Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
20/15.0PDOER.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA MENDES
Descritores: RECURSO PENAL
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
INTENÇÃO DE MATAR
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
IMAGEM GLOBAL DO FACTO
Data do Acordão: 04/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática:
DIREITO PENAL - FACTO / FORMAS DO CRIME - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PENAS / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES - CRIMES EM ESPECIAL - CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA.
Doutrina:
- Claus Roxin, Culpabilidad Y Prevención En Derecho Penal (tradução de Muñoz Conde – 1981), 96/98.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 22.º, 23.º, 50.º, N.º1, 40.º, N.º2, 71.º, N.º1, 131.º, 132.º, N.º 2, AL. E) E I).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 24.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 06.06.06, PUBLICADO NA CJ (STJ), XIV, II, 201 E OS ACÓRDÃOS ALI CITADOS.

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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

-DE 23/02/1983, NO B.M.J. 324.º- 620.
-DE 28/01/1997, PROFERIDO NO PROC. Nº 1015.
Sumário :

I - O STJ é competente para conhecer de um recurso de acórdão que condenou o arguido na pena de 6 anos de prisão, restrito à dosimetria da pena aplicada e no âmbito do qual o recorrente não põe em causa os factos dados por provados, concretamente, a intenção de matar, mas a nulidade decorrente da motivação apresentada pelo tribunal a quo para a conclusão a que chegou segundo a qual o recorrente pretendia matar o ofendido, arguindo-a de insuficiente, susceptível de conduzir a interpretações distintas, concretamente no que tange ao ânimo homicida, ânimo que, a seu ver, não é presumível a partir das circunstâncias do facto e da existência prévia de provocação, ou seja, do quadro factual que o tribunal deu por assente.
II - O elemento subjectivo do tipo legal de crime infere-se, por presunções naturais, dos factos materiais correspondentes à acção objectivamente considerada.
III - O facto de o arguido - após envolvimento em luta com a vítima, na qual esta lhe desferiu uma pancada com a cabeça que lhe partindo dois dentes da frente - ter ido à sua residência buscar duas facas, de ter atingido, o fígado e o rim direito da vítima, com violência suficiente para partir a faca que empunhava e, ainda assim, persistir os seus intentos, empunhando a segunda faca, apenas tendo cessado a sua actuação pela intervenção de terceiros, não pode deixar qualquer margem para dúvidas quanto ao ânimo homici­da do arguido, não ocorrendo deste modo a nulidade arguida pelo recorrente.
IV - A asserção feita pelo tribunal a quo de que a convicção a que chegou resulta com uma probabilidade próxima da certeza ou para além de toda a dúvida razoável não pode deixar de ser interpretada e entendida no contexto de todo e qualquer procedimento criminal, ou seja, sem esquecer as limitações próprias do processo penal, entre elas a que resulta do facto de a certeza do juízo judicial não corresponder à certeza cientifica.
V - Face às elevadas necessidades de prevenção geral; o dolo directo com que actuou; a acentuada ilicitude do facto, do qual resultou para o ofendido uma ferida inciso-perfurada no flanco direito, com cerca de 6 cm de comprimento e evisceração de uma pequena por­ção do cólon e uma ferida inciso-perfurada a nível da região escapular esquerda, hemor­ragia activa na espessura do músculo deltóide, tendo sido submetido a uma intervenção cirúrgica, (lesões que determinaram 20 dias de doença, 10 dos quais com incapacidade para o trabalho em geral); a idade do arguido (30 anos); as condenações anteriores (roubo, tráfico de menor gravidade, de resistência e coacção sobre funcionário, condução pe­rigosa de veículo rodoviário, injúria agravada, crimes de condução sem habilita­ção legal), tem-se por adequada a 6 anos de prisão, pela prática como autor material de um crime tentado de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131.º, 132.º, n.º 2, al. e) e i), 22.º e 23.º, do CP.
Decisão Texto Integral:

                                          *

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

No âmbito do processo comum com intervenção do tribunal colectivo supra referenciado da comarca de Lisboa-Oeste (J3 – 2ª Secção Criminal – Instância Central, Cascais), o arguido AA, com os sinais dos autos, foi condenado como autor material de um crime tentado de homicídio qualificado, previsto e punível pelos artigos 131º, 132º, n.º 2, alíneas e) e i), 22º e 23º, do Código Penal, na pena de 6 anos de prisão.

O arguido interpôs recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, sendo do seguinte teor o segmento conclusivo da respectiva motivação[1]:

I. Nulidades processuais:- Violação do art.° 374.° n.º 2 do CPP - Deficiente Fundamentação - Acórdão nulo. No caso "sub judice" essa motivação (que faz fls. 7 - 23 do recorrido acórdão) assenta quase exclusivamente nas afirmações prestadas em Tribunal pelo arguido. Que fundamentam pelo menos 15 parágrafos da "Motivação" do recorrido acórdão.

2.Todavia, em sede de imputação/valoração do dolo (itens 12 e 13 dos factos provados), o acórdão mostra-se, com o devido respeito, pouco claro e evasivo, fazendo tanto apelo às as chamadas "presunções naturais" ( fls. 11), quer às regras de experiência e de normalidade, para afirmar, que resulta "com um ''probabilidade próxima da certeza" que o arguido agiu com "ânimo homicida".

(fls. 12 do couto acórdão).

3.A motivação do acórdão é deveras insuficiente, prestando-se a várias interpretações e nada esclarecedora quer da objetividade dos factos, quer da existência de ânimo homicida por parte do arguido (pag.12- 1.º parágrafo). Ânimo esse que atentas as circunstâncias do facto e a pré-existência de provocação física por banda do ofendido, nunca se poderia presumir. Daí o recorrido acórdão ser nulo por aplicação do disposto no art.º 379.° n.º 1 do CPP em conjunção com a apontada violação do disposto no art.º 374.° n.º 2 do mesmo diploma adjetivo. (insuficiência de fundamentação e do exame crítico da prova).

4. Da medida da pena: Sem conceder quanto a todo o anteriormente alegado, a pena em si aplicada pela instância não deixa de ser excessiva, (de notar que praticamente toda a prova na audiência foi feita com a colaboração, relevante, do arguido, como a leitura do acórdão indica, uma vez que não existiram testemunhas presenciais ou se as houveram o Digno MP não as indicou nem solicitou que fossem inquiridas).

5.O arguido, face a todas as circunstâncias atenuantes resultantes da própria discussão da causa, não deveria ter sido condenado em pena superior a 4 anos de prisão, devendo ainda a mesma ter sido suspensa na sua execução, dada a ocasionalidade do sucedido e a provocação do ofendido, sendo esse o sentido de toda a matéria de facto considerada provada pela instância e atinente às condições pessoais do arguido, muito embora registe algumas condenações anteriores como resulta do seu CRC.

6.Várias atenuantes não foram consideradas no acórdão: O facto de o arguido se encontrar embriagado (havia bebido pelo mennos dois whiskies - item 2 da matéria de facto provada. E de ter vindo de assistir a um funeral de um amigo (ibidem). O facto de a discussão entre os dois ter sido iniciada pelo ofendido, sem qualquer motivo sério e apenas porque este (o ofendido) "pensava que o arguido estava a tecer considerações sobre a sua vida pessoal" (item 2 da matéria de facto) o que nem sequer se provo. O facto de o ofendido ter agredido com violência o arguido na face, partindo-lhe dois dentes que caíram no chão (item 4 da matéria de facto provada). O facto de o ofendido ter perdoado a conduta ao arguido "não lhe guardando rancor (item 15 da matéria de facto provada), o que parece incongruente com a tese (que fez vencimento no douto acórdão), de que o arguido queria "tirar a vida ao ofendido".

A pena de seis anos de prisão efetiva encontrada e aplicada no recorrido acórdão viola, "in casu" o do disposto no art.º 71.° 1 e 2 do Código Penal, pelo que deverá ser revogada e substituída por outra que, por mais acertada, condene o arguido em pena de prisão não superior a quatro anos e ainda assim suspensa na sua execução com regime de prova.

Na contra-motivação apresentada o Ministério Público formulou as seguintes conclusões:

1.

O acórdão "recorrido" não enferma da nulidade invocada (por não conter as menções referidas no n° 2 e na alínea b) do n° 3 do artigo 374°) prevista na alínea a) do nº 1 do artigo 379, ambos do CPP;

2.

O acórdão "recorrido" não enferma de qualquer contradição ou insuficiência;

3.

O dolo constitui matéria de facto na avaliação dos elementos típicos de uma norma incriminadora e infere-se dos factos objectivos provados;

4.

A pena aplicada revela-se adequada e proporcional e, por isso, justa.

5.

O acórdão agora em apreço não merece reparo e deverá ser mantido.

A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seguinte parecer:

O arguido AA foi julgado e condenado no J3 – 2ª Sec. Criminal – Inst. Central, Cascais, comarca de Lisboa-Oeste em 03.12.2014 por autoria de um crime de homicídio qualificado tentado (arts. 131º, nº 1 e 132º e) e i), 22º e 23º do CP) na pena de 6 anos de prisão.

O arguido recorre desta condenação para o Supremo Tribunal de Justiça, muito embora inicialmente comece por dizer que pretende o reexame da matéria de direito sobre a medida da pena, depois nas conclusões que delimitam o conhecimento do recurso, impugna matéria de facto questionando o meio probatório e insuficiência da fundamentação, sobre o “ânimo homicida” presumido e a medida da pena, considerando violados os arts. 374º, nº 2 e consequente nulidade do art. 379 nº 1 do CPP e 71º nºs 1 e 2 do CP.  

 O recorrente ao tentar impugnar o crime de homicídio quanto à existência do “ânimo homicida” está a questionar a matéria de facto dada como provada de onde resultou a intenção de matar que considera ter sido presumida.

Questão prévia:

Segundo nos parece o recurso do arguido AA não versa só apenas matéria de direito mas também abrange matéria de facto e para o Supremo Tribunal de Justiça um dos pressupostos de recorribilidade direta não se mostra preenchido tal como estão definidos na alínea c) do nº 1 do art. 432º do CPP, mostrando-se delimitada a competência em razão da hierarquia e por isso o acórdão da 1ª instância só deva ser recorrível para o Tribunal da Relação.

Tem sido entendido pelo Supremo Tribunal de Justiça em jurisprudência constante, que o recurso da matéria de facto, ainda que restrito à violação da intenção de matar tem de ser interposto para o tribunal da relação uma vez que o recurso para o STJ só pode abranger questões de direito (ex vi o Ac. do STJ de 22.04.2009, p. 303/06.0GEVFX.L1.S1, 3ª sec.).

            Assim parece-nos que será o Tribunal da Relação de Lisboa o competente para apreciar o recurso interposto pelo arguido AA, na sua totalidade (arts. 428º do CPP) por abranger matéria de facto e de direito (arts. 414º nº 8, 427º, 428º e 432º, nº 1, al. c) do CPP).

No exame preliminar relegou-se para conferência, por razões de celeridade e de economia processual, o conhecimento da questão suscitada pela Exma. Procuradora-Geral Adjunta relativa à eventual incompetência deste Supremo Tribunal para o conhecimento do recurso, por o seu âmbito não se circunscrever ao reexame da matéria de direito.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

                                         *

Delimitando o objecto do recurso verifica-se que o recorrente AA submete à apreciação deste Supremo Tribunal duas questões, a primeira relativa à nulidade do acórdão, a segunda respeitante à espécie e medida da pena imposta.

A Exma. Procuradora-Geral Adjunta, por sua vez, como já se deixou consignado, suscita questão atinente à eventual incompetência deste Supremo Tribunal para o conhecimento do recurso, com o fundamento de que aquele tem por objecto matéria de direito e matéria de facto, razão pela qual a competência para o conhecimento do recurso na sua totalidade cabe ao Tribunal da Relação.

Começando por apreciar a questão colocada pela Exma. Procuradora-Geral Adjunta, já que prévia, questão que se entrecruza com a suscitada pelo recorrente relativa à nulidade do acórdão, razão pela qual as iremos decidir em simultâneo, importa conhecer a decisão proferida sobre a matéria de facto, a qual, por isso, passaremos a transcrever:

«Factos provados relevantes

Discutida a causa, mostram-se provados os seguintes factos, sendo certo que aqui não interessa considerar as alegações conclusivas, de direito ou meramente probatórias, que deverão ser ponderadas em sede própria deste acórdão, nem as alegações manifestamente irrelevantes para a decisão.
1. No dia 14.01.2015, em hora não concretamente apurada, mas entre as 20h e as 21h30m, o arguido AA encontrava-se no interior de café localizado na ....
2. O arguido encontrava-se em tal local desde hora não concretamente apurada, mas situada entre as 17h e as 18 h, a consumir bebidas alcoólicas – pelo menos 2 whiskies – após ter assistido ao funeral de uma pessoa amiga.
3. Naquela mesma ocasião e local encontrava-se BB que, pensando que o arguido estava a tecer considerações sobre a sua vida pessoal o abordou, iniciando-se entre ambos uma discussão.
4. No decurso dessa discussão, o arguido e BB envolveram-se em luta, tendo este desferido, com a sua cabeça, uma pancada na cabeça de Simão Leal, partindo-lhe dois dentes da frente.
5. Com os dentes na mão, o arguido retirou-se do aludido café e deslocou-se à sua residência, sita naquela mesma avenida, por cima do estabelecimento e retirou da gaveta da cozinha duas facas, utilizadas para cortar carne e batatas, com pelo menos 7 cms de lâmina, que guardou nas calças e, de seguida, regressou ao café.
6. Quando o arguido regressou ao café, um homem que ali se encontrava, temendo que a contenda prosseguisse, pediu ao arguido que não abordasse BB, porém o arguido ignorou-o
7. Ao se aperceber da presença do arguido, BB atirou-lhe com pelo menos uma garrafa de cerveja, que não o atingiu e colocou-se em fuga-
8. Quando o arguido alcançou BB, espetou a lâmina da faca que empunhava no corpo daquele pelo menos por duas vezes, atingindo-lhe a região supraclavicular/clavicular esquerda e a região do flanco direito.
9. A conduta do arguido apenas cessou porque a lâmina da faca que utilizava se partiu tendo as pessoas que ali se encontravam presentes, cuja identidade se desconhece, impedido que, já com a segunda faca empunhada, continuasse a desferir golpes no corpo de BB
10. Para tanto, retiram-lhe da mão a segunda faca que empunhava, fazendo com que se golpeasse na mão direita.
11. Como consequência da conduta do arguido, BB sofreu uma ferida inciso-perfurada no flanco direito, com cerca de 6 cm de comprimento e evisceração de uma pequena porção do cólon e uma ferida inciso-perfurada a nível da região escapular esquerda, hemorragia activa na espessura do músculo deltóide, tendo sido submetido a uma intervenção cirúrgica, o que resultou em 20 dias de doença para Paulo Moreira, 10 dos quais com incapacidade para o trabalho em geral.
12. O arguido pretendia matar BB por este lhe ter partido dos dois dentes apenas não tendo conseguido os seus intentos por ter sido impedido pelas pessoas que ali se encontravam a assistir a contenda e porque aquele foi prontamente socorrido.
13. O arguido agiu voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
14. O arguido e BB eram amigos de infância.
15. BB não guarda rancor ao arguido pelos factos supra descritos.
Condições pessoais e antecedentes criminais do arguido
16. AA nasceu em Portugal, num agregado familiar de estatuto socioeconómico médio-baixo, constituído pelos seus progenitores de origem cabo-verdiana, pertencendo a uma fratria de quatro irmãos germanos, sendo o segundo filho dessa fratria.
17. Cresceu até aos 16 anos de idade num bairro clandestino em .... - altura em que o agregado foi realojado numa habitação camarária no ..., no concelho de ..., o que poderá ter propiciado a sua proximidade a pares desviantes.
18. O processo de desenvolvimento do arguido parece ter decorrido num ambiente familiar ajustado, pautado pela afectividade, procurando os progenitores transmitir os valores e as práticas sociais consonantes com a matriz social vigente, não existindo referências negativas a este agregado por parte das estruturas da comunidade.
19. O percurso escolar do arguido, iniciado em idade própria, decorreu com irregularidade a partir dos 13 anos de idade, altura em que integrou a ... para frequência de um curso de formação profissional no sector da mecânica com equivalência ao 8º ano de escolaridade.
20. Permaneceu no curso apenas durante um ano lectivo, findo o qual foi expulso.
21. AA frequentou com aproveitamento no ano de 2003 um Curso de Formação Profissional de Pintura de Automóveis no Centro de Formação Profissional da Reparação Automóvel (CEPRA), no ...., sem equivalência escolar.
22. Aos 11 anos de idade, foi vítima de uma grave queda.
23. Em termos profissionais, iniciou actividade na adolescência que interrompeu devido a problemas hepáticos, decorrentes do acidente referido.
24. Reiniciou na fase adulta actividade laboral que tem mantido com carácter irregular nos sectores da construção civil e na pintura automóvel.
25. A ocupação dos tempos livres era essencialmente dedicada à prática desportiva – futebol – a partir dos 12 anos de idade, tendo estado integrado como jogador federado no clube de futebol de ... onde se manteve cerca de três anos, altura em que foi obrigado a abandonar o clube devido a dificuldades na situação económica da família.
26. Manteve a partir dessa data a prática desportiva junto de outros jovens do bairro.
27. AA integrava à data dos factos o agregado de origem junto dos seus progenitores.
28. O pai, com 63 anos de idade, trabalhador da construção civil, a mãe, com 57 anos de idade, trabalhadora numa firma de limpezas, fazendo algumas horas diariamente devido à sua saúde débil, um irmão com 33 anos de idade, trabalhador da construção civil e outro irmão, desempregado, estando a subsistência da família assegurada pelos rendimentos decorrentes das actividades laborais desenvolvidas pelos diferentes membros da família.
29. O agregado reside numa habitação camarária no ....
30. A dinâmica familiar é descrita como positiva demonstrando a figura materna preocupação – que se estende aos restantes elementos do agregado.
31. Em termos profissionais, AA não apresenta qualquer vínculo contratual, desempenhando actividade com carácter pontual em biscates no sector da construção civil.
32. Perspectivando o futuro, manifesta a intenção de integrar o agregado dos seus progenitores. 
33. Desde que se encontra preso no Estabelecimento Prisional de ... tem um registo disciplinar por comportamento incorrecto em 21.03.2015, que resultou em repreensão escrita, denotando, com o passar do tempo, uma alteração no bom sentido, relativamente a esse tipo de comportamento.
34. Antes de ser detido, o arguido consumia diariamente cerca de € 5 de “haxixe”.
35. Encontra-se abstinente do consumo de produtos estupefacientes, bem como do consumo de bebidas alcoólicas.
36. Tem vindo a beneficiar de visitas, assíduas e regulares de todos os seus familiares, que o apoiam sem quaisquer restrições.
37. O impacto da sua situação jurídico-penal tem sido vivenciada pelos seus familiares com angústia, tristeza e ansiedade relativamente ao desfecho da mesma.
38. O arguido foi condenado por decisão transitada em julgado em 03.03.2006, pela prática em 26.07.2002, de um crime de roubo, numa pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos. A pena foi declarada extinta nos termos do disposto no artigo 57.º, nº 1 do Código Penal [PCS 535/02.0GEOER do 1.º Juízo Criminal de Oeiras].
39. O arguido foi condenado por decisão transitada em julgado em 30.06.2005, pela prática em 04.06.2005, de um crime de condução sem habilitação legal, numa pena de 60 dias de multa à razão diária de € 5. A pena foi declarada extinta pelo cumprimento. [PS 279/05.1GEOER do 1.º Juízo Criminal de Oeiras].
40. O arguido foi condenado por decisão transitada em julgado em 05.05.2006, pela prática em 16.12.2005, de um crime de condução sem habilitação legal, numa pena de 60 dias de multa à razão diária de € 5. A pena foi declarada extinta pelo cumprimento. [PS 596/05.0 GEOER do 2.º Juízo Criminal de Oeiras].
41. O arguido foi condenado por decisão transitada em julgado em 27.02.2007, pela prática em 11.08.2002, de um crime de roubo, numa pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos. [PCS 587/02.3 GEOER do 1.º Juízo Criminal de Oeiras].
42. O arguido foi condenado por decisão transitada em julgado em 12.05.2009, pela prática em 20.02.2008, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, numa pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano e na sanção acessória de proibição de condução de veículo rodoviário por 12 meses. A pena de prisão foi declarada extinta nos termos do disposto no artigo 57.º, nº 1 do Código Penal e a sanção acessória foi declarada extinta pelo cumprimento [PCS 12/08.6 PJCSC do 2.º Juízo Criminal de Oeiras].
43. O arguido foi condenado por decisão transitada em julgado em 16.05.2011, pela prática em 01.04.2008, de um crime de tráfico de quantidades diminutas ou de menor gravidade, numa pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova. A pena de prisão foi declarada extinta nos termos do disposto no artigo 57.º, nº 1 do Código Penal [PCS 45/08.2 PJOER do 1.º Juízo Criminal de Oeiras].
44. O arguido foi condenado por decisão transitada em julgado em 20.11.2013, pela prática em 16.12.2012, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário e de injúria agravada, na pena única de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período. [P. Ab. 585/12.9 PDOER do 2.º Juízo Criminal de Oeiras].
45. O arguido foi condenado por decisão transitada em julgado em 16.12.2013, pela prática em 06.01.2013, de um crime de injúria agravada, numa pena de 100 dias de multa à razão diária de € 5. A pena foi convertida em 66 dias de prisão subsidiária. [P. Ab. 6/13.0 PDOER da ILC de Oeiras – J3].

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Factos não provados relevantes

Não se provou, com relevo para a decisão da causa que:
a) As facas referidas em 5 tinham, concretamente, 9 cms de lâmina.
b) Na ocasião referida em 6., o arguido tenha exibido uma das facas a BB.
c) Na ocasião referida em 8., o arguido tenha agarrado BB antes de lhe espetar a faca e que o tenha feito, de cima para baixo.


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3. Motivação da decisão de facto:

A fixação dos factos provados e não provados teve por base a globalidade da prova produzida e a livre convicção que o Tribunal granjeou obter sobre a mesma.

A audiência de julgamento decorreu com o registo, em suporte digital, dos depoimentos e esclarecimentos nela prestados.

Tal circunstância que deve, também nesta fase do processo, revestir-se de utilidade, dispensa o relato detalhado dos depoimentos produzidos.

Todos os sujeitos processuais tiveram ampla oportunidade de discutir todos os documentos e exames periciais de que o Tribunal se serviu para fundar a sua convicção.

Assim, e no que se refere aos factos dados como provados em 1. e 2., consideraram-se declarações do arguido, que confirmou que, nas circunstâncias de tempo e lugar referidas, se encontrava no café em referência na sequência de ter vindo de um funeral.

O arguido esclareceu ainda o intervalo temporal aproximado desde o qual se encontrava em tal café, bem como a hora aproximada dos factos, em termos que se acolheram.

Da mesma forma, o arguido esclareceu que havia consumido whisky, bem como o número aproximado de bebidas que consumira, referindo que gastara aproximadamente 15 euros com as mesmas, pelo que se deu como provado que o mesmo consumira pelo menos 2 whiskies, por ser este o máximo seguro face ao declarado [o arguido referiu 2/3 bebidas].

Os factos concretizados pelo arguido afiguraram-se plausíveis, pelo que se acolheram, valendo nesta parte o disposto no artigo 358.º, nº 2 do Código de Processo Penal.

No que se refere aos factos dados como provados em 3. e 4., valeram as declarações do arguido, que descreveu as circunstâncias em que se envolveu num conflito com BB, na sequência do qual iniciaram uma luta e aquele lhe desferiu uma cabeçada, partindo-lhe dois dentes.

Estas declarações mostram-se consentâneas com o descrito pelo próprio BB, sendo certo que o facto de o arguido ter perdido dois dentes resulta, igualmente, da documentação clínica de fls. 127 e ss.

No que se refere aos factos descritos em 5., consideraram-se as declarações do arguido, que confirmou ter ido a casa buscar duas facas de cozinha, regressando em seguida ao café.

As características das facas apuraram-se com base nas declarações prestadas pelo arguido em sede de primeiro interrogatório de arguido detido [fls. 144 a 177], que se valoraram nos termos do disposto no artigo 141.º, nº4, al. b) do Código de Processo Penal.

Com efeito, e pese embora as declarações prestadas pelo arguido em julgamento se mostrem, no essencial, conformes às anteriormente prestadas pelo mesmo, em inquérito, verifica-se que àquela data o arguido, admite-se que, por ter a memória mais “fresca”, forneceu mais detalhes sobre os eventos do que fez em julgamento.

Assim, e no que se refere ao tipo de faca utilizado e respectivo comprimento, o arguido esclareceu que se tratavam de facas de cozinha, de “cortar carne e batatas”, com o comprimento entre 9 e 7 cms [fls. 157].

Tendo em conta os ferimentos apresentados por BB, concretamente, a profundidade aproximada dos ferimentos apurada no relatório de perícia médico-legal de fls. 325, acolheram-se as declarações do arguido quanto ao tipo de faca utilizado, bem como o comprimento máximo que o mesmo teve como seguro [donde dar-se como não provado o facto descrito em a) dos factos não provados].

O facto descrito em 6. apurou-se com base  nas declarações do arguido prestadas em sede de primeiro interrogatório de arguido detido, em que o arguido relatou tal evento de forma que se afigurou espontânea e que por isso se acolheu.

O arguido relatou, igualmente, os factos que se deram como provados em 7. e 8., os quais se mostram, no essencial, conformes com as declarações prestadas por BB, dando-se, ainda assim, prevalência ao declarado pelo arguido quanto ao momento em que BB lhe arremessou pelo menos uma garrafa, por se ter afigurado que este guardava uma memória mais nítida dos eventos do que BB.

No que concerne à agressão perpetrada, a mesma foi descrita nos termos que se deram como provados, pelo arguido, declarações que se conjugaram com o relatório de perícia médico-legal de fls. 325 e ss., bem como com as declarações de BB e que se mostraram coerentes com tais elementos.

No que se refere aos factos dados como provados em 9 e 10., conjugaram-se as declarações prestadas pelo arguido em sede de julgamento, com as prestadas em sede de primeiro interrogatório de arguido detido, altura em que, notoriamente, o arguido tinha uma memória mais nítida dos eventos.

A este propósito, teve-se ainda em conta a documentação clínica de fls. 212 e ss., da qual decorre a lesão sofrida pelo arguido na mão, em tudo consentânea com o facto de a faca que empunhava ter sido “arrancada” da mão do arguido por terceiros.

As consequências [em sentido naturalístico] da agressão perpetrada pelo arguido, resultaram apuradas do já mencionado relatório de perícia médico-legal, do qual resulta, igualmente, que a lesão sofrida provocou 20 dias de doença a BB, 10 dos quais com incapacidade o trabalho em geral [dando-se cumprimento, nesta parte, ao disposto no artigo 358.º, nº 1 do Código de Processo Penal].

A este propósito, deram-se como não provados os factos descritos em b) e c) dos factos não provados, por os mesmo terem sido negados pelo arguido e não ter sido produzida outra prova que os sustentasse.

No que se refere aos elementos psicológicos e volitivos imputados ao arguido [factos provados 12. e 13.], considerou-se o seguinte:

Quer em inquérito, quer em julgamento, o arguido referiu, em suma, não ter tido intenção de matar BB, pretendendo apenas vingar-se pelo facto de aquele lhe ter partido dois dentes, ferindo-o ou “marcando-o”.

Estas declarações, contudo, não lograram convencer o tribunal.

Com efeito, e como se referiu no Acórdão da Relação do Porto de 23.02.1983, [BMJ 324. Pág. 620] "dado que o dolo pertence à vida interior de cada um e é, portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode, de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência".

                Assim, o elemento subjectivo do tipo legal de crime infere-se, por presunções naturais, dos factos materiais correspondentes à acção objectivamente considerada.

 Também o Acórdão da mesma relação de 28/01/1997, proferido no Proc. nº 0001015[2] refere: "O apuramento da intenção do agente é, normalmente, uma conclusão que o tribunal pode e deve fazer a partir da avaliação da conduta do arguido, na medida em que seja uma consequência ou prolongamento dos factos a este imputáveis”.

                Dos factos objectivos constantes da acusação e que se deram como provados não decorre, com apoio em regras de experiência e de normalidade, que a intenção do arguido fosse meramente ferir ou “marcar” BB.

Com efeito, os factos objectivos apurados, designadamente, o facto de o arguido ter ido buscar duas facas, de ter atingido BB por duas vezes, uma das quais numa zona que aloja, para além do cólon atingido, o fígado e o rim direito, com violência suficiente para partir a faca que empunhava e, ainda assim, persistir os seus intentos, empunhando a segunda faca, apenas tendo cessado a sua actuação pela intervenção de terceiros, não pode deixar qualquer margem para dúvidas quanto ao ânimo homicida do arguido.

Ora, estes elementos, directamente comprovados, quando conjugados, coincidem na formulação de um resultado unívoco, permitindo inferir, com segurança, o resultado factual alcançado. Tal é a natural consequência, ou resulta com uma probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, do conjunto de dados expostos.

O facto de o arguido e BB serem amigos de infância, resultou das declarações concordantes de ambos, valendo nesta parte o disposto no artigo 358.º, nº 2 do Código de Processo Penal.

A circunstância de BB não guardar rancor pelo sucedido ao arguido, decorreu das declarações do mesmo, dando-se cumprimento, nesta parte, ao disposto no artigo 358.º, nº 1 do Código de Processo Penal.

As condições pessoais do arguido retiraram-se do respectivo relatório social junto a fls. 448 a 453, em que se confiou, pela metodologia evidenciada e fontes consultadas e que se conjugou com as declarações do arguido a este propósito. Não se consideraram as menções às ocorrências policiais em que o arguido estaria referenciado, nem os juízos de índole conclusiva que extravasam o âmbito de análise que se pretende seja realizada no relatório social.

Os antecedentes criminais registados do arguido apuraram-se com base no respectivo certificado de registo criminal junto a fls. 468 a 490».

                                                                     *

Entende a Exma. Procuradora-Geral Adjunta que o recorrente ao pôr em causa a motivação apresentada pelo tribunal a quo para a conclusão a que chegou, em sede de factos provados, segundo a qual o recorrente pretendia matar o BB, arguindo-a de insuficiente, susceptível de conduzir a interpretações distintas, concretamente no que tange ao ânimo homicida, ânimo que, na óptica do recorrente, não é presumível a partir das circunstâncias do facto e da existência prévia de provocação, ou seja, do quadro factual que o tribunal deu por assente, coloca necessariamente em crise a decisão de facto proferida no que concerne àquele específico facto, a significar que o recurso não versa apenas matéria de direito mas também abrange matéria de facto, ou seja, não se circunscreve ao reexame da matéria de direito

Daqui que emita parecer no sentido que será o Tribunal da Relação de Lisboa o competente para apreciar o recurso interposto pelo arguido AA  ex vi artigos 414º nº 8, 427º, 428º e 432º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Penal.

Certo é que o recorrente nas conclusões que formulou põe em causa a fundamentação do acórdão recorrido, arguindo-a de nulidade, por deficiente na parte em que enuncia as provas atinentes ao elemento de índole subjectiva (dolo) e procede ao seu exame crítico, alegando que o tribunal a quo se limitou a fazer apelo às regras da experiência e da normalidade, prestando-se a várias interpretações no que tange ao ânimo homicida, ao afirmar-se que o mesmo resulta “com uma probabilidade próxima da certeza”, quando é certo que, atentas as circunstâncias do facto e a pré-existência de provocação física por parte do ofendido, o ânimo homicida nunca se poderia presumir.

Apreciando, dir-se-á.

O recorrente, rigorosamente, não põe em causa os factos dados por provados, concretamente, a intenção de matar, como é entendimento da Exma. Procuradora-Geral Adjunta. O que o recorrente põe em causa é a motivação apresentada pelo tribunal a quo para a conclusão a que chegou segundo a qual o recorrente pretendia matar o BB, arguindo-a de insuficiente, susceptível de conduzir a interpretações distintas, concretamente no que tange ao ânimo homicida, ânimo que, a seu ver, não é presumível a partir das circunstâncias do facto e da existência prévia de provocação, ou seja, do quadro factual que o tribunal deu por assente.

Aliás, como claramente resulta do requerimento de interposição de recurso, o recorrente AA circunscreve a impugnação ao reexame da matéria de direito, tendo ali consignado:

«AA, arguido com os sinais dos autos, não se conformando com o douto acórdão condenatório, do mesmo vem interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, restrito à dosimetria da pena aplicada…».

Daqui que se considere improcedente a questão suscitada pela Exma. Procuradora-Geral Adjunta relativa à incompetência deste Supremo Tribunal para o conhecimento do recurso.

Relativamente à arguida nulidade do acórdão, por insuficiente fundamentação/motivação, cumpre ter presente o que o tribunal a quo consignou em sede de motivação da decisão de facto:

«No que se refere aos elementos psicológicos e volitivos imputados ao arguido [factos provados 12. e 13.], considerou-se o seguinte:

Quer em inquérito, quer em julgamento, o arguido referiu, em suma, não ter tido intenção de matar BB, pretendendo apenas vingar-se pelo facto de aquele lhe ter partido dois dentes, ferindo-o ou “marcando-o”.

Estas declarações, contudo, não lograram convencer o tribunal.

Com efeito, e como se referiu no Acórdão da Relação do Porto de 23.02.1983, [BMJ 324. Pág. 620] "dado que o dolo pertence à vida interior de cada um e é, portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode, de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência".

                Assim, o elemento subjectivo do tipo legal de crime infere-se, por presunções naturais, dos factos materiais correspondentes à acção objectivamente considerada.

Também o Acórdão da mesma relação de 28/01/1997, proferido no Proc. nº 0001015[3] refere: "O apuramento da intenção do agente é, normalmente, uma conclusão que o tribunal pode e deve fazer a partir da avaliação da conduta do arguido, na medida em que seja uma consequência ou prolongamento dos factos a este imputáveis”.

                Dos factos objectivos constantes da acusação e que se deram como provados não decorre, com apoio em regras de experiência e de normalidade, que a intenção do arguido fosse meramente ferir ou “marcar”BB.

Com efeito, os factos objectivos apurados, designadamente, o facto de o arguido ter ido buscar duas facas, de ter atingido BB por duas vezes, uma das quais numa zona que aloja, para além do cólon atingido, o fígado e o rim direito, com violência suficiente para partir a faca que empunhava e, ainda assim, persistir os seus intentos, empunhando a segunda faca, apenas tendo cessado a sua actuação pela intervenção de terceiros, não pode deixar qualquer margem para dúvidas quanto ao ânimo homicida do arguido.

Ora, estes elementos, directamente comprovados, quando conjugados, coincidem na formulação de um resultado unívoco, permitindo inferir, com segurança, o resultado factual alcançado. Tal é a natural consequência, ou resulta com uma probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, do conjunto de dados expostos».

Do texto transcrito resulta, ao contrário do alegado pelo recorrente, que a fundamentação/motivação apresentada pelo tribunal a quo a propósito do ânimo homicida (intenção de matar) se mostra racional, coerente e lógica, não permitindo distintas interpretações. Como ali se refere, o facto de o arguido ter ido buscar duas facas, de ter atingido, o fígado e o rim direito, com violência suficiente para partir a faca que empunhava e, ainda assim, persistir os seus intentos, empunhando a segunda faca, apenas tendo cessado a sua actuação pela intervenção de terceiros, não pode deixar qualquer margem para dúvidas quanto ao ânimo homicida do arguido.

Por outro lado, certo é que a asserção feita pelo tribunal a quo de que a convicção a que chegou resulta com uma probabilidade próxima da certeza ou para além de toda a dúvida razoável não pode deixar de ser interpretada e entendida no contexto de todo e qualquer procedimento criminal, ou seja, sem esquecer as limitações próprias do processo penal, entre elas a que resulta do facto de a certeza do juízo judicial não corresponder à certeza científica.

Há pois que considerar não ocorrer a nulidade arguida pelo recorrente AA.

                                        *

Passando ao conhecimento da questão atinente à dosimetria da pena, constata-se que o recorrente considera que a pena de 6 anos de prisão que lhe foi aplicada se mostra excessiva, devendo ser reduzida para 4 anos de prisão, com suspensão da sua execução, alegando, para tanto, que se encontrava embriagado, que os factos ocorreram na sequência de discussão iniciada pelo ofendido, o qual o agrediu violentamente, partindo-lhe dois dentes, para além de que o ofendido já lhe perdoou.

O tribunal recorrido fundamentou a pena imposta da seguinte forma:

                «Determinação e medida da pena:

O enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido assim efectuado, permite encontrar as molduras penais a partir das quais se estabelecerá a pena concreta, que deverá corresponder à culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes (artigo 71º do Código Penal).

O crime homicídio qualificado, previsto no artigo 132.º, nº1 do Código Penal é punido com pena de prisão de 12 [doze] a 25 [vinte e cinco] anos.

A pena em referência é especialmente atenuada, por força das disposições conjugadas dos artigos 23.º, nº 2 e 72.º, nº1, als. a) e b) do Código Penal.

A moldura penal é, assim, de 2 [dois] anos], 4 [quatro] meses e 24 [vinte e quatro] dias de prisão a 16 [dezasseis] anos e 8 [oito] meses de prisão.


*

Penas concretas

A pena concreta a aplicar será determinada, dentro da moldura referida, em função da culpa do agente enquanto limite máximo da punição, e ainda das exigências de prevenção, geral e especial, postas pelo caso em apreço – em cuja valoração se atenderá a todas as concretas circunstâncias que, no caso, não fazendo parte do tipo legal, deponham contra ou a favor do agente (art. 71º n.º 2 do CP).

Perfilhamos o entendimento de que o concurso de circunstâncias qualificativas do crime de homicídio deve ser ponderado na determinação da medida concreta da pena, isto é, qualificada a conduta com a mais grave circunstância e qualificando o crime, as outras circunstâncias devem ser tidas em conta na determinação da pena concreta nos termos gerais [neste sentido, Teresa Serra, Homicídio Qualificado tipo de Culpa e medida da pena pag 106 e seg. e Figueiredo Dias, Código Penal Conimbricense Tomo I pag 45].

Considerando que ambas as agravantes em apreciação têm igual gravidade, apenas será tida em consideração para efeito de determinação da medida concreta da pena, a circunstância a que alude a al. i) do artigo 132.º, nº 2 do Código Penal, já que a prevista na al. e) fundamenta já a agravação do crime:

Assim, ponderar-se-á:

a) o grau de ilicitude do facto, ou seja, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente: [releva, essencialmente, o modo como os factos foram praticados, pelas costas, à traição, o número de facadas desferidas e a zona corporal em que o foram; importa ainda considerar a gravidade concreta dos ferimentos provocados; o grau de violação dos deveres impostos é frontal, ponderando-se o facto de o arguido e BB serem amigos];

 - a intensidade do dolo ou negligência [o dolo foi directo e intenso ];

                c) os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram [o arguido actuou na sequência de uma contenda em que Paulo Moreira lhe desferiu uma cabeçada que lhe provocou a queda de dois dentes frontais, o que já se valorou para efeitos de agravação do crime];

 d) as condições pessoais do agente e a sua situação económica: [o arguido cresceu num contexto familiar ajustado e pautado por uma dinâmica familiar securizante, com forte afectividade entre todos os seus elementos, procurando as figuras parentais transmitir aos seus filhos os valores patentes na sociedade; não obstante, o arguido apresenta escasso desenvolvimento de competências formativas e/ou profissionais, resumindo-se a sua experiência profissional a “biscates” realizados na área da construção civil; a situação económica do agregado depende essencialmente da actividade dos progenitores e de um irmão do arguido; no estabelecimento prisional tem revelado uma evolução positiva no seu comportamento; beneficia de apoio familiar de rectaguarda].

e) a conduta anterior ao facto e posterior a este: [o arguido tem variados antecedentes criminais registados pela prática de crimes de roubo, condução sem habilitação legal, condução perigosa, tráfico de estupefacientes de menor gravidade, resistência e coacção e injúria agravada];

 f) a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena: nada de relevante se apurou a este propósito, mantendo-se a situação do arguido, sem alterações relevantes.

Do ponto de vista da prevenção geral positiva, pese embora as fortes necessidades provocadas por este tipo de crime, não deixará de se ter em conta que, aparentemente, as relações entre o arguido e Paulo Moreira se mostram pacificadas.

                Assim, tem-se por adequada a fixação da pena em 6 [seis] anos de prisão».


*

A pena é determinada, dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa do agente e das necessidades e exigências de prevenção – artigo 71º, n.º 1, do Código Penal.

A culpa como expressão da responsabilidade individual do agente pelo facto e como realidade da consciência social e moral, fundada na existência de liberdade de decisão do ser humano e na vinculação da pessoa aos valores juridicamente protegidos (dever de observância da norma jurídica), é o fundamento ético da pena e, como tal, seu limite inultrapassável – artigo 40º, n.º 2, do Código Penal[4].                                                                                                             

Dentro deste limite a pena é determinada dentro de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, só então entrando considerações de prevenção especial, pelo que dentro da moldura de prevenção geral de integração, a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.

No caso vertente estamos perante um crime tentado de homicídio qualificado, ilícito em que o bem jurídico tutelado é a vida humana, bem jurídico supremo do homem, que a Constituição da República declara inviolável – artigo 24º. Por isso e pese embora a imperfeição do facto, as necessidades de prevenção são muito elevadas.

O recorrente agiu com dolo directo ou de primeiro grau, consabido que quis causar a morte ao ofendido BB.

A ilicitude do facto é acentuada.

Em consequência o ofendido sofreu uma ferida inciso-perfurada no flanco direito, com cerca de 6 cm de comprimento e evisceração de uma pequena porção do cólon e uma ferida inciso-perfurada a nível da região escapular esquerda, hemorragia activa na espessura do músculo deltóide, tendo sido submetido a uma intervenção cirúrgica, lesões que determinaram 20 dias de doença, 10 dos quais com incapacidade para o trabalho em geral.

O recorrente tem 30 anos de idade.

À data dos factos vivia com os seus progenitores.

Exercia actividade profissional pontualmente em biscates, na construção civil.

Consumia diariamente cerca de € 5 de haxixe, porém, actualmente não consome produtos estupefacientes, nem bebidas alcoólicas.

É apoiado pela família, sem quaisquer restrições, que o visita assiduamente.

Foi condenado pela autoria de dois crime de roubo, ambos perpetrados em 2002, um crime de tráfico de menor gravidade, cometido em 2008, um crime de resistência e coacção sobre funcionário, praticado em 2012, um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, perpetrado 2008, dois crimes de injúria agravada, cometidos em 2012 e 2102, bem como pela autoria de dois crimes de condução sem habilitação legal, praticados em 2005.

Tudo ponderado há que reconhecer que a pena cominada ao recorrente de 6 anos de prisão não merece qualquer censura, pena que, situando-se dentro da medida da culpa, é imposta pela necessidade de tutela da confiança e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada, pena esta que, obviamente, não pode ser objecto de suspensão na sua execução, posto que a lei limita a aplicação do instituto da suspensão às penas de prisão não superiores a 5 anos – artigo 50º, n.º 1, do Código Penal –, instituto que, diga-se, em caso algum seria de aplicar no caso sub judice, porquanto como este Supremo Tribunal vem defendendo, o crime de homicídio gera um sentimento justificado de revolta por parte da comunidade, o que implica uma reacção firme e enérgica, no âmbito da qual não deve ter lugar a suspensão da execução das penas[5], a não ser em casos de excepção, para além de que o passado criminal do recorrente sempre imporia o cumprimento da pena em clausura.

                                          *

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente, fixando em 5 UC a taxa de justiça.

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Oliveira Mendes (Relator)

Pires da Graça

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[1] - O texto que a seguir se transcreve, bem como os que mais adiante se irão transcrever, correspondem ipsis verbis aos constantes dos autos.
[2] Idem.
[3] Idem.
[4] - A pena da culpa, ou seja, a pena adequada à culpabilidade do agente, deve corresponder à sanção que o agente do crime merece. Só assim se consegue a finalidade político-social de restabelecimento da paz jurídica perturbada pelo crime e o fortalecimento da consciência jurídica da comunidade – Cf. Claus Roxin, Culpabilidad Y Prevención En Derecho Penal (tradução de Muñoz Conde – 1981), 96/98.
[5] - Cf. o acórdão de 06.06.06, publicado na CJ (STJ), XIV, II, 201 e os acórdãos ali citados.