Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
308/08.7ECLSB.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: MAIA COSTA
Descritores: VÍCIOS DO ARTº 410.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
ESPECULAÇÃO
AGRAVANTE
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/02/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :

I - O erro notório na apreciação da prova, vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Porém, o vício, terá de constar do teor da própria decisão de facto, não da motivação dessa decisão, ou da fundamentação de direito.
II - O crime de especulação visa proteger a estabilidade dos preços, enquanto bem jurídico projectado numa pluralidade de interesses: economia nacional, concorrência, direitos dos consumidores.
III - Particularmente relevantes se mostram estes últimos na modalidade prevista na al. c), que pune a venda de um produto ou serviço por preço superior ao afixado pela entidade vendedora ou prestadora do serviço, permitindo assim ao consumidor o confronto imediato entre o preço marcado (o preço “legal”) e o preço pretendido pelo vendedor.
IV - São elementos típicos do crime a venda de bens ou serviços por preço superior ao que for marcado, por meio de etiquetas, rótulos, letreiros ou listas, pela própria entidade vendedora ou prestadora do serviço.
V - Não é elemento típico a intenção lucrativa, a qual, a verificar-se, funcionará como circunstância agravante, podendo o crime ser cometido dolosamente, ou por negligência (n.º 3 do mesmo artigo).
VI - Se, como no caso dos autos, ficou provado que o arguido, nas circunstâncias de lugar e tempo indicadas, pôs à venda, por meio de anúncio, um bilhete para um concerto de música, a realizar pela cantora Madonna, desde logo indicando o preço de € 450,00, e depois vendeu o dito bilhete por esse preço, quando do bilhete constava a quantia de € 60,00 como preço estabelecido pela entidade promotora do espectáculo, tendo actuado deliberada, livre e conscientemente, visando obter um lucro de € 390,00, e sabendo que a sua conduta era punível, é de concluir que estes factos preenchem todos os elementos típicos do crime em referência, na sua forma dolosa, acrescendo a intenção lucrativa, como circunstância agravante da conduta do arguido.

Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. RELATÓRIO

O Lic. AA, Procurador-Adjunto, foi condenado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 1ª instância, por acórdão de 24.6.2010, como autor material de um crime de especulação, p. e p. pelo art. 35º, nº 1, c), do DL nº 28/84, de 20-1, na pena de 330 dias de multa, à taxa diária de € 10,00. (1)
Desse acórdão interpôs o arguido recurso para este Supremo Tribunal, concluindo:

1) O Tribunal incorreu em erro notório na apreciação da prova - art. 410°, n.° 2, c), do CPP - quando considerou que o inspector da ASAE anotou (manuscreveu), no documento de fls. 6 o nome do arguido, pois o que este efectivamente anotou foi parte de um endereço electrónico, aliás, constante já do próprio documento original.
2) Igualmente incorreu em erro notório na apreciação da prova quando considerou que no documento de fls. 7 se vê referenciado um qualquer endereço electrónico, designadamente o do arguido.
3) Contrariamente ao que entendeu o Tribunal recorrido, o arguido - ainda que só alegadamente - nunca estabeleceu qualquer contacto escrito, via e-mail, com o inspector DD, designadamente aquele a que se reporta o ponto 3) dos factos provados.
4) A identidade da pessoa que alegadamente terá contactado, via e-mail, o arguido permanece desconhecida, pois que nenhuma das testemunhas que depuseram em audiência de julgamento reconheceu ter contactado por via electrónica o arguido.
5) Nem qualquer prova se fez que o arguido tivesse respondido a qualquer email.
6) Contrariamente ao que entendeu o Tribunal, a testemunha DD nunca disse - tanto que não se lembra - que o arguido lhe havia referido que o preço pretendido pelo bilhete era de € 450,00.
7) Aquilo que se recorda, designadamente o preço, advém-lhe do próprio processo, que consultou, antes de prestar declarações.
8) Contrariamente ao que referiu e considerou o Tribunal, a testemunha CC nunca referiu que o arguido tivesse guardado o envelope (e o dinheiro que este contivesse) na parte de dentro do blusão que vestia.
9) De igual modo, também o Tribunal considerou que a testemunha EE havia referido o mesmo, quando, na verdade, a testemunha, referiu nada se lembrar, acerca desta matéria.
10) Contrariamente ao que entendeu o Tribunal na motivação que fez aos factos provados, a testemunha FF apenas referiu que, não tendo a certeza, era apenas sua convicção de que o arguido guardou o envelope no interior do blusão que vestia, e nunca que o guardou aí efectivamente.
11) Nestes pontos esteve mal o Tribunal na avaliação da prova que fez.
12) Porque são contraditórios, o Tribunal deveria ter considerado e analisado os depoimentos prestados pelas testemunhas FF e EE e não apenas aquele que escorreu da testemunha CC no que concerne ao suposto afastamento (de 2 ou 3 metros) do arguido, logo após ter recebido o envelope.
13) Incorreu o Tribunal, portanto, neste ponto, para além do vício da falta de fundamentação - art. 374°, n.° 2, do CPP - do vício previsto no art. 379.°, n.° 1, al. c) do mesmo código.
14) Atendendo à prova produzida em audiência de julgamento, não resultaram provados os factos constantes dos pontos 2), 3), 6) e 7) que aquele Tribunal deu como provados.
15) O arguido nunca pediu € 450,00 pelo bilhete que pretendia desfazer-se, seja por via de anúncio, por via electrónica ou pessoalmente.
16) Nenhuma das testemunhas que depôs em audiência de julgamento referiu ter visto, na primeira pessoa, publicitado o anúncio da internet a que se reporta o doc. 7 dos autos.
17) O arguido nunca pediu ao seu comprador - inspector CC - o valor de € 450,00 pelo preço do bilhete; nem esse, nem qualquer outro!
18) E nem precisava de o pedir, porque no próprio bilhete que lhe entregou estava já inscrito o preço do mesmo pela entidade promotora do espectáculo.
19) Sem auto de apreensão do dinheiro (e do envelope), o Tribunal recorrido não poderia dar como provado o ponto 6) da factualidade que deu como provada, pois o dinheiro, fazendo parte de um elemento essencial do crime (preço), só poderá ser provado por documento.
20) O Tribunal violou o princípio in dubio pro reo pois, colocado numa situação de dúvida irremovível na apreciação das provas, designadamente quanto ao preço pretendido pelo bilhete, decidiu, em tal situação, contra o arguido, condenando-o.
21) Atendendo à específica matéria de facto por que vem pronunciado o arguido, designadamente pretendendo vender um só bilhete, que comprou para uso pessoal, acrescendo-lhe, todavia, custos pessoais de aquisição e de depósito, a consequência jurídica não pode ser criminalmente típica.
22) Ao condenar o arguido, o Tribunal violou o art. 35°, n.° 1, al. c), do DL 28/84, de 20 de Janeiro, por erro de interpretação e aplicação.
23) O tribunal violou igualmente o preceito constitucional contido na 2ª parte do art. 32°, n.° 5, da CRP ao considerar como suficiente apenas a prova testemunhal prestada pelo sr. inspector CC para dar como provado o ponto 6 (2ª parte) dos factos provados, sabendo o mesmo Tribunal que, quanto à mesma matéria, o arguido nada pode vir a dizer ou contradizer, por pessoalmente a desconhecer.
24) Nesta medida, a sua defesa encontra-se, também ela, coarctada.
Nestes termos, deverá ser dado provimento ao recurso e absolver-se também o arguido AA pelo crime de especulação por que vem condenado.

O Ministério Público respondeu, dizendo:

1- Aquilo que o recorrente denomina como erro notório na apreciação das provas apenas enquadraria um erro de julgamento e não o vício previsto no art°. 410°, n°. 2, alínea, c) , do CP.Penal;
2- Como tribunal de revista alargada, o STJ apenas conhece, em recurso, de matéria de direito, sem prejuízo do conhecimento dos vícios previstos no n°. 2, do referido art°. 410°, do CP Penal;
3- Não se verifica violação do princípio in dubio pro reo, pela singela razão de dúvida não existir acerca da respectiva conduta;
4- O Acórdão recorrido mostra-se fundamentado de facto e de direito;
5- A matéria de facto apurada é integradora do crime de especulação p. e. p. pelo art°. 35°, n°. 1, alínea c), do DL. n°. 28/84, de 20/1.

Realizada a audiência de julgamento, nos termos legais, a pedido do recorrente, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

São as seguintes as questões colocadas pelo recorrente:
a) Erro notório na apreciação da prova;
b) Impugnação da matéria de facto (nºs 2, 3, 6 e 7 dos factos provados) e violação do princípio in dubio pro reo;
c) Não integrarem os factos o crime por que foi condenado.
Uma vez que a Relação julgou em primeira instância, o presente recurso, além da matéria de direito, abrange a matéria de facto.
É a seguinte a matéria de facto, e respectiva fundamentação:

1- Em 2 de Julho de 2008, o arguido, AA, adquiriu pelo preço unitário de 60 euros, nele inscrito pela entidade emitente, um bilhete que dava acesso a concerto a ter lugar no dia .........do mesmo ano, no Parque da Bela Vista em Lisboa, a realizar pela cantora M........
2- No dia 26 de Agosto de 2008, colocou sob anonimato - numa página da Internet - lisboacity.olx.pt - um anúncio dando a conhecer a sua disponibilidade para vender aquele bilhete que dava acesso ao referido concerto, fazendo constar do anúncio e, como valor de venda, o preço de 450 euros.
3- Estabelecido contacto pelo inspector da ASAE DD, com vista à confirmação dessa disponibilidade, respondeu o arguido em 29 de Agosto de 2008, a partir do seu endereço electrónico — filcosta@portugalmail.pt — confirmando a mesma e indicando o contacto telefónico para marcação de encontro, com vista à transacção do referido bilhete.
4- Na sequência dessa resposta e, após vários contactos telefónicos para o número de telefone celular indicado pelo arguido na primeira chamada telefónica, foi combinado que o encontro teria lugar no Centro Comercial Fórum em Almada, sendo as indicações sobre a identificação do adquirente e do vendedor fornecidas pelo vestuário exterior que cada um deles usava.
5- Tal encontro veio a verificar-se entre o arguido e o inspector CC, destacado para o efeito, no local combinado cerca das 18hl5m do dia 3 de Setembro de 2008.
6- Durante esse encontro, o arguido entregou o bilhete em causa ao inspector e recebeu do mesmo a importância de 450 euros em notas do Banco Central Europeu distribuídas em quatro maços de 100 euros cada e um de 50 euros; maioritariamente constituídos por notas de 10 e 20 euros.
7- O arguido agiu do modo descrito, conhecendo o preço inscrito no bilhete e propondo-se vendê-lo pelo preço de 450 euros, que fez constar de anúncio na Internet, visando obter lucro de 390 euros.
8- Agiu deliberada, livre e conscientemente com perfeita ciência de que a sua conduta era proibida por lei.
9- O arguido é Procurador-Adjunto há cerca de dois anos; actualmente encontra-se colocado no Tribunal Judicial de Ponta Delgada, auferindo mensalmente cerca de € 3.900,00 líquidos.
10- A arguida, BB é sua esposa; é licenciada em Direito; exerce a sua actividade profissional como Técnica Superior dos Quadros Dirigentes da Inspecção-Geral do Ministério da Defesa Nacional, auferindo mensalmente cerca de € 1.990,00.
11- Ambos os arguidos, têm encargos mensais - € 611,00- com empréstimo contraído para aquisição de habitação.
12- Têm dois filhos menores a cargo, respectivamente, com 1 e 4 anos de idade.
13- Não averbam condenações.
Factos não provados:
Não se apuraram, com relevância para a decisão da causa, quaisquer outros actos, designadamente, todos os factos imputados à arguida, BB, ou sejam:
- que a arguida, por acordo com o arguido, em comunhão de esforços e intenções, tivesse adquirido o bilhete referido em 1) dos factos provados e tivesse colocado sob a página a Internet referida em 2) dos factos provados, o anúncio dando a conhecer a sua disponibilidade para vender aquele bilhete;
- que tivesse proporcionado, ou tivesse conhecimento da venda do bilhete supra referido, por forma a obter um lucro de € 390,00.
Motivação:
Os factos provados resultaram da análise crítica de toda a prova produzida ou examinada em audiência de julgamento.
Em audiência, quanto aos factos imputados, o arguido, AA, referiu que não teve intenção de vender o bilhete por € 450,00, nem pelo mesmo pediu qualquer valor.
A arguida, BB, quanto aos factos imputados, não prestou declarações.
Ambos prestaram declarações sobre a situação pessoal, económica, familiar e profissional.
A testemunha, CC, (inspector da ASAE), referiu que:
Após diligências encetadas pela ASAE, com vista à identificação de potenciais especuladores dos bilhetes de acesso ao concerto a ter lugar no dia 14 de Setembro de 2008, no Parque da Bela Vista, em Lisboa a realizar pela cantora M......., veio a ter conhecimento através da testemunha, DD, igualmente inspector da ASAE, que antes efectuara diligências com vista à identificação do autor do anúncio publicado na página da Internet referida em 2) dos factos provados, que dava a conhecer a disponibilidade, por parte do arguido, da venda de um bilhete pelo preço de € 450,00, que dava acesso àquele concerto, bem como da descrição do arguido e do local onde se procederia à venda de tal bilhete.
Foi-lhe transmitido pela testemunha, DD, que a “transacção” se efectuaria no interior do Centro C................., perto da Loja Sport Zone, sendo que o arguido se encontrava vestido com uma roupa de cor castanha.
Foi-lhe ainda referido pela testemunha, DD, que o arguido o identificaria por usar um boné.
Na prossecução destas diligências, a testemunha, depois de ter recebido das mãos do inspector, DD, a importância correspondente ao preço acordado para a compra do bilhete - € 450,00 – que colocou dentro de um envelope, que este previamente havia levantado junto dos serviços da ASAE, entregou-a à testemunha, CC. Na posse desta, certificou o montante da importância entregue - € 450,00 – e conforme o combinado, depois de a ter guardado numa bolsa, dirigiu-se para o Centro C. de Almada.
Nesta deslocação foi seguido pelas testemunhas, EE, FF e DD, todos inspectores da ASAE, que seguiram em veículos distintos e estavam a par de todas as diligências que iriam ser realizadas.
Mediante orientações da testemunha, DD, e quando a testemunha, CC, se encontrava já no parque de estacionamento do referido C. Comercial, foi-lhe referido por aquela, que o potencial vendedor do bilhete, conforme o combinado, já se encontrava na zona acordada (frente à loja Sport Zone).
De imediato, dirigiu-se para junto daquela loja, junto à qual se encontrava o arguido, que de imediato identificou pela descrição da roupa que trajava, o que também aconteceu por parte do arguido em relação a si, pela descrição do uso do boné, que lhe fora antes feita.
Ao deparar com o arguido, verificou que este se encontrava acompanhado com o seu filho menor, e depois da troca de breves palavras, o arguido sugeriu-lhe que efectuassem a transacção perto de um café próximo daquela loja, o que veio a acontecer.
Enquanto decorriam estas conversas com o arguido, os restantes inspectores da ASAE, que o acompanharam, posicionaram-se a cerca de 5 a 6 metros do local onde a testemunha e o arguido se encontravam, fazendo segurança ao local e, conforme o acordado por todos, mediante sinal previamente e combinado, que se traduzia em a testemunha exibir ao arguido o cartão profissional, avançariam de imediato para junto do local.
A transacção concretizou-se através da prática dos seguintes actos:
O arguido, confiando que a quantia entregue - € 450,00 -, era a previamente acordada, e sem manifestar qualquer conversa sobre o preço do bilhete, entregou-o de imediato à testemunha, dela recebendo, imediatamente, o envelope com a quantia de € 450,00, que o arguido não contou, embora para o mesmo tivesse olhado.
De seguida, guardou tal envelope e a quantia que continha, na parte de dentro do blusão que vestia e, quando já se afastava do local - 2 a 3 metros - da testemunha, esta, dirigindo-se-lhe, identificou-se como inspector da ASAE, momento em que os restantes inspectores, que já se encontravam em movimento para aquele local se aproximaram do mesmo.
Ao identificar-se como inspector da ASAE, e ao referir ao arguido que o mesmo se encontrava detido, por indícios da prática de um crime de especulação, verificou que este, além de nervoso, restituiu de imediato o envelope com a totalidade do dinheiro, que antes recebera a troco do bilhete.
Declarou que o arguido ficou nervoso e que proferiu a seguinte expressão “agora é que sei como os senhores actuam”.
De seguida, o arguido retirou de uma carteira que tinha em local diverso daquele onde guardara o envelope com dinheiro e identificou-se com o seu cartão profissional, evitando, por causa da sua categoria profissional, a sua imediata detenção.
As testemunhas, EE e FF (inspectores da ASAE), referiram que:
Encontravam-se, por razões de segurança, perto do local, a cerca de 5 a 6 metros, onde a transacção, que presenciaram, porque entretanto se foram aproximando daquele, se realizou.
Referiram que observaram a entrega do bilhete, por parte do arguido, a troco do dinheiro entregue pela testemunha, CC, e enquanto este acto decorria, encontravam-se a cerca de três metros do arguido.
Constataram que o arguido não contou as notas que se encontravam no envelope entregue pela testemunha, CC, limitando-se a guardá-las no interior do blusão desportivo, que vestia.
Sabiam que o envelope continha € 450,00, facto que determinou que os mesmos se deslocassem ao local, como precaução, dada a elevada quantia envolvida, e se posicionassem, como se veio a verificar, em local que permitisse evitar qualquer tentativa de fuga, com o dinheiro, por parte do arguido.
Referiram que o arguido, depois da testemunha CC se ter identificado como inspector da ASAE e de lhe ter referido que se encontrava detido, por indícios da prática de um crime de especulação, de imediato restituiu o envelope, com o dinheiro, antes recebido.
Constataram que o arguido referiu, então, ser Procurador, e retirou de imediato de uma carteira um cartão que o identificava com esta sua categoria profissional, razão pela qual não se concretizou a detenção.
Enquanto se identificava como Procurador, o arguido, que se manifestou nervoso, proferiu a seguinte expressão: “agora é que sei como os senhores actuam”.
A testemunha, DD, (inspector da ASAE), referiu que:
No âmbito de uma acção de fiscalização levada a cabo pela ASAE, designada por “Operação Madona” com vista à detecção de eventuais vendedores/especuladores de bilhetes para o concerto referido em 2) dos factos provados, depois de lhe ter sido entregue pelos seus serviços, o suporte documental de fls.7 – anúncio, através da internet, da venda de um bilhete para o concerto M....... – procedeu às diligências necessárias para identificar o titular do endereço electrónico referenciado nos doc. de fls. 6 e 7, tendo conseguido obter o nome do anunciante – AA – e o seu contacto telefónico – 000000000 -, elementos que anotou no documento de fls. 6, conforme em audiência, confrontado com o mesmo, declarou.
Na sequência, depois de vários contactos telefónicos com o arguido, cerca de 3 a 4, no sentido de combinarem o local e hora onde se procederia à venda do bilhete veio o arguido a decidir-se, que seria na semana imediata e que o local da venda seria no interior do Centro Comercial Almada, contrariamente ao pretendido pela testemunha que, por razões logísticas, ainda lhe sugeriu que tal venda se realizasse na zona do Saldanha, em Lisboa.
Naqueles contactos, embora o preço do bilhete - € 450,00 – constasse do anúncio publicado pelo arguido na Internet, e a que se refere o doc. de fls. 7, o arguido sempre lhe referiu que o preço pretendido pelo bilhete era de € 450,00.
Por forma a reconhecer o arguido, este descreveu-lhe a maneira como iria vestido, bem como o local onde se encontrariam.
A testemunha, com o mesmo fim, disse-lhe que a pessoa que o iria contactar para a entrega do dinheiro a troco do bilhete, usaria um boné.
Requisitou junto dos serviços a quantia de € 450,00 em notas de 10 e 20, e entregou-as à testemunha, CC, que conforme indicações que lhe forneceu seguiu para o C. Comercial de Almada onde, sob a vigilância atenta da testemunha e dos restantes inspectores, supra identificados, da forma já descrita, veio a receber das mãos do arguido o mencionado bilhete.
Foram ainda relevantes, conforme já referido, os documentos juntos a fls.6 e 7, bem como o doc. junto a fls. 10 – Bilhete para o Concerto – do qual consta o respectivo preço - € 60,00 – definido e divulgado pela entidade prestadora do espectáculo.
Todas as referidas testemunhas depuseram – acerca do respectivo âmbito de conhecimento dos factos – de forma coerente, serena e consistente, e, com isenção, pelo que se tornaram convincentes e merecedoras de credibilidade, tendo presente a razão de ciência que cada uma delas invocou.
O arguido limitou-se a referir que não teve intenção de vender o bilhete, nem pelo mesmo pediu qualquer importância em dinheiro.
(…)

A) Erro notório na apreciação da prova

Entende o recorrente que o Tribunal da Relação incorreu em erro notório na apreciação da prova, por ter considerado que o inspector da ASAE manuscreveu no doc. de fls. 6 o nome do arguido, pois o que, em seu entender, teria anotado seria parte de um endereço electrónico. Entende ainda que novo erro notório foi cometido pelo Tribunal da Relação ao considerar que no doc. de fls. 7 está referenciado um endereço electrónico, designadamente o do arguido.
O erro notório na apreciação da prova, vício da decisão previsto no art. 410º, nº 2, c), do CPP, verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. O vício, insiste-se, terá de constar do teor da própria decisão de facto, não da motivação dessa decisão, ou da fundamentação de direito.
Analisada atentamente a matéria de facto julgada provada, dela não consta manifestamente qualquer referência a apontamentos manuscritos pela testemunha DD no doc. de fls. 6.
Quanto à atribuição ao arguido do endereço electrónico referido no nº 3), é evidente que não poderia nunca envolver erro notório na apreciação da prova, porque esse facto não contraria, de forma frontal e clara, as regras da experiência comum, antes, como veremos adiante, se coaduna perfeitamente com a prova produzida.
Improcede, pois, a invocação do vício da al. c) do nº 2 do art. 410º do CPP.

B) Impugnação da matéria de facto e violação do princípio in dubio pro reo

Considera o recorrente que, atendendo à prova produzida em audiência, não devem ser considerados provados os factos constantes dos nºs 2), 3), 6) e 7) da matéria de facto.
Defende, nomeadamente, que não estabeleceu contacto escrito, via e.mail, com o inspector DD, que a identidade da pessoa que o contactou é desconhecida, que não há prova de que tivesse respondido a qualquer e.mail, que o inspector CC nunca disse que ele tivesse guardado o envelope com o dinheiro, que nunca pediu ao comprador do bilhete (o mesmo inspector) qualquer preço pelo bilhete, nomeadamente a quantia de € 450,00.
Analisemos os docs. de fls. 6 e 7 e a prova produzida em julgamento, e registada em gravação.
O doc. de fls. 7 constitui um anúncio colocado numa página da Internet de publicidade gratuita – lisboacity.olx.pt – em 26.8.2008, com o seguinte teor: “Bilhete concerto da M....... – Lisboa; Preço: € 450; Localização: Lisboa, Portugal”. O anunciante é “anónimo”. E ainda consta: “Por razões profissionais não poderei assistir ao concerto. Cedo apenas o meu bilhete. Só entrega directa, em Lisboa, até ao dia 7 de Setembro e mediante numerário.”
Este anúncio foi objecto de resposta, a 29.8.2008, que consta de fls. 6. Um tal “GG” responde dizendo: “Ainda tem o bilhete disponível? Estou comprador.” Segue-se a resposta, do seguinte teor: “Sim, ainda o tenho disponível. Se estiver verdadeiramente interessado contacte para o nº de telf 00000000 para a marcação do encontro. Cumprimentos, Fil”. O endereço electrónico do detentor do bilhete e autor desta mensagem é filcosta@portugalmail.pt.
Entregue este expediente, docs. de fls. 6 e 7 dos autos, ao inspector DD, da ASAE, para investigar a eventual prática de um crime de especulação, este ligou para o número de telemóvel indicado, de onde respondeu precisamente o arguido, ora recorrente.
Seguiram-se vários contactos telefónicos entre ambos com vista à concretização da transacção do bilhete, nomeadamente quanto ao tempo e lugar do encontro a realizar.
Marcado o encontro para o dia 3.9.2008, cerca das 18,15 horas, no Centro Comercial Fórum de Almada, para aí se dirigiram vários inspectores da ASAE, entre os quais a testemunha CC, encarregada de contactar o arguido.
No local e hora combinados, compareceu o arguido ao encontro, facilitado pela prévia descrição das roupas que cada um iria trajar.
O arguido entregou então o bilhete à testemunha CC e recebeu em troca um envelope contendo o preço do bilhete.
Estes factos são incontestáveis e incontestados.
A partir deles, e guiando-nos pelas regras da experiência comum, teremos forçosamente de concluir que foi o arguido que publicitou o anúncio da venda do bilhete para o concerto da M....... que consta de fls. 7. Na verdade, foi ele quem respondeu do telemóvel indicado na resposta à mensagem do “GG” e iniciou imediatamente conversações, para a venda do bilhete, com o “interessado”.
Aliás, o endereço electrónico utilizado pelo autor da mensagem (filcosta@portugalmail.pt) corresponde, em termos abreviados, como é corrente, ao nome do arguido.
De tudo isto, resulta com segurança, recorrendo às regras da experiência comum, que foi o arguido não só o autor do anúncio, mas também da resposta ao interessado “GG”, que foi ele, arguido, quem negociou a venda do bilhete.
E resulta ainda que o preço do bilhete estava estipulado no próprio anúncio, desde o início, portanto.
Contudo, esse preço foi confirmado pelo inspector DD, como ele revelou em audiência. Aliás, a confirmação do preço era necessária para que a quantia precisa fosse levantada e justificada, de acordo com os procedimentos e regras estabelecidos na ASAE.
Prova suprema da participação do arguido na prática dos factos antecedentes é a sua comparência no encontro previamente marcado, trajado da forma combinada, e a realização, sem diálogos “preparatórios”, da venda do bilhete.
Pouco importa determinar como e onde guardou o arguido o envelope recebido, porque é incontestável que ele ficou com o referido envelope, o fez seu, sabendo que continha o preço do bilhete.
A transacção consumou-se com a entrega do bilhete em troca do recebimento do envelope contendo o preço estipulado pelo arguido.
Nenhumas dúvidas razoáveis pode haver, com efeito, de que a quantia metida no envelope foi de € 450,00, pois esse, insiste-se, foi o preço estipulado pelo arguido no anúncio, e esse preço, como já ficou referido, foi confirmado nas “negociações” mantidas entre ele e o inspector DD.
Aliás, a imediata devolução, por parte do arguido, do envelope, após a identificação dos inspectores da ASAE como tal, confirma plenamente que o dinheiro recebido era necessariamente superior ao estabelecido no bilhete, uma vez que, caso contrário, nenhuma razão haveria para fazer essa devolução, pois a transacção seria lícita.
Em conclusão, nenhuma censura merece a matéria contida nos nºs 2), 3), 6) e 7) dos factos provados, a qual corresponde inteiramente à prova produzida em audiência e aos docs. de fls 6 e 7, interpretados de acordo com as regras da experiência comum.
Improcede, pois, a impugnação da matéria de facto.
E nenhuma violação do princípio in dubio pro reo se verifica, pois não se constata, pelas razões expostas, nenhuma situação em que o Tribunal da Relação tenha, na dúvida, decidido contra o arguido.

C) Matéria de direito

Duas são as questões que o recorrente coloca em matéria de direito: violação do art. 32º, nº 5, 2ª parte, da Constituição, por o Tribunal da Relação ter considerado suficiente apenas a prova testemunhal para dar como provado o ponto nº 6 (2ª parte) da matéria de facto; e inidoneidade dos factos provados para preencherem a tipicidade do crime de especulação, pelo qual foi condenado.
Quanto à primeira questão, é manifestamente impertinente. A matéria de facto foi fixada segundo o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º do CPP, e a decisão de facto foi devidamente fundamentada, com o exame crítico das provas, conforme impõe o art. 374º, nº 2, do CPP, nenhuma censura merecendo a decisão recorrida.
Por outro lado, nenhuma violação do princípio do contraditório foi cometida. O arguido pôde interrogar a testemunha e, em sede de alegações, pronunciar-se sobre o valor a atribuir ao seu depoimento.
É, pois, manifestamente improcedente esta questão.
Relativamente ao preenchimento dos elementos típicos do crime de especulação, também nenhuma razão assiste ao recorrente.
Na verdade, estabelece o art. 35º do DL nº 28/84, de 20-1:

1. Será punido com prisão de 6 meses a 3 anos e multa não inferior a 100 dias quem:
a) Vender bens ou prestar serviços por preços superiores aos permitidos pelos regimes legais a que os mesmos estejam submetidos;
b) Alterar, sob qualquer pretexto ou por qualquer meio e com intenção de obter lucro ilegítimo, os preços que do regular exercício da actividade resultariam para os bens ou servidos ou, independentemente daquela intenção, os que resultariam da regulamentação legal em vigor;
c) Vender bens ou prestar servidos por preço superior ao que conste de etiquetas, rótulos, letreiros ou listas elaborados pela própria entidade vendedora ou prestadora do serviço;
d) Vender bens que, por unidade, devem ter certo peso ou medida, quando os mesmos sejam inferiores a esse peso ou medida, ou contidos em embalagens ou recipientes cujas quantidades forem inferiores às nestes mencionadas.
(…)
3. Havendo negligência, a pena será a de prisão até 1 ano e multa não inferior a 40 dias.
(…)

O crime de especulação visa proteger a estabilidade dos preços, enquanto bem jurídico projectado numa pluralidade de interesses: economia nacional, concorrência, direitos dos consumidores.
Particularmente relevantes se mostram estes últimos na modalidade prevista na al. c), que pune a venda de um produto ou serviço por preço superior ao afixado pela entidade vendedora ou prestadora do serviço, permitindo assim ao consumidor o confronto imediato entre o preço marcado (o preço “legal”) e o preço pretendido pelo vendedor.
São elementos típicos do crime especificamente previsto nesse preceito a venda de bens ou serviços por preço superior ao que for marcado, por meio de etiquetas, rótulos, letreiros ou listas, pela própria entidade vendedora ou prestadora do serviço.
Não é elemento típico a intenção lucrativa, a qual, a verificar-se, funcionará como circunstância agravante.
O crime pode ser cometido dolosamente, ou por negligência (nº 3 do mesmo artigo).
Reportando-nos ao caso dos autos, constata-se que ficou provado que o arguido, nas circunstâncias de lugar e tempo indicadas, pôs à venda, por meio de anúncio, um bilhete para o concerto referido nos autos, desde logo indicando o preço de € 450,00, e depois vendeu o dito bilhete por esse preço.
Contudo, do bilhete constava a quantia de € 60,00 como preço estabelecido pela entidade promotora do espectáculo.
Provou-se ainda que o arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, visando obter um lucro de € 390,00, sabendo que a sua conduta era punível.
Estes factos preenchem todos os elementos típicos do crime em referência, na sua forma dolosa.
A intenção lucrativa, como vimos, não é elemento típico, mas acresce como circunstância agravante da conduta do arguido.
Improcedem, pois, todas as questões colocadas pelo recorrente.

III. DECISÃO

Com base no exposto, nega-se provimento ao recurso.
Vai o recorrente condenado em 20 (vinte) UC de taxa de justiça, nos termos do art. 87º, nº 1, a), do Código das Custas Judiciais.

Após o trânsito, remeta-se certidão desta decisão à Procuradoria-Geral da República.

Lisboa, 2 de Fevereiro de 2011

Maia Costa (Relator)
Pires da Graça

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(1) Foi igualmente julgada a arguida BB, acusada do mesmo crime, que foi absolvida.