Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
994/06.2TBVFR.P2.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: JOÃO TRINDADE
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
ESTABELECIMENTO DA FILIAÇÃO
ESTATUTO PESSOAL
EFEITOS PATRIMONIAIS
ABUSO DO DIREITO
DIREITO À IDENTIDADE PESSOAL
DEVER DE ASSISTENCIA
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
PATRIMÓNIO
OBRIGAÇÃO DE ALIMENTOS
VOCAÇÃO SUCESSÓRIA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 03/17/2016
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação:
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS - DIREITO DA FAMÍLIA / FILIAÇÃO.
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS / DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 334.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 26.º, N.º1, 36.º, N.º4.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 24/10/2002, PROCESSO N.º 11619/01;
-DE 25/03/2004, PROCESSO N.º 1883/03;
-DE 16/1/2014, PROCESSO N.º 905/08.0TBALB.P1.S1, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 9/4/2014, PROCESSO N.º 187/09.7TBPFR.P1.S1, EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - O vínculo da filiação não se cinge ao direito à identidade pessoal consagrado no art. 26.º, n.º 1, da CRP, gerando igualmente para os envolvidos na relação parental efeitos pessoais (nos quais se compreendem, para além dos aspectos da afectividade e da prestação de assistência moral, a obrigação de criação e educação dos filhos) e efeitos patrimoniais (destacando-se entre estes a obrigação alimentar e o direito à vocação hereditária).

II - O princípio da igualdade de filiação impõe que os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adopção, tenham os mesmos direitos, sob pena de violação do princípio da indivisibilidade ou unidade do estado.

III - Numa acção de investigação de paternidade, os efeitos pessoais e patrimoniais decorrentes do estabelecimento da filiação não podem ser dissociados.

IV - Em consequência, ainda que fique provado que, ao intentar tal acção, o investigante apenas tinha em vista vir a receber o património do pai, não é possível restringir os efeitos pretendidos por aquele ao seu estatuto pessoal.

V - A “verwirkung” que, constituindo uma modalidade de abuso de direito, impossibilita o exercício de um direito subjectivo ou de uma pretensão – quando o seu titular, por os não ter exercido durante muito tempo criou na contraparte uma fundada expectativa de que já não seriam exercidos, revelando-se, portanto, um posterior exercício manifestamente desleal e intolerável –, não encontra eco na nossa jurisprudência quando desacompanhada de outros elementos que não apenas o decurso temporal.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1 - AA  A. intentou,

em 30.01.2006  

contra BB

acção de condenação, com processo ordinário, pedindo que se declare que o Réu é seu pai e que se ordene o averbamento no assento de nascimento da paternidade e da avoenga paterna.


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2 - Devidamente citado, o Réu contestou, logo suscitando a excepção da caducidade, a inconstitucionalidade da imprescritibilidade da acção, mais impugnando a factualidade articulada pela A. e invocando ainda o instituto do abuso do direito.


3 - Foi proferido despacho saneador, no qual foi julgada improcedente a dita excepção de caducidade, bem como a inconstitucionalidade da imprescritibilidade da acção de investigação da paternidade, decisão transitada em julgado, porque confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça e pelo Tribunal Constitucional.


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4 - Deferido que foi o pedido de realização de perícia hematológica, foram marcadas diversas datas para a recolha de vestígios biológicos, às quais o Réu faltou (pelo menos 5 vezes), tendo-se mesmo considerado que o mesmo se recusou colaborar com vista à realização de tal perícia.

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5 - Após realização da audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença em que se julgou improcedente, por não provado, o pedido deduzido pela A..


Em sede de recurso, o Supremo Tribunal de Justiça determinou a revogação da sentença, a notificação do Réu para proceder à recolha de vestígios biológicos com vista à realização da perícia de ADN, com a cominação da inversão do ónus da prova para o caso de não colaborar nessa recolha de vestígios biológicos.


Notificado o Réu com a referida cominação, foram recolhidos os vestígios biológicos e foi realizada a perícia de pesquisa de ADN.


Face ao resultado do exame pericial as partes restringiram o julgamento aos pontos 1, 2, 5,13,14, 21 a 24 da base instrutória, conforme resulta de fls. 1757 e 1758.


Nessa diligência o Réu, considerando a figura do abuso de direito invocada em sede de contestação, defendeu a possibilidade de cindir os efeitos patrimoniais e os efeitos pessoais do reconhecimento da paternidade, tendo propugnado no sentido de o tribunal excluir os referidos efeitos patrimoniais.


Foi realizada a audiência final, restrita à matéria indicada, com cumprimento das formalidades legais, conforme se apura da respectiva acta.


Foi proferida sentença (fls. 1803), que decidiu:

a). Reconhecer que BB, nascido em 26.12.1936, na freguesia de …, concelho de Oliveira de Azeméis, filho de CC e de DD, é pai da A. AA, nascida em 20.01.1980, na freguesia de Torres Novas (…), concelho de Torres Novas, registada na Conservatória do Registo Civil de Torres Novas como filha de EE.

Consequentemente, determinou-se o averbamento ao assento de nascimento da A. do nome do pai e da avoenga paterna nos termos aludidos.”


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6 - Inconformado com tal decisão, dela veio o Réu apelar para o Tribunal da Relação do Porto

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7 - A Relação (fls. 1909), julgando improcedente a apelação, confirmou a sentença recorrida.

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8. É desta decisão que em 2015-11-05 foi interposta revista (fls. 1965) pelo R. que encerra alegações com as seguintes conclusões:

1 - Está provado que:

1 - AA nasceu a 20 de Janeiro de 1980, na freguesia e concelho de Torres Novas, e é filha de EE (A).

2 - Do seu assento de nascimento consta apenas a menção da sua maternidade (8).

3 - A mãe da A. e o Réu conheceram-se em data concreta não apurada e mantiveram entre si relacionamento sexual (1° e 2º).

4 - O nascimento da A. ocorreu em consequência das relações sexuais havidas entre a mãe da A. e o Réu (5º).

5 - A partir pelo menos do ano de 2000, e até pelo menos ao de 2002, a A. enviou ao Réu as cartas constantes de fls. 586, 591, 592 e 594/595, que aqui se dão por integralmente reproduzidas (13° e 14°). De tais cartas resulta, com maior relevo para os autos, o seguinte:

Fls. 592 e 593 Sinceramente não sei como começar esta carta, talvez começando por me apresentar como uma menina que quer ter o direito de saber quem é o pai.

O meu nome é AA tenho 20 anos, nasci em 20-01-1980 em Torres Novas, filha de EE e ainda de pai incógnito.

(-)

A minha mãe sempre me disse que o senhor era o meu pai (...)

Quando tinha 15 anos de idade tentei contactá-lo (telefonando-lhe) mas depois perdi a coragem e desliguei.

(-)

... eu acredito que o senhor poderá fazer o teste de DNA assim como eu e então não mais restará dúvidas.

Obrigada pela sua atenção,

AA

Contacto de Tm: 96…

10 - Fls. 591 - Carta datada de 18.01.2001, assinada manualmente pela A., da qual resulta, com maior relevo:

.... venho solicitar a V.Exª um encontro em local e dia a acordar, no sentido de uma forma civilizada, podermos chegar a um consenso.

Caso não tenha por parte de V. Exª uma resposta adequada a esta minha pretensão, mais informo que recorrerei de imediato aos meios contenciosos que estão ao meu dispor, nomeadamente no sentido de encetar uma acção de investigação de paternidade

11 - fls. 586: Carta sem data, assinada manualmente pela A.:

Venho por este meio mais uma vez comunicar-lhe que vou dar seguimento ao processo que nos une de alguma forma, mas no entanto como calculará farei o que estiver ao meu alcance para uma possível conversa a fim de chegarmos ao acordo que ainda não está consolidado. Gostava que resolvesse-mos este assunto a bem e que tivesse consciência que sou sua filha e que apenas quero chegar a um acordo financeiro uma vez que seria difícil e compreendo, que me acarinhasse como pai.

Tenho o número de telefone da sua residência e alguns contactos que certamente o senhor se sentiria incomodado caso eu venha a contactar. Sugiro pela última vez que tome essa carta em consideração e que seja justo na sua decisão, uma vez que o número que me queria oferecer não é digno

12 - Caso não adiante nada esta carta começarei com os contactos que tenho e irei ao programa Ponto de Encontro até o chamarem para responder ao processo.

13 - Fls. 594 e 595: Carta sem data, sem assinatura manual:

(...)

O senhor é o meu pai, e como pai peço-lhe que me ajude, tenho 22 anos e tenho uma vida pela frente (...). Eu sei que o senhor me pode ajudar (...) já percebi que ter o seu carinho, assumir-me como sua filha, fazer-mos o teste de paternidade, o senhor não quer, por isso só me resta pedir-lhe que me ajude (...) agora sou eu que lhe peço para me ajudar ao fim de 22 anos de vida (...) ajude-me por favor eu também sou sua filha, já que não me dá o seu carinho por favor ajude-me na vida. (...)

Os meus melhores cumprimentos,

AA

Contacto de Tm: 91… E-mail:…….@tmn.pt

2 - Da matéria de facto dada como provada, emerge que o tema da presente revista terá de ser resolvido à luz das cartas supra transcritas e ajuizar se elas releva. Ou não, que a recorrida, ainda aqui na correta proposição do acórdão a quo” nada mais pretende do que aceder à qualidade de herdeira do Réu, vir aceder ao seu património.”

3 - Tudo isto à luz da construção dogmática do abuso de direito, não merecendo qualquer censura o modo como a decisão recorrida o trata, quer em sede doutrinária, quer em sede jurisprudencial, dispensando, assim, o recorrente de revisitar o tema.

4 - Estabelecido pela lei (art.º 1817º, nº 1, ex vi artº 1873º, ambos do Código Civil), e julgado como conforme à Constituição da República (Acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional n9 401/2011, de 22 de Setembro de 2011), um prazo de 10 anos, após a maioridade, para ser proposta ação de investigação de paternidade, é lícito, no estabelecimento judicial da filiação, separar os respetivos efeitos pessoais e patrimoniais; e se, provado que o investigante apenas intentou a ação, exclusiva ou principalmente, para tutelar expectativa sucessória quantos aos bens do investigado, podem ser excluídos os efeitos patrimoniais da filiação, por ser atentatório dos bons costumes e do fim social do direito de ação de investigação de paternidade [ut, art.º 3342 do Código Civil) exercer tal direito para a denominada caça à fortuna. E esta é a doutrina do STJ, expressa no Acórdão de 09 de abril de 2013.

5 - Aceita a decisão a quo que a factualidade dos autos pode/deve ser analisada em termos de lhe ser, ou não, aplicável a disciplina do art.º 3349 do Código Civil. E que, relevantes para o efeito, são as cartas de fls. 586, 591, 592, 593, 594 e 595, dadas como provadas, e numa hermenêutica que opte pela sua versão integral.                                                              

6 - Tais cartas revelam dois tipos de atitude: por um lado a legítima pretensão, por parte de quem está convencida que é filha, de que o pai a ajude, em abordagem integrável, sem qualquer entorse, no âmbito da irrecusável prestação de alimentos. É a carta de fls. 592 e 593; por outro, e já em animus bem diverso, aparece a intenção de negociar a renúncia ao reconhecimento da filiação - são as cartas de fls. 591, 594 e 595, embora com as modulações que o acórdão a quo lhes assinala.

7 - Decisiva,porém,é a última carta, a de fls. 586. Tal carta, para o que aos autos importa, contém, efectivamente quatro afirmações da recorrida:

1. Apenas quero chegar a um acordo financeiro,

2. "Uma vez que seria difícil e compreendo que me acarinhasse como pai".

3 "O número que me queria oferecer não é digno nem da minha pessoa (...) como também não é digno de uma filha a quem nunca deu nada (...) não me estou a referir apenas a nível financeiro".

4.    "Caso não adiante nada esta carta começarei os contactos que tenho e irei ao programa Ponto de Encontro até o chamarem para responder no processo.".

8 -Tais afirmações revelam que a recorrida tinha duas pretensões:

1.     ser acarinhada como pai pelo recorrente; e, como isso se afigura inviável,

2.     chegar a um acordo financeiro com ele.

9 - Que acordo? Não o que o recorrente lhe queria oferecer, mas em número que tenha em conta a pessoa e a filha a quem nada deu, pessoal e financeiramente. Ora,

10 - É incontornável que as afirmações supra revelam que a recorrida (i) estava disposta na renunciar à acção de investigação (ii) se o recorrente celebrasse com ela um acordo  financeiro que,(iii) em vez da quantia por ele oferecida, tivesse em conta a pessoa e a filha, a quem nada deu, pessoal e financeiramente.(iv) Na falência desse acordo, usaria o Ponto de Encontro para coagir o recorrente a ir responder a um processo. Que o mesmo é dizer.

11 - A recorrida abria mão do reconhecimento judicial da filiação se o recorrente lhe entregasse, em contrapartida da renúncia, uma compensação condigna; e é porque esse acordo não se fez, que a recorrida intenta a ação de investigação.

12 - A esta luz, poder-se-á sustentar que a presente ação, inviabilizados o afeto e o carinho, e estando a recorrida disponível para não promover o reconhecimento judicial da filiação, a troco de uma compensação condigna, que se gorou, teve outro objetivo, ou, pelo menos, não foi seu propósito essencial, garantir o acesso sucessório à notória fortuna do recorrente? É óbvio que não

13 - Mas o acordo financeiro que esteve pendente entre recorrente e recorrida não ofende a consciência jurídica e a ética das relações? Claro que sim. Mas não é porque esse acordo ofende a consciência jurídica e a ética das relações que o seu projeto deixa de ser relevante para qualificar o animus com que a presente ação foi intentada; animus que violenta a consciência jurídica, é certo, mas animus!

14 - Ora estar disponível para se abster de ser reconhecida como filha contra um acordo financeiro com o pai e, gorado este, propor, então, ação de investigação, logo, propositura só porque o acordo se gorou, é manifestamente contra os bons costumes e contra o fim social do direito à identidade pessoal, logo abuso de direito, nos termos do artº 334º do Código Civil, já que o comprovado objectivo da recorrida, com manifesta indiferença por aquele direito de identidade pessoal, é garantir as suas expectativas ou os seus direitos sucessórios. 

15 - Recusando tal asserção, o acórdão a quo fez errada aplicação do artº 334º do CC.

16 - É que a recorrida não diz ao pai, como se comenta no acórdão a que não a querendo como filha, ao menos que a ajude financeiramente, o que está provado é que a recorrida pretendia do recorrente um acordo financeiro para que ele não tivesse de ser chamado “(…) para responder ao processo…”.

17 - Não tendo acolhido a pretensão do ora recorrente de, reconhecida a filiação, serem excluídos os direitos ou expectativas sucessórias da A., ora recorrida, o acórdão a quo violou, por erro de interpretação e de aplicação, o art.º 334º do Código Civil, que impunha o reconhecimento da filiação dos autos sem os efeitos estabelecidos nos artºs 2132º, nº 1, alínea a), e 2157º, ambos também do Código Civil. Pelo que,

18 - Deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o aresto recorrido e substituindo-o por decisão que, reconhecendo a filiação da A., ora recorrida, exclua os seus direitos ou as suas expectativas sucessórias relativamente ao recorrente.


Foram apresentadas contra-alegações com as seguintes conclusões:

1 - O douto acórdão recorrido não é passível de qualquer censura porque fez correcta, douta e exemplar aplicação do direito.

2 - A jurisprudência do acórdão de 9-4-2013 não pode prevalecer porque contraira o direito constituído.

3 - A aplicação do artº 334º do CC aos casos de investigação de paternidade com afastamento dos efeitos patrimoniais decorrentes do reconhecimento da filiação é inconstitucional porque viola directamente os princípios igualdade de tratamento dos filhos nascidos fora do casamento e o princípio da indivisibilidade ou unidade do estado.

4 - Se for considerado que os descendentes do investigante afastado dos efeitos patrimoniais não são chamados à herança do investigado existe violação do princípio constitucional da igualdade.

5 - Não excede os limites impostos pela boa-fé ou pelos bons costumes um filho apenas pretender que lhe seja reconhecido o direito de suceder na herança dos sues ascendentes.

6 - No caso concreto, a recorrida ao intentar a acção na qual pede que o recorrido seja condenado a reconhecê-la como filha excedeu manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, pelo que não se verifica qualquer abuso de direito.

7 - A alegação pelo recorrente de quem à recorrida não podem ser reconhecidos os direitos patrimoniais decorrentes da filiação porque se encontra em abuso de direito é ela própria um abuso de direito.

8 - A douta decisão do Tribunal da Relação do Porto ora impugnada deve ser integralmente mantida.


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9 - Matéria de facto:

1. AA nasceu a 20 de Janeiro de 1980, na freguesia e concelho de Torres Novas, e é filha de EE (A).

2. Do seu assento de nascimento consta apenas a menção da sua maternidade (B).

3. A mãe da A. e o Réu conheceram-se em data concreta não apurada e mantiveram entre si relacionamento sexual (1º e 2º).

4. O nascimento da A. ocorreu em consequência das relações sexuais havidas entre mãe da A. e o Réu (5º).

5. A partir pelo menos do ano de 2000 e até pelo menos ao de 2002 a A. enviou ao Réu as cartas constantes de fls. 586, 591, 592 e 594/595, que aqui se dão por integralmente reproduzidas (13º e 14º).

De tais cartas resulta, com maior relevo para os autos, o seguinte:

. Fls. 592 e 593 - Carta sem data, sem assinatura manual:

Sinceramente não sei como começar esta carta, talvez começando por me apresentar como uma menina que quer ter o direito de saber quem é o pai.

O meu nome é AA tenho 20 anos, nasci em 20-01-1980 em Torres Novas, filha de EE e ainda de pai incógnito.

(…)

A minha mãe sempre me disse que o senhor era o meu pai (…)

Quando tinha 15 anos de idade tentei contactá-lo (telefonando-lhe) mas depois perdi a coragem e desliguei.

(…)

…eu acredito que o senhor poderá fazer o teste de DNA assim como eu e então não mais restará dúvidas.

Obrigada pela sua atenção,

AA

Contacto de Tm: 96…

Fls. 591 - Carta datada de 18.01.2001, assinada manualmente pela A., da qual resulta, com maior relevo:

….venho solicitar a V.Exª um encontro em local e dia a acordar, no sentido de uma forma civilizada, podermos chegar a um consenso.

Caso não tenha por parte de V.Exª uma resposta adequada a esta minha pretensão, mais informo que recorrerei de imediato aos meios contenciosos que estão ao meu dispôr, nomeadamente no sentido de encetar uma acção de investigação de paternidade.

Fls. 586: Carta sem data, assinada manualmente pela A.:

Venho por este meio mais uma vez comunicar-lhe que vou dar seguimento ao processo que nos une de alguma forma, mas no entanto como calculará farei o que estiver ao meu alcance para uma possível conversa a fim de chegarmos ao acordo que ainda não está consolidado. Gostava que resolvesse-mos este assunto a bem e que tivesse consciência que sou sua filha e que apenas quero chegar a um acordo financeiro uma vez que seria difícil e compreendo, que me acarinhasse como pai.

Tenho o número de telefone da sua residência e alguns contactos que certamente o senhor se sentiria incomodado caso eu venha a contactar. Sugiro pela última vez que tome essa carta em consideração e que seja justo na sua decisão, uma vez que o número que me queria oferecer não é digno ….

Caso não adiante nada esta carta começarei com os contactos que tenho e irei ao programa Ponto de Encontro até o chamarem para responder ao processo.

. Fls. 594 e 595: Carta sem data, sem assinatura manual:

(…)

O senhor é o meu pai, e como pai peço-lhe que me ajude, tenho 22 anos e tenho uma vida pela frente (…). Eu sei que o senhor me pode ajudar (…) já percebi que ter o seu carinho, assumir-me como sua filha, fazer-mos o teste de paternidade, o senhor não quer, por isso só me resta pedir-lhe que me ajude (…) agora sou eu que que lhe peço para me ajudar ao fim de 22 anos de vida (…) ajude-me por favor eu também sou sua filha, já que não me dá o seu carinho por favor ajude-me na vida. (…)

Os meus melhores cumprimentos,

AA

Contacto de Tm: 91…

E-mail:…….@tmn.pt



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10 - O mérito da causa:

O objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº3 e 690º do Código de Processo Civil.


As questões a resolver são as seguintes:

A.   Dissociação entre os efeitos pessoais e os efeitos patrimoniais do estabelecimento da filiação

B.    Abuso de direito (artº 334º do CC) - Interesse patrimonial


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Sobre o tema ora em apreço já nos debruçamos no acórdão de 16-1-14 na Revista 905/08. Analisados os argumentos ora expendidos não vemos razão para alterar o ali decidido que mantemos e reproduziremos:

Dissociação entre os efeitos pessoais e os efeitos patrimoniais do estabelecimento da filiação

 “Antes de nos debruçarmo-nos sobre o invocado abuso de direito importa desde já tomar posição sobre a possibilidade ou não, de na investigação de paternidade se dissociar os efeitos pessoais dos patrimoniais,

Concretizado o reconhecimento da paternidade as atenções deslocam-se da vertente natureza, filiação real ou biológica para as questões legais, filiação jurídica.

A filiação gera para os envolvidos na relação parental efeitos de ordem diversa. Esses efeitos podem ser divididos em duas categorias: os efeitos pessoais e os efeitos patrimoniais.

Os efeitos pessoais não se restringem ao aspecto da afectividade, de prestação de assistência moral, sendo certo que dentro destes se encontram a obrigação de criação e educação dos filhos com tudo o que de objectividade e materialidade isso implica. E esse direito/dever de cuidar não se esgota no período de menoridade, vai para além dele e também tem de abranger forçosamente por exemplo a situação do filho portador de anomalia que o impeça de gerir a sua pessoa e bens.

Na ordem patrimonial encontra-se uma gama de consequências jurídicas decorrentes do vínculo de filiação, sendo as principais a obrigação de alimentar e o direito à vocação hereditária.

É certo que o testador pode sempre dispor do seu património pela via testamentária, sendo certo também que uma parte desse mesmo património é intocável, a legítima.

Vemos assim que os vínculos da filiação não se cingem ao direito á identidade pessoal consagrado no artº 26º, nº 1 da CRP.

Mas o princípio da igualdade de filiação impõe que os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adopção, tenham os mesmos direitos. É que não podemos correr o risco de ressuscitar a ideia de que os deveres e os direitos dos “filhos ilegítimos” não são exactamente os mesmos dos “filhos legítimos”. O nº 4 do artº 36º da Constituição da República não permite a discriminação dos filhos nascidos fora do matrimónio.

Deste modo consideramos que posição contrária violaria o princípio da indivisibilidade ou unidade do estado, orientação doutamente defendida na Revista 187/09.7TBPFR.P1.S1, 6ª secção, na qual foi relator o Exmo. Conselheiro Fonseca Ramos.

É que na defesa da posição que propugnamos não deixamos de ser também sensíveis aos argumentos que o Exmo. Conselheiro Salazar Casanova expõe na declaração de voto do referido acórdão e que com a devida vénia passamos a transcrever:

1. A questão está em saber se é admissível instaurar acção de investigação de paternidade para além do prazo de caducidade previsto no artigo 1817.º/1 do Código Civil, o que significa considerar-se a inconstitucionalidade da fixação desse prazo, admitindo-se, porém, que a procedência da acção possa considerar-se restringida aos efeitos não patrimoniais. Ou seja, o dito prazo de caducidade não seria encarado como um prazo de caducidade de acção de investigação de paternidade mas como um prazo de caducidade do direito sucessório daquele que, para além do prazo de 10 anos, visse ser reconhecida a sua filiação quando se provasse que o seu interesse na acção tinha em vista apenas adquirir a qualidade de herdeiro. Por isso, proposta acção dentro do prazo de 10 anos, fossem quais fossem as intenções do autor, a sua qualidade de herdeiro não seria questionada.

2. A solução, a meu ver, conduz necessariamente à questão da inconstitucionalidade do aludido prazo que, a ser seguida, determina a imprescritibilidade da acção de investigação de paternidade.

3. Significa isto que as considerações atinentes ao abuso do direito se suscitam logicamente num momento posterior, ou seja, no momento em que, reconhecida a paternidade numa acção intentada depois do aludido prazo, se constata que a motivação do investigante tinha apenas por objectivo a obtenção do estatuto de herdeiro.

4. Impor-se-iam, portanto, duas alterações: ao nível constitucional considerar-se a inconstitucionalidade da fixação de qualquer prazo de caducidade para a proposição da ação (cf. artigo 1817.º/1 do Código Civil); depois, ao nível do direito positivo, considerar-se que uma acção de investigação de paternidade, proposta para além de determinado prazo, possibilita a restrição dos efeitos derivados da constituição da filiação, designadamente a atribuição da qualidade de herdeiro legítimo sucessível (artigos 2132.º e 2133.º/1, alíneas a) e b) do Código Civil) e legitimário (artigo 2157.º do Código Civil).

5. No momento presente, o reconhecimento da constitucionalidade do aludido prazo leva a que esta segunda questão não tenha, a meu ver, interesse prático, salvo se fosse defendido que o investigante que propôs a acção dentro dos 10 anos a que alude o artigo 1817.º/1, podia ver restringido o alcance do estatuto de filiação por se entender que ao instaurar a acção o que visava era constituir-se herdeiro, o que não vejo ser sustentado, evidenciando-se, assim, que a fixação desse prazo tem em vista unicamente a caducidade da acção de investigação de maternidade/paternidade.

6. Nos casos em que a acção foi proposta antes da introdução do prazo de 10 anos pela Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril e em que se considere valer a imprescritibilidade, a questão tem interesse pois não se suscitaria a incoerência de afinal já não interessarem as motivações do investigante que propôs a acção dentro do prazo fixado.

7. Creio, no entanto, que a atribuição do estatuto sucessório se funda na atribuição por lei de determinadas classes de sucessíveis que são chamados pela ordem imperativamente fixada (artigos 2132º, e 2133.º do Código Civil), não sendo admissível a introdução contra legem de restrições à plena capacidade sucessória salvo as que decorrem do motivo de indignidade (artigo 2034.º do Código Civil).

8. Com efeito, dizer-se que alguém é herdeiro legítimo inserido numa determinada classe de sucessíveis e, depois, retirar-lhe capacidade sucessória que a lei confere a " todas as pessoas nascidas ou concebidas ao tempo da abertura sucessão, não exceptuadas por lei" (artigo 2033.º/1 do Código Civil) por via do reconhecimento de uma causa de indignidade que atinge todo aquele que pretende ver reconhecida a sua filiação para se constituir sucessor, utilizando-se a via do abuso do direito (artigo 334.º do Código Civil), não se me afigura aceitável.

9. Desde logo porque o abuso do direito não pode existir a partir do momento em que se aceita que uma acção de investigação de paternidade seja proposta a todo tempo. Ou se admite que a acção pode ser proposta imprescritivelmente ou não se admite. Se se admite, o que se está a sancionar é a motivação de quem propõe a ação, mas atingindo as consequências que advêm, no plano sucessório, por força da lei, a todo aquele que é filho de outrem. Mas então, assim sendo, se o mal está na motivação, devia atacar-se a causa (a possibilidade de se constituir a filiação) e não a consequência (a sucessão legítima/legitimária). Aquilo que se imporia, de jure condendo, seria obstar, no plano substantivo, a que pudesse ser constituída a filiação em benefício daquele que apenas quer obter o estatuto de sucessível.

10. E - repare-se - no que respeita a outro sucessível, o cônjuge, então, também não será censurável a "caça ao dinheiro" do futuro marido/mulher? Censura-se aquele que pretende ver reconhecida a paternidade, retirando-lhe a sua capacidade para herdar, mas, tratando-se de cônjuge, já a caça à fortuna não é chocante?

11. E qual a razão por que se sanciona uma pessoa que é filha de outra por dela querer ser herdeira? Mas não é essa pretensão tão igual à dos filhos que foram reconhecidos como tal pelos pais? A filiação do perfilhado é mais moral do que a filiação daquele que o pai rejeitou?

12. Por isso, ainda que se tivesse provado que a autora propôs a presente ação apenas porque, reconhecida como filha, tinha em vista vir a receber o património do pai, tal razão poderá ser interessante numa perspetiva de mera crítica moral (que tenho por discutível) mas não me parece aceitável no plano jurídico e, designadamente, no que respeita ao direito constituído.

Concluímos assim pela impossibilidade da dissociação entre os efeitos pessoais e os efeitos patrimoniais do estabelecimento da filiação.


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Abuso de direito (artº 334º do CC) - Interesse patrimonial

Com decidimos consideramos não ser possível a restrição dos efeitos pretendidos pelo investigante apenas ao seu estatuto pessoal.

No entanto sempre diremos que a admitir-se essa possibilidade não estão verificados os pressupostos factuais que nos permitissem concluir pela existência do abuso de direito tal como vem defendido pelos recorrentes.

Preceitua o art. 334.º do CC que: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Uma das modalidades de abuso de direito, consiste no exercício de um direito de forma imprevista, quando, em termos de boa fé, seria de esperar que esse exercício não se verificasse

A “verwirkung” que impossibilita o exercício de um direito subjectivo ou de uma pretensão, quando o seu titular, por os não ter exercido durante muito tempo, criou na contraparte uma fundada expectativa de que já não seriam exercidos revelando-se, portanto, um posterior exercício manifestamente desleal e intolerável, não encontra eco na nossa jurisprudência quando desacompanhados de outros elementos que não apenas o decurso temporal.

Neste sentido entre outros:

I - A circunstância de o autor da acção haver deixado exaurir o prazo legal para o exercício do seu direito não constitui de "per si" e enquanto desacompanhado de certas circunstâncias abuso do direito nos termos do art. 334º do C.Civil.([1])

III - O tempo, desacompanhado de outros factos, que o credor demora a exercer o seu direito, nunca será um indício manifesto da vontade de não exercer esse direito, para os efeitos do artº 334º do C. Civil.([2])

Deste modo o simples facto de terem decorrido mais de três dezenas de anos não traduz por si só, um comportamento inequívoco dos autores com aptidão suficiente e adequada para concluir pela verificação do abuso de direito.”


O que acabamos de expor não é minimamente beliscado pelo argumento do recorrente.

Aliás ele revela bem o desespero que apesar disso não justifica nem lhe permite utilizar uma expressão descontextualizada e menos feliz da A. quando fala num “acordo financeiro”, para sustentar a sua tese.

Não vemos a mínima razão para alterar a bem estruturada, sistematizada e ponderada decisão da Relação, onde aliás foi devidamente escalpelizada a, pelo menos, infeliz argumentação que sustenta a pretensão do recorrente.

Como tal não queremos deixar de registar uma passagem do acórdão recorrido que faz cair

Diremos até que o Réu, tendo o direito de negar a invocada paternidade, abusou desse mesmo direito, exerceu-o de forma anormal, em termos reprováveis, usando essa legítima recusa de forma ilegítima, ofendendo o salutar equilíbrio de interesses, requerido pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico do direito a que a Autora se arrogava.

Diremos que o Réu se precipitou numa senda de recusa, com isso ferindo gravemente o sentimento de justiça dominante na sociedade.

Foi o Réu que exorbitou do seu “direito” ou prerrogativa de negar a paternidade, entrando numa vertigem de negação, de indiferença e de silêncio, querendo pôr-se a coberto de uma realidade que talvez conhecesse, não actuando de forma corajosa e arrojada, como admitimos que o será na sua vida em geral, não agiu como se lhe impunha, assim procedendo durante anos a fio, um silêncio atemorizado e “ensurdecedor” para a Ré, levando esta a agir sob desespero, de forma perturbada e revoltada, a ponto de afirmar que “apenas quero chegar a um acordo financeiro”.

Na realidade, esta infeliz afirmação da Autora não pode ser tida como acto isolado, não pode ser vista como representando ou traduzindo o seu desejo único e exclusivo, antes devendo ser ponderada como o culminar de um processo de aproximação que teve início na primeira carta acima transcrita e apreciada, que passou pelas demais missivas, às quais os Réu nunca respondeu, sequer negando a paternidade afirmada em tais cartas.

Ora, como acima dissemos, sendo obrigação do Réu reagir a tais demandas, como homem sério e vencedor na vida que com certeza será, como homem de coragem que com certeza será, ao não reagir, ao não querer correr riscos na averiguação da imputada paternidade, o que se impunha a alguém que terá a honradez como baluarte na vida (tal ressalta dos articulados), “no melhor pano caindo a nódoa”, o tempo foi passando provocando alteração no discurso da Autora, discurso que se precipitou impensadamente (e com certeza mal aconselhada) no propalado “acordo financeiro”.

Sendo censurável este discurso enquanto tal, não nos restam dúvidas que a este ponto não se teria chegado se o Réu, como era sua obrigação de cidadão afirmado e cioso da sua verticalidade, tivesse anuído a fazer os exames de DNA que a Autora sua filha repetidamente lhe propôs, uma vez que, realizados tais exames e constatada a paternidade, nunca a questão da relação entre ambos viria a ser susceptível de ser resolvida na vertente meramente financeira.

O que equivale a dizer que o censurável silêncio e indiferença do Réu acabaria por o beneficiar, já que levou a autora ao desespero e à insensatez de chegar a falar em “acordo financeiro”, uma insensatez patente que mais não acaba de ser do que uma reacção quase infantil e desesperada à provocação que o silêncio, alheamento e desprendimento (pelo menos aparente) do Réu durante anos seguidos acabaram por constituir.

Admitirmos que a afirmação da Autora, quando diz que o que pretende é um “acordo financeiro”, constitui um acto que evidencia por parte da mesma abuso de direito com a instauração da presente acção de investigação de paternidade, é querer ver apenas a árvore sem ter presente a floresta, é ter tal afirmação como o todo do discurso da Autora, com desprezo pelas anteriores tentativas de aproximação que a mesma fez sem qualquer sucesso.


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11 - DECISÃO:

Nesta conformidade, acorda-se em negar provimento à revista.

Custas pelo recorrente.

Notifique.




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Lisboa, 2016-03-17


João Trindade (Relator)

Tavares de Paiva

Abrantes Geraldes

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[1] Revista 11619/01-24.10.02
[2] Revista nº 1883/03 de 25.03.4