Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
09A0643
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ALVES VELHO
Descritores: CONTRATO DE GESTÃO DE EMPRESA.
RESOLUÇÃO
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
JUSTA CAUSA
DANOS DE IMAGEM
Nº do Documento: SJ2009052106431
Data do Acordão: 05/21/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA DA RÉ
NEGADA A REVISTA DA AUTORA
Sumário :
- O contrato de gestão de empresa (management) é um contrato mercantil atípico, bilateral e oneroso, modalidade do contrato de prestação de serviço (arts. 231º e ss. C. Com. e 1156º, 1157º e ss. C. Civil), através do qual uma empresa atribui poderes de gestão a uma outra empresa, estabelecendo uma relação duradoura e de colaboração ou de cooperação entre as partes envolvidas, no desenvolvimento da qual à sociedade gestora compete o encargo de gerir a outra empresa no interesse e por conta do dono desta (concedente), mediante certa remuneração.
- Uma das consequências possíveis do cumprimento defeituoso, no caso uma prestação de serviço desconforme ao devido no exacto cumprimento das obrigações emergentes do contrato de gestão do Hotel (execução defeituosa), é, entre outras – exigência de eliminação do defeito, substituição da prestação, redução da contraprestação, por exemplo -, a faculdade de o credor resolver o contrato, se verificados os pressupostos estabelecidos nos arts. 801º e 808º C. Civil.
Equiparável às situações de conversão da mora em incumprimento definitivo para efeito de resolução contratual por perda objectiva do interesse na prestação ou pela fixação e decurso de um prazo admonitório, previstas naquele art. 808º, será aquela em que o devedor declare que não procederá ao cumprimento pontual ou exacto da prestação devida. Se o devedor afirma inequivocamente que não procederá à eliminação da desconformidade (defeito), então o credor poderá resolver o contrato independentemente de se ter estabelecido prazo admonitório, pois que, nesse caso, o incumprimento definitivo está verificado pela tomada de posição do devedor no sentido de que a prestação não realizada já não o será posteriormente.
Essa manifestação de vontade do devedor tem que ser expressa por uma declaração absoluta e inequívoca, impondo-se que o renitente emita uma declaração séria, categórica e que não deixe que subsistam quaisquer dúvidas sobre a sua vontade e propósito de querer não cumprir.
- A “justa causa” de resolução integra-se regime típico das relações contratuais duradouras, mormente nas de execução continuada, às quais não se ajusta directamente o regime admonitório previsto no art. 808º C. Civil, pois que o que está em causa não é, em regra, a perda de interesse numa concreta prestação, “mas a justificada perda de interesse na continuação da relação contratual”, podendo a cessação do vínculo resultar da quebra de confiança entre as partes quando, ponderados os motivos no contexto global, seja de formular um juízo de perda de confiança justificada assente no de prognose de inviabilidade de prossecução da relação contratual.
Assentando o contrato de gestão de empresa no estabelecimento de uma relação duradoura entre as partes que se vinculam, envolvendo recíprocos deveres de colaboração em vista do alcance do escopo previsto e definido, como é próprio dos denominados contratos de colaboração, releva especialmente uma estreita “coordenação de interesses entre as partes”, que pressupõe, também de modo especial, qualidades de lealdade, de probidade ou honorabilidade entre os contraentes, nomeadamente quando se trata de negócio intuitu personae.
Os negócios de confiança postulam condutas em que os deveres de informação ou de esclarecimento (revelando à outra parte as circunstâncias susceptíveis de lhe interessar) e de correcção (mediante uma conduta diligente e leal e proba) se colocam num patamar de maior exigência que a decorrente do respeito pelo princípio da boa fé genericamente consagrado no n.º 2 do art. 762º C. Civil.
- Embora não tenham capacidade de sofrimento, padecendo dores físicas ou morais, como as pessoas físicas, destinatárias naturais da protecção da personalidade, as sociedades comerciais podem ver ofendido o seu bom nome e reputação, sob a perspectiva da consideração comercial e social, e sofrer perda de prestígio com afectação da sua imagem.
Nessa medida, desde que compatíveis com a sua natureza e não inseparáveis da personalidade singular, serão de reconhecer às pessoas colectivas, designadamente às sociedades comerciais, apesar do seu escopo lucrativo, os direitos pessoais reconhecidos às pessoas singulares, nomeadamente o direito à compensação por danos de natureza não patrimonial.
- Os danos de imagem podem revestir-se de natureza patrimonial e de natureza não patrimonial, relevando nessas duas vertentes.
Em princípio, as ofensas ao bom-nome comercial, abalando a boa fama da empresa, reflectem-se num dano patrimonial, a manifestar-se no afastamento da clientela e a consequente diminuição do giro comercial.
O ressarcimento dos efeitos danosos caberá, em regra, na esfera de protecção dos danos patrimoniais, do dano patrimonial indirecto.
A compensação por danos não patrimoniais será devida quando esteja em causa a protecção de interesses imateriais “como o prestígio social, a identidade ou a esfera do sigilo, sem qualquer afectação concomitante da esfera patrimonial”.
Decisão Texto Integral:



Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. - No seguimento de “Compromisso Arbitral” celebrado entre “Sociedade de Empreendimentos Turísticos AA, S.A.” e “BB - Investimentos Turísticos, S.A.”, intentou esta acção em que pediu a condenação daquela a pagar-lhe:
- a título de lucros cessantes (pela rescisão do contrato de gestão entre ambas celebrado), a remuneração de 18% sobre o lucro de gestão estimado durante o período de vigência do contrato, dada a ilicitude da sua resolução, no montante líquido de 4 788 044,17€ (correspondente a esc. 959 916 671$00);
- a título de danos emergentes, o pagamento de certas dívidas contraídas perante a BB e referentes a fornecimento de bens ou prestação de serviços por outros hotéis da cadeia, no montante global de 27.176,89€ (correspondente a Esc. 5 448 477$00);
- a título de ressarcimento pelos gravíssimos danos de imagem sofridos pela Demandante em função dos múltiplos comportamentos descritos, a condenação da AA ao pagamento de uma indemnização do montante de 32.191.753,60€ (correspondente a Esc. 6 453 867 145$00), valor dos proveitos operacionais da A. no exercício de 2000;
- juros vincendos, à taxa de 12%, a partir de 25 de Fevereiro de 2002, data da apresentação da petição inicial sobre a soma total dos pedidos de condenação, que se eleva a 37.006.974,65€ (correspondente a Esc. 7 419 232 293$00).
Pediu ainda a condenação da Demandada nas custas do processo, bem como, no termos da Cláusula 15-4 do Compromisso Arbitral, a indemnizar a Demandante pelo valor dos honorários e de todas as despesas incorridas com a demanda.

Invocou a A. o incumprimento do contrato de gestão celebrado entre as Partes em 4 de Agosto de 1997, a sua rescisão infundada pela Ré e os danos por ela causados, bem como o incumprimento de obrigações insatisfeitas após a rescisão.


A AA apresentou contestação, com reconvenção.
Como questão prévia suscitou que “CC - Sociedade de Gestão Hoteleira Lda." seja considerada como cessionária da posição contratual no Contrato de Gestão.
Impugnou todos os pedidos formulados pela BB.
Sustenta que ela e a CC cumpriram pontualmente o contrato de gestão até à resolução do mesmo com "superlativa justa causa", mas a A. veio a revelar-se incapaz de gerir, com um mínimo de eficiência, o Hotel de Porto Santo, o que pretendeu justificar com alegadas e ilegítimas intromissões da Demandada nos sistemas informáticos do Hotel, tendo apresentado uma queixa-crime contra a demandada, seus administradores e colaboradores, cuja falta de fundamento não ignorava.
Que em face da degradação da gestão do hotel - contabilidade caótica, problemas com o sistema informático, falta de colaboração da demandante - e ao ter a confirmação da apresentação apresentado uma queixa-crime, o que representava "injustificado desconchavo e afronta", procedera à resolução do contrato pela quebra de confiança entre as partes que aquela queixa, necessária e definitivamente, determinava.
Concluiu pela improcedência dos pedidos da Demandante.

O pedido reconvencional funda-se na licitude da resolução contratual justificada pela invocada má gestão levada a cabo pela BB e na quebra de confiança resultante da queixa-crime dos autos.
Para a concretização dos pedidos de condenação, com base em incumprimentos contratuais ilícitos e culposos por esta praticados, a Reconvinte confronta os resultados reais da exploração não só com os orçamentos apresentados pela BB mas também com os resultados retirados do estudo de viabilidade da “Horwath Consulting”, por este ter constituído a base negocial que as Partes assumiram ao celebrar o Contrato de Gestão.
Formula, em consequência, os seguintes os pedidos indemnizatórios:
a) 1 084 261,93€ (art. 502° da contestação) - diferença entre os resultados operacionais constantes do Estudo da Horwath quanto ao conjunto hotel e clube para o primeiro ano de actividade e os verificados realmente em 2000.
b) 2 797 095,00€ (art. 505°) - idêntica diferença em relação ao ano de 2001, da gestão da CC (correspondente a um desvio de 195%).
c) 14 742 011,75€ (art. 511°) - diferença entre os resultados operacionais constantes do estudo da Horwath (hotel + clube) para os terceiro a sexto anos subsequentes à abertura e os resultados extrapolados, a partir dos resultados reais já conhecidos, para os anos de 2002 a 2005·
d) 53.870,17€ (art. 518°) - devolução da importância das remunerações pela realização da contabilidade financeira e analítica em 1999 e 2000, dada a deficiente execução da mesma.
e) 16.870,24€ (art. 519°) - encargos financeiros incorridos pela CC pelos injustificados atrasos na cobrança de créditos sobre clientes.
f) 47.357,80€ (art. 522°) - montante de 206 notas de crédito para regularização dos créditos sobre clientes, devido a indesculpáveis erros de gestão da Demandante, no ano 2000.
g) 11.437,05€ (art. 523°) - montante de notas de crédito emitidas pela CC em 2001, em consequência de erros devidos a má gestão da BB.
h) 838,35€ - montante da não facturação de reservas canceladas (no shows) por força de má gestão da BB.
i) 926,75€ ( 527.°) - juros devidos por atrasos no pagamento à Segurança Social pela BB das contribuições devidas em Setembro, Outubro e Novembro de 2000.
j) 3.501,56€ (art. 528°) - valor imputado às estadias não pagas por pessoal do Grupo BB no Hotel (facturas à taxa zero).
k) 149.639,37€ (art. 531°) - custo estimado a pagar pela CC por irregularidades cometidas em matéria de IVA por actos imputáveis à BB por falta ou irregularidade de facturas.
l) 892,55€ (art. 533º) - diferenças no movimento diário (registado na conta n° 26888) e valor resultante de pagamento indevido a um ex-funcionário (conta n.º 26805).
m) 19.747,59€ (art. 535°) - valor estimado da publicidade à Companhia de Seguros Generali nos cartões magnéticos usados para chaves dos quartos.
Pede ainda a condenação da Demandante no custo de honorários e serviços que a Demandada e a CC tenham de suportar, designada mente advogados, economistas, auditores, engenheiros e pessoal administrativo - montante não liquidado - bem como pelos prejuízos resultantes de algum daqueles prestadores de serviços que, sendo quadros da AA ou da CC, não puderem exercer as suas funções normais dentro da organização, honorários e serviços não inferiores a 2 493 989,00€ (art. 536. °).
Para além disso, reclama da BB indemnizações à AA e à CC "pelos danos de imagem sofridos e pela quebra de resultados emergentes do presente, a liquidar em execução de sentença" (art. 537°).
Do total dos pedidos já liquidados, no total de 21 430 524,57€, as indemnizações - com excepção da peticionada no art. 536° da contestação - são devidas à CC, sendo as referidas nos arts. 536° e 537° devidas à AA e à CC.
Por isso, a CC deduziu, em separado, requerimento de intervenção principal espontânea.

Na réplica, a BB manteve a posição do articulado inicial, e contestou o pedido reconvencional, impugnando os respectivos factos.
Alegou responsabilidade solidária da AA e da CC, no caso de esta ser admitida a intervir no processo.

A intervenção processual pedida por “CC - Sociedade de Gestão Hoteleira, Lda.”, na qualidade de cessionária da posição contratual da AA no Contrato de Gestão, foi deferido, tendo-se considerado que a cessão de posição contratual se fizera sem liberação da cedente AA, devendo, por isso, entender-se que ambas as sociedades eram solidariamente responsáveis pelas obrigações que tinham contraído ou em que tivessem incorrido, nos termos do art. 101º do Código Comercial.

Instruída a causa, foi proferido o acórdão arbitral em que se decidiu:
a) Julgar parcialmente procedente o primeiro pedido formulado pela demandante a titulo de ressarcimento de lucros cessantes, condenando solidariamente as demandadas Ré e Interveniente Principal, a pagar àquela € 1.950.146,04;
b) Julgar integralmente procedentes os pedidos formulados a título de ressarcimento de danos emergentes pela Demandante, condenando solidariamente as Demandadas a pagar àquela a quantia global de € 27.176,89;
c) Julgar parcialmente procedente o terceiro pedido formulado a título de ressarcimento de danos de imagem, condenando solidariamente as Demandadas a pagar àquela a quantia de € 250.000,00;
d) Julgar procedente o pedido relativo a juros, condenando solidariamente as demandadas a pagar juros moratórios, sobre as quantias de capital constantes das três anteriores alíneas, às taxas sucessivamente em vigor fixadas nos termos do art. 102° do Cód. Comercial, desde 25.02.2002, até integral pagamento;
e) Julgar improcedentes, por não provados, todos os pedidos reconvencionais formulados pelas Demandadas contra a Demandante, absolvendo estas dos pedidos em conformidade.

O decidido foi impugnado pela Demandante, por um lado, e pelas Demandada e Interveniente, por outro, mediante recursos de apelação, tendo a Relação confirmado o acórdão arbitral, salvo quanto aos danos de imagem sofridos pela BB, que na parcial procedência do recurso de AA e CC, foram reduzidos para 100.000,00€.


Do acórdão interpuseram recurso, agora de revista, AA e CC e, subordinadamente, a Demandante BB.

As primeiras, pugnando pela licitude da resolução do contrato de gestão e consequente absolvição dos pedidos indemnizatórios deduzidos com fundamento na ilicitude declarada no acórdão impugnado, argumentaram como, mediante transcrição quase integral, se reproduz:
(…)



Por sua vez, a Autora, que logo restringiu o objecto do recurso às questões do montante das indemnizações fixadas por danos de imagem e pelos lucros cessantes, pretendendo quanto aos primeiros a reposição do valor da decisão arbitral e quanto aos últimos a elevação da mantida quantia de 1 950 146,04€ para 2 925 219,06€, invocou, no que para tanto releva, de entre o que verteu no que denominou de “conclusões”, as seguintes razões de discordância:
(…)

As Partes apresentaram recíprocas respostas, tendo a Demandada AA e a Interveniente junto Parecer Jurídico subscrito por Ilustre Professor de Direito.


2. - Como das conclusões de cada um dos recursos se extrai, as questões neles suscitadas e a apreciar são as que se enunciam.

Na revista das Rés AA e CC:

- Ilicitude ou licitude da resolução do contrato de gestão fundada em justa causa e respectivas consequências em sede indemnizatória; e

- Relevância dos danos de imagem causados à Autora BB e respectivas consequências quanto à exclusão da obrigação de indemnizar ou redução da indemnização atribuída.


Na revista da Autora BB:

- Fixação, por correspondência ao valor peticionado, do valor da indemnização por lucros cessantes decorrentes da resolução contratual; e,

- Reposição do montante da indemnização por danos de imagem fixado no acórdão arbitral.


3. - A factualidade a considerar, por definitivamente fixada na 2ª Instância, é a que segue: (…)


Mérito dos recursos.
4. - Mérito da revista das Rés AA e CC.
O objecto da revista das Demandadas vem limitado, como já dito, às questões da licitude da resolução contratual operada pela carta de 5 de Janeiro de 2001 e respectivas consequências na pretensão indemnizatória da Demandante e de ser injustificada indemnização por danos de imagem.

4. 1. - A resolução do contrato.
As Recorrentes defendem ter sido lícita a resolução do contrato em vigor com a Recorrida BB, pondo termo à sua actividade de gestora do Hotel, por ambas as ordens de razões invocadas na respectiva declaração resolutória corporizada na carta de 5 de Janeiro: - incumprimentos contratuais cuja gravidade era reveladora da incapacidade de gerir o Hotel; e, - apresentação de queixa-crime contra directores e funcionários da AA, sem procura de esclarecimento prévio ou de dar conhecimento dos factos, com quebra definitiva da confiança.

O contrato celebrado entre as Partes vem qualificado, sem manifestações de discordância, como um contrato mercantil atípico, modalidade de contrato de prestação de serviço a que serão aplicáveis as normas do mandato mercantil, dada a natureza comercial do negócio (arts. 231º e ss. C. Com.; arts. 1156º, 1157º e ss. C. Civil e 3º C. Com..
O contrato de gestão de empresa é, na verdade, um contrato atípico que PINTO MONTEIRO (“Contrato de Gestão de Empresa”, parecer, in J/STJ, III-I-6 e ss.), define como o contrato, bilateral e oneroso, através do qual uma empresa atribui poderes de gestão a uma outra empresa, a incluir na vasta gama dos contratos de prestação de serviço, que funda uma relação duradoura e de colaboração ou de cooperação entre as partes envolvidas.
À sociedade gestora compete, assim, o encargo de gerir a outra empresa no interesse e por conta do dono desta (concedente), mediante certa remuneração.


No contrato de gestão celebrado entre as Partes foi fixado o prazo inicial de duração de dez anos, a contar da data de abertura do Hotel, que ocorreu em 25 de Julho de 2000, prorrogável por períodos de três. Extinguiu-se a relação contratual, por resolução operada pela Ré AA, mediante escrito de 5 de Janeiro de 2001, ou seja, dos cento e vinte meses previstos, o contrato perdurou por apenas cinco meses.


A resolução contratual, única modalidade de extinção da relação obrigacional que no objecto do recurso importa considerar, destrói retroactivamente o vínculo estabelecido entre as partes, como se o contrato não tivesse sido celebrado, operando-se por mera declaração receptícia de um dos contraentes, com base em convenção ou no uso de uma faculdade legal. É, em princípio, equiparada à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico – arts. 432º, 433º, 434º e 436º C. Civil.

Tem, pois, a declaração resolutiva, necessariamente, de encontrar apoio em convenção das Partes (cláusula resolutiva) ou em fundamento legal que justifique a inexecução do contrato (arts. 801º e 808º C. Civil).


As Partes previram e convencionaram a possibilidade de resolução do contrato de gestão na cláusula 16ª, ao que ora releva, nos seguintes termos:
1. Para além do previsto nos termos gerais de Direito, são fundamentos de resolução deste contrato:
a) (…);
b) (…);
c) Incumprimento por qualquer dos contraentes de qualquer das obrigações decorrentes deste contrato, desde que tal incumprimento se mantenha por período superior a 30 dias, após aviso do referido incumprimento.
2. A parte que, não estando em mora, pretenda, com base nesta cláusula, rescindir o contrato, avisará inequivocamente por escrito a outra parte da sua intenção de resolver; neste caso será concedido à parte em mora um período de 60 dias para regularização das obrigações contratuais em falta, após o que, se a razão invocada se mantiver, será o contrato considerado resolvido.


Dados os termos em que se encontra formulada a redacção da cláusula - precedida da salvaguarda da invocabilidade do regime geral da cessação do contrato por resolução -, fica desde logo bem claro, por ressalva expressa, que as Partes não pretenderam afastar, mas antes prevenir, a aplicabilidade dos fundamentos legais de resolução que eventualmente viessem a verificar-se.



4. 1. 1. - Resolução com fundamento em violações contratuais, por deficiências de gestão, denunciadas na carta de 20 de Novembro de 2000.

As Recorrentes AA e CC mantêm a posição, desde sempre defendida, de estarem demonstrados fundamentos de violação, pela BB, de obrigações directas de gestão, com gravidade suficiente para legitimar a resolução.
Mais defendem não ser necessário, no caso, aplicar o aviso admonitório estabelecido na cláusula 16ª em virtude de, na carta de 22 de Dezembro de 2000, a Recorrida ter negado a existência dos incumprimentos e desafiado as Recorrentes a porem termo ao contrato, não tendo assim o prazo admonitório função a cumprir.

O Tribunal Arbitral e a Relação responderam negativamente aquele juízo de ilicitude, declarando ainda ilícita a resolução por incumprimento das formalidades convencionadas.


Porque se entende que a apreciação desta última questão deve preceder logicamente a verificação das violações contratuais e respectiva relevância, pois que a declaração resolutiva, nessa vertente, é efectuada a coberto da cláusula 16º do contrato de gestão, como decorre da subsunção dos factos invocados à violação das cláusulas 2ª-2.2, 6ª-6.2 b), c) e d), 8ª-8.3 e 11ª-11.2, proceder-se-á a essa análise, vale dizer, à apreciação do concurso dos pressupostos formais da resolução convencional, tal como a eles se vincularam as Partes ao acordarem na cláusula resolutiva.


Nas cláusulas de resolução, como a do contrato em causa, podem as partes, em princípio – pois que, movendo-se no campo da autonomia negocial privada, há limites à liberdade de fixação dos contratos e respectivos conteúdos (art. 405º C. Civil) -, acordar sobre os pressupostos do exercício do direito, sobre os modos da sua efectivação, nomeadamente quanto aos requisitos dos incumprimentos e consequências da actuação dos contraentes.


As Recorrentes reconhecem que, na carta de 22/11/2000, não respeitaram o prazo estabelecido na cláusula 16ª do contrato, mas, como adiantado já, fundando-se a resolução na carta de 5 de Janeiro, porque a Recorrida negou os incumprimentos na carta de 22 de Dezembro, recusando implicitamente a reparação dos defeitos, o curso do prazo remanescente deixa de relevar, sendo essa posição irreversível, tanto que provocava as Recorrentes à resolução.


A questão é, assim, remetida para o regime do cumprimento defeituoso.

Uma das consequências possíveis do cumprimento defeituoso, no caso uma prestação de serviço desconforme ao devido no exacto cumprimento das obrigações emergentes do contrato de gestão do Hotel (execução defeituosa), é, entre outras – exigência de eliminação do defeito, substituição da prestação, redução da contraprestação, por exemplo -, a faculdade de o credor resolver o contrato, se verificados os pressupostos estabelecidos nos arts. 801º e 808º C. Civil.

Equiparável às situações de conversão da mora em incumprimento definitivo para efeito de resolução por perda objectiva do interesse na prestação ou pela fixação e decurso de um prazo admonitório, previstas naquele art. 808º, será aquela em que o devedor declare que não procederá ao cumprimento pontual ou exacto da prestação devida. Se o devedor afirma inequivocamente que não procederá à eliminação da desconformidade (defeito), então o credor poderá resolver o contrato independentemente de se ter estabelecido prazo admonitório, pois que, nesse caso, o incumprimento definitivo está verificado pela tomada de posição do devedor no sentido de que a prestação não realizada já não o será posteriormente.

Relativamente a este ponto tem-se acentuado, na doutrina e na jurisprudência, que a manifestação de vontade do devedor tem que ser expressa por "uma declaração absoluta e inequívoca", impondo-se «que o renitente emita uma declaração séria, categórica e que não deixe que subsistam quaisquer dúvidas sobre a sua vontade (e propósito)» de querer não cumprir, fazendo-o “de modo significativo” (cf. BRANDÃO PROENÇA, “Do Incumprimento do Contrato-Promessa Bilateral”, 91; PEDRO R. MARTINEZ, “Da Cessação do Contrato”, 139; acs., desta Secção, de 5/12/06 e 13/12/07. procs. 06A3914 e 07A2378).


Interessa, para o efeito, volvendo à matéria de facto, recordar que, pela carta de 22 de Novembro de 2000, a AA acusou a BB de incapacidade de gestão do Hotel, denunciando a ausência total de controlo financeiro, a prestação de informação financeira sistematicamente errada, a inoperacionalidade do sistema informático, a não promoção injustificada do hotel com taxa de ocupação inferior a 10% (sendo a média na ilha na época de 50%), a remoção da password que permitia o acesso remoto ao sistema do Hotel e a proibição à empregada da contabilidade de prestar informações à responsável da contabilidade da R., a recusa de prestação de informações contabilísticas, não obstante a sua simplicidade, o que tudo constituía “reiterada violação das cláusulas segunda, 2.2., sexta, 6.2., b), c) e d), oitava, 8.3, e décima­ primeira, 11.2.”, acrescentando: “Tal violação compromete a viabilidade do hotel e constitui, por isso, fundamento para a imediata resolução do contrato. Num ultimo gesto de boa vontade, têm V. Ex.as o prazo de dez dias para reparar as faltas acima descritas, sob pena de se evidenciar, em definitivo, que, afinal, V. Ex.as não têm capacidade para gerir o hotel, ou, na melhor hipótese para os vossos alegados pergaminhos, não querem fazê-lo - o que, no caso, é equivalente. Então resolveremos o contrato" (cfr. doc. nº 10, facto BM), carta a que a Autora respondeu, no mesmo dia, atribuído à Ré «total incapacidade de compreensão do que é um «Contrato de Gestão» e a relação entre o gestor e o proprietário de um hotel, queixando-se da extrema dificuldade em gerir naquelas condições, devido à sistemática subversão dos pressupostos do Contrato de Gestão e considerando serem da responsabilidade da Ré os incumprimentos que lhe são imputados, os quais refutou, ponto por ponto, com referência a cada uma das atribuídas violações das cláusulas contratuais.
Em 29 de Novembro, respondendo à carta da A,. a Ré AA considerou que a BB se “expraiava em considerações, ora falsas, ora irrelevantes (…), distorcendo, não percebendo ou fingindo não perceber, a que factos se referia a nossa invocação de cláusulas contratuais em sede de incumprimento”, reiterou e desenvolveu o conteúdo das imputações feitas na carta anterior.
Através de carta de 19 de Dezembro de 2000, a R. notificou a A. de que esta não fizera cessar as “gravíssimas situações de incumprimento assinaladas na n/ carta de 22 de Novembro (…)” e anunciou a reposição do fundo de maneio, “apesar de (a Autora) se mostrar completamente incapaz de esclarecer a questão levantada no ponto 1 da carta de 22 de Novembro (existência de vendas cuja cobrança tempestiva cobriria, de largo, todas as necessidades de tesouraria do Hotel)”.
Respondeu a A., através de carta de 22 de Dezembro de 2000, nos termos que integralmente se transcrevem:
Acusamos a recepção da V. carta identificada em epígrafe, cujo conteúdo não se consegue descortinar.
Caso V. Ex.as considerem existir incumprimento do Contrato de Gestão, sugerimos que, em vez das vagas, abstractas e toscas considerações gerais a que vêm repetidamente recorrendo, analisem, listem e qualifiquem, objectiva e profissionalmente, os factos que fundamentem tal incumprimento.
Do mesmo modo sugerimos que, com ponderação e porventura com acompanhamento profissional adequado e especificado, procedam finalmente a uma análise exaustiva das regras jurídicas estabelecidas no Contrato em epígrafe, evitando-se deste modo a repetição das conclusões inadequadas, das consequências despropositadas e mesmo não cumpridas nos prazos prometidos, a que repetidamente V. Ex.as nos vêm habituando.
Assim sendo, o único ponto da V. missiva que parece suficientemente claro para ser esclarecido é o constante do seu último parágrafo e no que respeita ao fundo de maneio.
Cumpre a este respeito começar por relembrar V. Ex.as de que, a V. pedido, os custos de pré-abertura e os custos adicionais de abertura do hotel foram assumidos pelo fundo de maneio, quando em rigor este apenas se destinava a suportar os custos operacionais do funcionamento do hotel.
Em resultado, passou o hotel - fundos de tesouraria e suas receitas - a financiar custos que nada têm a ver com a sua operação, pelo que ao repor o fundo de maneio estavam V. Ex.as a pagar, não os custos operacionais do hotel mas antes os referidos custos de pré-abertura e custos adicionais, dos quais Esc. 48.752.561$00 já foram pagos.
Não tendo o hotel, per si, capacidade financeira para assumir tais custos, para o que, aliás, nem sequer está vocacionado, deveriam V. Ex.as ter reposto imediatamente o fundo de maneio à primeira solicitação, quer porque tal está expressamente consagrado no Contrato de Gestão, quer porque perfeitamente conscientes desta situação.
Em vez do que recorreram V. Ex.as a múltiplos pedidos de esclarecimento para atrasar e mesmo impedir a reposição do fundo de maneio, insensíveis ao facto de estarem por esta via a estrangular financeiramente a operação do Hotel BB Porto Santo e a forçar a opções dramáticas no funcionamento de uma recém aberta unidade hoteleira.
Contudo, caso queiram, sempre poderão V. Ex.as alterar agora a forma de pagamento dos custos de pré-abertura e dos custos adicionais de abertura ainda por liquidar, deixando de o fazer através do fundo de maneio e passando a assumi-los de forma autónoma.
Assim sendo e ao contrário do que V. Ex.as afirmam, a insuficiência do fundo de maneio nada têm a ver com a questão das cobranças.
Pelo contrário, as cobranças têm sido objecto do normal e adequado acompanhamento, quer por parte do hotel, quer por parte da BB, estando os pagamentos das agências e operadores a efectuar-se a um bom ritmo, tendo até ao presente momento já sido cobrado Esc. 147.772.404$00 e estando em fase de pagamento Esc.26.070542$00.
Em resumo, volvidos 4 meses da abertura ao público feita nas condições em que o foi, agravada com as reclamações, os problemas informáticos verificados e a V. sistemática ingerência na gestão, é ainda assim extraordinariamente positivo, em termos turísticos e hoteleiros, constatar que o hotel está rapidamente a estabilizar o seu funcionamento, quando os resultados de uma recém aberto hotel não aparecem nem podem aparecer imediatamente.
Isto quando a BB continua a aguardar uma tomada de posição da V. Parte quanto à manutenção ou não do Contrato de Gestão com base no prazo de dez dias por V. estabelecido na carta de 22.11.00 e já há muito ultrapassado.
Aliás, não conseguimos descortinar a razão pela qual V. Ex.as, depois de reiteradamente terem alegado perda de confiança na BB, não concretizam definitivamente o que pretendem fazer, mantendo, quiçá propositadamente, um ambiente de indefinição, quer em termos da relação com a BB, quer quanto ao próprio desenvolvimento de todo o complexo turístico, dificultando ainda mais, se tal for possível, o plano comercial do empreendimento”.
Através de carta de 5 de Janeiro de 2001, a sociedade R. comunicou à A. que resolvera o contrato de gestão invocando como fundamentos: i) "total ausência de controle financeiro, que teve como consequência que das vendas de Agosto de 2000, no montante de 167.410.000$00, estivessem por cobrar, em 22 de Novembro, cerca de esc. 155.000.000$00; ii) não comunicação de qualquer justificação para a circunstância de facultar às signatárias (Recorrentes) informação financeira errada e tardia, induzindo a empresa R. a fazer declarações erradas em sede de IVA; iii) falta de justificação para o facto de a taxa de ocupação do Hotel, considerado o número de quartos, ser entre três e cinco vezes inferior à dos restantes hotéis de Porto Santo; iv) falta total de justificação para o caos organizativo e funcional revelado pelas informações referidas no ponto 3 da carta (das RR.) de 22 de Novembro; v) falta de justificação para a inoperacionalidade do sistema informático.


Isto posto, importa, então, saber se, como sustentam as Recorrentes-rés, na carta de 22 de Dezembro, cujo conteúdo se transcreveu, a Recorrida-A. “negou, peremptoriamente, a existência de tais incumprimentos (os que lhe haviam sido imputados na carta de 22/11, depois novamente invocados, na totalidade, na carta resolutiva de 5 de Janeiro).

Ora, ao menos a nosso ver, a resposta a tal questão não pode ser afirmativa.

Com efeito, não só o texto da carta não contém qualquer declaração nesse sentido, quer directa e expressa, quer inequivocamente dedutível de outras manifestações de vontade nele vertidos, como, apontando até em sentido contrário, o conteúdo do escrito, inserido no desenvolvimento da sequência epistolar que a matéria de facto reflecte, apontam para não ser esse o sentido da vontade da BB.
Assim, não podendo arredar-se que, satisfatoriamente ou não, através da carta-resposta de 22/11, a A. dera já justificações para os incumprimentos que lhe eram imputados, acusada, pela carta de 19/12, de não ser capaz de esclarecer o estado das cobranças no valor de 155.000 contos, na carta em causa, a A. questionou que, caso a R. considerasse existir incumprimento do Contrato de Gestão, deveria listar e qualificar objectivamente os factos que o fundamentem, esclareceu a sua posição sobre a relação entre o fundo de maneio, sua reposição, e cobranças, informando, quanto a estas, que estavam a decorrer em bom ritmo, estando cobrados esc. 147 772 404$00 e esc. 26 070 542$00 em fase de pagamento, encontrando-se o hotel rapidamente a estabilizar o seu funcionamento.

Deste modo, não se encontra, na postura assumida pela BB no contexto da troca de correspondência entre as Partes, uma conduta subsumível à recusa da prestação devida, nomeadamente assente em manifestação séria e categórica da vontade de não querer cumprir.


Consequentemente, afastado o fundamento típico da recusa de cumprimento, invocado como legitimador da dispensa de respeito pelo prazo admonitório previsto na cláusula 16º.2, impunha-se às Rés o respeito pelo livremente convencionado e vertido em tal cláusula, prazo admonitório que, como admitem, não cumpriram.

Logo, conclui-se, tal como se afirmou já na douta decisão arbitral, que, independentemente de terem ou não existido as violações denunciadas pela AA e de as mesmas serem imputáveis a culpa da BB - incumprimentos cuja existência as Instâncias também não reconheceram -, a concessão de um prazo de 10 dias para eliminar ou corrigir as situações de incumprimento viola o estabelecido nas cláusulas 16.1.c e 16.2.


Também por essa razão, ou seja, por estar esgotado desde 2 de Dezembro o prazo admonitório ilicitamente concedido, se não entende o sentido da invocação da carta de 22/12 para nela fazer apoiar uma recusa de cumprimento.
De facto, parece que se a interpelação admonitória era ilícita por violação dos pressupostos da cláusula resolutiva expressa, designadamente quanto ao prazo admonitório, não produzindo, por isso os respectivos efeitos de cessação da mora ou conversão em incumprimento definitivo, não se vê como a mesma declaração possa manter-se indefinidamente em vigor, agora para poder ser eficazmente invocada apenas como denúncia de incumprimentos

Conclui-se, pois, ter sido ilícita a declaração resolutiva pelos fundamentos identificados com os incumprimentos denunciados na carta de 22/11/2000.


4. 1. 2. - Resolução com fundamento na apresentação da queixa-crime.
O contrato de gestão foi ainda resolvido pela mesma carta de 5 de Janeiro mediante invocação, pelas Rés, da apresentação, pela Autora, de queixa-crime alegando que "a má fé evidenciada na apresentação da queixa-crime, sem qualquer procura de prévio esclarecimento de factos, e sem que dela, ou dos seus fundamentos, nos fosse dado conhecimento, como se não fossemos nós os donos do Hotel e do hardware e software em causa, e não houvesse um contrato de gestão com V. Ex.as", má fé que, acrescentaram, quebrava, "em definitivo, a confiança mínima para que possa manter-se o referido contrato de gestão".

A queixa-crime em causa foi apresentada pela A. na Polícia Judiciária do Funchal contra Fernando ..., Fernando J... e Nuno..., na qualidade de legais representantes da Sociedade AA, Ângela..., Carlos ..., José ... Lei e Desconhecidos, requerendo procedimento criminal contra os denunciados pela prática dos crimes de violação de correspondência ou de telecomunicações, furto qualificado, burla informática, sabotagem informática, acesso ilegítimo e danos relativos a dados ou programas informáticos e de concorrência desleal, constando os respectivos factos do documento junto sob o n.º 161.


No acórdão arbitral, com concordância da Relação, julgou-se ilícita a resolução, desconsiderando a queixa-crime como causa da deterioração da relação de confiança.
Assim, embora quanto a este ponto sem unanimidade, o Tribunal Arbitral começou por reconhecer que “não é usual, nem conforme às regras de normal convivência comercial, que uma das partes de um contrato de prestação de serviços apresente queixa-crime contra os legais representantes do seu parceiro contratual, durante a vigência do contrato”, admitindo a desproporcionalidade da queixa em relação às suspeitas existentes, mas não considerou que a sua apresentação constituísse justa causa de resolução, pois que: - 1) ao apresentar a queixa-crime, a BB exerceu um direito fundamental de acesso aos tribunais que não é possível qualificar como abusivo ou temerário; - 2) a denúncia feita referia factos que se provaram; e, - 3) a situação de conflito patente entre as Partes mostrava que o contrato estava definitivamente afectado quanto à sua viabilidade.

A Relação, depois de confessar a “delicadeza da questão” adoptou o mesmo entendimento, embora arrancando da ideia de que se não está perante um contrato celebrado intuitu personae e considerando não poder dizer-se que a queixa-crime tenha deteriorado irremediavelmente a relação entre as Partes.


As Recorrentes insurgem-se contra o decidido sustentando estar-se em presença de um contrato intuitu personae, em que a denúncia criminal apresentada, pela natureza dos crimes imputados e pelos factos conhecidos pela Autora e disponíveis para seu conhecimento, no momento da apresentação, é grosseiramente abusiva e temerária, gravemente violadora do dever de lealdade e, como tal, justa causa de resolução contratual, sempre devendo, perante aquela temeraridade, o direito de acesso aos tribunais ceder perante a tutela constitucional da honra e da reputação.



A “justa causa” integra-se regime típico das relações contratuais duradouras, mormente nas de execução continuada, às quais não se ajusta directamente o regime admonitório previsto no art. 808º C. Civil, pois que o que está em causa não é, em regra, a perda de interesse numa concreta prestação, “mas a justificada perda de interesse na continuação da relação contratual” (BAPTISTA MACHADO, RLJ 118º-280, cit. no ac. desta Secção de 09/01/2007-proc. 06A4416), podendo a cessação do vínculo resultar da quebra de confiança entre as partes quando, ponderados os motivos no contexto global, seja de formular um juízo de perda de confiança justificada assente no de prognose de inviabilidade de prossecução da relação contratual.


Antes de mais, importa, no seguimento da qualificação do contrato, pôr em evidência algumas notas relativas à sua natureza e ao respectivo regime, contributos para o enquadramento do negócio como intuitu personae ou não, bem como para as manifestações da boa fé e da confiança e consequências da sua violação no regime resolutivo dos contratos de cooperação, com fundamento em “justa causa”.

Já atrás se deixou referido ser o contrato de gestão de empresa um contrato mercantil atípico, a incluir modalidade de contrato de prestação de serviço, a que serão aplicáveis as normas do mandato comercial.
Como tal, assenta no estabelecimento de uma relação duradoura entre as partes que se vinculam, envolvendo recíprocos deveres de colaboração em vista do alcance do escopo previsto e definido, como é próprio dos denominados contratos de colaboração.

Relevando especialmente, neste tipo de negócios, uma estreita “coordenação de interesses entre as partes”, pressupõem, também de modo especial, “qualidades de lealdade, de probidade ou honorabilidade entre os contraentes”, nomeadamente quando envolvem negócios intuitu personae (cf. CARNEIRO DA FRADA, “Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil”, 548).
Assim, esses negócios de confiança postulam, desde logo, condutas em que os deveres de informação ou de esclarecimento (revelando à outra parte as circunstâncias susceptíveis de lhe interessar) e de correcção (mediante uma conduta diligente e leal e proba) se colocam num patamar de maior exigência que a decorrente do respeito pelo princípio da boa fé genericamente consagrado no n.º 2 do art. 762º C. Civil.
Nas palavras do citado Autor, “a fasquia do comportamento exigível apresenta-se como qualificada em relação àquilo que ordinariamente se reclama no seu âmbito. (…) Se desaparece, por facto imputável a um dos contraentes, “0 clima que (todas) as relações de confiança exigem para o seu adequado decurso, pode tornar-se inexigível para a outra a manutenção dessa relação, conferindo-se então a esta o poder de a resolver”, como forma de “reagir à sua frustração, pondo termo a uma relação que postula confiança” (ob. cit., 552, 557 e 558).

Também BAPTISTA MACHADO (Obra Dispersa – Pressupostos da Resolução, 140 e ss.), referindo-se às obrigações derivadas dos contratos de execução continuada celebrados intuitu personae ou que pressupõe um relação de confiança e de colaboração estreita, que são fundamentais para a consecução da finalidade contratual, fez notar que em tais contratos surge “uma obrigação de abstenção de qualquer comportamento que faça desaparecer aquela relação de confiança, um dever genérico de correcção, lealdade e boa fé a que, dado o seu carácter de meio indispensável à consecução do fim do contrato, podemos conferir o valor de uma obrigação principal”, de sorte que poderá dizer-se que “todo o comportamento que afecte gravemente essa relação põe em perigo o fim do contrato, abala o fundamento desta, e pode justificar, por isso, a resolução”.
Estamos, então, no campo da resolução por «justa causa» que o mesmo Prof. Baptista Machado, preenchendo o conceito indeterminado, aponta como «qualquer circunstância, facto ou situação em face da qual, segundo a boa fé, não seja exigível a uma das partes a continuação da relação contratual; todo o facto capaz de fazer perigar o fim do contrato ou de dificultar a obtenção desse fim, qualquer conduta que possa fazer desaparecer pressupostos, pessoais ou reais, essenciais ao desenvolvimento da relação, designadamente qualquer conduta contrária ao dever de correcção e lealdade» (loc. cit., pg. 143).



Na cláusula primeira do contrato celebrado entre as Partes – facto 4. -, ficou expressamente consignado que a AA, na qualidade de proprietária do Hotel DD, contratava os serviços da BB «atendendo ao prestígio e qualidade dos serviços da cadeia hoteleira BB».
Perante a afirmação de um tal pressuposto de contratação, afigura--se-nos de afirmar, sem hesitação, estar-se perante um negócio em que a consideração das qualidades da BB foram especialmente relevantes para a escolha do parceiro no contrato pela AA. Não fosse a reconhecida (pela R.) confiança no prestígio e nível dos serviços que gestão da BB oferecia e, certamente, não celebraria com ela o contrato nos termos em que o concretizou.

Por isso, não se acompanhando, quanto a este ponto, o acórdão recorrido, está-se com o acórdão arbitral quando toma posição no sentido de que o outorgado contrato de management pressupõe uma relação de confiança ou colaboração intensa, podendo dizer-se que se trata de um contrato celebrado intuitu personae (fls. 158).



Ultrapassada esta primeira questão - dando por adquirida a natureza intuitu personae do negócio, com a consequente relevância especial da confiança e colaboração, nos termos supra enunciados -, é altura de convocar a síntese factual disponível representativa do comportamento das Partes no tocante à envolvência que precedeu a queixa-crime.

Assim:
Em 10/11/2000, o director informático da R. comunicou ao director do hotel que não tinha podido aceder ao software do Hotel e que tal se devia a ter deixado de ser reconhecida a sua password e, através da carta da mesma, a R. declarou à A. que continuaria a proceder a toda a análise de elementos de que fiscalmente era responsável através, quer pessoalmente, quer por acesso remoto, sem interferir com o normal funcionamento do hotel, pedindo ainda esclarecimento sobre quem retirara a password que dava à R. acesso ao sistema informático do hotel, ao que a A. respondeu, no dia 14 e 16 seguintes, manifestando incompreensão sobre o não acesso ao sistema informático, ao mesmo tempo que referia ter constatado problemas no sistema, tendo dado instruções para resolver tecnicamente a situação e preparar participação criminal sobre essa matéria e que questionava se não seria a Ré a responsável pelos problemas informáticos, considerando as afirmações desta “gravíssimas” (BF a BI);
Também por cartas de 14 e 16 de Novembro a R. manteve que a A. devia assegurar de imediato o seu acesso remoto à contabilidade, tal como vinha acontecendo, por ser legalmente responsável por ela e em 29 desse mês queixou-se novamente de não ter tido acesso ao programa de contabilidade, por não dispor dos logins e passwords, que só a A. conhecia e mudava quando queria, esclarecendo que, contrariamente ao afirmado pela A., tudo foi feito “de acordo com as indicações do Director do Hotel e que apenas tínhamos acesso, como era do vosso conhecimento, ao software do front office. Tal acesso desde o início permitido não só à responsável pela contabilidade da empresa, com o intuito de permitir os elementos necessários ao controlo daquela, como à firma que forneceu o software por forma a permitir a intervenção remota em caso de avaria” (BJ e BO, doc. n.º 103);
Alguns empregados do Hotel sabiam que o Eng. Carlos ... podia aceder ao sistema informático do Hotel, para assistência técnica, através do programa PC Anywhere, tendo deixado no Hotel um conjunto de relatórios de que constava a indicação desse programa, desconhecendo a A., até Novembro de 2000, a existência no servidor do Hotel de um programa designado PC Anywhere (factos 264. e 268.);
A instalação desse programa foi feita sob os ícones de “Assistência” ou “Manutenção”, por forma não encoberta, não se mostrando que a utilização do acesso remoto tivesse causado danos no funcionamento do sistema informático (facto 268. e q.tos 97º e 127º).
Em 30 de Novembro foi apresentada a queixa, que veio a ser arquivada pelo Ministério Público, em Janeiro de 2002, por não haver indícios que pudessem sustentar a prática de qualquer ilícito penal, decisão que foi mantida após novas investigações determinadas por intervenção hierárquica. Requerida a abertura da instrução, não houve qualquer pronúncia dos arguidos, embora se reconhecesse que tinham acontecido “acessos remotos a dados contidos em programas informáticos, mas só tendo por finalidade a respectiva consulta e com os indicados fins, no âmbito da execução do contrato de gestão, ainda que ao abrigo de uma errada interpretação deste, o que não cabe apurar nos autos”, despacho que foi confirmado em recurso por acórdão de 26/10/2006 (doc. fls. 3213). Na mesma data. A A. enviou carta à R., imputando-lhe incumprimentos contratuais, com interpelação admonitória para rescisão do contrato de gestão e informando já ter tomado as medidas legais adequadas quanto aos problemas de natureza informática.

Na participação criminal – documento n.º 161, que o ponto 67. da matéria de facto dá por reproduzido (BP) -, a BB alude a alterações de salários de funcionários no respectivo programa, desaparecimento de ficheiros relativos a contratos de funcionários e ao programa de salários, alterações dos parâmetros da impressora e outras irregularidades, no departamento de contabilidade e do pessoal; alteração da lista de stocks no departamento de compras, mediante utilização não autorizada da password de um funcionário; abertura e fecho de janelas, no ecrã da recepção, que não estavam a ser utilizados, como se alguém “invisível” nele estivesse a trabalhar, tudo “prejudicando de forma gravíssima a gestão da Denunciante”. Por isso, continua, iniciou pesquisas sobre as anomalias e irregularidades, procedeu à anulação dos log-in e passwords e, logo após a sua actualização, recebeu, com surpresa, o fax do Eng. Carlos Leitão “solicitando a imediata reposição o utilizador que habitualmente utilizava”; viu-se, então, confrontada com a existência de diversos utilizadores e passwords desconhecidos e constatou a existência do programa PC Anywher, não constante do inventário.
Acrescenta que “o Grupo Ferpinta decidiu, ao que parece desde o início das relações comerciais com a Denunciante, apropriar-se indevidamente de informações privilegiadas e aceder indevidamente a programas que entregou e passou para a responsabilidade da BB”, a AA e outros alteram a conformação do programa informático da central telefónica por forma a permitir que chamadas telefónicas fossem efectuadas por uma extensão desconhecida, sendo os respectivos custos, por este meio, “sub-repticiamente introduzidos nos custos do próprio hotel” e suportados pela Denunciante.
Depois, a BB aponta as condutas que imputa aos representantes da AA como indiciadoras de “uma clara premeditação logo desde o início da relação entre as duas empresas (…) agravada pelos cuidados utilizados no encobrimento da sua introdução no sistema informático do hotel, com isso visando e logrando obter informações confidenciais relativas á imagem, logótipo, processo organizativo e controlo do know how exclusivo da cadeia BB (…), apropriando-se ilicitamente dos segredos do comércio da BB quando a própria AA é proprietária e exploradora de uma unidade hoteleira sita em Idanha-a-Nova”, mais causando graves prejuízos e danos no normal funcionamento do hotel.
Daí a imputação dos já aludidos crimes de violação de correspondência/telecomunicações, furto qualificado, burla informática, dano qualificado, sabotagem informática, acesso ilegítimo a dados e programas e concorrência desleal.



É fundamentalmente à luz dos elementos de facto seleccionados, em resumo e parcialmente transcritos, que se impõe responder à questão da violação do dever de abstenção de comportamento conducente e determinante da extinção relação de confiança, dever genérico a reflectir correcção, lealdade e boa fé que, na colaboração indispensável à consecução do fim do contrato, acaba por assumir o “valor de uma obrigação principal”.


Do quadro posto em relevo resulta que, de todo o conteúdo da participação criminal, apenas ficou demonstrada a existência dos acessos remotos através do programa PC Anywhere, acessos esses que, sendo do conhecimento de alguns funcionários de BB, foram mesmo objecto de auto-denúncia da AA, no imediato seguimento da anulação da password do seu director informático.
E, se é certo que a BB desconhecia a existência do servidor PC Anywhere, que só detectou em Novembro de 2000, como ficou provado, não pode, de todo, olvidar-se que o mesmo, embora sob os ícones “Assistência” e “Manutenção”, estava instalado por forma não encoberta e era do conhecimento de alguns funcionários, tendo mesmo o Eng. Carlos ... deixado relatórios relativos a tal programa.

Depois, aquando da apresentação da queixa, como, aliás, nela escreve, tinha a A. perfeito conhecimento, havia dez dias, dos acessos, dos seus autores e da finalidade que estes lhes atribuíam. É o que resulta da anulação que então fez das passwords e da imediata reacção da R. e dos termos em que esta ocorreu.

Mal se compreende, de resto, que, conhecendo funcionários seus, embora, porventura, com incompletude, a instalação do programa que permitia o acesso remoto (cujos relatórios foram deixados no Hotel) e a sua efectiva utilização, a Autora (seus representantes) se mantivessem na ignorância durante meses, apesar da omissão no inventário.

De lembrar, ainda, que a queixa foi apresentada simultaneamente com a notificação admonitória da Ré, imputando-lhe vários incumprimentos – relativos a inventário, obras, licenciamentos, informática e anomalias na entrega do hotel (doc. n.º 171, arts. 408º e 296º a 362º da P.I.) - com vista à resolução contratual, ao abrigo da cláusula resolutiva convencionada.
Ora, actuado o mecanismo conducente à resolução por incumprimento, incluindo o fundamento das violações na instalação e utilização do sistema informático e consequentes danos, sublinha-se, fica por explicar, no confronto com uma postura de boa fé e lealdade, a duplicação de meios utilizados.
Parece, desse comportamento, não poder deixar de deduzir-se que a A. se quis colocar para além do estrito âmbito das relações contratuais, já francamente degradadas, resvalando para outras formas de punição cuja necessidade de utilização se não vislumbra.


O conflituoso relacionamento entre as Partes, cuja origem remonta a época anterior ao próprio início de execução do contrato, considerado como tal o período de pré-abertura do Hotel, não nos parece constituir fundamento com idoneidade ou relevância suficientes para apresentação da queixa-crime, com o conteúdo que a mesma encerra, mormente quando, insiste-se, ao mesmo tempo se usa da interpelação admonitória (visando, em primeira linha, como é de lei, a cessação da mora e a realização das prestações devidas – conformes ou sem vícios/defeitos).
Neste ponto não temos dúvidas em subscrever o entendimento expresso no voto de vencido do acórdão arbitral onde se pode ler: “Numa relação previsivelmente duradoura, o que seria recomendável, o que estaria de acordo com o senso comum e com a razoabilidade, é que as partes diligenciassem inverter relacionamento de tanta hostilidade e acrimónia e não que uma delas despejasse gasolina sobre o fogo. E o tivesse feito quando nem sequer necessitou de investigar os acessos remotos - pois se soube deles pela boca das próprias demandadas, pois se tais acessos eram efectuados através de sistema instalado de forma não encoberta, pois se tudo era sabido de funcionárias do hotel - e legitimamente lhes pôs cobro sem aparente dificuldade.”

Assim, conclui ainda, a desproporcionalidade entre a ilicitude da conduta da AA e a reacção consubstanciada na participação criminal em causa – com toda a panóplia de imputações ofensivas do bom-nome e não provadas - afigura-se-nos, não só desproporcional, como vem reconhecido nos julgados impugnados, mas também manifesta e intoleravelmente desproporcionada, cortando de vez com os também reconhecidamente ténues laços de confiança ainda existentes entre as Partes.


De notar que uma coisa é a confiança entre as Partes estar deteriorada e em progressiva degradação, com acusações recíprocas de incumprimentos e ameaças de resolução, clima que os autos abundantemente reflectem, o que tudo era susceptível e, quiçá, justificativo da cessação da relação contratual, com ou sem consequências indemnizatórias, outra coisa será, parece-nos, para além desse âmbito das relações próprias do contrato e sem qualquer repercussão útil nas mesmas ou na sua liquidação, um dos contraentes, em contrato de cooperação e confiança, acusar o outro da comissão de crimes decorrentes de violações das relações contratuais, as quais, de resto, quanto às actuações dolosas não ficaram demonstradas.
Foi, permita-se a expressão, a cereja colocada no topo do bolo.


Sob este aspecto, a queixa, porque de indecifrável utilidade face ao (simultaneamente) despoletado mecanismo admonitório – visando, inter alia, a solução dos problemas informáticos ou a resolução do contrato - e porque a Apresentante, apesar do acervo de imputações que fez, nada mais demonstrou existir que os confessados acessos remotos, quando formulada, como foi, sem precedência de um contacto a dar notícia das convicções da Denunciante e da sua efectiva intenção, bem pode considerar-se também abusiva, à luz dos princípios da boa fé, correcção e lealdade, e mesmo temerária, agora no confronto entre a factualidade denunciada e a provada (vg. quanto aos factos relativos ao furto e à concorrência desleal).


Não poderiam as Recorridas deixar de prever que, ao procederem criminalmente em semelhantes termos, inviabilizavam totalmente a continuação da execução do programa contratual, ferindo de morte o contrato e, como tal, destruindo, só por isso, qualquer efeito útil à interpelação admonitória.
Com efeito, pergunta-se, para que haveria de servir a fixação de um prazo para expurgação da mora ou sanação de vícios ou defeitos, em execução formal da cláusula resolutiva, se, paralelamente, se destrói toda a confiança indispensável à consecução do contrato e a que, dada a natureza deste, é de conferir, como referido supra (citando Baptista Machado) “o valor de uma obrigação principal”?


Crê-se, pois, que a participação criminal em causa é de considerar um acto de destruição irreversível do relacionamento entre as Partes, afectando definitivamente futura viabilidade de continuação e desenvolvimento do programa de execução contratual, tornando inexigível, face ao princípio da boa fé, a manutenção do contrato.


Resta aludir à invocada desvalorização da queixa-crime, para efeitos de “justa causa” de resolução por configurar o exercício de um direito fundamental de acesso aos tribunais (art. 20º da Constituição da República).

Não se questiona que assim é.
Também se tem por certo que o exercício da denúncia criminal contém, em regra, objectivamente, uma ofensa à hora ou ao bom-nome, na medida em que através dela se procede à comunicação de factos que caracterizam um comportamento criminoso.

Tanto bastará, sempre, para se desenhe um conflito de direitos, a resolver nessa sede - art. 335º C. Civil.
E a verdade é que, não sendo a denúncia caluniosa e respeitado pelo respectivo denunciante o dever geral de diligência, “devendo haver abstenção se o acto praticado puder, previsivelmente, e sem causa, lesar os direito de outrem”, o exercício do direito de queixa deve prevalecer sobre o, também fundamental, direito à honra (cfr. ac. desta Secção de 18/12/2008 – Proc. 08A2680).

Cremos, porém, que, no caso, não há, sequer, que proceder a esse confronto de direitos para, em sede de colisão, decidir pela precedência de um sobre o outro.

Aqui, não estão em causa relações entre sujeitos de direito enquanto meros cidadãos ou pessoas jurídicas ofendidas por factos qualificáveis como crimes e os respectivos lesantes, sem mais.
Diversamente, movemo-nos num círculo inter-subjectivo muitíssimo mais restrito, correspondente à esfera de direitos e deveres emergentes do vínculo contratual em negócio em que a confiança recíproca e os imperativos de colaboração reduzem ainda mais o volume dessa esfera.

Assim, ao que haverá de responder não é uma genérica questão de colisão de direitos e respectiva prevalência mas de, apesar disso, haver justificação para aquela queixa no âmbito da especial relação que vincula as Partes.

Ora, nesta perspectiva, a resposta é a que já atrás se deixou formulada.

Julga-se, por isso, ter havido justa causa de resolução.


4. 1. 3. - Reconhecida a justa causa, resulta a licitude da resolução e, consequentemente, a inexistência da obrigação de indemnizar com tal fundamento, que é o único que suporta a condenação das Recorrentes AA e CC relativamente aos danos por lucros cessantes.


Assim, se outros prejuízos passíveis de reparação houver, tendo por fonte, designadamente, violações contratuais perpetradas pelas mesmas Recorrentes, delas não há que cuidar agora, por excluídas do objecto do recurso.

Fica, pois, prejudicada a apreciação, subsidiariamente colocada, do desacerto da indemnização atribuída (art. 660º-2 CPC).



4. 2. - Danos de imagem.

4. 2. 1. - As Recorrentes insurgem-se ainda contra a condenação no pagamento da indemnização de 100.000,00€, a título de danos de imagem, argumentado que os factos em que vem fundada a indemnização carecem de expressão económica ou financeira, em termos de prejuízo, sempre sendo de excluir aquela quantia, que tem servido de tecto de indemnização pela perda do direito à vida.


A Recorrida sustenta ser o dano em causa indemnizável quer como dano patrimonial indirecto quer como dano não patrimonial, indica os respectivos factos de suporte e conclui pela reposição da indemnização no montante atribuído na decisão arbitral (250.000€), o que, como se viu já, constitui objecto do seu recurso.


As Instâncias, depois de admitirem a existência dos denominados danos de imagem, identificaram os factos susceptíveis de os reflectirem e reconduziram-nos a “um subtipo de danos patrimoniais indirectos do tipo de danos qualificados como lucros cessantes”, procedendo à sua quantificação com recurso à equidade, visto não haver elementos de facto que permitissem fazer funcionar o devido critério “com base na comparação entre o volume de negócios do lesado antes e depois da verificação do facto ilícito danoso, levando em conta outros factores sobre a evolução negativa da actividade empresarial” (acórdão arbitral, fls. 200; fls. 2.888 dos autos, citando C. Massimo Bianca, “Diritto Civile, V, La Responsabilità”, Milão, Griuffrè, pg. 126).

Não foi considerada, ao menos em termos reconhecíveis, em qualquer caso, no quantum indemnizatório, qualquer componente autónoma proveniente da vertente não patrimonial do dano de imagem, nem a questão foi concretamente colocada pelas Partes ou equacionada pelos Julgadores, mas apenas que os factos – ocorridos durante a vigência do contrato e após a sua resolução, afectando a imagem da A. - tiveram consequências negativas – diminuição da confiança dos operadores turísticos na sua capacidade de gestão e perda do convite para apresentar proposta para um novo contrato -, que se traduzem em perda económica em valor não apurado (ac. recorrido, fls 115/6; fls. 3.040/1 dos autos).



4. 2. 2. - Assim, liminarmente, deve dizer-se que carece que fundamento a invocação das compensações por perda do direito à vida com a indemnização fixada no processo pela perda de imagem.

Desde logo, ali está em causa uma compensação por danos não patrimoniais, ao abrigo do especialmente previsto no n.º 2 do art. 496º C. Civil; aqui, a fonte da obrigação de indemnizar, ao menos nos termos em que foi reconhecida, insere-se na responsabilidade contratual (embora o pudesse ser também na responsabilidade aquiliana), na categoria dos danos patrimoniais.

De resto, neste ponto, ao menos a nosso ver, incorrem as Recorrentes em contradição ao insurgirem-se, por um lado, contra a ausência de prova de prejuízos com expressão económica justificativa da reparação, como é requisito próprio dos danos de natureza patrimonial e, por outro, fazem apelo comparativo a uma das expressões mais puras do dano não patrimonial.



4. 2. 3. - Quanto à exclusão ou redução do montante que vem atribuído:

Como se faz notar nas decisões impugnadas, seleccionando a factualidade para o efeito relevante, resultou provado o seguinte:
- as condições em que o Hotel abriu tiveram repercussão na imprensa local e especializada (resposta ao número 31. ° da Base Instrutória), tendo a BB visto afectada a sua imagem pelos factos ocorridos durante a vigência do contrato de gestão, bem como a partir da resolução do mesmo (resposta do número 175. ° da Base Instrutória).
- a BB sofreu prejuízos por causa da afectação da referida imagem (resposta ao número 176. °);
- as condições em que ocorreu a abertura do Hotel abalaram a confiança dos operadores turísticos na capacidade de gestão da A., e, em consequência, houve uma perda de peso negocial desta (resposta ao número 177.º da Base Instrutória),
- tendo mesmo deixado de ser convidada para apresentar proposta quanto a um novo contrato de gestão com terceiro (resposta ao número 179. ° da Base Instrutória).
- a forma como as Demandadas resolveram o contrato e tomaram conta do Hotel teve reflexos graves na imagem da A. e do Grupo BB (resposta ao número 153.º da Base Instrutória).


É certo que, mercê do que nesta peça se deixou já decidido quanto à falta de ilicitude da resolução cai parcialmente um dos pilares em que as Instâncias, e ao que aqui interessa mais a Relação, fizeram assentar o valor equitativo encontrado, o qual era “a forma como as Rés resolveram o contrato”.
No mais, tudo ficou inalterado, sendo que a factualidade realmente disponível, no seu conjunto, aponta para uma situação mais gravosa que aquela que a singeleza da síntese factual chamada à alegação das Recorrentes só por si denuncia.


Apesar de também não ter ficado demonstrado o alegado cancelamento de contratos com operadores turísticos, não pode deixar de concordar-se com o que vem decidido sobre a verificação de perdas económicas futuras resultantes da perda de confiança dos operadores turísticos na gestão da A., do seu peso negocial e de ter sido arredada do concurso a outro contrato de gestão.

Por outro lado, impondo-se a indemnização desse dano patrimonial indirecto, a matéria provada, isto é, os limites dentro dos quais o Tribunal deve mover-se na quantificação do dano – art. 566º-3 C. Civil -, não conduzem a valor diferente do encontrado, sendo que as Recorrentes também nenhum elemento aduzem para o efeito.


Não se vêem, assim, razões para alterar, reduzindo-a a indemnização que vem fixada.


5. – Mérito da revista da Autora BB.

O recurso interposto pela Demandante BB tem por objecto, como definido pela própria Recorrente, a impugnação da alteração da decisão arbitral, pela Relação, da indemnização por danos de imagem, reduzindo-a de 250.000€ para 100.000,00€, e a manutenção da quantia atribuída a título de lucros cessantes, como indemnização pela ilícita resolução contratual.


5. 1. - Indemnização por lucros cessantes.

A apreciação do objecto desta segunda questão está totalmente prejudicada pela solução encontrada no conhecimento do recurso das Rés AA e CC.
Com efeito, como aí se deixou dito, não reconhecida a ilicitude da declaração resolutiva, nenhuma indemnização há a atribuir, a título de lucros cessantes (interesse positivo), pela cessação do contrato, haja ou não, na liquidação da relação contratual, créditos fundados em cumprimentos defeituosos.

Não há, consequentemente, lugar à omissão de pronúncia sobre a questão suscitada (art. 660º-2 CPC).


5. 2. - Danos de imagem.

A Recorrente pretende ver reposta a indemnização que lhe foi fixada pelo tribunal arbitral.
Argumenta, no essencial, por um lado, que o que está em causa é a “afectação da potencialidade de lucro”, a repercussão dos danos na sua imagem na susceptibilidade de gerar lucros na actividade futura e, por outro lado, que esses danos têm também a natureza de danos não patrimoniais.

Já se referiu, na apreciação do recurso das Rés ser pacífica a existência do dano de imagem, em que é lesada a BB
Também já se assentou em que esses danos, na medida em que afectam o escopo lucrativo da empresa, com repercussão no desenvolvimento da sua actividade, deve ser indemnizado, como dano patrimonial indirecto, sem redução do valor encontrado pela Relação (cem mil euros).


5. 2. 1. - Diferentemente do que alega a Recorrente, nada permite deduzir que o acórdão impugnado, apesar de ponderar que o dano patrimonial indirecto se concretiza como reflexo negativo na respectiva potencialidade de lucro, não tenha considerado a repercussão dos danos na susceptibilidade de gerar lucros na actividade futura, nomeadamente reportando-se ao dano já existente.

Bem pelo contrário, no seguimento do critério da “potencialidade de lucro” na fundamentação do direito á indemnização logo se alude à ofensa do bom nome comercial (dano de imagem) como facto que se projecta em dano patrimonial revelado pelo afastamento de clientela e consequente frustração de vendas e perda de lucros por via da repercussão negativa que advém à sociedade em razão da má imagem que se propaga.

Não resulta, pois, da fundamentação do acórdão qualquer desvio ao critério utilizado pela decisão arbitral quanto aos fundamentos de facto e de direito que suportam a atribuição da indemnização, cuja redução assentou apenas na escassez de factos – é essa a motivação da divergência, que a Recorrente diz não traduzir uma sustentação mínima - para servir de suporte a montante superior ao tido por equitativo.

De resto, como é sabido, não existem comprovados quaisquer danos já efectivamente concretizados, procurando reflectir a indemnização o valor estimável da repercussão económica da factualidade provada quer na vigência do contrato quer para além dele e apesar dele.


5. 2. 2. - A Recorrente defende ainda que a Relação não devia ter alterado o montante da valoração dos danos, em virtude os mesmos terem também a natureza de danos não patrimoniais, de prova “difícil e complexa”, não podendo a Relação esperar uma “quantificação precisa” desses danos não patrimoniais.


Aceita-se a posição da Recorrente quanto ao entendimento defendido no sentido da possibilidade de ressarcimento de danos de natureza não patrimonial às sociedades comerciais.

Com efeito, reconhecidos a essas pessoas colectivas a titularidade de direitos de personalidade (art. 160º-1 C. Civil) e a tutela penal da honra (art. 187º-1 C- Penal), quando demonstrada a ofensa de bens imateriais que, pela gravidade da ofensa, mereçam a tutela do direito temos como admissível que a compensação por danos não patrimoniais deve ter-se por juridicamente acolhida.
Embora não tenham capacidade de sofrimento, padecendo dores físicas ou morais, como as pessoas físicas, destinatárias naturais da protecção da personalidade, as sociedades comerciais podem ver ofendido o seu bom nome e reputação, sob a perspectiva da consideração comercial e social, sofrer perda de prestígio com afectação da sua imagem.
Nessa medida, desde que compatíveis com a sua natureza e não inseparáveis da personalidade singular, serão de reconhecer às pessoas colectivas, designadamente às sociedades comerciais, apesar do seu escopo lucrativo, os direitos pessoais reconhecidos às pessoas singulares (cfr. arts. 12º-2 e 26º-1 CRP; 70º-1, 72º e 160º-1 e 2 C. Civil; JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, I, 284 (anot. I, ii ao art. 26º)).

De resto, o direito à compensação por danos de natureza não patrimonial é hoje, crê-se que em termos muito largamente maioritários, aceite pela Jurisprudência dês Supremo (cfr., por exemplo, os acs. de 19/10/2003 (proc. 03B1581), 8/3/2007 (proc.07B566), 12/2/2008 (proc. 07A4618) e de 19/6/2008 (proc. 08B1079); sobre o tema pode ver-se ainda MARIA M. VELOSO, “Danos não patrimoniais na sociedade comercial”, in “CADERNOS DE DIREITO PRIVADO”, nº 18, 33 e ss.).


Os danos em causa podem revestir-se de natureza patrimonial e de natureza não patrimonial, relevando nessas duas vertentes.

As pessoas colectivas transmitem para a sociedade uma imagem da forma como funcionam e prestam serviços ou fornecem bens do seu comércio.
Se essa imagem for ofendida por outrem, são lesadas na sua boa imagem, com o inerente prejuízo do seu crédito comercial e bom-nome.
Nessa medida assiste-lhes o direito de defenderem esse bom-nome como um “direito à boa fama no mercado”, ao seu prestígio perante a clientela, presente e futura (efectiva e eventual).


Em princípio, as ofensas ao bom-nome comercial, abalando a boa fama da empresa, reflectem-se num dano patrimonial, a manifestar-se no afastamento da clientela e na consequente diminuição do giro comercial.
O ressarcimento dos efeitos danosos caberá, assim, em regra, na esfera de protecção dos danos patrimoniais, do dano patrimonial indirecto.
Como se escreveu no citado ac. de 19/10/2003, apreciando questão com manifesta analogia com a que aqui se apresenta, esses danos relativos ao “bom-nome comercial, à perda de clientela, ou outras frustrações de ganho não existem a retalho (dano patrimonial versus dano não patrimonial); mas existem, e valorizam-se, integrados num conjunto normativo que não pode excluir a indissociabilidade dos dois aspectos, que o pedido também não diferencia concretamente”


Mas, como já se deixou referido, pode não ser necessariamente assim, o que sucederá sempre que em causa esteja a protecção de interesses imateriais, “como o prestígio social, a identidade ou a esfera do sigilo, sem qualquer afectação concomitante da esfera patrimonial” (CDP, A. e ob. cit., 41).
Não poderá acontecer é que, sob pena de duplicação de danos, se considere o prejuízo a reparar, a um tempo, como dano não patrimonial e patrimonial. Há que, sendo caso disso, proceder à necessária distinção, diferenciando-os.

Ora, reportando aos termos da petição inicial, constata-se que a Autora-recorrente, invocando danos de imagem sofridos na pendência do contrato e após a sua resolução, que alegou decorrerem de indemnizações pagas, atrasos de recebimentos, perda de confiança de operadores e clientes e perda de poder negocial, tudo devido aos atrasos e adiamentos na abertura do Hotel, bem como de declarações falsas e irresponsáveis sobre a execução do contrato, apesar de aludir à imaterialidade dos valores ofendidos (“lesão da reputação, por afectar a força atractiva e prestígio comercial da marca e, em consequência o seu valor económico”), computou a indemnização por referência aos seus proveitos operacionais de um exercício anual

Não foi estabelecida, pois, na petição, qualquer distinção, mediante discriminação ou indicação diferenciada de factos a integrar uma ou outra categoria de danos e respectivos montantes reclamados.
Nomeadamente, não foi feita qualquer alusão à figura dos danos não patrimoniais, como tal qualificando os factos alegados, nem teve lugar qualquer valoração dos invocados “danos de imagem” que não fosse na perspectiva puramente económica e por referência uma repercussão dessa natureza.


Ao fazer relevar os escassos factos apurados como dano patrimonial indirecto, como, de resto, o fizera também o acórdão arbitral, o acórdão impugnado não deixou de ter em conta a repercussão negativa dos factos provados, enquanto danos de imagem, nos precisos termos sobreditos (afastamento de clientela, frustração de vendas, etc.), tudo em termos de oferecer a adequada cobertura dos prejuízos da quebra da boa imagem comercial da Autora, tal como esta o propôs na petição, sendo certo que não se autonomizam danos decorrentes de puras violações de interesses imateriais.

Nesta conformidade, não se encontra fundamento para a pretendida censura à alteração da indemnização efectuada pela Relação que, não bulindo com a qualificação efectuada pela arbitragem - com a qual a Recorrente não manifestou oportunamente discordância (no recurso de apelação) -, se limitou a valorar em baixa os danos, face ao juízo de equidade que formulou, juízo que, como é sabido, se reveste sempre de contornos imprecisos e com elevada carga de subjectividade.


Resta acrescentar que, relativamente à verba encontrada, não se impõe agora qualquer alteração para mais, atenta a já aludida insubsistência da componente do dano decorrente da quebra de prestígio e afectação da imagem atribuível à resolução ilícita do contrato e forma como as Recorridas tomaram posse do Hotel.


Improcedem, assim, as pretensões da Recorrente BB.



6. – Decisão.

Em conformidade com o que se deixou exposto, acorda-se em:

- Conceder parcialmente a revista pedida pelas Recorrentes AA, S.A. e CC, S. A.;

- Negar a revista subordinada pedida pela Recorrente BB;

- Revogar, em consequência o acórdão impugnado na parte em que manteve a condenação da Ré AA e da Interveniente Principal CC no pagamento à Autora BB, a título de lucros cessantes, da quantia de 1 950 146,04€ (um milhão novecentos e cinquenta mil cento e quarenta e seis euros e quatro cêntimos); e,

- Manter, quanto ao mais objecto dos recursos, o decidido no acórdão impugnado.


- As custas dos recursos ficam a cargo das Partes na medida e na proporção dos respectivos decaimentos.


Lisboa, 21 Maio 2009

Alves Velho (relator)
Moreira Camilo
Urbano Dias