Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06B1088
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERREIRA GIRÃO
Descritores: INCAPACIDADE PERMANENTE PARCIAL
ÓNUS DA ALEGAÇÃO
AMPLIAÇÃO DO PEDIDO
PERÍCIA
EXAME MÉDICO
Nº do Documento: SJ200605250010882
Data do Acordão: 05/25/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Sumário : I - A petição inicial pode ser completada, em termos fácticos, com a remissão para os documentos que a acompanham.
II - O mesmo sucede com a ampliação do pedido formulada depois da réplica e antes do encerramento da discussão em 1.ª instância, desde que a mesma se contenha - esteja implícita - no pedido inicial, ou seja, e utilizando os termos da lei, que (a requerida ampliação) seja o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo (art. 273.º, n.º 2, do CPC).
III - Logo, é de admitir a ampliação do pedido (formulada depois da réplica e antes do encerramento da discussão em 1.ª instância) fundada no conteúdo de um relatório pericial respeitante ao exame médico do autor - terminado nove anos depois da realização da primeira sessão de julgamento
-, o qual lhe evidenciou um conjunto de sequelas, naturalmente do seu desconhecimento aquando da propositura da acção, mas que indubitavelmente se encaixam e são consequência do pedido indemnizatório primitivo, quer na vertente dos danos não patrimoniais, quer na vertente dos danos patrimoniais decorrentes da IPP, que - face ao aludido e natural desconhecimento
- o autor teve o cuidado de, no articulado inicial, não qualificar e de quantificar num limite mínimo (não inferior a 30%). *

* Sumário elaborado pelo Relator.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


Com fundamento na culpa exclusiva do condutor segurado na ré, o autor AA vem pedir a condenação da Empresa-A, a pagar-lhe a indemnização de 6.220.000$00, com juros desde a citação e ainda o que vier a liquidar-se em execução de sentença pelos danos que sofreu no acidente de viação, ocorrido em 21/9/1990, quando, tripulando a sua mota na EN nº249, no sentido Sintra Lisboa, foi embater naquele veículo, que se encontrava parado na estrada, sem qualquer sinalização, de noite e com nevoeiro.
Além do mais, alegou o autor ter ficado «a sofrer duma incapacidade não inferior a 30%» para ressarcimento da qual pediu o montante de 2.500.000$00.
Pediu ainda:
--1.500.000$00 por danos morais;
--1.820.000$00 de perdas de retribuição, até à data da petição inicial;
--400.000$00 pela mota.
A ré contestou por impugnação.
Na fase da instrução procedeu-se a exame médico na pessoa do autor, exame que, tendo tido a primeira sessão em 2/4/1993, apenas viria a ser concluído, já com o julgamento designado, em 3/4/2002.
Em 13/5/2002, invocando o relatório deste exame médico, junto a fls.162/173, o autor veio requerer a ampliação do pedido no seguintes termos:
«O A. deduziu o seu pedido em 1992 (data da entrada da petição inicial:12/06/1992).
Sem que à altura tivesse sido realizado o respectivo exame médico, que só agora foi junto aos autos.
Atendendo a toda a matéria constante deste relatório que aqui se dá por integralmente reproduzido e ainda ao decorrer de dez anos que separam a propositura da acção e o respectivo julgamento, o que faz com que o pedido primitivo esteja completamente desajustado às circunstâncias ora referidas.
Assim:
a) O A. amplia o pedido de indemnização pela incapacidade permanente para a quantia de 20.000.000$00 correspondente a 99.759,58euros.
b) Pelos graves danos morais sofridos, o A. amplia o seu pedido para a quantia de 10.000.000$00 correspondente a 49.879,79euros.
c) Requer a aplicação de sanção pecuniária compulsória ao abrigo do disposto no art. 829º A do Cod. Civil.
O presente pedido é o desenvolvimento e consequência do pedido primitivo, pelo que, deve se recebido com todas as consequências legais, fixando à acção o valor de 36.220.000$00 correspondente a 180.664,60euros.».
Esta ampliação foi admitida, apesar da oposição da ré, que, por isso, agravou do respectivo despacho.
Realizado o julgamento - em que o quesito 24º sobre a incapacidade do autor, formulado tal qual a sua alegação supra transcrita, recebeu a resposta de «Provado apenas que na decorrência do acidente de que tratam os presentes autos, o arguido ficou com uma incapacidade genérica permanente de 20%» -- foi proferida sentença a julgar a acção parcialmente procedente, condenando a ré a pagar ao autor a quantia de 120.000euros, com juros moratórios, à taxa legal, desde a citação, e fixando uma sanção pecuniária compulsória de 5 euros diários.
A ré apelou da sentença e a Relação de Lisboa decidiu:
-- dar provimento parcial ao agravo acima referido, alterando o despacho que admitiu a ampliação do pedido sem qualquer restrição, no sentido de tal ampliação apenas ser admitida enquanto limitada à actualização da expressão pecuniária do valor do pedido formulado na petição inicial;
-- julgar parcialmente procedente a apelação, alterando o primeiro parágrafo da decisão no sentido de fixar no montante em euros equivalente a Esc.6.220.000$00 a quantia que a ré fica condenada a pagar ao autor e mantendo em tudo o mais o decidido.
Inconformado, veio o autor interpor o presente recurso de revista e, na sua extensíssima alegação a culminar com XXVIII prolixas conclusões, além de pedir a revogação do acórdão da Relação com a consequente repristinação integral da sentença da 1ª Instância, começa por pôr em crise a decisão na parte em que restringiu à erosão monetária a sua ampliação do pedido, defendendo que esta deve ser admitida na sua totalidade, pois que, ao contrário do que foi entendido no acórdão sob recurso, «o recorrente até concretizou os factos que consubstanciavam diferenças em relação ao conteúdo da p.i., tendo-o feito dando por integralmente reproduzido o relatório médico-legal junto aos autos a fls.162 e sgs.».

A seguradora recorrida não contra-alegou.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
E vamos começar, logicamente, pela questão processual da ampliação do pedido.

Como se disse, o acórdão considerou admissível o pedido de actualização indemnizatória fundado no simples decurso do tempo, articulado embora com a doutrina do acórdão uniformizador de jurisprudência nº4/2002, de 9/5, DR nº146 de 27/6/2002 de não cumulação dessa actualização com os juros moratórios.

Já quanto à ampliação fundada no conteúdo do relatório pericial lê-se, no acórdão, o seguinte:
«Tendo-se limitado a remeter para o conteúdo do relatório médico, sem qualquer concretização, o autor não cumpriu de forma adequada o seu ónus de alegação dos factos em que, nessa parte, assentava aquele pedido de ampliação. Ou seja, o pedido, em si mesmo, era admissível, se estivesse adequadamente fundamentado. Faltando-lhe a fundamentação, deveria ter sido recusado.
Conclui-se, assim, que a ampliação do pedido deduzida pelo autor nos termos já referidos era processualmente admissível enquanto limitada ao pedido de actualização dos montantes dos danos indicados na petição inicial, procedendo, assim, parcialmente as conclusões da agravante.».

Não concordamos com esta perspectiva dos Excelentíssimos Desembargadores por, salvo o devido respeito, pecar de excessivo e, por isso, inadmissível, rigor formal.

Na verdade, se tem sido entendimento jurisprudencial pacífico aceitar-se que a petição inicial seja completada, em termos fácticos, com a remissão para os documentos que a acompanham (prática corrente, por exemplo, nas acções de dívida fundadas em contas-correntes contabilísticas), não vemos razão impeditiva de tal entendimento se aplicar também ao caso em apreço.

O que releva para a admissibilidade da ampliação do pedido formulada depois da réplica e antes do encerramento da discussão em 1ª Instância é que a ampliação se contenha, esteja implícita no pedido inicial, ou seja, e utilizando os termos da lei, que (a requerida ampliação) seja o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo - cfr. nº2 do artigo 273 do Código de Processo Civil.

E ninguém põe em dúvida a verificação deste pressuposto no caso sub judice.

Na verdade, o recorrente determinou-se pela ampliação do pedido após a junção do relatório do exame médico à sua pessoa - terminado nove anos depois da realização da primeira sessão !!! -, o qual lhe evidenciou um conjunto de sequelas, naturalmente do seu desconhecimento quando propôs a acção, mas que indubitavelmente se encaixam e são consequência do pedido indemnizatório primitivo, quer na vertente dos danos não patrimoniais, quer na vertente dos danos patrimoniais decorrentes da incapacidade, que - face ao aludido e natural desconhecimento - o recorrente teve o cuidado de, no articulado inicial, não qualificar e de percentuar num limite mínimo (não inferior a 30%).

DECISÃO
Pelo exposto concede-se parcialmente a revista e, nos termos do nº2 do artigo 762º ex vi artigo 722º, nº2, ambos do Código de Processo Civil, revoga-se o acórdão recorrido para que a Relação proceda a novo julgamento, com os mesmos Juízes se possível, tendo em conta a ampliação do pedido na sua totalidade e não apenas na vertente da actualização indemnizatória pelo decurso do tempo.
Custas a final.

Lisboa, 25 de Maio de 2006

Ferreira Girão (Relator)
Bettencourt de Faria
Pereira da Silva