava o salário de 57300 escudos vezes 14 meses e que trabalhava por conta, sob a direcção e fiscalização da Câmara Municipal de ...; Em consequência das referidas cartas e participação, bem como das declarações prestadas pelo arguido A no Tribunal de Trabalho, a Companhia de Seguros G dispendeu:
- 175442 escudos, a título de indemnização por incapacidade temporária paga ao arguido A;
- 43351 escudos, a título de comedorias;
- 18000 escudos, com custas no tribunal de trabalho;
- 13862 escudos, de despesas médico-hospitalares;
- 61783 escudos, com averiguações e peritagens;
- 288044 escudos, a título de remição de pensão atribuída ao sinistrado; tudo num total de 600482 escudos.
Os arguidos A, B e C agiram livre e voluntariamente, de uma forma concertada, mediante um plano por eles traçado, com o objectivo de o primeiro obter uma indemnização que sabiam não ser devida, à custa do prejuízo equivalente da Companhia de Seguros G.
No tocante ao estatuto pessoal do arguido e ora recorrente deu-se como provado que:
As pessoas com quem convive consideram-no uma boa pessoa, respeitador e trabalhador;
Porém, enquanto Presidente da Câmara, há funcionários que o definem como autoritário, persecutório em relação a todos que se lhe opõem, tomando mesmo medidas arbitrárias e injustas;
É de média condição social;
Prestou algumas declarações verdadeiras, designadamente aceitando que subscreveu conscientemente o ofício que comunicava a qualidade do arguido A como trabalhador eventual.
Tem antecedentes criminais (cfr. folha 118).
Não se consideraram como provados, do que não deriva especial ou relevante influência sobre a situação própria do arguido e ora recorrente B.
Os demais factos descritos na acusação, nomeadamente:
Que o A estivesse a supervisionar obras da freguesia;
Que os arguidos D, E e F tivessem urdido qualquer plano ou que tenham actuado de uma forma concertada e conjunta com os demais arguidos e que tivessem o propósito de prejudicar a seguradora em benefício do A, que esse prejuízo resultasse necessariamente das suas condutas ou mesmo que tenham admitido como possível esse evento.
Definidos os desideratos visados pelo recurso interposto e recordada a factualidade havida por assente, caberá, antes de mais, dizer, retomando o que já anteriormente deixámos aflorado quanto aos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, que não se nos afigura que decorram do douto acórdão recorrido, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum e em termos de se impossibilitar decidir da causa
(artigo 426 do Código de Processo Penal), qualquer dos vícios elencados nas diversas alíneas do n. 2 do artigo 410, do Código de Processo Penal, designadamente os que o recorrente aponta ou sejam os da alínea b) - contradição insanável da fundamentação - e da alínea c) - erro notório na apreciação da prova.
Sublinhando-se que tais vícios só serão atendíveis desde que ocorra o condicionalismo referido - ou seja quando resultarem do próprio texto da decisão impugnada por si só ou conjugada com as aludidas regras - bem se compreende, assim, que se impermita, para tal finalidade, o socorro a quaisquer outros elementos estranhos à decisão, mesmo que do processo constem.
De resto, anotando-se - sendo importante que se anote - que factos provados e meios de prova configuram realidades distintas (no que toca a estes últimos o Supremo Tribunal de Justiça apenas pode apreciar a sua legalidade e a respectiva força probatória se se tratar de prova vinculada), escapa à cognição do Supremo a apreciação e valoração dos ditos meios de prova produzidos em primeira instância, logo a sua suficiência ou insuficiência para a decisão proferida quanto aos factos julgados provados ou não provados.
Neste domínio, pontifica o principio da liberdade de apreciação (ou de livre convicção) do julgador como, aliás, estipula o artigo 127, do Código de Processo Penal.
Princípio que dificilmente pode colidir com o que se dispõe no n. 2 do artigo 410, do Código de Processo Penal, uma vez que este diz respeito aos vícios emergentes da própria decisão, reportando-se aquele ao juízo de valor sobre a prova que a tal decisão se entendeu levar e que nela se contêm.
Donde que, a forma como o tribunal de primeira instância adquiriu a sua convicção sobre a prova e o processo que utilizou para formar essa convicção são insindicáveis pelo STJ, sob pena de este se imiscuir numa área a que não tem acesso.
Por outro lado:
Se as regras da experiência podem ser trazidas à colação para sustentar a conclusão da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (alínea a) do n. 2 do artigo 410, do Código de Processo Penal), vício esse, diga-se, não invocado pelo ora recorrente e que, de todo o modo, também tem de emergir da decisão recorrida e reportar-se à factualidade nela albergada, já de pouco servem para estribar afirmação quanto a verificar-se contradição insanável da fundamentação, pois que este vício só pode derivar do texto da decisão.
Quanto ao erro notório na apreciação da prova, deve ser entendido como aquele que não escapa à normal observação da generalidade das pessoas, isto é, como um erro que, pela sua evidência, não pode passar despercebido ao comum dos cidadãos.
Ora, tal erro só deverá ter-se por verificado quando se dá como assente um determinado facto, com base em juízos ilógicos, contraditórios e arbitrários, por isso violadores das regras da experiência comum.
A verdade porém é que, agitando tal erro na sua motivação, não o faz o recorrente com base em outro alicerce que não seja o da sua discordância com o tribunal sobre a apreciação da prova por este feita, designadamente comentando o significado de diligências realizadas ou a validade de depoimentos prestados.
Desta arte, há que haver também como desprovida de fundamento a invocação do dito vício, pois que, neste domínio e como expresso já se deixou, tem de impor-se o princípio da livre convicção de quem julga e impor-se soberanamente.
A esta irrazoabilidade terá de adjuvar-se, para além da tímida argumentação aduzida pelo recorrente em prol da alegada existência dos vícios que apontou, a circunstância de nem sequer ter impetrado, como derivante primacial que é da verificação dos mesmos vícios, a anulação do julgado e o reenvio do processo para novo julgamento (artigo 426, do Código de Processo Penal).
Quer dizer:
No que toca a este aspecto, não só fraquejou o recorrente na elaboração das premissas, como nem sequer se aventurou à conclusão.
Podemos, portanto, afoitamente, ter como assente a realidade factológica delineada pelo Colectivo e passar, de imediato, a encarar as demais facetas do recurso.
Perante os factos que entendeu como provados, o tribunal a quo considerou o arguido e recorrente B - para além do crime de burla que igualmente entendeu assacar-lhe - incurso na prática de um crime de
falsificação previsto no artigo 256 ns. 1 e 4 do Código Penal revisto, o que, como se expressou no aresto recorrido "afasta a punição pelo imputado crime de abuso de poder, dado haver um concurso aparente de infracções, como expressamente resulta do disposto na parte final do referido artigo 26 da Lei 34/87...".
Logo sequentemente porém, decidiu o tribunal colectivo:
"Nos termos do artigo 29 da referida Lei 34/87, de 16 de Julho, decreta-se a perda de mandato do arguido B como Presidente da Câmara Municipal de ....".
Contra este decisório se insurge o recorrente, da forma que se passa a transcrever:
"21- O recorrente... terá praticado um crime de abuso de poderes, previsto e punido no artigo 26 da Lei n. 34/87 e, por determinação do artigo 29... terá perdido o seu mandato como presidente da Câmara.
22- No entanto, torna-se claro que o recorrente não veio a ser condenado pela prática de um crime de abuso de poderes, uma vez que pena mais grave lhe cabia, em virtude da sua condenação por um crime de falsificação de documento.
23- Ora, o artigo 29 do citado diploma, tal como nele consta expressamente, apenas acarreta a perda de mandato, se o membro do órgão representativo de autarquia local - alínea f) -, for condenado pela prática de crime de responsabilidade; o que incontroversamente não sucedeu no presente caso.
24- Ao ter concretamente aplicado uma interpretação diversa da vinda de relatar, por forma a penalizar duas vezes (pena correspondente ao crime de falsificação de documento mais pena acessória pela prática de crime de abuso de poderes) o tribunal a quo, contradisse-se, inclusivamente, com a justa afirmação de que estaríamos perante um concurso aparente de infracções, o que afastou a punição (condenação) pela prática do crime de abuso de poderes.
25- A ser assim , o tribunal violou, em primeiro lugar, os artigos 26 e 29 da Lei n. 34/87 e, bem assim, o artigo 2, do Código de Processo Penal - princípio da legalidade". (cfr. folhas 470-471).
Dispõe o artigo 26 da Lei n. 34/87, no seu n. 1:
"O titular de cargo político que abusar dos poderes ou violar os deveres inerentes às suas funções, com a intenção de obter, para si ou para terceiros, um benefício ilegítimo ou de causar um prejuízo a outrém, será punido com prisão de seis meses a três anos ou multa de 50 a 100 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal".
Ora, ao crime de falsificação de documento imputado ao recorrente cabe, em abstracto, a pena de prisão de 1 a 5 anos (n. 4 do artigo 256, do Código Penal revisto).
Dispõe, por ou tro lado, o n. 1 do artigo 30, do Código Penal revisto (e identicamente preceituava o n. 1 do artigo 30, do Código Penal de 82) que:
"O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o respectivo tipo de crime foi preenchido pela conduta do agente".
Suporta, todavia, este comando, duas restrições: os casos de crime continuado e de concurso aparente de infracções, sendo neste último que importa agora atentar.
Sabido é que o aludido concurso aparente pressupõe que sobre a mesma situação possa convergir mais do que uma norma, verificando-se entre elas uma relação de especialidade, de subsidariedade ou de consumpção: uma delas prevalecerá então sobre a outra (ou sobre as outras) e exclui-la-á (ou exclui-las-á).
In casu, o Colectivo utilizou o esquema de concurso aparente, perante o textuado na parte final do n. 1 do artigo 26, da Lei n. 34/87, fazendo consumir o crime de abuso de poderes, previsto nesse normativo e que individualizado fora no libelo causatório (cfr. folha 251) pelo de falsificação (o do artigo 256 ns. 1 e 4, do Código Penal revisto mas não deixando de aplicar, apesar de tal consumpção, o efeito comin ado no artigo 29 da referenciada Lei ou seja o que implica a perda do respectivo mandato para os titulares de cargo político (na hipótese "sub judice", membro de órgão representativo de autarquia local - cfr. alínea i) do artigo 3 e alínea f) do citado artigo 29) condenados definitivamente por crime de responsabilidade cometido no exercício das suas funções.
Assistirá, então, razão ao recorrente naquilo que a este respeito e como antes vimos, defende?
Pensamos que não.
Em geral, não pode ser esquecido que o mecanismo do concurso aparente não branqueia nem elimina a tonalidade delituosa própria do tipo penal consumido.
O que se entende é que basta a formulação de um juízo de censura único, não dissociado embora, na sua essência, dos que parcelarmente mereciam as infracções participantes - as consumptoras e as consumidas - mas mitigados estes pela própria circunstância da sua aglutinação naquele sobredito juízo único.
Logo isto infirmaria o modo de ver do recorrente que, aliás, se seguido à risca, desembocaria na insólita situação consistente em o autor de um qualquer dos crimes previstos na Lei n. 34/87, v.g., o de abuso de poderes, nunca poder fugir ao efeito estabelecido no artigo 29 da dita Lei, se tal ilícito fosse isolada e autonomamente considerado mas já ao mesmo efeito se assumiria, se tal ilícito fosse consumido por outro de dimensão penal mais grave mas cuja punição não comportasse esse efeito.
A verdade é que semelhante condicionalismo nem sequer pode suceder.
Concretizemos:
Estipula o artigo 1, da lei n. 34/87:
"A presente lei determina os crimes da responsabilidade que titulares de cargos políticos cometam no exercício das suas funções, bem como as sanções que lhes são aplicáveis e os respectivos efeitos".
E prescreve o seu artigo 2:
"Consideram-se praticados por titulares de cargos políticos no exercício das sua funções, além dos como tais previstos na presente lei, os previstos na lei penal geral com referência expressa a esse exercício ou os que mostrem terem sido praticados com flagrante desvio ou abuso da função ou com grave violação dos inerentes deveres". Óbvio é, portanto, que a consumpção do crime de abuso de poderes pelo crime de falsificação de documento, tendo, embora, feito perder àquele, por via das regras do concurso aparente, a sua autónoma individualidade, não precludiu, contudo, a aplicação do efeito estabelecido no artigo 29 e isto precisamente porque o ilícito consumptor participa dos condimentos albergados na definição genérica do artigo 2, designadamente quando ali se alude aos "previstos na lei penal geral com referência expressa a esse exercício ou os que mostrem terem sido praticados com flagrante desvio ou abuso da função ou com grave violação dos inerentes deveres".
Aliás, a "ratio" fundamental que subjaz à Lei n. 34/87,
é a de preservar o exercício de funções em cargos políticos de tudo o que possa comprometer e macular a limpidez, transparência e dignidade que é desejável que acompanhem esse exercício e o risco dessas dignidades, transparência e limpidez serem atingidas pode advir, não só da comissão dos ilícitos expressamente contemplados no diploma - como é o caso do artigo 26 - mas, igualmente, da prática dos previstos na lei penal geral, nos moldes definidos no mencionado artigo 2.
De tudo resulta que a consumpção imposta pela parte final do n. 1 do artigo 26, da Lei n. 34/87 é feita em função do crime que se insira na definição genérica traçada no artigo 2 daquela Lei e os ilícitos ali aludidos são, eles próprios, face aos termos em que ali se definem e ainda que previstos na lei penal geral, crimes de responsabilidade de titulares de cargos políticos, com os efeitos penais que, para estes crimes, são estabelecidos e que da condenação por eles decorram (artigos 28 a 31).
Não se nos antolha, pois, como possível, sufragar, também nesta vertente, o modo de ver do ora recorrente.
Mas será de apontar o vício da inconstitucionalidade ao artigo 29, da Lei n. 34/87, incompatível o considerando com o mandamento do artigo 30 n. 4, da Lei Fundamental, se aplicado da forma como o foi neste processo?
É o que veremos de seguida.
Ao dispor sobre os limites das penas e das medidas de segurança estatui o artigo 30 n. 4, da Constituição da República que "nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos".
Acha-se esta norma da Lei Fundamental reproduzida no n. 1 do artigo 65, do Código Penal revisto (dispunha-se identicamente no Código Penal de 1982) e constava já do Projecto do Código Penal de 1963, da autoria do
Professor Eduardo Correia, em cujo artigo 76 (passado a 77, após a revisão ministerial) se prescrevia que "nenhuma pena implica automaticamente a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos".
Expendera também, pouco antes da promulgação do Código Penal de 82, o Professor Figueiredo Dias (Novos Rumos da Política Criminal e do Direito Penal Português do Futuro, página 34).
"Nenhuma pena deve envolver, como efeito necessário, a perda de direitos civis, profissionais ou políticos; eis uma implicação directa fundamental da tendência político-criminal ora em explicitação. Implicação tão profundamente radicada no moderno pensamento português que, no momento presente, se sugere que fique inscrita de forma terminante no texto constitucional em revisão na Assembleia da República. Uma tal sugestão é fruto indiscutível da consagração do princípio no Projecto do
Código Penal, que dele retira aliás todas as suas consequências. Assim, mesmo a pena de demissão de funcionário ocorrerá não como efeito automático da prática de qualquer crime, mas só quando tiver havido lugar a grave abuso da função ou a grave violação dos deveres inerentes; ou ainda quando o funcionário se revelar incapaz ou indigno de exercer o cargo, ou tiver perdido a confiança geral necessária ao exercício da função...".
Conhecem-se, de resto, as linhas gerais de pensamento que fundamenta esta posição; os chamados efeitos necessários ou automáticos das penas representam um obstáculo à realização de um dos fins essenciais das mesmas penas: o da ressocialização do agente delituoso (cfr. as tomadas de posição do autor do Projecto e, também, do Professor Ferrer Correia, na 25. Secção da Comissão Revisora, de 2 de Abril de 1965) e, ainda e sobretudo, o carácter infamante e estigmatizante que tais efeitos inelutavelmente implicam (cfr. Professor Eduardo Correia, "as grandes linhas da reforma penal, Jornadas de Direito Criminal", página 29 e Professor Figueiredo Dias, Os Novos Rumos da Política Criminal e o Direito Penal do Futuro, separata da Revista da Ordem dos Advogados, 1983, páginas 31 e 34).
E o pensamento que vimos de recordar, não deixou de estar relevantemente presente, aquando da aprovação pela Assembleia da República da norma do n. 4 do artigo 30 da Constituição, como bem se infere do que então disse um ilustre deputado: "a aprovação do n. 4 vem obviar algumas disposições, ainda hoje vigentes na nossa lei penal, de extraordinária violência, como eram as que envolviam como efeito necessário de certas penas, a perda de alguns direitos. Designadamente e como exemplo, lembro o caso de certas infracções criminais cometidas por funcionários públicos... que envolviam necessariamente e como efeito acessório a demissão" (cfr. Diário da A ssembleia da República, ISérie, de 11 de Junho de 1982, páginas 4176 e seguintes).
Diga-se, de resto, que toda esta concepção se tem projectado em diversos acórdãos do Tribunal Constitucional (cfr. v.g., ns. 16/84, 165/86 e 353/86,
Diário da República, respectivamente, II Série, de 12 de Maio de 1984, I Série, de 3 de Junho de 1986 e II Série, de 9 de Abril de 1987) neles se podendo ver sublinhado que "no fundo, o n. 4 do artigo 30 da Constituição deriva, em linha recta, dos primordiais princípios definidores da actuação do Estado de Direito democrático que estruturam a nossa Lei Fundamental ou sejam os princípios do respeito pela dignidade humana (artigo 1) e os do respeito e garantia dos direitos fundamentais (artigo 2)".
E como também justamente se enfoca "daí decorrem os grandes princípios constitucionais de política criminal, o princípio da culpa, o princípio da necessidade da pena ou das medidas de segurança, o princípio da legalidade e o da jurisdicionalidade da aplicação do direito penal, o princípio da humanidade e o princípio da igualdade".
O que tem de levar à conclusão de que "... se da aplicação da pena resultasse, como efeito necessário, a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos, far-se-ia tábua rasa daqueles princípios...".
Daí que se tenha como imperativo mandamento constitucional o de que a perda de direitos civis, profissionais e políticos deixou de poder ter lugar como efeito automático de determinadas penas, entendendo-se compreendidos no âmbito desta proibição constitucional, não só a perda desses direitos como efeito necessário de certas penas, mas também a sua perda automática por via da condenação por determinados crimes.
(cfr. Mário Torres, Suspensão e Demissão de funcionários ou agentes como efeito de Pronúncia ou Condenação Criminal, Revista do Ministério Público, ano 7, ns. 25 e 26, páginas 111 e 126, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, n. 284/89, Diário da República, II Série, de 12 de Junho de 1989, e de 30 de Junho de 1992, B.M.J., 418, página 452, com incidência específica sobre este ponto).
Ora, à luz do que acaba de exarar-se, não sofre dúvida que, no que tange à situação em apreço nestes autos (efeito cominado no artigo 29, da Lei n. 34/87, de 16 de Julho para a hipótese da sua alínea f)), o douto Colectivo desencadeou automaticamente sobre o arguido e ora recorrente o efeito da perda do seu mandato como Presidente da Câmara Municipal de ... ou seja, tão só e apenas, por o ter condenado pela prática de um crime de falsificação de documento previsto e punido pelo artigo 256 ns. 1 e 4, do Código Penal revisto, consumptor de um de abuso de poderes, previsto e punido pelo artigo 26 n. 1, da Lei n. 34/87 e pela de um crime de burla, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 217 ns. 1 e 4, 206 e 73, do Código Penal revisto e artigo 5 daquela referenciada Lei.
Dúvida não se perfila também, quanto a que o legislador da Lei n. 34/87 foi pouco feliz na redacção que imprimiu aos dispositivos referentes aos efeitos das penas (artigos 28 a 31) impondo-os, sem quaisquer "nuances" ou opções, o que, inclusive - e será até isto o mais intolerável - conduziria, a obedecer-se rigidamente à literalidade dos seus termos, a uma limitação inadmissível do âmbito de apreciação do tribunal no importante e sempre delicado aspecto da determinação e fixação da medida da pena e da atribuição dos efeitos desta, o que justifica que se pudesse dizer como um conhecido actor de cinema (Groucho Marx) disse, com caustica ironia: "faça-se um julgamento justo do réu e condene-se este".
E, todavia, fácil teria sido ao mesmo legislador superar as dúvidas que ora se adensem sobre a inconstitucionalidade daquelas normas, inserindo na redacção que aos seus textos conferiu, tonalidades optativas como, v.g., no caso específico que se encontra em causa (artigo 29, da Lei n. 34/87) a que assim se traduzisse: "Poderá implicar a perda do respectivo mandato" em vez da que lá está "implica a perda do respectivo mandato...".
Mais fácil ainda, se se pensar que o próprio diploma contem dispositivos que incluem a ideia e a necessidade de se estabelecerem graduações na ilicitude dos ilícitos previstos e na culpa dos seus autores, como sejam os do artigo 2 - onde se alude o "flagrante desvio ou abuso da função" ou "grave violação dos inerentes deveres" - ou do artigo 6 - no qual, tendo em vista uma atenuação especial dos crimes de responsabilidade, se fala na eventualidade de ficar mostrado "que o bem ou valor sacrificados o foram para salvaguarda de outros constitucionalmente relevantes" e onde se alude a ser "diminuto o grau de responsabilidade funcional do agente".
O certo porém é que, nem mesmo nas hipóteses em que devesse incidir a atenuação especial, a interpretação literal dos artigos 28 a 31 da Lei n. 34/87 autorizaria a inaplicação dos efeitos que naqueles se cominam, desde que ocorresse, mesmo com aquela atenuação, uma condenação definitiva por crime de responsabilidade cometido por titular de cargo político no exercício das suas funções.
Mas a verdade é que neste não atentou o legislador e, não havendo atentado, caberá ao julgador substituir-se-lhe no que aquele não normativizou, reconduzindo os mencionados preceitos, através de ajuizada ponderação interpretativa, aos domínios da constitucionalidade, sem o que se recairá, inevitavelmente, em condicionalismos de evidente injustiça relativa como, por exemplo, sucederia no ficcionado exemplo de um Presidente da Câmara envolvido em graves crimes de responsabilidade de consequências danosas especialmente intensas e fortemente repercutíveis na comunidade social e no juízo que esta tem o direito de fazer sobre a adequação de tal autarca ao cargo e à função que exerce, em cotejo com outro que, em condicionalismo expressivamente atenuativo, praticou actos delituosos de responsabilidade ou, sendo estes de reduzida significação criminal, mas acabando por terem de suportar, um e outro, no quadro de um visionamento rígido e literal da lei, o mesmíssimo efeito.
Não pode ser.
Há que convir então que, das duas uma: ou se adita a tais preceitos uma coloração que permita que se lhes salve a face da inconstitucionalidade logo pressentida na sua redacção ou não se faz tal aditamento e os mesmos preceitos ficam em vias de tombar no abismo dessa inconstitucionalidade.
Por isso é que, como avisadamente observa Maia Gonçalves "Por exigências do princípio do contraditório e das garantias da defesa em processo penal e ainda de precaução contra uma eventual declaração de inconstitucionalidade... impõe-se que na acusação e na pronúncia sejam incluídos factos que preencham o condicionalismo de alguma ou de algumas das alíneas do n. 1, sempre que se entenda que deve ser decretada proibição do exercício de função, profissão ou actividade. Se assim se fizer contornar-se-á uma eventual inconstitucionalidade do n. 2 do artigo 65, questão que ficou referida em anot. ao artigo anterior"
(cfr. Código Penal Português anotado, 10. edição, 1996, em anotação ao artigo 66 mas com sintomáticos interesse e reflexo no caso em análise no presente processo).
Não se vislumbram terem sido usados, in casu, os remédios a que se refere o ilustre comentador da Lei Penal e que, de resto, os princípios que enunciámos, os entendimentos que recordámos e os arestos do Tribunal Constitucional que citámos, igualmente inculcavam.
Na acusação ainda se consigna que "Ao subscrever a participação e ofícios que culminaram na atribuição da referida indemnização, o arguido B agiu em manifesto abuso dos poderes e deveres que lhe estavam confiados em função do cargo que desempenhava, designadamente o poder de representar o município e o dever de observar escrupulosamente as normas legais e regulamentares aplicáveis aos actos por si praticados"
(cfr. folha 250).
Mas esta referência não encontrou qualquer acolhimento expresso na matéria de facto que o douto Colectivo deu como provada e assente, nem em nenhum passo desse firmado enquadramento factológico, foi conferida expressão facticial àquela referência.
Tão pouco, na fundamentação do acórdão proferido e no respeitante ao recorrente, se encontra qualquer alusão a esta vertente, como nenhuma especificação se divisa como "ratio" da aplicação do efeito determinado (v. artigo 375, do Código de Processo Penal).
Tudo isto, torna inevitável a conclusão de que, efectivamente, o douto tribunal a quo se contentou com a condenação que decidiu aplicar ao arguido B para fazer recair sobre o mesmo arguido o efeito da perda do mandato deste como Presidente da Câmara Municipal que representava (artigo 29, da Lei n. 38/87 - alínea f)).
Desta sorte, a inconstitucionalidade de que se afigura padecer o preceito aplicado (quando confrontado com o comando do artigo 30, n. 4, da Constituição da República) não foi contornada com o socorro dos instrumentos e das receitas de que havia de lançar mão para esse escopo.
Assim sendo, por carência de alicerce provado e para tanto especialmente apto e adequado e havendo ele unicamente decorrido e sido aplicado, ope legis e automaticamente, não se legítima retirar da condenação aplicada ao arguido o efeito referido no artigo 29 da Lei n. 34/87 e que, portanto, não pode subsistir.
No tocante ao acervo punitivo desencadeado e dele eliminada aquela excrescência:
Não vem especificamente questionada no recurso a pena de 21 meses de prisão que foi aplicada (suspensa na sua execução pelo período de 4 anos) e que se obteve a partir das penas parcelares de 18 meses de prisão (relativa ao crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256 ns. 1 e 4, do Código Penal revisto) e de 7 meses de prisão (referente ao crime de burla previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 217 ns. 1 e 4, 206 e 73, do Código Penal revisto e artigo 5, da Lei n. 34/87); sempre se diga, contudo, que se tem por equilibrada e criteriosa dentro dos parâmetros legais que necessariamente a informaram (artigos 72, 73, 77 ns. 1 e 2 e 206 n. 1, do Código Penal) e em função da culpa do arguido e das exigências da prevenção na sua dupla faceta de geral e especial.
A ilicitude dos factos não é diminuta, nem o dolo pouco intenso mas o condicionalismo envolvente dos mesmos factos não aponta para que deles se tenha uma visão totalmente negativa, antes se permitindo introduzir-lhe a componente favorável (embora não branqueadora) de se haver buscado auxiliar outrem.
Os seus antecedentes criminais (cfr. folha 117) aconselham o arguido a pautar a sua conduta futura pela conformidade aos valores jurídicos, pois que lhe não é lícito esperar uma persistente benevolência, se outras infracções vier eventualmente a praticar, benevolência essa que, então, a repetir-se, poderia ser crismada de permissividade.
Os elementos relativos à personalidade do arguido e recorrente não são inequívocos: uns são-lhe favoráveis, outros não e, uns e outros, demasiado subjectivos para se assumirem como relevantes.
De todo o modo, não se vislumbram razões de peso para colocar em dúvida a prognose favorável feita em obediência aos pressupostos definidos no artigo 50 n. 1, do Código Penal e que, de resto, é intocável (cfr. artigo 409 n. 1, do Código de Processo Penal).
A verdade porém, é que o recorrente questiona a condição de que se fez depender a suspensão da execução da pena aplicada: pagamento da importância de 1000000 escudos à Santa Casa da Misericórdia de Vila Verde, a comprovar em 60 dias.
E questiona-a por a achar exorbitante.
Tem o tribunal toda a liberdade para estabelecer este tipo de deveres (artigos 50 n. 2 e 51 n. 1, alínea c), do Código Penal); não cabe, em princípio, a este Supremo Tribunal, situado fora da imediação que os determinou, discuti-los, tanto mais que a pretensa exorbitância sempre pode ser colmatada ao abrigo do disposto no n. 2 do artigo 51, do Código Penal e tendo em conta o n. 3 do mesmo preceito.
In casu, apenas se nos afigura que o prazo fixado para ser demonstrada a efectivação do pagamento imposto (60 dias) é demasiado exíguo face ao montante fixado (mil contos): alargar esse prazo para 6 meses encontra, por isso, justificação e, até, talvez melhor sirva à instituição beneficiada.
Uma última nota:
A condenação do arguido determinou, no critério definido pelo tribunal a quo, a perda do mandato daquele como Presidente da Câmara Municipal de ... .
O mesmo tribunal decidiu-se pela suspensão da execução da pena de prisão aplicada (21 meses) mas não estendeu tal suspensão ao efeito da perda do mandato que decretou.
Tem-se esta solução como estruturalmente incompatível com a suspensão da pena principal, pois que a suspensão da execução de uma pena não pode ser cindida, devendo antes abranger a pena em toda a sua globalidade.
Aliás, as penas acessórias não podem deixar de acompanhar a sorte e o destino das penas principais.
Além disso, a perda do mandato como efeito da pena aplicada não poderia, por sua própria natureza ficar suspensa, pois que tal perda logo por si implica a cessação definitiva e imediata do vinculo que ligava o arguido ao cargo político que vinha exercendo.
Daqui decorre que tendo sido aplicada ao ora recorrente uma pena (principal) que ficou suspensa na sua execução, não poderia deixar de se fazer estender essa suspensão ao efeito penal acessório resultante da aplicação daquela primeira, sendo porém certo que tal efeito sempre seria incompatível com o instituto da suspensão da pena.
Por estas razões, não poderia manter-se o decidido, desajustado ele à regras vindas de enunciar.
De todo o modo, esta questão perdeu interesse perante o entendimento antecedentemente assumido quanto a não se possibilitar o desencadeamento do efeito penal da perda do mandato, por ausência de factores que o determinassem sem ser por via automática ou por exclusiva decorrência legal como foi.
Desta sorte e pelos expostos fundamentos, decide-se a) Conceder provimento parcial ao recurso interposto pelo arguido B, revogando-se, consequentemente, o acórdão recorrido, na parte em que, por força da condenação aplicada, decretou a perda do mandato exercido por aquele arguido como Presidente da Câmara Municipal de ...; b) Alterar o mesmo acórdão, na parte em que condicionou a suspensão da execução da pena aplicada ao pagamento da quantia de 1000000 escudos à Santa Casa da Misericórdia de Vila Verde, elevando de 60 dias para 6 (seis) meses o prazo em que esse pagamento deve ser demonstrado nos autos; c) Confirmar, em tudo o demais, o doutamente decidido.
Satisfará o recorrente, por sucumbência parcial no recurso, 4 ucs de taxa de justiça, custas que couberem e procuradoria mínima.
Honorários: 7500 escudos (defensor nomeado ao arguido).Defensor do não recorrente e absolvidos: 7500 escudos (pelo cofres).
Lisboa, 27 de Janeiro de 1998
Oliveira Guimarães,
Sá Nogueira,
Costa Pereira,
Sousa Guedes.
Decisão Impugnada:
1) 1. Juízo do Tribunal de Círculo de Braga - 101/95.