Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06P1394
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS CARVALHO
Descritores: DEVASSA DA VIDA PRIVADA
APREENSÃO DE CORRESPONDÊNCIA
JUIZ
NULIDADE
MÉTODOS PROIBIDOS DE PROVA
DIREITO DE RETENÇÃO
Nº do Documento: SJ200605180013945
Data do Acordão: 05/18/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO
Decisão: ANULADO O ACORDÃO RECORRIDO
Sumário : I - Dos arts. 26.º, n.º 1, 18.º, n.º 2, 32.º, n.º 8, e 34.º da CRP, bem como 126.º, n.º 3, e 179.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, resulta que a protecção do direito à reserva da vida privada é especialmente salvaguardada quando está em jogo correspondência, sendo que se precisa de que por tal se consideram não só as cartas, como ainda encomendas, valores, telegramas ou qualquer outra forma similar de comunicação entre pessoas.
II - A violação da correspondência só pode ser feita por ordem do juiz e este é a primeira pessoa que toma conhecimento do conteúdo da mesma.
III - Pode admitir-se que numa situação em que haja urgência ou perigo na demora, os órgãos de polícia criminal possam efectuar apreensões de correspondência, mas tal acto fica sujeito a validação no prazo máximo de 72h pela “autoridade judiciária” (art. 178.°, n.°s 4 e 5), isto é, pelo juiz e não o MP, já que há reserva de competência daquele (art. 179.°).
IV - Fora dessas situações, estamos perante a nulidade de um meio de prova.
V - Não deve confundir-se a nulidade dos actos processuais, prevista nos arts 118.° a 123.° do CPP, com a nulidade dos meios de prova, pois o próprio art. 118.°, n.° 3, estabelece que as 58 disposições do presente título (nulidades) não prejudicam as normas desse Código relativas a proibições de prova.
VI - E, assim, enquanto que a nulidade de um acto pode ser sanável ou insanável, a nulidade do meio de prova dá lugar à proibição de ser usado para esse fim (de prova).
VII - As autoridades aduaneiras podem exercer fiscalização sobre toda a correspondência que envolve o transporte de mercadoria, mas tal fiscalização não passa pela apreensão nem pela abertura não autorizada das embalagens, mas pela faculdade de só emitir o despacho alfandegário quando houver a certeza de que a declaração da mercadoria corresponde ao real conteúdo da correspondência, o que pode ser concretizado pelo pedido de documentação adicional ou pelo pedido de desembalagem ao interessado - é o que resulta, por exemplo, dos arts. 37.° e 46.° do Código Aduaneiro Comunitário, Regulamento (CEE) n.° 2913/92 do Conselho.
VIII - Essa faculdade de retenção da mercadoria até ao seu despacho alfandegário não pode confundir-se com a apreensão e muito menos com a violação de correspondência, pois aquela, ao contrário destas, não confere a faculdade de quebrar o direito ao sigilo da vida privada e, portanto, não interfere com as normas constitucionais ou de processo penalindicadas.
IX - O mesmo se passa com o visionamento de correspondência através de técnicas que não envolvem a abertura da correspondência e que só permitem uma conferência sumária do interior da mesma, pois tais técnicas afiguram-se proporcionais e adequadas aos fins visados (conferir a mercadoria com a declaração alfandegária) e não dão azo a uma violação do referido direito constitucional.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. AA, BB, CC e DD foram julgados na 1ª Vara Mista de Sintra e aí foi decidido:
- quanto ao arguido AA, condená-lo como autor material de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, e 24.º, alínea c), do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, na redacção da Lei 11/04, de 27 de Março, na pena de dez (10) anos de prisão, como autor material de um crime de detenção de arma proibida (quanto à caçadeira de coronha e canos serrados) previsto e punido pelo artigo 275.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de dois (2) anos e seis (6) meses de prisão, como autor material de um crime de detenção ilegal de arma (quanto ao revólver) previsto e punido pelos artigos 1.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, e 6.º, n.º 1, da Lei 22/97 de 27 de Junho, na redacção da Lei 98/01, de 25 de Agosto, com pena de nove (9) meses de prisão; e em cúmulo jurídico dessas penas, na pena única de onze (11) anos de prisão;
- quanto à arguida BB, condená-la como autora material de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, e 24.º, alínea c), do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, na redacção da Lei 11/04, de 27 de Março, na pena de sete (7) anos de prisão;
- absolver os arguidos CC e DD.
Da sentença recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa os arguidos AA e BB e também o M.º P.º (este apenas inconformado quanto à absolvição dos dois outros arguidos), mas esse Tribunal, por acórdão de 7 de Fevereiro de 2006, negou provimento aos recursos e confirmou a decisão recorrida.
2. Inconformados, recorrem agora os arguidos AA e BB para este Supremo Tribunal de Justiça e, da sua motivação conjunta, extraem as seguintes conclusões:
I - De acordo com as razões de facto e de direito atrás aduzidas, que aqui se dão como inteiramente reproduzidas,
II - Verifica-se que as autoridades aduaneiras procederam à abertura da encomenda aérea referenciada no processo, no decurso de um inquérito que já corria em ordem à averiguação dos factos relacionados com a mesma e agindo sempre, nas sobreditas condições, a pedido informal, sob as directrizes e em nome dos elementos da Polícia Judiciária que tinham a seu cargo a investigação do processo,
III - Pelo que os meios de prova logrados por tais órgãos de polícia criminal, não podem deixar de estar sujeitos ao mesmo regime das provas produzidas em processo penal, e, nomeadamente, à observância das normas contempladas nos seus art.ºs 174°, 178° e 179°, sob pena de nulidade e
IV - Sem prejuízo de inconstitucionalidade das normas constantes nos art.ºs 4°, ponto 14, 37° e 46° do Código Aduaneiro Comunitário, aprovado pelo Regulamento ( CEE ) n.º 2913/92, do Conselho, de 12 de Outubro, quando interpretadas no sentido preconizado, no, aliás, douto Acórdão recorrido, isto é, no sentido de que as autoridades aduaneiras não devem estrita obediência às normas processuais penais quando actuam no âmbito e para os fins do processo criminal, por grave violação do disposto nos art.ºs 18°, 26°, 32°, n.º 8 e 34°, nºs 1 e 4 da nossa Lei Fundamental.
V - Não obstante, o Tribunal a quo não se pronunciou, em concreto, sobre a validade de tal actuação levada a cabo pelas autoridades aduaneiras ao longo dos autos e posta em crise no anterior recurso interposto pelos arguidos,
VI - Tendo-se apenas limitado, praticamente, a esgrimir com a natureza especial os poderes que resultam do Código Aduaneiro Comunitário para os órgãos de polícia criminal alfandegários, para daqui concluir pela legitimidade da actuação dos mesmos in casu,
VII - Pelo que a douta sentença recorrida até padece, neste ponto, da nulidade taxativamente prevista na al. c) do n.º 1 do art.º 379° do Cód. Proc. Penal,
VIII - Na medida em que os recorrentes não obtiveram, assim, qualquer resposta sobre tanto.
IX - Donde enfermar de nulidade absoluta, com todas as suas consequências legais, e, designadamente, as decorrentes do denominado pela doutrina «efeito à distância», a apreensão na Alfândega do Aeroporto de Lisboa, no dia 04.04.29, do volume que compunha a encomenda aérea, no qual foi detectado produto estupefaciente,
X - Porque efectuada pela autoridade policial sem ter sido previamente autorizada ou ordenada pelo Juiz de Instrução do processo e, ainda, também, porque não foi este a primeira pessoa a tomar conhecimento do seu conteúdo,
XI - Sendo que a "ingerência" levada a cabo por tal autoridade na mesma teria sempre de materializar-se com observância das regras contempladas nos mencionados art.ºs 174°, 178° e 179° do Cód. Proc. Penal, sob pena de nulidade,
XII - Tanto mais que não realizada como medida cautelar e de polícia ou no decurso de revistas ou buscas, nos termos do art.º 249°, n.º 2, ai. c) do Cód. Proc. Penal e como melhor se fundamenta no anterior recurso interposto pelos arguidos, que por isso mesmo nesta parte se dá aqui como inteiramente reproduzido.
XIII - E nulidade de prova obtida regulada no n.º 3 do art.º 126° do Cód. Proc. Penal, a que não é de aplicar, por força do n.º 3 do art.º 118°, nem o art.º 119° nem o art.º 120°, todos deste mesmo diploma legal e
XIV - Em conformidade com a qual, ressalvados os casos previstos na lei, são nulas as provas obtidas mediante intromissão na correspondência sem o consentimento do respectivo titular.
XV - E tratando-se de uma nulidade absoluta e, por conseguinte, insanável, fulminada pelos citados art.ºs 32°, n.º 8 e 34°, nºs 1 e 4, ambos da CA.P., sem margem para dúvidas, portanto, que será nula toda a prova subsequente carreada para os autos pelos elementos da Polícia Judiciária que tiveram a seu cargo a investigação do caso dos autos e
XVI - Concretamente, a resultante das apreensões realizadas quer nas instalações do cofre do armazém da "Portway", localizadas no Edifício 17 da Alfândega do Aeroporto de Lisboa - diligência esta, aliás, a partir da qual não resultam nenhuns indícios que possibilitem imputar aos recorrentes a prática do crime de tráfico de produtos estupefacientes, como bem se demonstra no seu local próprio - quer nas residências das arguidas BB e DD quer nas próprias pessoas dos arguidos,
XVII - Visto que só não seria de julgar deste modo, se por acaso se demonstrasse que estas aludidas apreensões, enquanto carreadoras para os autos de diferente prova, eram absoluta e processualmente independentes da apreensão que foi efectuada na Alfândega do Aeroporto de Lisboa no dia 04.04.29 pelas autoridades policiais,
XVIII - Dado que então este meio ilegal de obtenção de prova não teria a virtualidade de inquinar toda a restante prova não ilegal vertida no processo,
XIX - Todavia, não é isto manifestamente o que se verifica no presente caso,
XX - Na medida em que se mostra cristalinamente nos autos e resulta claramente do conjunto da prova oral que foi produzida em Audiência de Julgamento, que o conhecimento prévio e ilegítimo do conteúdo do volume que compunha a encomenda aérea, no qual foi detectado produto estupefaciente no decorrer da vistoria realizada à mesma pelas autoridades públicas, foi a única causa que desencadeou a posterior acção policial, desenvolvida, por forma legítima e adequada, pela investigação
XXI - Daqui que não possa concluir-se de modo nenhum pela irrelevância de " efeitos " jurídicos daquela primeira apreensão, e,
XXII - Assim, admitir-se como válida toda a prova obtida com todas as posteriores apreensões judicialmente ordenadas.
XXIII - Forçosamente, por conseguinte, que há aqui que considerar o que a doutrina apelida por «efeito à distância»,
XXIV - Ou seja, o arrastamento da nulidade do primeiro meio ilegal de obtenção de prova, que assim torna inválida toda a prova depois obtida na sequência e por causa da inicial e ilegitimamente recolhida, conforme se estatui no n.º 1 do art.º 122° do Cód. Proc. Penal,
XXV - Aliás, efeito este que só não se verificará, como sustenta o Prof. Manuel da Costa Andrade na sua obra " Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal " ( fls. 65 ), quando o recurso aos processos hipotéticos de investigação permitiria seguramente alcançar o mesmo resultado probatório,
XXVI - O que porém de todo em todo não acontece no caso dos autos, visto que sem a primeira apreensão efectuada pelos agentes policiais nenhuma das restantes se lhe seguiriam.
XXVII - Resultantemente, impõe-se a absolvição dos recorrentes.
XXVIII - As circunstâncias previstas no art.º 24° do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, pressupõem um plus da ilicitude contemplada no crime base do art.º 21°, dado que este já se encontra projectado para a punição de traficâncias de média e de grande dimensão,
XXIX - Pelo que a avultada compensação remuneratória como circunstância de agravamento dessa ilicitude, tem necessariamente que revelar uma especial censurabilidade e um desvalor social incomparavelmente superiores ao já contido no dito crime base,
XXX - Apontando, assim, forçosamente para autorias que sejam determinadas a gerar um lucro bastante relevante, obtido por intermédio do "comércio" do grande tráfico e das grandes redes de distribuição,
XXXI - O que, contudo, salvo diferente opinião, não se tira dos factos dados como provados no que respeita à conduta em causa dos arguidos,
XXXII - Consequentemente, não podendo deixar de ser duvidosas quaisquer eventuais conclusões sobre os lucros provavelmente emergentes de tal actividade global desenvolvida por eles, porque tão-só apoiadas numa mera presunção natural derivada da quantidade de produtos estupefacientes possuídos e dos meios utilizados na realização do plano criminoso.
XXXIII - Donde que, atendendo-se ainda a quanto resultou não provado na sentença proferida em 1ª instância sob as ais. AZ), BA), BB), BG), BI), BJ), BM) e BO), não seja possível concluir com precisão pelo preenchimento da qualificativa para a decisão da matéria de facto provada ( art.º 410°, n.º 2, ai. a) do Cód. Proc. Penal ),
XLII - Com todas as suas consequências legais e
XLIII - Nomeadamente, no que toca à medida da pena a impor, a final, também no douto critério de VOSSAS EXCELÊNCIAS,
XLIV - Não sendo por demais pedir que nesta seja valorada a ausência de antecedentes criminais do arguido, a sua inserção social e o seu estado de saúde, sofrendo de diabetes e de hipercolestrémia e apresentando ideais suicidas e indícios depressivos decorrentes da situação de prisão.
XLV - Foram, assim, violadas, entre outras, as disposições contidas nos art.ºs 4°, ponto 14, 37° e 46°, todos do Código Aduaneiro Comunitário, aprovado pelo Regulamento ( CEE ) n.º 2913/92 do Conselho, de 12 de Outubro de 1992 ; 1°, n.º 1, ai. c), 55°, n.º 2, 5611, 118°, n.º 3, 1190, 120°, 122°, n.º 1, 126°, n.º 3, 1740, 178, nºs 3, 4 e 5, 179°, 241 ° a 2430, 248°, 2490, n.º 2, ai. c), 250° a 253°, 264°, 379°, n.º 1, ai. c) e 410°, n.º 2, ai. a), todos do Cód. Proc. Penal ; 18°, 26°, 32°, n.º 8 e 34°, nºs 1 e 4, todos da C.R.P. ; 21° e 24°, ai. c), ambos do Dec. Lei 15/93, de 22 de Janeiro; e
XLVI - Os princípios da presunção da inocência, do in dubio pro reo e da proibição de valoração de provas ( art.º 355° do Cód. Proc. Penal ).
Termos em que, com o douto suprimento de VOSSAS EXCELÊNCIAS, sempre possível e desejável nos recursos penais, deve ser revogado o Acórdão recorrido e concedido provimento a este, assim como sempre se fazendo a costumada JUSTIÇA!

3. O Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu ao recurso e pugnou pelo seu não provimento.
Neste Supremo, o Excm.º PGA pôs o seu visto.
4. Colhidos os vistos e realizada a audiência com o formalismo legal, cumpre decidir.
As principais questões a decidir são as seguintes:
1ª- Se há inconstitucionalidade das normas constantes nos art.ºs 4°, ponto 14, 37° e 46° do Código Aduaneiro Comunitário, aprovado pelo Regulamento ( CEE ) n.º 2913/92, do Conselho, de 12 de Outubro, quando interpretadas no sentido de que as autoridades aduaneiras não devem estrita obediência às normas processuais penais quando actuam no âmbito e para os fins do processo criminal, por grave violação do disposto nos art.ºs 18°, 26°, 32°, n.º 8 e 34°, nºs 1 e 4 da nossa Lei Fundamental?
2ª- Se enferma de nulidade absoluta, com todas as suas consequências legais, e, designadamente, as decorrentes do denominado pela doutrina «efeito à distância», a apreensão na Alfândega do Aeroporto de Lisboa, no dia 04.04.29, do volume que compunha a encomenda aérea, no qual foi detectado produto estupefaciente, porque efectuada pela autoridade policial sem ter sido previamente autorizada ou ordenada pelo Juiz de Instrução do processo e, ainda, também, porque não foi este a primeira pessoa a tomar conhecimento do seu conteúdo?
3ª- Se há irrecorribilidade da decisão quanto aos crimes do artigo 275.º, n.º 1, do Código Penal, e do artigo 1.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, e 6.º, n.º 1, da Lei 22/97 de 27 de Junho, na redacção da Lei 98/01, de 25 de Agosto, por serem puníveis com pena de prisão até 5 anos e por se tratar de decisão da Relação proferida em recurso?
4ª- Se o crime de tráfico por que foram condenados os recorrentes mostra-se agravado pela circunstância prevista na alínea c) do art.º 24.º do Dec.-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro?
4ª- Se estão ajustadas as penas pelo crime de tráfico quanto aos dois recorrentes e a pena única quanto ao recorrente AA?
Os factos provados são os seguintes:
A) O arguido AA é conhecido pela alcunha de "Tchum Tchum" e de nacionalidade Caboverdiana;---
B) No dia 29 de Abril de 2004, chegou por via aérea ao aeroporto de Lisboa uma encomenda de roupas, proveniente do Brasil, encomendada pelos arguidos AA e BB;---
C) Essa encomenda trazia dissimuladas, entre várias peças de vestuário e artigos de casa, dezoito embalagens em material plástico envolto em fita adesiva de cor castanha, acondicionadas nas dobras de lençóis, no interior das quais se encontrava cocaína, com o peso total de 9.656 Kg (nove quilogramas e seiscentos e cinquenta e seis gramas);---
D) A chegada da carga aérea foi comunicada nesse dia 29 de Abril de 2004 ao arguido AA pela funcionária do despachante Educargas que estava a tratar da importação;---
E) No entanto, em virtude de serem necessários documentos para proceder ao despacho alfandegário da referida carga, o arguido AA não pôde levantá-la de imediato, pelo que veio a ser ordenada judicialmente a apreensão do produto estupefaciente e substituição do mesmo por produto inócuo acondicionado em embalagens idênticas, o que foi feito, após o que voltaram a ser selados os volumes das encomendas para que seguissem o seu curso normal;---
F) No dia 10 de Maio de 2004, pelas 17HOO, os volumes da encomenda foram levantados no aeroporto de Lisboa por um indivíduo da empresa de transportes, TCF - Transportes Centrais do Freixinho, Lda, contratada pelo arguido AA, tendo sido entregues junto ao lote ....., do bairro da Quinta...., em Loures, onde esperavam os arguidos AA, CC e BB, tendo esta assinado os documentos referentes ao transporte, após o que os arguidos AA e CC transportaram os volumes para o interior da residência da arguida BB sita no primeiro andar esquerdo;---
G) Passados momentos, os arguidos AA e CC saíram do prédio referido, transportando este último uma mala tipo trolley de cor vermelha e preta, que colocou no porta bagagens da carrinha conduzida pelo seu pai, da marca Nissan, modelo Navara, com a matrícula ......, após o que se dirigiram ambos, nesse veículo, para o Cacém, onde pararam na Rua ...... e entraram no nº ..., tendo o CC levado com ele a referida mala;---
H) O anexo 1 do nº .... da Rua ......., no Cacém, encontrava-se arrendado à arguida DD;---
I) Algum tempo depois, o arguido AA percebeu que aquilo que tinha transportado não era cocaína e, pensando que tinha sido enganado por quem lhe tinha vendido o estupefaciente, entrou de imediato em contacto com a arguida BB, dizendo-lhe que “era tudo lixo", ao que a BB o informou de que também tinha um em sua casa;---
J) Posteriormente, o arguido AA voltou a contactar a arguida BB querendo saber se a outra embalagem era a mesma coisa;---
L) No dia seguinte, 11 de Maio de 2004, os arguidos AA e BB encontravam-se ambos na residência sita no primeiro andar esquerdo do Lote 46 do bairro da Quinta ...., em Loures, quando lhes foi detectado e apreendido: dois telemóveis (um do arguido AA e outro da arguida BB); dois passaportes (um do arguido AA e outro da arguida BB); documentação alfandegária referente à carga aérea recebida; bilhetes de avião referentes a viagens ao Brasil e a Amsterdão; extractos de hotéis referentes a estadias no Brasil em nome de AA; documentos referentes a outras cargas provenientes do Brasil; talões de câmbio de moeda do Banco do Brasil; várias facturas referentes a aquisição de vestuário no Brasil; cartões de visita com referências a hotéis e lojas no Brasil; dois cartões de segurança da TMN referentes aos números ...... e ......, este correspondente ao número utilizado pela arguida BB;---
M) Pela casa referida encontravam-se espalhadas peças de vestuário e conjuntos idênticos e com a mesma marca dos que compunham a carga aérea onde vinha dissimulada a cocaína;---
N) No mesmo dia 11 de Maio de 2004, na Rua......, nº ...., no Cacém, no anexo 1 arrendado à arguida DD, foi encontrada no interior de um roupeiro e apreendida a mala de cor preta e vermelha que no dia anterior para ali tinha sido transportada pelos arguidos AA e CC e que continha dezassete das embalagens com o produto inócuo que havia sido utilizado para substituir a cocaína na carga aérea;---
O) No interior da residência da arguida DD, nesse mesmo roupeiro, encontrava-se ainda uma outra mala de cor verde escuro, fechada com um cadeado cuja chave estava na posse do arguido DD; no interior desta mala encontravam-se diversos sacos contendo: heroína com o peso líquido de 1.672,836 gramas (mil seiscentos e setenta e dois gramas e oitocentos e trinta e seis miligramas);cocaína com o peso líquido de 34,979 gramas (trinta e quatro gramas e novecentos e setenta e nove miligramas); bicarbonato de sódio com o peso líquido de 2,630 gramas (dois gramas e seiscentos e trinta miligramas); paracetamol e cafeína com o peso líquido de 3.385,100 gramas (três mil trezentos e oitenta e cinco gramas e cem miligramas); ácido bórico com o peso líquido de 2.348,900 gramas (dois mil trezentos e quarenta e oito gramas e novecentos miligramas) produtos estes utilizados no corte do estupefaciente; e, ainda, uma colher com resíduos de cocaína e duas balanças digitais destinadas a pesar o estupefaciente, com resíduos de cocaína e heroína;---
P) Na residência referida (anexo 1 do nº ... da Rua ......, Cacém), encontrava-se também uma espingarda caçadeira de calibre 12, com a coronha e os canos serrados, e respectivas munições (cartucho de caça) em número de 123, sem que tenha sido possível apurar se se encontrava no interior do roupeiro, sem mais, ou no interior da mala verde;---
Q) A caçadeira de canos serrados encontrava-se em condições de efectuar disparos e, após a serragem dos canos e da coronha, ficou reduzida a 57cm de comprimento, o que permitia efectuar disparos a curta distância, com maior impacto e dispersão dos chumbos;---
R) No dia 11 de Maio de 2004, ao arguido AA foi ainda apreendido um revólver de marca Amadeo Rossi, calibre 38, ou 9 mm, com cerca de 52 (cinquenta e dois) milímetros de cano, com o número de série rasurado, carregado com seis munições, em boas condições de funcionamento e apto a efectuar disparos, sem estar registado; dez munições calibre 38 para o referido revólver; um telemóvel com um chip da Optimus; dois cartões de segurança da operadora TMN, referentes aos números .... e ...., sendo este último o número utilizado pelo arguido AA nos seus contactos; um passaporte em nome do arguido AA; talões de bagagem, cartão de embarque, bilhete de avião relativos a viagens Lisboa/São Paulo e São Paulo/Lisboa, em nome do arguido AA; uma pulseira e um fio em ouro; uma chave pequena em metal de cor amarela, chave esta correspondente ao cadeado da mala verde apreendida em casa da DD, contendo o produto estupefaciente; um porta-chaves contendo um total de seis chaves, sendo uma delas correspondente à residência de DD;---
S) O arguido AA não tinha licença para uso e porte de qualquer arma de defesa ou outra;---
T) Em 11 de Maio de 2004, na posse do arguido CC foi apreendido: um passaporte em nome do próprio; um telemóvel; um conjunto de quatro chaves, sendo uma delas correspondente à residência da arguida DD; uma pulseira e dois fios em ouro;---
U) Na mala preta e vermelha apreendida na residência da arguida DD, junto às embalagens que continham produto inócuo (farinha de trigo), encontrava-se ainda uma embalagem plástica com vestígios dactiloscópicos da arguida BB, idêntica às que embalavam os jogos de lençóis em que se encontrava dissimulada a cocaína;---
V) No dia 21 de Maio de 2004, foram encontradas na Avenida ......, lote ...., Tapada das Mercês, Sintra, instalações de firmas indicadas pelo arguido AA como suas, sete documentos de vendas a dinheiro referentes a pagamento relacionados com viagens e uma agenda telefónica;---
X) Nos anos fiscais de 2001, 2002 e 2003, o arguido AA declarou em sede de IRS rendimentos auferidos em território português na categoria A (trabalho dependente) no montante de € 18.580,23 (dezoito mil, quinhentos e oitenta euros e vinte e três cêntimos) e de € 13.168,32 (treze mil, cento e sessenta e oito euros e trinta e dois cêntimos) e de € 7.182,72 (sete mil, cento e oitenta e dois mil e setenta e dois cêntimos), respectivamente;---
Z) A arguida BB procedeu à entrega de declarações em sede de IRS para os anos fiscais de 2001 e 2003, tendo declarado rendimentos auferidos em território português na categoria A (trabalho dependente) no montante de € 2.076,60 (dois mil e setenta e seis euros e sessenta cêntimos) e de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), respectivamente;---
AA) O arguido CC não declarou quaisquer rendimentos para efeitos fiscais;---
AB) No entanto, entre 20 de Novembro de 2003 e 10 de Maio a arguida BB efectuou em seu nome diversas importações de mercadorias, todas provenientes do Brasil;---
AC) No mesmo período de tempo, os arguidos BB e AA efectuaram diversas viagens ao Brasil;---
AD) O arguido AA encetou negociações com a firma Coviatop, Lda, com vista à aquisição de uma viatura da marca Mercedes, modelo ML320, pelo valor de cerca € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros);---
AE) O arguido pretendeu efectuar algumas alterações à referida viatura, tendo para o efeito entregue no acto a quantia de € 11.250,00 (onze mil, duzentos e cinquenta euros), que não foi possível apurar exactamente se foi destinada a servir como sinal ou como pagamento das alterações pedidas pelo arguido;---
AF) Quando contactada pela Polícia Judiciária no contexto deste processo, a empresa vendedora entendeu atribuir às alterações efectuadas o valor de € 9.692,62 (nove mil, seiscentos e noventa e dois euros e sessenta e dois cêntimos), tendo sido apreendida a quantia de € 1.557,38 (mil, quinhentos e cinquenta e sete euros e trinta e oito cêntimos), correspondente à diferença entre o montante entregue e esse atribuído pela vendedora;---
AG) O arguido AA era dono de um cabeleireiro na Avenida ..., ....., Cacém, explorado por terceiros, tendo ainda associadas a esta morada como aí sedeadas outras firmas que indicava como suas, como a firma “......., Lda”, das quais o arguido se apresentava como sócio-gerente;---
AH) Os arguidos AA e BB agiram sempre, conforme descrito, em conjugação de esforços e em concretização das tarefas que a cada um incumbia na actividade de tráfico envolvida na importação da encomenda referida;---
AI) Os arguidos AA e BB efectuaram a encomenda da cocaína existente na encomenda através de contactos com indivíduos sediados no Brasil, numa das suas deslocações àquele país, providenciando pelo envio da cocaína para Portugal, dissimulada no interior de peças de vestuário;---
AJ) O arguido CC tinha na sua posse uma chave da residência da arguida DD;---
AL) Todos os arguidos conheciam as características estupefacientes da heroína e da cocaína;---
AM) Os arguidos AA e BB encomendaram a cocaína existente na encomenda chegada a Lisboa em 29 de Abril de 2004 já mencionada e, quanto ao arguido BB, detinha também a heroína e cocaína existentes na mala verde apreendida em casa de DD, ambos com o objectivo de vender a terceiros os produtos referidos, e tinham consciência de que as suas condutas constituíam crime e que eram punidas, mas mesmo assim quiseram praticá-las, com intuito lucrativo;---
AN) O arguido AA sabia também ser proibida pela lei penal a detenção de uma arma caçadeira de canos serrados mas, não obstante, detinha a caçadeira e respectivas munições na residência da arguida DD, com quem mantinha uma relação amorosa;---
AO) Sabia igualmente o arguido AA que não podia deter o revólver de marca "Amadeo Rossi", de 9 mm, por não ser possuidor de licença para uso e porte de arma de defesa e que a sua conduta constituía crime;---
AP) Dos certificados de registo criminal dos arguidos nada consta;---
AQ) O arguido AA desenvolve actividade empresarial na área da construção civil e de exportação/importação de diversos produtos de Portugal para Cabo Verde, revendendo-os neste país com lucro; tem a mulher e filhos em Cabo Verde;---
AR) O arguido CC veio para Portugal com um visto de estudante e, tendo perdido a matrícula por faltas, recebia uma mesada de seu pai, o arguido AA, enquanto aguardava a possibilidade de retomar os estudos;---
AS) A arguida BB vive em Portugal, tem tido actividades laborais diversificadas, desde o trabalho como empregada doméstica ou de limpezas, até à venda de roupas no seu domicílio; tem duas filhas de cerca de nove e onze anos de idade, recebeu o rendimento mínimo garantido e tem atribuído pela Câmara Municipal de Loures um espaço para instalação de um estabelecimento comercial, pretendendo dedicar esse espaço ao comércio de vestuário; vivia maritalmente com o arguido AA;---
AT) A arguida DD encontra-se em situação irregular em Portugal, trabalhava num café restaurante do arguido AA, com quem mantinha um relacionamento amoroso, estabelecimento esse explorado por uma irmã do arguido AA; auferia um salário de cerca de € 400,00 (quatrocentos euros) mensais, ao que acrescia, por vezes, montante não exactamente apurado relativo a horas extraordinárias; tem cinco filhos em Cabo Verde, todos a estudar, dos quais o mais novo tem dezassete anos de idade, sendo a arguida quem os ajuda economicamente;---
AU) O único volume da encomenda referida onde foi encontrada cocaína foi aberto pelas autoridades alfandegárias em 29 de Abril de 2004, sendo nessa data detectada a presença de algo suspeito de ser cocaína nesse volume;---
AV) A abertura foi feita por terem sido dadas indicações para vigilância acrescida por parte da Polícia Judiciária às autoridades alfandegárias;---
AX) A detecção foi participada à Polícia Judiciária que se tentou inteirar das formalidades alfandegárias necessárias ao despacho e levantamento dessa encomenda;
NULIDADE DA APREENSÃO EFECTUADA NA ALFÂNDEGA DO AEROPORTO DE LISBOA EM 29 DE ABRIL DE 2004
Os recorrentes vêm mais uma vez arguir a nulidade da apreensão da encomenda aérea, por violação dos art.ºs 174°, 178° e 179°, e fazem-no sem prejuízo de alegarem a inconstitucionalidade das normas constantes nos art.ºs 4°, ponto 14, 37° e 46° do Código Aduaneiro Comunitário, quando interpretadas no sentido de que as autoridades aduaneiras não devem estrita obediência às normas processuais penais quando actuam no âmbito e para os fins do processo criminal, por grave violação do disposto nos art.ºs 18°, 26°, 32°, n.º 8 e 34°, nºs 1 e 4 da nossa Lei Fundamental.
Estas foram questões que a Relação apreciou e decidiu nestes termos:
3 - Como fundamento da sua pretensão de ver declarada nula a apreensão da encomenda em causa, entendem os recorrentes que a mesma deve ser equiparada à correspondência postal, pelo que as autoridades alfandegárias não poderiam ter tomado conhecimento do seu conteúdo, sem uma autorização judicial prévia.
Consideram, pois, que a verificação e apreensão subsequente levada a cabo pelas autoridades aduaneiras é nula, por violação das normas do Código de Processo Penal relativas à apreensão de correspondência.
Porém carece de qualquer sentido a pretensão dos recorrentes de que as encomendas recebidas por via aérea devem ser equiparadas à correspondência para as sujeitar ao regime de tutela que o sistema jurídico estabelece para esta e da qual decorrem todas as limitações à intervenção das autoridades policiais, que enformam o Código de Processo Penal.
A via aérea é hoje uma forma de circulação internacional de mercadorias.
É esta realidade dos tempos que decorrem e a natureza meramente económica do conteúdo dos objectos em circulação, que dá origem ao regime de controlo aduaneiro de que as mesmas são objecto.
Não existe nesta circulação, qualquer comunicação de mensagens entre pessoas cuja pessoalidade, o sistema jurídico deva proteger, como extensão da pessoalidade dos indivíduos nas mesmas envolvidos.
É esta pessoalidade – extensão da personalidade dos intervenientes na correspondência - que fundamenta o sigilo desta e que o sistema jurídico protege através das normas do C.P.P..
As recepções por via aérea de encomendas nada têm a ver, pois, com a correspondência e não beneficia do regime de tutela que o sistema jurídico estabelece para esta.
Não têm, deste modo, qualquer razão os recorrentes na assimilação que pretendem fazer e nenhuma censura merece, por tal motivo, a decisão recorrida.
4 - Afirmam os recorrentes que as normas do Código Aduaneiro Comunitário, aprovado pelo Regulamento CEE 2913/92, do Conselho, de 12 de Outubro, que foram invocadas pelo tribunal para considerar válida a verificação levada a cabo pelas autoridades aduaneiras e a apreensão subsequente, são inconstitucionais e que a intervenção das autoridades aduaneiras se deve considerar como um verdadeira busca.
Ora, as normas do Código Aduaneiro Comunitário existem para garantir o mercado comum e a unidade económica da União.
Elas visam estabelecer uma disciplina comum no que se refere à importação de mercadorias de fora do espaço da União e sujeitar as importações a uma tabela de direitos comum a todos os membros.
O Código é aplicável às importações feitas por qualquer via, nomeadamente a via aérea.
No que se refere aos poderes que dessas normas decorrem para as autoridades respectivas, o que essas normas visam é a verificação da conformidade entre aquilo que é declarado pelos intervenientes na transacção e aquilo que efectivamente é importado. Se tais poderes de verificação não existissem, estavam abertas as portas à institucionalização das mais grandiosas fraudes.
Trata-se de poderes que nada têm a ver com os poderes dos órgãos de polícia criminal no processo, mas que, sob o ponto de vista da sua natureza, se devem considerar verdadeiras medidas de polícia administrativa.
O exercício desses poderes - a verificação das mercadorias - nada tem a ver com o regime processual penal das buscas.
De facto, essas visam os eventuais vestígios de crimes, que se encontrem em espaços fechados, o que nada tem a ver com a verificação do conteúdo de uma embalagem no espaço de uma instância aduaneira.
Por outro lado, as normas em causa nada têm de inconstitucional, uma vez que não colidem com quaisquer normas constitucionais, que tutelem direitos fundamentais.
A verificação da coincidência entre aquilo que é declarado pelos intervenientes na transacção e aquilo que efectivamente é transaccionado, não afecta nenhum direito fundamental, porque tem especificamente que ver com as transacções económicas e com as mercadorias que da mesma são objecto.
Mas mesmo que assim se não entendesse, o Regulamento Comunitário que aprovou aquele código tem plena eficácia no ordenamento jurídico interno, sendo a recepção do direito comunitário automática, por força das normas constitucionais respectivas.
Não se afigura, pois, possível uma intervenção dos tribunais nacionais para verificar a conformidade entre aquele instrumento comunitário e a Constituição da República.
Terá a Relação decidido com acerto?
Descrevendo muito sumariamente o que efectivamente se passou quanto a esta apreensão de droga, diremos que a PJ tinha sob escuta alguns telefones, mediante autorização do juiz de instrução e, através da intercepção respectiva, foi possível apurar que ia chegar ao aeroporto de Lisboa uma encomenda postal proveniente do Brasil, endereçada aos recorrentes, onde poderia vir dissimulada droga.
Assim, no dia 29 de Abril de 2004, as autoridades alfandegárias do aeroporto de Lisboa detectaram uma encomenda postal constituída por 3 volumes, proveniente do Brasil, endereçada à recorrente BB e acompanhada de declaração, para efeitos alfandegários, de que se tratava de “peças de vestuário”. Por isso, por essas autoridades “foi vistoriado um dos volumes, tendo sido visto que entre as peças de roupa se encontram embalagens que manifestamente e em função da experiência profissional correspondem a produto estupefaciente” (informação da PJ a fls. 58). E disso deram conhecimento à Polícia Judiciária.
A chegada da carga aérea foi também comunicada nesse dia 29 de Abril de 2004 ao arguido AA pela funcionária do despachante Educargas que estava a tratar da importação. No entanto, com a invocação de que eram necessários documentos para proceder ao despacho alfandegário da referida carga, o arguido AA não pôde levantá-la de imediato.
O M.º P.º da comarca de Sintra promoveu então à Mm.ª JIC que emitisse mandados de busca a diversas residências para onde poderia seguir a encomenda, o que foi deferido mas não efectuado imediatamente e, uns dias depois, a solicitação da PJ, o M.º P.º promoveu a apreensão da encomenda, que ainda estava retida na alfândega do aeroporto de Lisboa, a sua abertura e a substituição das embalagens de droga por produto inócuo.
Esta última promoção foi deferida pela Mm.ª JIC, a qual, no dia 10 de Maio, presidiu à diligência de apreensão da encomenda, sendo que na sua presença “foram abertos os três pacotes que constituíam a encomenda” e verificada a existência, num deles, de 18 embalagens envolvidas por lençóis, contendo cocaína. Nos outros dois volumes foram encontrada peças de vestuário. Com autorização da juíza de instrução, foram substituídas as embalagens de droga por outras contendo um produto inócuo e fechados os três pacotes (auto de fls. 88).
A Constituição da República Portuguesa protege o direito à reserva da vida privada (art.º 26.º, n.º 1) e a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (art.º 18.º, n.º 2).
São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações (art.º 32.º, n.º 8, da CRP, com realçados nossos).
E finalmente, ainda no domínio constitucional, o art.º 34.º, sob a epígrafe “Inviolabilidade do domicílio e da correspondência”, estabelece a proibição de toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal.
No cumprimento destes preceitos constitucionais, o CPP determina que ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular (art.º 126.º, n.º 3).
E o art.º 179.º, n.º 1, dispõe que, sob pena de nulidade, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão, mesmo nas estações de correios e de telecomunicações, de cartas, encomendas, valores, telegramas ou qualquer outra correspondência, quando tiver fundadas razões para crer que: a) A correspondência foi expedida pelo suspeito ou lhe é dirigida, mesmo que sob nome diverso ou através de pessoa diversa; b) Está em causa crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a três anos; e c) A diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.
O n.º 3 desta norma esclarece que o juiz que tiver autorizado ou ordenado a diligência é a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida. Se a considerar relevante para a prova, fá-la juntar ao processo; caso contrário, restitui-a a quem de direito, não podendo ser utilizada como meio de prova, e fica ligado por dever de segredo relativamente àquilo de que tiver tomado conhecimento e não tiver interesse para a prova.
Ora, destas disposições constitucionais e da lei processual penal retira-se que a protecção do direito à reserva da vida privada é especialmente salvaguardada quando está em jogo “correspondência”, sendo que se precisa de que por tal se consideram não só as cartas, como ainda encomendas, valores, telegramas ou qualquer outra forma similar de comunicação entre pessoas. A violação da correspondência só pode ser feita por ordem do juiz e este é a primeira pessoa que toma conhecimento do conteúdo da mesma.
Pode admitir-se que numa situação em que haja urgência ou perigo na demora, os órgãos de polícia criminal possam efectuar apreensões de correspondência, mas tal acto fica sujeito a validação no prazo máximo de 72 horas pela “autoridade judiciária” (art.º 178.º, n.ºs 4 e 5), isto é, pelo juiz e não o M.º P.º, já que há reserva de competência daquele (art.º 179.º).
Fora dessas situações, estamos perante a nulidade de um meio de prova.
Maia Gonçalves, em anotação ao art.º 179.º do CPP (“Código de Processo Penal Anotado”, Almedina, 199, p. 395) diz o seguinte: “A apreensão de correspondência sem ordem ou autorização judicial, bem como a apreensão e o controlo da correspondência entre o arguido e o seu defensor fora do circunstancialismo da parte final do n.° 2 são cominados com nulidade. Trata-se de uma intromissão ilegal na correspondência, fulminada com nulidade pelo art. 32.°, n.º 8, da CRP. Nos termos do art. 126.°, n.ºs 1 e 3, não podem de modo algum ser utilizadas as provas obtidas mediante tal intromissão. Não se trata portanto de nulidade sanável, submetida ao regime dos arts. 120.° e 121.°, mas verdadeiramente de nulidade insanável cominada em outras disposições legais, que não as do art. 119.°. Aliás, tratando-se de acto judicial, da exclusiva competência do juiz, na alternativa da mencionada nulidade, só poderia estar ferido de inexistência jurídica (acto praticado a non judice), podendo constituir infracção criminal.”
Na verdade, não deve confundir-se a nulidade dos actos processuais, previstas nos art.ºs 118.º a 123.º do CPP, com a nulidade dos meios de prova, pois o próprio art.º 118.º, n.º 3, estabelece que as disposições do presente título (nulidades) não prejudicam as normas desse Código relativas a proibições de prova.
E, assim, enquanto que a nulidade de um acto pode ser sanável ou insanável, a nulidade do meio de prova dá lugar à proibição de ser usado para esse fim (de prova).
Pergunta-se então se, não podendo as autoridades aduaneiras apreender correspondência sem autorização prévia do juiz, não se está a facilitar o cometimento de ilegalidades fiscais e criminais por essa via, cada vez mais usada como meio de remessa de pequenas mercadorias num mundo globalizado, com espaços económicos muito alargados?
A resposta é a de que as autoridades aduaneiras podem exercer fiscalização sobre toda a correspondência que envolve o transporte de mercadoria, mas tal fiscalização não passa pela apreensão nem pela abertura não autorizada das embalagens, mas pela faculdade de só emitir o despacho alfandegário quando houver a certeza de que a declaração da mercadoria corresponde ao real conteúdo da correspondência, o que pode ser concretizado pelo pedido de documentação adicional ou pelo pedido de desembalagem ao interessado. É o que resulta, por exemplo, dos art.ºs 37.º e 46.º do Código Aduaneiro Comunitário – Regulamento (CEE) n.º 2913/92 do Conselho.
Essa faculdade de retenção da mercadoria até ao seu despacho alfandegário não pode confundir-se com a apreensão e muito menos com a violação de correspondência, pois aquela, ao contrário destas, não confere a faculdade de quebrar o direito ao sigilo da vida privada e, portanto, não interfere com as normas constitucionais ou de processo penal indicadas.
O mesmo se passa com o visionamento de correspondência através de técnicas que não envolvem a abertura da correspondência e que só permitem uma conferência sumária do interior da mesma, pois tais técnicas afiguram-se proporcionais e adequadas aos fins visados (conferir a mercadoria com a declaração alfandegária) e não dão azo a uma violação do referido direito constitucional.
A suspeita pelas autoridades aduaneiras de que se está perante uma actividade criminal tem de dar lugar aos procedimentos a que se reporta o Código de Processo Criminal, como é óbvio.
Daqui se conclui que, no caso dos autos, só terá havido violação dos art.ºs 18.º, n.º 2, 26.º, n.º 1, 32.º, n.º 8, e 34.º da CRP, e art.ºs 126.º, n.º 3, 178.º, n.ºs 4 e 5, e 179.º, n.ºs 1 e 3 do CPP, se as autoridades aduaneiras abriram uma das encomendas para visionarem o seu conteúdo antes da juíza de instrução o autorizar.
Como sabemos, o auto de fls. 88 certifica que a apreensão e abertura só foi feita na presença de juiz. E os autos processuais fazem fé sobre o seu conteúdo (art.º 99.º, n.º 1, do CPP), salvo se houver procedência no incidente de falsidade (art.º 170.º).
Ora, os recorrentes, no recurso que interpuseram para a Relação invocaram expressamente a falsidade do auto de fls. 88 (veja-se a respectiva motivação, por exemplo, a fls. 1612) e tal questão subjaz às conclusões que formularam, mas sobre tal ponto não obtiveram resposta.
Contudo, como resulta do que atrás expusemos, é crucial decidir se esse auto está ou não ferido de falsidade, pois no caso afirmativo, isto é, se um dos volumes da encomenda tiver sido aberto antes da diligência que esse auto visa certificar, então estamos perante a nulidade de um meio de prova da qual há que extrair consequências processuais, mas no caso contrário falece razão aos recorrentes.
Daí que se deva concluir que o tribunal recorrido, ao não se pronunciar sobre a invocação de falsidade do auto de fls. 88, omitiu pronúncia sobre questão essencial à decisão e, consequentemente, incorreu em nulidade, nos termos do art.º 379.º, n.º 1, al. c), do CPP.
Esta nulidade impede o STJ de conhecer das restantes questões colocadas, mesmo da recorribilidade de parte da decisão, pois esta ainda não ficou definitivamente fixada na Relação.
5. Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em anular o acórdão recorrido, para que o Tribunal da Relação de Lisboa, de preferência com os mesmos Juízes, se pronuncie sobre a alegada falsidade do auto de fls. 88 e, na procedência ou improcedência dessa questão, decida ainda todas as questões colocadas no recurso para esse Tribunal que se mostrem pertinentes.
Não há lugar a tributação.
Notifique.

Lisboa, 18 de Maio de 2006

Santos Carvalho
Costa Mortágua
Rodrigues da Costa
Arménio Sottomayor