Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4425/20.7T8ALM-B.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: NUNO PINTO OLIVEIRA
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
DIREITOS DE PERSONALIDADE
DIREITO À IMAGEM
FUTEBOLISTA PROFISSIONAL
DIREITO AO NOME
UTILIZAÇÃO ABUSIVA
FACTO ILÍCITO
CAUSA DE PEDIR
DANO
RESIDÊNCIA HABITUAL
TRIBUNAIS PORTUGUESES
REGULAMENTO (UE) 1215/2012
PRINCÍPIO DA INTERPRETAÇÃO CONFORME O DIREITO EUROPEU
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes, nos termos do artigo 62.º, b), do CPC, para decidirem uma acção em que um jogador profissional de futebol que exerceu, predominantemente, a sua actividade em Portugal, pede uma indemnização pelos danos causados pela utilização, não consentida, do seu nome, imagem e características físicas e pessoais, nos videojogos FIFA, produzidos nos E.U.A. e divulgados por todo o mundo.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


Recorrente: Electronic Arts Inc.

Recorrido: AA

I. — RELATÓRIO

1. AA propõs a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra Electronic Arts Inc., com sede nos EUA, pedindo a condenação da Ré a entregar-lhe a quantia de 252.000,00 euros, a título de danos patrimoniais, e quantia não inferior a € 5.000,00, a título de danos não patrimoniais, pela utilização indevida da sua imagem e do seu nome.

2. Em despacho saneador, o Tribunal de 1.ª instância conheceu da excepção da incompetência internacional dos Tribunais Portugueses no despacho saneador, julgando-a improcedente.

3. Inconformada, a Ré Electronic Arts Inc.interpôs recurso de apelação.

4. O Autor AA contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

5. O Tribunal da Relação julgou o recurso improcedente, confirmando o despacho recorrido.

6. Inconformada, a Ré Electronic Arts Inc.interpôs recurso de revista.

7. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:

Em obediência ao artigoº 639.º do CPC, extraem-se, como resenha final, as conclusões subsequentes:

a) O presente recurso de revista impugna o acórdão do TRL de 23.11.2023, pelo qual se declarou a competência internacional do Juízo Central Cível de ... para tramitar esta ação, recurso admissível nos termos do art.º 629.º, n.º 2, alínea a) do CPC já que está em causa a infração de regras de competência internacional.

b) A ré considera a decisão ilegal, com base na violação de lei substantiva, processual e da própria Constituição da República Portuguesa, destacando-se, entre outros, as seguintes normas e princípios jurídicos:

–princípioda causalidade, princípioda coincidência, princípiode interpretaçãoautónoma dos Estados-Membros, princípio do Estado de Direito, princípio da proteção ou tutela da confiança, princípio da soberania, princípio da igualdade, princípio do processo equitativo e da igualdade das partes, princípio da tutela jurisdicional efetiva, princípio do dispositivo, princípio do contraditório, princípio do dever de obediência dos tribunais à lei, princípio da separação dos poderes e o princípio do primado do direito europeu;

– art.º 2.º, 8.º, 13.º, n.º 1, 20.º, n.º 4, 203.º e 204.º da Constituição da República Portuguesa;

– art.º 62.º do CPC;

– art.º 22.º e 38.º, n.º 1 da LOSJ;

– art.º 8.º, 9.º e 351.º do CC.

c) A apreciação da competência internacional é efetuada exclusivamente com base nos factos alegados na petição inicial, sem qualquer indagação probatória ou aplicação de presunções judiciais – art.º 38.º da LSOJ e, entre muitos outros, acórdão do TRE de 15.12.2016, Proc. n.º 1330/16.5T8FAR.E1; acórdão do TRG de 16.11.2020, Proc. n.º 114083/18.7YIPRT.G1.

d) Sucede que o acórdão em crise declarou a competência internacional sem qualquer fundamentação de facto, mas tão somente num raciocínio tautológico: o tribunal é competente porque é competente.

e) Depois de afirmar que o facto ilícito tem “potencialidades de ocorrência em todas as ordens jurídicas”, que “é suscetível de ocorrer num número indeterminado de ordens jurídicas e em proporção também indeterminada”, o TRL conclui por uma “preponderante conexão com o território português”, conclusão, no mínimo, sem apoio na indicação de factos concretos alegados na PI.

f) A causa de pedir deste pleito é a alegada violação do direito de imagem do autor, pela aposição não autorizada da sua imagem nos jogos FIFA, não devendo ser considerados outros factos que não a integrem, como seja a sua nacionalidade.

g) As vendas dos jogos FIFA não constituem conexão suficientemente relevante para se afirmar a competência internacional porque (i) não são imputadas à ré e (ii) não assumem nenhuma particularidade sobre todas as demais vendas noutros países.

h) A par deste erro de julgamento, dado que o acórdão do TRL não reverte a decisão da primeira instância, cumpre referir que é inaplicável o regulamento n.º 1215/2012, incluindo o seu art.º 7.º, n.º 2 porque este só abrange casos em que a entidade demandada tem sede num Estado-Membro e a ré tem sede nos EUA.

i) Ao abrigo do princípio interpretação autónoma dos Estados-Membros e dos seus órgãos jurisdicionais sobre o seu direito nacional, não há que convocar a jurisprudência do TJUE sobre diplomas europeus, para interpretar a lei portuguesa.

j) Incluir no critério da coincidência ou causalidade do art.º 62.º, respetivamente alíneas a) e b) do CPC, o centro do interesse do autor constitui violação manifesta das regras de interpretação jurídica e de normas e princípios constitucionais, como acima se detalhou e para onde se remete – reiterando-se o pedido de pronúncia expressa deste Tribunal.

k) O regime interno que define quais os fatores de atribuição da competência internacional tem de ser interpretado e aplicado de acordo com os critérios legais de interpretação das normas fixado no art.º 9.º do CC: elementos literal, teleológico, sistemático e histórico, sendo inconstitucional e ilegal qualquer interpretação contra ou praeter legem.

l) As fontes de direito português são as leis e diplomas equiparados (art.º 1.º do CC), em nada relevando a jurisprudência do TJUE sobre normas que não estão em causa, sob nenhuma forma, nestes autos.

m) A apreciação da competência internacional nestes autos deve ser dirimida exclusivamente à luz do art.º 62.º do CPC e critérios aí elencados, a saber:

– alínea a): critério da coincidência;

– alínea b): critério da causalidade; e

– alínea c): critério da necessidade.

n) Estes critérios devem ser ponderados à luz da factualidade constante da petição inicial, assumindo-a, para este efeito como verdadeira, e sem proceder a quaisquer indagações probatórias, destacando-se do elenco da petição inicial, a seguinte factualidade relevante:

(i) O autor é um jogador de futebol com domicílio no ...;

(ii) O autor representou clubes no ... e em Portugal;

(iii) A ré é uma sociedade norte-americana, com sede no Estado da Califórnia, nos Estados Unidos da América;

(iv) O autor refere que “…a conta com várias subsidiárias, entre as quais se destaca, na Europa, a EA Swiss Sàrl…” (artigo n.º 2 da petição inicial), o que mostra que a ré não atua em Portugal ou, sequer, na Europa;

(v) O ato ilícito que o autor imputa à ré consiste na utilização da sua imagem que ocorrerá aquando da produção dos jogos objeto dos presentes autos, sendo certo que em parte alguma da petição inicial, o autor afirma que a ré produz, em Portugal, os jogos FIFA;

(vi) De igual modo, o autor não afirma, em momento algum, que a ré vende, em Portugal, os jogos FIFA, chegando mesmo a reconhecer, quanto a versões antigas dos jogos que os mesmos são comercializados por terceiros e que estes assumem total responsabilidade por esses atos (artigos n.º 2 da petição inicial);

(vii) Ainda que assim não fosse – o que não se concede – o ato de venda dos jogos FIFA não é um ato ilícito ou, sequer, um ato gerador de danos para o autor;

(viii) Nenhum dano é alegado ou concretizado, pelo autor, na petição inicial, nem tampouco como ocorrendo em Portugal (tampouco sendo possível identificar o momento temporal da ocorrência dos danos hipoteticamente sofridos pelo autor).

o) Destes factos, verifica-se que:

nenhum facto territorialmente localizado em Portugal foi alegado pelo autor;

não se imputa à a prática de atos em Portugal;

não na petição inicial concretização de danos;

- não há na petição inicial nenhum facto que demonstre uma conexão pessoal relevante entre o autor e Portugal, para efeitos da demanda;

não alegação do momento e lugar do sofrimento desses danos;

não nenhum facto que preencha os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual;

não se invoca qualquer dificuldade na demanda da no local da sua sede.

p) De acordo com o critério da coincidência, o tribunal português será internacionalmente competente se esta ação pudesse ser proposta no nosso país, segundo as regras de competência territorial do CPC, valendo, nesta ação de responsabilidade civil extracontratual, a regra do art.º 71.º, n.º 2 do CPC: o tribunal competente é o do lugar onde o facto ocorreu.

q) O autor não imputa qualquer ato praticado pela ré em Portugal e afirma que a ré não tem atividade na Europa. Mais alega que é uma entidade terceira que comercializa e assume a responsabilidade pela venda dos jogos FIFA.

r) Os tribunais portugueses não são, desta forma, competentes ao abrigo da alínea a) do art.º 62.º.

s) Quanto ao fator de conexão previsto na alínea b) – critério da causalidade –, impunha-se ao autor alegar factos integradores da causa de pedir ocorridos nosso país.

t) Sucede que não há, em toda a petição inicial, um único facto alegado integrador da causa de pedir ocorrido em Portugal.

u) Não foi concretizado qualquer dano sofrido pelo autor, tampouco em território nacional, nem se indicando o momento em que tal se produziu.

v) Sem a alegação do “quando” e “onde” desse dano, é impossível afirmar que o dano ocorreu em Portugal para efeitos de atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses, na medida em que, na decisão de competência, o Tribunal se deve ater aos factos alegados pelo autor.

w) Não alegando o autor ondese encontrava quando sofreu danos, não compete aoTribunal efetuar qualquer análise jurídica para apurar o local da verificação dos danos.

x) O autor não alega que o putativo facto ilícito – produção dos jogos – ocorre em Portugal, não invoca qualquer dano que se tenha produzido em Portugal, nem alega nenhuma circunstância integradora dos restantes requisitos da responsabilidade civil localizada em Portugal.

y) O único facto alegado pelo autor como ocorrendo em Portugal consiste na venda dos jogos em todo o mundo, vendas que atribuiu a terceiros e não à ré, o que constitui uma competência exorbitante já que não é um fator que se distinga na nossa jurisdição sobre as demais, onde igualmente são comercializados os jogos FIFA.

z) A aquisição dos jogos FIFA em qualquer parte do mundo, comercializados por atos de terceiro, não permite justificar a declaração de competência internacional, desconsiderando cegamente a circunstância de a ré não produzir o jogo neste país e aqui não praticar aqui qualquer ato.

aa) A ser assim, o tribunal de qualquer local onde os jogos são vendidos seria internacionalmente competente, gerando um evidente conflito positivo de competência internacional,precisamente oque se visa evitar emhomenagemaoprincípiodasoberania dos Estados e à maior eficácia/proximidade da realização de julgamento.

bb) Acresce que não se pode inferir que o autor terá sofrido danos em Portugal, porque isso traduz o emprego de presunção judicial de factos, o que é vedado na apreciação da competência – art.º 38.º, n.º 1 LOSJ e art.º 351.º do CC.

cc) É igualmente proibido, à luz dos critérios de interpretação consagrados no direito português, utilizar conceitos jurisprudenciais do TJUE, sobre normas de regulamentos europeus inaplicáveis, nomeadamente o conceito de centro de interesses, com base no qual a primeira instância declarou a competência internacional dos tribunais portugueses (decisão que não foi revertida pelo TRL).

dd) Sendo a existência ou não dum centro de interesses, numa determinada jurisdição, uma conclusão jurídica que assenta em determinados factos, não se identificam na petição inicial quaisquer factos que permitam suportar a existência desse centro de interesses em território nacional.

ee) Em face da (i) ausência de alegação, na petição inicial, de atos praticados pela ré em território nacional, (ii) inaplicabilidade do centro de interesses e sua irrelevância para aplicação do art.º 62.º do CPC, (iii) não alegação de danos em Portugal e (iv) inexistência de qualquer ligação relevante do autor a Portugal para efeitos da demanda, inexistem elementos de conexão à luz do princípio da causalidade.

ff) Caso este Tribunal se pronuncie sobre o art.º 62.º, alínea c) do CPC – princípio da necessidade –, cumpre ressalvar que o autor não invocou que o direito que aqui peticiona não pudesse tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro.

gg) Não bastando, seguramente, ao autor ter nacionalidade ou domicílio português, para daí se reconhecer, em todos os seus futuros litígios, competência internacional aos nossos tribunais.

hh) O direito que o autor pretende fazer valer é amplamente reconhecido pelas várias jurisdições do mundo, sendo que da sua alegação na petição inicial não resulta qualquer concretização acerca do que seja a dificuldade objetiva que possa gerar uma limitação no exercício dos seus direitos.

ii) O autor chega a alegar factos na petição inicial que comprovam que os direitos que pretende exercer são reconhecidos na jurisdição norte-americana.

jj) Daí que não se verifiquem nenhum dos fatores de conexão estabelecidos no art.º 62.º do CPC e nãopossa ser mantida, por ser inconstitucional ainterpretaçãoe aplicaçãoda alínea b) pelas razões acima detalhadas, o que deve determinar a revogação do acórdão do TRL e a declaração da incompetência internacional dos tribunais portugueses.

kk) São inaplicáveis os conceitos relativos ao domicílio e centro de interesses do autor e, bem assim, quaisquer presunções judiciais ou factos que não estejam referidos na petição inicial e que não integrem a causa de pedir, sob pena de interpretação inconstitucional dos art.º 62.º do CPC, 38.º, n.º 1 da LOSJ e 351.º do CC, por violação nos termos detalhados nas alegações de recurso – aqui dados por reproduzidos e para os quais se remete –, entre outros, dos seguintes princípios:

– princípio do Estado de Direito (e seus subprincípios da legalidade, da proteção da confiança dos cidadãos e da certeza e da segurança jurídicas);

– princípio do processo equitativo (e subprincípios do dispositivo e do contraditório); – princípios da separação dos poderes e do dever de obediência à lei; e

– princípio do primado do direito europeu.

ll) Esta questão relativa à inconstitucionalidade da aplicação dos artigos 62.º do CPC, 38.º, n.º 1 da LOSJ e 351.º do CC e é suscitada para conhecimento expresso deste Supremo Tribunal, nos termos e para os efeitos dos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), 72.º, n.º 2 e 75.º-A, n.º 2, todas da Lei n.º 28/82 porque na interpretação abstrata da lei (e sua posterior concreta aplicação) do princípio da causalidade não cabe, por contrariar os princípios constitucionais acima elencados, o critério do centro de interesses, nem o emprego de factos presumidos, factos não alegados e factos que não integram a causa de pedir.

Nestes termos requer a V. Exas., face a tudo o que foi supra alegado, se dignem conceder provimento ao recurso, revogando a decisão sindicada e proferindo acórdão no sentido adrede pugnado.

8. O Autor contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

9. Como o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código do Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do Código do Processo Civil), a única questão a decidir, in casu, consiste em determinar se os tribunais portugueses são ou não competentes para apreciar e decidir o presente caso.

II. — FUNDAMENTAÇÃO

10. O artigo 59.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe Competência internacional, determina que,

“[s]em prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º

11. O Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial não é aplicável ao caso sub judice — em primeiro lugar, porque não está preenchida a regra do artigo 5.º, atendendo a que a Ré não tem o seu domicílio em nenhum dos Estados-membros da União Europeia e, em segundo lugar, porque não está preenchida nenhuma das excepções à regra do artigo 6.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012.

12. Excluída a aplicação do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, deve atender-se ao artigo 62.º do Código de Processo Civil:

Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:

a) Quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;

b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram;

c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.

13. O critério enunciado na alínea a) do artigo 62.º — critério da coincidência — convoca o artigo 71.º, n.º 2:

Se a ação se destinar a efetivar a responsabilidade civil baseada em facto ilícito ou fundada no risco, o tribunal competente é o correspondente ao lugar onde o facto ocorreu.

14. O problema está em que a aplicação do artigo 71.º, n.º 2, causa dificuldades desde que a acção ou omissão do lesante se dê em lugar diferente do dano — sobretudo, desde que os danos sejam dispersos, dando-se em lugares distintos.

15. Em complemento do critério da alínea a) do artigo 62.º — critério da coincidência —, deve convocar-se o critério da alínea b) — critério da causalidade —: os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando tenha sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram.

16. Ora, em acções com contornos semelhantes às do caso sub judice, o Supremo Tribunal de justiça tem considerado que o critério da causalidade se encontra preenchido sempre que o centro de interesses do lesado durante o período em que ocorrem os danos provocados pela violação esteja em Portugal 1.

17. O critério relevante para determinar se o centro de interesses do lesado durante o período em que ocorrem os danos provocados pela violação está ou não em Portugal encontra-se nos factos alegados na petição inicial.

18. Como se diz nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Setembro de 2022 — processo n.º 3239/20.9T8CBR-A.C1.S1 —, de 30 de Novembro de 2022 — processo n.º 2160/20.5T8PNF.P1.S1 — e de 19 de Janeiro de 2023 — processos n.º 1579/20.6T8PVZ.P1.S1 e n.º 17046/20.5T8LSB.L1.S1 —,

“em sede de aferição do pressuposto da competência do tribunal, […] cabe apenas ponderar os contornos factuais e jurídicos da pretensão deduzida na medida necessária para aferir do pressuposto da competência em causa”.

19. O Autor, agora Recorrido, AA apresenta como domicílio o município do ... e alega que jogou em clubes portugueses em oito das onze épocas da sua carreira de futebolista — cf. artigo 9.º da petição inicial.

20. Os factos alegados são suficientes para que se conclua que o Autor, agora Recorrido, AA exerceu predominantemente a sua actividade em clubes portugueses — logo, em Portugal — e que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para apreciarem e decidirem a presente acção.

21. Em termos em tudo semelhantes aos dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Maio de 2022 — processo n.º 3853/20.2T8BRG.G1.S1 —, de 7 de Junho de 2022 — processo n.º 24974/19.9T8LSB.L1.S1 —, de 7 de Junho de 2022 — processo n.º 4157/20.6T8STB.E1.S1 —, de 27 de Setembro de 2022 — processo n.º 637/20.1T8PRT.P1.S1 —, de 13 de Outubro de 2023 — processo n.º 1014/20.0T8PVZ.P1.S1 —, de 10 de Novembro de 2022 — processo n.º 1579/20.6T8PVZ.P1.S1 —, de 10 de Novembro de 2022 — processo n.º 17046/20.5T8LSB.L1.S1 —, de 15 de Dezembro de 2022 — processo n.º 3731/21.8T8BRG.G1-A.S1 —, de 10 de Janeiro de 2023 — processo n.º 996/21.9T8PVZ.P1.S1 —, de 14 de Fevereiro de 2023 — processo n.º 3803/20.6T8BRG.G1-A.S1 —, de 15 de Fevereiro de 2023 — processo n.º 4239/20.4T8STB.E1.S1 —, de 25 de Maio de 2023 — processo n.º 3729/21.6T8BRG.G1-A.S1 —, de 30 de Maio de 2023 — processo n.º 4167/20.3T8LRA.C1.S1 — e de 16 de Novembro de 2023 — processo n.º 7962/21.2T8VNG.P1.S1 —, dir-se-á que

“Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes, nos termos do artigo 62.º, b), do CPC, para decidirem uma ação em que um jogador profissional de futebol que exerceu, predominantemente, a sua actividade em Portugal, pede uma indemnização pelos danos causados pela utilização, não consentida, do seu nome, imagem e caraterísticas físicas e pessoais, nos videojogos FIFA, produzidos nos E.U.A. e divulgados por todo o mundo” 2.

22. A Ré, agora Recorrente, alega que a conclusão de que o Autor, agora Recorrido, terá tido danos em Portugal “traduz o emprego de presunção judicial de factos”.

23. Como se diz nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Setembro de 2022 — processo n.º 3239/20.9T8CBR-A.C1.S1 —, de 30 de Novembro de 2022 — processo n.º 2160/20.5T8PNF.P1.S1 — e de 19 de Janeiro de 2023 — processos n.º 1579/20.6T8PVZ.P1.S1 e n.º 17046/20.5T8LSB.L1.S1 —, a conclusão em causa

“não implica o recurso a qualquer enquadramento factual senão aquele que foi alegado pelo autor e havia sido atendido pelas instâncias, nem recorreu a quaisquer juízos presuntivos para firmar os factos em que fundamenta a decisão”.

24. A Ré, agora Recorrente, alega ainda a inconstitucionalidade da interpretação do artigo 62.º do Código de Processo Civil assumida no acórdão recorrido, por duas razões:

I. — em primeiro lugar, por convocar conceitos relativos ao domicílio, ou de centro de interesses do Autor, agora Recorrido, irrelevantes para efeitos do artigo 62.º do Código de Processo Civil;

II. — em segundo lugar, por referir factos presumidos, não invocados na petição inicial.

25. Em resposta às alegações da Ré, agora Recorrente, dir-se-á tão-só o seguinte:

— em primeiro lugar, que nada na Constituição da República Portuguesa se opõe a que argumentos deduzidos do direito europeu sejam convocados para a interpretação de disposições de direito interno;

— em segundo lugar, que no acórdão recorrido não se referiu nenhum facto não invocado na petição inicial;

— em terceiro lugar, que no acórdão recorrido não se recorreu a nenhuma presunção para dar como provado algum facto invocado na petição inicial;

— em quarto lugar, que nada na Constituição da República Portuguesa se opõe a que a decisão sobre a competência internacional dos tribunais portugueses seja proferida atendendo aos factos invocados na petição inicial

26. Como, no acórdão recorrido, não se referiu nenhum facto não invocado na petição inicial e não se recorreu a nenhuma presunção para dar como provado algum facto invocado na petição inicial, o critério normativo cuja constitucionalidade se invoca não foi aplicado pelo Tribunal da Relação.

27. Em consequência, não há que conhecer da questão da inconstitucionalidade.

28. Em termos em tudo semelhantes aos do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 16 de Novembro de 2023 — processo n.º 7962/21.2T8VNG.P1.S1 —, dir-se-á que

[…] só haverá interesse processual em apreciar a questão de constitucionalidade suscitada quando o eventual julgamento de inconstitucionalidade for suscetível de se poder projetar ou repercutir na decisão recorrida, de modo a alterar ou modificar, no todo ou em parte, a solução jurídica que se obteve no caso concreto, implicando a respetiva reponderação […]. a utilidade do recurso de constitucionalidade encontra-se liminarmente afastada quando o critério normativo sindicado não coincide com o que foi aplicado pelo tribunal recorrido. Ora, é precisamente o que sucede no presente caso. As pretensas interpretações normativas aqui impugnadas não foram aplicadas no acórdão recorrido, tal como, desde logo, decorre dos fundamentos da resposta à questão anterior, onde ficou exarado que o acórdão recorrido se fundou exclusivamente em factos alegados pelo autor na petição inicial e rigorosamente discriminados […]. A orientação seguida no acórdão recorrido não foi a invocada pelo autor, que permitiria sustentar a competência internacional em presunções de facto, mas aquela, segundo a qual, a apreciação da competência internacional do tribunal se afere pelos termos em que o autor configura a relação material controvertida. É importante notar que não se verificou no acórdão recorrido qualquer juízo probatório, acompanhado da consequente fixação de quaisquer factos provados, mas tão-só a enumeração dos factos alegados que integraram a causa de pedir tal como foi delineada pelo autor. Avaliar da suficiência desta alegação e da sua veracidade probatória não compete aos tribunais nesta fase, em que está em causa unicamente a definição do tribunal competente, mas não o mérito da questão. Quem confunde ambas as vertentes é a recorrente na sua alegação de recurso de revista, não o acórdão recorrido e a jurisprudência que se tem pronunciado no sentido de reconhecer a competência internacional aos tribunais portugueses.

III. — DECISÃO

Face ao exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente Electronic Arts Inc.

Lisboa, 8 de Fevereiro de 2024

Nuno Manuel Pinto Oliveira (reltor)

Sousa Lameira

Ferreira Lopes

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1. Cf. acórdãos de 24 de Maio de 2022 — processo n.º 3853/20.2T8BRG.G1.S1 —, de 7 de Junho de 2022 — processo n.º 24974/19.9T8LSB.L1.S1 —, de 7 de Junho de 2022 — processo n.º 4157/20.6T8STB.E1.S1 —, de 23 de Junho de 2022 — processo n.º 3239/20.9T8CBR-A.C1.S1 —, de 27 de Setembro de 2022 — processo n.º 637/20.1T8PRT.P1.S1 —, de 29 de Setembro de 2022 — processo n.º 3239/20.9T8CBR-A.C1.S1 —, de 13 de Outubro de 2023 — processo n.º 1014/20.0T8PVZ.P1.S1 —, de 10 de Novembro de 2022 — processo n.º 1579/20.6T8PVZ.P1.S1 —, de 10 de Novembro de 2022 — processo n.º 17046/20.5T8LSB.L1.S1 —, de 30 de Novembro de 2022 — processo n.º 2160/20.5T8PNF.P1.S1 —, de 15 de Dezembro de 2022 — processo n.º 3731/21.8T8BRG.G1-A.S1 —, de 10 de Janeiro de 2023 — processo n.º 996/21.9T8PVZ.P1.S1 —, de 14 de Fevereiro de 2023 — processo n.º 3803/20.6T8BRG.G1-A.S1 —, de 15 de Fevereiro de 2023 — processo n.º 4239/20.4T8STB.E1.S1 —, de 25 de Maio de 2023 — processo n.º 3729/21.6T8BRG.G1-A.S1 —, de 30 de Maio de 2023 — processo n.º 4167/20.3T8LRA.C1.S1 — e de 16 de Novembro de 2023 — processo n.º 7962/21.2T8VNG.P1.S1.

2. Criticando os critérios adoptados pelo Supremo Tribunal de Justiça, Miguel Teixeira de Sousa, “Futebolistas, videojogos e competência internacional” (6 de Fevereiro de 2023), in: WWW: < https://blogippc.blogspot.com/2023/02/futebolistas-videojogos-e-competencia.html >.