Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03A1051
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FARIA ANTUNES
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
LETRA
OBRIGAÇÃO CAUSAL
Nº do Documento: SJ200305060010511
Data do Acordão: 05/06/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 1537/02
Data: 07/03/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A" e B deduziram embargos de executado por apenso à execução ordinária nº 59/2000, pendente no Tribunal Judicial de Condeixa-a-Nova, em que é exequente C e são executadas as embargantes, com o fundamento de que duas das três letras exequendas prescreveram nos termos do artº 70º da LULL.
Contestou o embargado, pugnando pela improcedência dos embargos, aduzindo que as letras em causa continuam a ter força executiva, por conservarem a sua eficácia como documentos particulares assinados pelo devedor que importam a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, continuando a ser títulos executivos nos termos da al. c) do artº 46º do Código de Processo Civil, não tendo as embargantes impugnado a existência das obrigações constantes das letras.

No saneador foi a excepção da prescrição julgada procedente, com a consequente procedência dos embargos, por se ter entendido que, tendo o exequente recorrido à execução cambiária fundada em letras e tendo-se estribado apenas nas obrigações abstractas, literais e autónomas incorporadas nos títulos, nenhuma referência tendo feito às relações materiais que estiveram subjacentes aos aceites nestas apostos, não podem aquelas revestir eficácia executiva relativamente à obrigação fundamental.

Apelou o embargado para a Relação de Coimbra, que, todavia, confirmou o saneador/sentença.

Uma vez mais inconformado, recorreu o embargado de revista, finalizando a peça alegatória com as seguintes

Conclusões:

1ª- A prescrição da acção cambiária não abrange a da obrigação constante da letra (assento de 8.5.36);
2ª- Uma letra prescrita continua a ser título executivo, pois preenche todos os requisitos exigidos pela alínea c) do artigo 46º do CPC: é um documento particular, assinado pelo devedor, que importa reconhecimento de uma obrigação pecuniária de montante determinado;
3ª- Não se vê qualquer razão lógica para exigir que as letras prescritas, para serem títulos executivos, tenham ainda de conter referência à origem da dívida, ou que se tenha de alegar essa origem no requerimento executivo. Se tais exigências não são feitas quando o suporte da declaração de reconhecimento de dívida é um qualquer bocado de papel, não se vê razão para que o sejam só porque esse suporte é um impresso de letra;
4ª- Assim sendo, os embargos não deveriam ter sido julgados procedentes;
5ª- O acórdão recorrido violou a norma jurídica constante do artigo 46º alínea c) do CPC (que devia ter sido interpretada no sentido de que qualquer documento particular, mesmo que seja uma letra prescrita, assinado pelo devedor, que importe reconhecimento de obrigação pecuniária de montante determinado, é título executivo) e a constante do nº 1 do artigo 45 do mesmo diploma (que devia ter sido, interpretada no sentido de que na acção executiva é sempre suficiente a apresentação do título, não tendo o exequente que alegar no requerimento inicial a relação material a ele subjacente, que só pode ser discutida em eventuais embargos),
Devendo ser revogado o acórdão recorrido, e os embargos ser julgados improcedentes.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Com os vistos legais, cumpre conhecer.
Considerando que no recurso de apelação se não pôs em causa a decisão recorrida na parte em que julgou prescrita a obrigação cambiária, deu a Relação de Coimbra como provado, por acordo das partes e por documentos, o seguinte quadro factual:
1) O exequente deu à execução três letras de câmbio, sendo uma do montante de 12.000.000$00 e data de vencimento em 07/07/1996, outra de 1.200.000$00 e vencimento em 07/07/1996 e outra de 1.200.000$00 e vencimento em 15/06/1997;
2) Nas referidas letras consta como sacador o exequente e como sacado D;
3) O D faleceu em 20/09/1997, sendo as
executadas, ora embargantes, suas únicas e universais herdeiras;
4) Não consta das aludidas letras a origem do saque, nem a mesma foi indicada no requerimento executivo.
Como se viu, foram declaradas extintas por prescrição as obrigações cambiárias decorrentes das duas letras vencidas em 07.07.96, decisão que, à míngua de recurso, transitou em julgado.
Quanto a essas duas letras de câmbio foram os embargos julgados procedentes, o que foi confirmado no acórdão recorrido e deverá ser mantido, por, como se verá, ser essa a decisão juridicamente correcta.
Na verdade, não servindo essas duas letras, nessa qualidade cambiária, como título executivo, também não podem servir de título executivo enquanto documento particular assinado pelo devedor, que importe constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias de montante determinado ou determinável nos termos do artº 805º do CPC (al. c) do artº 46º, ibidem).
É que, como se provou (e resulta da certidão junta a fls. 118 e segs.), nem nas ajuizadas letras de câmbio, nem no requerimento executivo se alude à respectiva relação subjacente ou fundamental, e era imprescindível, para que pudessem constituir título executivo, que tal relação constasse dos próprios documentos, ou, pelo menos, do requerimento executivo.
A alínea c) do artº 46º do CPC está em consonância com o artº 458º do CC, segundo o qual:
Se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário (nº1);
A promessa ou reconhecimento deve, porém, constar de documento escrito, se outras formalidades não forem exigidas para a prova da relação fundamental (nº 2).
Ora, como referem Pires de Lima e Antunes Varela em anotação a este preceito legal, ele não consagra o princípio do negócio abstracto, mas antes a inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental.
Assim, quando a acção executiva se reconduza não a uma relação abstracta - v.g. execução fundada em letra de câmbio ou cheque, títulos que incorporam e definem o próprio direito formal, independente e que se destaca da «causa debendi» - mas a uma relação causal, não chega juntar o documento sem indicação da origem da obrigação de pagamento, carecendo o exequente de alegar a causa da obrigação, a fim de o tribunal ficar habilitado a ajuizar da validade da declaração unilateral documentada ou da própria existência do direito em face dos respectivos factos constitutivos, ou, porventura, impeditivos ou extintivos de que lhe seja lícito conhecer.
Enquanto o negócio abstracto vale e opera eficazmente os seus efeitos, independentemente da fonte que os haja originado (a letra de câmbio, v.g. vale como o direito que ela própria incorpora e faz nascer, titula uma obrigação formal e abstracta), tratando-se de um quirógrafo de uma obrigação causal ou subjacente, já as coisas não se passam da mesma feição, pois esta só pode se requerida com invocação clara e precisa da causa, já que aquele vale apenas como documento que faz presumir o direito adquirido pelo negócio subjacente, titulando uma obrigação causal.
A causa das obrigação, se não constar do documento dado á execução, deve ser invocada no requerimento executivo, como causa de pedir da acção executiva.
A causa de pedir é constituída pelos factos essenciais de que nasce o direito invocado, é um elemento imprescindível da identificação da pretensão processual, enquanto o título executivo é apenas o documento donde consta a obrigação, um instrumento probatório da obrigação exequenda, mas não donde ela nasce.
Não se aludindo nas letras que foram declaradas prescritas a causa debendi, que também não foi minimamente aflorada no requerimento executivo, importa concluir que o portador dessas letras se quis prevalecer das relações cartulares, que vieram a ficar feridas de morte pela arguição triunfante da prescrição, não podendo agora sequer discutir a dívida originária, não abrangida pela prescrição, por isso se traduzir na alteração da causa de pedir, apenas admissível com o acordo expresso do executado (artº 272º do CPC, aplicável também às execuções- artº 466º, nº 1, ibidem).
Em suma, quando a obrigação é abstracta, o credor pode exigir a prestação ao devedor sem alegação da causa justificativa do recebimento, mas quando a obrigação dada à execução é causal, só pode ser requerida com invocação da relação causal subjacente ou fundamental - por só assim se poder demonstrar que se constituiu ou reconheceu uma obrigação pecuniária individualizada - sob pena de ineptidão do requerimento executivo por falta de causa de pedir (artº 193º, nº 2, a) do CPC).
Relativamente à sobredita necessidade de indicação da relação subjacente ou fundamental podem consultar-se, com muita utilidade, os arestos do STJ, de 18.1.2001, 30.1.2001 e 29.1.2002, na CJSTJ, respectivamente, ano 2001, tomo I, págs. 71 e segs. e 85 e segs., e ano 2002, tomo I, pág. 64 e segs., e na doutrina Lebre de Freitas, na Acção Executiva à Luz do Código Revisto, 2ª Edição, pág. 53 e 54 e 133 e 134 e Teixeira de Sousa, na Acção Executiva Singular, 1998, págs. 68 e 69 (se bem que ao arrepio do entendimento de Pinto Furtado, in Títulos de Crédito, Letra, Livrança Cheque, pág. 82 e 83 e 285 e 286).
Não foi violado pela Relação qualquer preceito legal.
Improcedem todas as conclusões recursórias.
Termos em que acordam em negar a revista, com custas pelo recorrente.

Lisboa, 6 de Maio de 2003
Faria Antunes
Moreira Alves (votei a decisão)
Alves Velho