Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B1414
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LUCAS COELHO
Descritores: REMISSÃO
ACÓRDÃO POR REMISSÃO
MATÉRIA DE FACTO
DECISÃO
JULGAMENTO
REPETIÇÃO
NULIDADE PROCESSUAL
DESPACHO SANEADOR
Nº do Documento: SJ200402120014142
Data do Acordão: 02/12/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 2260/02
Data: 12/05/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : I - A remissão que o º 6 do artigo 713.º do Código de Processo Civil faculta não é para os documentos de que eventualmente conste a matéria de facto com interesse para o recurso, mas «para os termos da decisão da 1.ª instância que decidiu aquela matéria»;
II - Mercê do disposto nos n.os 2 e 3 do artigo 659.º do Código de Processo Civil, deve haver lugar, no momento da elaboração da sentença, a um julgamento de facto, quiçá complementar, mas de algum modo autónomo daquele a que se procede em audiência nos termos do artigo 653.º, não se encontrando o julgador do direito estritamente confinado ao perímetro factual definido pela especificação e as respostas ao questionário;
III - O despacho saneador, conhecendo do mérito da causa em conformidade com a alínea b) do n.º 1 do artigo 510.º, e tendo nesse caso o valor de sentença para todos os efeitos (n.º3), está necessariamente sujeito na sua elaboração, mutatis mutandis, ao disposto no artigo 659.º e ao julgamento de facto nele previsto
IV - A discriminação dos factos que o juiz considera provados, nos termos do n.º 2 do artigo 659.º, não se reduz a uma actividade mecânico-formal ou sistemático-organizatória de reprodução na sentença de factos dados como provados aliunde, antes devendo a mesma conceber-se como acto de exteriorização e expressão enunciativa do julgamento de facto, e deste incindível, que nesse momento tem lugar;
V - Tratando-se, por conseguinte, de um acto especificamente jurisdicional, a efectivação jurídico-concreta da discriminação em apreço, num sistema de cisão e separação do julgamento da matéria de facto e de direito, como caracteristicamente o nosso, é inconciliável com procedimentos de remissão esparsa para suportes documentais dos factos, no próprio passo da sentença ou acórdão dedicado à aplicação do direito;
VI - A falta de discriminação dos factos que a Relação devia considerar provados, em violação do disposto no n.º 2 do artigo 659.º - aplicável por força do n.º 2 do artigo 713.º -, susceptível em derradeiro termo de furtar ao tribunal de revista a base factual segura pressuposta pelo artigo 729.º, n.º 1, como indispensável à aplicação definitiva do regime jurídico adequado, constitui nulidade atípica sancionável, por aplicação directa ou extensiva, nos termos dos artigos 729.º, n.º 3, e 730.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I
1. "A", com sede na freguesia de Fiães, concelho de Santa Maria da Feira, instaurou em 7 de Julho de 2000, no tribunal dessa comarca, contra B e esposa C, residentes em Vila Nova de Gaia, D e esposa E, moradores na freguesia de Lobão, do concelho de Santa Maria da Feira, e F e esposa G, residentes na freguesia de S. Jorge, também desse concelho, acção ordinária tendente a ver reconhecida a sua qualidade de arrendatária de um prédio urbano de armazém, de que os réus são proprietários no lugar da Cerejeira, da referida freguesia de Fiães, e a obter a restituição «da sua posse como prédio arrendado» (1).
Alega, em resumo, que o armazém fora inicialmente arrendado a H para o exercício do comércio, mediante contrato em que se autorizava o trespasse a favor da autora, que já tinha aí a sua sede e estabelecimento comercial desde 1986.

Por outro lado, os réus reconheceram a autora como arrendatária por carta, de 7 de Julho de 1987, na qual estabeleciam uma nova renda.

A escritura de trespasse não chegou é certo a ser realizada, mas por causa imputável aos réus, devido à falta de determinadas obras e à obtenção de licença camarária de utilização.

Foram ademais instauradas pelos réus acções judiciais - acção de despejo contra o primitivo arrendatário e de restituição de posse contra a autora -, e, estando as rendas do locado a ser depositadas pela autora na Caixa Geral de Depósitos, procederam aqueles ao seu levantamento, por esse facto a reconhecendo também arrendatária.

Contestaram os réus historiando os litígios judiciais entre as partes acerca do prédio em causa, e excepcionaram o caso julgado formado num desses processos, pedindo a condenação da autora como litigante de má fé em multa e indemnização.

A excepção foi julgada procedente no saneador, que a Relação do Porto, no entanto, revogou em provimento do agravo adrede interposto pela demandante, determinando o prosseguimento normal do processo para conhecimento do objecto do litígio.

Em obediência ao decidido pelo tribunal ad quem, e ao abrigo do artigo 510.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, proferiu o tribunal de Santa Maria da Feira saneador-sentença, a 22 de Fevereiro de 2002, que julgou a acção improcedente, condenando a autora como litigante de má fé em multa de 5 UC e numa indemnização a liquidar de conformidade com o artigo 457.º, n.º 2, do mesmo Código, desde logo ordenando a notificação das partes nos termos e para os efeitos deste normativo.

Pronunciando-se os réus neste sentido, a autora, num primeiro momento apelou da sentença - em cuja admissão se sobrestou até à decisão da indemnização - e depois veio arguir a nulidade e desentranhamento do requerimento dos demandados, sem deixar de acautelar impugnação dos valores por eles aduzidos.

A arguição resultou indeferida, fixando-se do mesmo passo em 2 000 € a indemnização devida.

E reclamando a A a nulidade destoutra decisão, viu-a igualmente indeferida por despacho que admitiu então a apelação anteriormente interposta, do qual, naquela parte, agravou também a autora.

A Relação do Porto negou provimento a ambos os recursos e a recorrente, dissentindo do acórdão a propósito proferido em 5 de Dezembro de 2002, vem ao Supremo Tribunal de Justiça impugná-lo mediante a presente revista.

2. Pois bem. A adequada compreensão da decisão que é nosso mister emitir aconselha a que, antes de se prosseguir, nos detenhamos ainda por instantes, em breve parêntesis, nas conclusões das alegações da apelação e do agravo para a Relação.

No agravo sintetizaram-se duas conclusões, suficientemente elucidativas da divergência que lhe subjaz:

2.1. «Foi proferida a decisão do quantum a indemnizar pela autora aos réus, de condenação em litigância de má-fé, da qual se arguiu a nulidade dos artigos 205.° e 206.°, n.° 3, do CPC, que foi indeferida; decisão de indeferimento que deu sequência a uma decisão anterior objecto de recurso antes interposto com efeito suspensivo (artigos 692.º e 693.° do CPC.);

2.2. «Com todo o respeito que é devido, a nosso ver manter inalterada tal decisão do quanto a indemnizar constitui grave violação da ineficácia das decisões dos tribunais até ao seu trânsito em julgado (artigo 671.° do CPC) pelo que tal nulidade deve ser declarada e a decisão do quanto em questão também declarada nula e de nenhum efeito [artigo 668.°, alínea c), do CPC).»

No tocante, por sua vez, às 8 conclusões da apelação - anotando de passagem a impugnação da litigância maliciosa na conclusão 8.ª -, interessa fundamentalmente recortar a 3.ª conclusão, do seguinte teor:

2.3. «Na nossa óptica, a sentença recorrida e de julgamento da matéria de facto ao não conter discriminados os factos considerados como provados (artigo 659.° n.º 2, do Código de Processo Civil), com o devido respeito, padece de nulidade, de conhecimento oficioso (artigo 659.°, nº. 2, do C PC e acórdão do STJ, BMJ n.º 424, pág. 764)».

3. Posto isto, e retomando o fio da exposição, visto que a Relação do Porto negou provimento ao agravo e à apelação, interpondo a autora a presente revista do acórdão adrede emitido, é o momento de conhecer as conclusões da respectiva alegação, que se apresentam formuladas como segue:

3.1. «O argumento do acórdão recorrido (pág. 6) de considerar como suplementar da sentença de condenação por má fé a decisão do quantum de indemnização, não contraria e mantém esta decisão como prosseguimento de uma sentença da qual antes se interpôs recurso que a suspendeu (artigos 692.º e 693.º do CPC) violando-se assim o princípio da ineficácia das decisões dos tribunais até ao seu trânsito em julgado o que impõe o decretamento da nulidade (artigos 671.º, 668.º, n.º 1, 205.º e 206.º do CPC) arguida no agravo da 2.ª instância;

3.2. «Com o devido respeito, em nosso critério o acórdão recorrido, ao exprimir na pág. 5 que ‘a matéria e facto provada é constituída pelos factos do relatório acima elaborado’ (relatório que vai da pág. l a 5), não explicitou completa e discriminadamente a matéria de facto considerada como provada para poder ser fixado agora em revista o regime jurídico adequado ao litígio (artigo 722.º, n.º 1, do CPC (2)) e assim violou o artigo 659.º, n.º 2, do CPC e os acórdãos do STJ, de 22/2/1995, no BMJ n.º 444, pág. 527, de 10/5/1995, no BMJ n.º 447, pág. 411, e o do BMJ n.º 444, pág. 446;

3.3. «Ao contrário do acórdão recorrido (págs. 8 e 9), em nosso ponto de vista não se mostra provado nos autos que H era portador de duplicado de declaração de arrendamento das finanças para comércio indústria ou exercício de profissão liberal por virtude do contrato de arrendamento de fls. 6 e 7, nem de qualquer outro documento idêntico das finanças nem da câmara através do qual se pudesse formalizar a escritura de trespasse;

3.4. «Em nosso modesto entendimento, a eventual prova feita em audiência de julgamento dos factos novos não invocados na acção 635/93, de levantamento de rendas pelos réus (artigos 21.º e segs. da petição inicial) e de estes terem culposa e exclusivamente inviabilizado a formalização da escritura de trespasse (artigos 36.º a 42 da p.i.), legitima o tribunal a decretar uma sentença constitutiva, com os mesmos efeitos de uma escritura, que considere a autora como arrendatária e os réus como senhorio;

3.5. «Quer isto dizer, ao contrário do acórdão recorrido (pág. 8), que era necessário averiguar ou apurar em audiência de julgamento tais factos novos cuja eventual prova imputaria aos réus na totalidade a não formalização da escritura de trespasse. E como esta averiguação ou apuramento não se fez, violou-se o poder-dever de indagação e recolha oficiosa da prova que se mostra necessária ao apuramento da verdade e à justa composição da causa de pedir e do objecto do litígio (artigos 265.º, n.º 3, 519.º, n.º 1, do CPC e artigo 341.º do Cód. Civ.);

3.6. «Os factos novos são suficientes e relevantes para justificar o pedido e necessários para a subsistência e para o prosseguimento da presente acção (cfr. o 1.° acórdão da Relação existente nos autos); não os apurar para fundar neles o acórdão recorrido constitui grave violação do princípio dispositivo de não considerar factos essenciais e grave violação da eficácia da condução e intervenção no processo e da justa composição do litígio (artigo 265.º, n.º1, do CPC);

3.7. «Quer isto dizer que o acórdão recorrido, convolou oficiosamente da causa de pedir da presente acção com os descritos factos novos para a causa de pedir da acção 635/93 não integrada com a invocação de tais factos, o que em nosso humilde entendimento não é lícito - artigos 664.º e 264.º do CPC (cfr. Vaz Serra, RLJ em anotação ao acórdão do STJ, de 15/10/71);

3.8. «Posto que os factos novos são suficientes e relevantes para serem apurados e para o prosseguimento, do pedido ou pedidos e para serem apurados para eventual prova e procedência da presente acção, ao contrário de pág. 10 do acórdão recorrido cremos que não há fundamento para se manter a condenação da autora como litigante de má fé.»

Os réus recorridos não apresentaram contra-alegações.
II
1. Frisámos o conteúdo da segunda conclusão uma vez que a questão aí equacionada assume a todas as luzes natureza em absoluto prejudicial do conhecimento do fundo substantivo-processual da revista inscrito nas demais conclusões, exonerando do exame destas caso se conclua pela sua procedência.

Daí que na presente abordagem lhe deva ser conferida estrita prioridade.

Neste conspecto alega, por conseguinte, a autora recorrente que o acórdão sub iudicio não procedeu à discriminação dos factos que teve como provados, de modo a possibilitar a aplicação em revista do regime jurídico que o Supremo julgue adequado (artigo 729.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), incorrendo desse modo em nulidade por violação do n.º 2 do artigo 659.º do mesmo corpo de leis - o mesmo vício, recorde-se (supra, I, 2.3.), que na apelação imputara à sentença, como dentro em pouco melhor se concluirá (infra, ponto 2.3.).

2. Vejamos se assim é.

2.1. Lê-se a introduzir a parte II do acórdão, titulada «Fundamentos» - a parte I compreende o «Relatório» e a parte III a «Decisão» -, que «a matéria de facto provada é constituída pelos factos constantes do relatório acima elaborado, tudo documentado nos autos, o que aqui se tem por inteiramente reproduzido, nos termos do n.º 6 do artigo 713.º do CPC».

Contudo, do «relatório» para que assim se remete constam, fundamentalmente, a descrição dos termos do litígio, alegações das partes, o relato dos eventos processuais e as conclusões das alegações do agravo e da apelação.

Nenhuma menção, porém, e muito menos discriminação explícita - tal como o exige a pacífica jurisprudência deste Supremo há momentos ilustrada pela autora recorrente - dos factos materiais da causa tidos como provados. Nem no relatório, nem nas outras duas partes do aresto. Ocorrendo quando muito, na abordagem jurídica das questões, alusões esparsas a factos constantes de documentos juntos ao processo

Dos termos do passo transcrito poderia quiçá concluir-se que a Relação, no uso da faculdade concedida pelo n.º 6 do artigo 713.º do Código de Processo Civil, de resto, ali explicitamente citado, se limitava a remeter para os termos da decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto - e veremos adiante não ser afinal este o verdadeiro sentido da remissão.

O certo, todavia, é que também o saneador-sentença não contém, por seu turno, qualquer elenco ou discriminação dos factos considerados provados, havendo-se outrossim limitado a remissões documentais avulsas. E isto a despeito de não poder duvidar-se de que o despacho saneador, conhecendo do mérito da causa nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 510.º, e tendo nesse caso «para todos os efeitos, o valor de sentença» (n.º 3, segunda parte, do mesmo artigo), está necessariamente sujeito na sua elaboração ao disposto no n.º 2 do artigo 659.º

2.2. Pareceria assim assistir razão à autora quando, nos termos da conclusão 3.ª da alegação da apelação (cfr. supra, 2.3.) - permita-se que prossigamos ainda a incursão - acusava já a sentença de violação do n.º 2 do artigo 659.º, por falta de discriminação dos factos assentes.

Diferente foi, porém, o ponto de vista do acórdão em revista, ao apreciar, rejeitando-a, a arguição da nulidade respectiva.

O pensamento que presidiu ao indeferimento flui, aliás, a determinado passo do aresto sub iudicio de forma assaz elucidativa, que por isso se justifica transcrever, pese a extensão (frisados no original):

«Embora se reconheça que a abordagem formal apresentada nesta sentença, na discriminação dos factos considerados assentes e na fixação das questões a solucionar, pode não permitir uma destrinça correcta desses aspectos, o certo é que estamos numa acção, entre partes envolvidas nas acções mencionadas na sentença, onde foram juntos elementos documentais que conhecem, que permitem ao tribunal enfrentar as questões objecto do litígio em causa, pois que, designadamente, se encontra junta aos autos a certidão das peças essenciais do aludido processo 635/93, conforme fls. 160 a 211, sendo certo que o contrato de arrendamento também foi junto aos autos (fls. 6 e 7) pela própria autora.

«Queremos com isto dizer - prossegue o acórdão - que, na sentença estão identificadas as partes e o objecto do litígio e no tocante aos factos e questões a solucionar, com a remissão para os aludidos documentos feita na sentença, embora de forma formalmente incorrecta, pode-se considerar que estão discriminados os factos em que assentou a decisão, que se mostra justificada em termos das normas jurídicas que foram aplicadas.

«De resto - argumenta ainda a Relação -, mesmo que se considerasse existir nulidade por inobservância do disposto no artigo 659.°, n.° 2, do CPC, este tribunal, tinha ao seu dispor esses mesmos elementos (sendo suficientes) a regra da substituição do tribunal recorrido, não deixando de conhecer, por isso, do objecto da apelação.

E, após declarar a improcedência da nulidade, pondera Relação em remate, como que evocando a remissão introdutória dos «Fundamentos» reproduzida há instantes:

«Consignando, pois, aqui e agora, todos os factos dos documentos de fls.6 e 7 e 160 a 211, que nos termos do n.° 6 do artigo 713.° do CPC se têm como inteiramente reproduzidos, passemos então a apreciar o objecto da apelação, definido nas restantes conclusões.(...)»

2.3. Tudo ponderado, não propendemos a aderir, salvo o devido respeito, à concepção que transparece do excerto transcrito.

Desde logo, porque a remissão que o artigo 713.º, n.º 6, permite não é para os documentos donde eventualmente conste a matéria de facto com interesse no recurso, mas «para os termos da decisão da 1.ª instância que decidiu aquela matéria».

Substancialmente, no entanto, porque o que está em causa na questão em apreço, quanto à questionada discriminação dos factos estipulada no n.º 2 do artigo 659.º do Código de Processo Civil, não é uma abordagem meramente formal, que possa esgotar-se num juízo de maior ou menor correcção da elaboração da sentença, técnico-formalmente, mas exactamente um julgamento de facto.

Em tal sentido não podem efectivamente deixar de ser valorados pelo intérprete os termos do citado artigo, ao estipularem dever o juiz discriminar os factos que considera provados (n.º 2), por acordo, por documentos ou por confissão escrita - além dos que o tribunal colectivo, sendo caso disso, deu como provados, -, fazendo para o efeito o exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer (n.º 3).

Deve, por consequência, haver lugar no momento da elaboração da sentença a um julgamento de facto, quiçá complementar se se quiser, mas também de algum modo autónomo, daquele a que se procede em audiência nos termos do artigo 653.º, não se encontrando o julgador do direito, conforme o entendimento corrente, estritamente confinado ao perímetro factual definido pela especificação e as respostas ao questionário, sem prejuízo, como é óbvio, da relevante função e utilidade disciplinar destas peças processuais.

Tanto mais, consequentemente, se justificará nesta perspectiva um semelhante julgamento, se é possível dizê-lo, quando faltam esses instrumentos auxiliares de ordenação do processo, no conhecimento do mérito ao abrigo do artigo 510.º, n.º 1, alínea a).

Bem se compreende, por todo o exposto, que a discriminação dos factos a que alude n.º 2 do artigo 659.º não possa reduzir-se a uma actividade mecânico-formal ou sistemático-organizatória de reprodução na sentença de factos dados como provados aliunde, antes devendo a mesma conceber-se como acto de exteriorização e expressão enunciativa do julgamento de facto, e deste incindível, que nesse momento tem lugar.

Trata-se, por conseguinte, de um acto especificamente jurisdicional, cuja realização jurídico-concreta, num sistema de cisão e separação do julgamento da matéria de facto e de direito, como é caracteristicamente o nosso (3), cremos ser inconciliável com procedimentos similares aos praticados pelas instâncias, de remissão, no próprio momento da aplicação do direito, para suportes probatórios dos factos, sujeitos por seu turno a uma elaboração crítica, do plano factual, e justamente já pressuposta no acto de expressão do julgamento.

Resta sublinhar que uma tal forma de proceder sempre suscitaria aporias no cumprimento dos ónus que o artigo 690.º-A, n.º 1, impõe na impugnação da matéria de facto, e, bem assim, não despiciendas dificuldades quando do exercício pela Relação dos poderes de cognição que no mesmo domínio lhe são outorgados pelo artigo 712.º

Sendo ademais susceptível, em derradeiro termo, de furtar ao tribunal de revista a base factual segura pressuposta pelo artigo 729.º, n.º 1, como indispensável à aplicação definitiva do regime jurídico que considere adequado.

3. Procede por todo o exposto a conclusão 2.ª da alegação da revista, encontrando-se o acórdão recorrido eivado de nulidade atípica de falta de discriminação dos factos que a Relação devia considerar provados, em violação do disposto no n.º 2 do artigo 659.º, aplicável por força do n.º 2 do artigo 713.º do Código de Processo Civil,

Fica, por conseguinte, prejudicado, nos termos inicialmente antecipados, o conhecimento das demais conclusões.

O sancionamento de uma semelhante situação tem neste Supremo sido ancorado, «por aplicação directa ou extensiva», nos preceitos dos artigos 729.º, n.º 3, e 730.º, n.º 2 do mesmo Código, a que aqui também se dará aplicação.
III
Termos em que, concedendo provimento à revista, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em anular o acórdão recorrido e ordenam a baixa dos autos à Relação do Porto a fim de, pelos mesmos Ex.mos Desembargadores, sendo possível, conhecer da apelação e do agravo, no exercício pleno dos seus poderes-deveres de facto e de direito.

As custas da revista ficam a cargo da parte vencida a final (artigo 446.º do Código de Processo Civil).

Lisboa, 12 de Fevereiro de 2004
Lucas Coelho
Bernardino Santos
Bettencourt de Faria
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(1)A autora litiga com apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxas de justiça e de custas (fls. 4 v. e 152).
(2) Preceito citado, decerto por lapsus calami, em lugar do n.º 1 do artigo 729.º
(3) Cfr. sobre o tema Artur Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, coligidas e publicadas por Abílio Neto e revistas pelo Professor, vol. III, Livraria Almedina, Coimbra, 1968, págs. 296 e segs., segundo o qual este regime, «consequência necessária do sistema de julgamento por jurados leigos, que o precedeu, foi mantido entre nós após a sua abolição», justamente para «assegurar ao julgamento da matéria de facto completa independência da decisão jurídica da causa, evitando premeditadas influências desta na decisão daquela».