Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B358
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ALBERTO SOBRINHO
Descritores: TERCEIROS PARA EFEITOS DE REGISTO
VENDA EXECUTIVA
PERMUTA
Nº do Documento: SJ20080306003587
Data do Acordão: 03/06/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário : 1. Apesar das divergências doutrinais e jurisprudenciais sobre o conceito de terceiros para efeitos de registo, o acórdão uniformizador n° 3/99, de 18 de Maio de 1999, revendo anterior jurisprudência, veio consagrar o conceito tradicional de terceiro, considerando que terceiros, para efeitos do art. 5° do Cód. Reg. Predial, são os adquirentes, de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa.
Aliás, em consonância com a doutrina emergente deste acórdão, foi aditado um n° 4 ao art. 5° C.R.Predial, pelo Dec-Lei 533/99, de 11 Dezembro, em que se consigna que terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si.
2. Ainda que divergindo a doutrina e a jurisprudência sobre a verdadeira natureza da venda executiva, vem-se entendendo maioritariamente que ela se configura como uma alienação efectuada pelo Estado, não em representação do executado, mas no exercício de um poder de direito público.
Na verdade, esta é uma venda forçada, alheia à vontade do executado, para a qual ele em nada contribui, não chegando sequer a emitir qualquer declaração em vista do negócio efectuado.
3. A alienação do direito de propriedade sobre imóvel efectuada mediante contrato de permuta, ainda que levada ao registo em data posterior à penhora desse mesmo imóvel, prevalece sobre a venda executiva subsequente, com registo de aquisição a ter lugar em momento ulterior àquele alienação
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

AA e mulher BB, entretanto falecidos e habilitados os seus herdeiros,

intentaram a presente acção declarativa, com processo ordinário,

contra CC, entretanto também falecido e habilitados os seus herdeiros, e mulher DD, pedindo que:
a- se declare serem os titulares do direito de propriedade sobre duas fracções habitacionais;
b- os réus sejam condenados a reconhecer esse direito e a entregarem-lhes tais fracções livres e desembaraçadas de pessoas e bens;
c- e condenados ainda a pagarem-lhes a quantia de 8.100.000$00, valor locativo que os réus auferiram desde a detenção das fracções até à instauração desta acção.

Invocam, no essencial, factos tendentes a demonstrar que se radicou na sua esfera jurídica o direito de propriedade sobre essas fracções, bem como a prática de actos, por parte dos réus, lesivos desse seu direito. E que os réus delas têm retirado proventos, correspondentes ao montante peticionado.

Contestaram os réus para, em síntese, alegarem que as ditas fracções são sua propriedade, tendo-as adquirido por contrato de permuta celebrado com a empresa construtora.

Replicaram ainda os autores para reafirmarem a posição inicialmente assumida.

Saneado o processo e fixados os factos considerados assentes e os controvertidos, teve lugar, por fim, a audiência de discussão e julgamento.
Na sentença, subsequentemente proferida, foi a acção julgada parcialmente procedente, declarando-se que o autor (habilitado) EE é o único titular do direito de propriedade sobre as fracções autónomas designadas pelas letras I e J do prédio urbano constituído em propriedade horizontal e os réus condenados a reconhecê-lo e a entregarem-lhe essas fracções inteiramente livres de pessoas e bens.

Inconformados com o assim decidido apelaram os réus, e com sucesso, tendo o Tribunal da Relação de Évora revogado a sentença recorrida e absolvido os réus dos pedidos.

É a vez de recorrer agora de revista para este Supremo Tribunal de Justiça o autor, pugnando pela manutenção do decidido na sentença da 1ª instância.

Contra-alegaram os recorridos em defesa da improcedência do recurso.


Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Âmbito do recurso

A- De acordo com as conclusões, a rematar as alegações de recurso, o inconformismo do recorrente radica no seguinte:

1- Em processo executivo, constituem pressupostos da aquisição (tabular) a onerosidade do negócio e a boa fé do adquirente.

2- Age de boa fé quem adquire bens em arrematação, em processo executivo, após o juiz titular do processo desatender protesto dos titulares de tais bens, formulado no acto da arrematação, mandando seguir esta, e tendo-se, ademais, os protestantes conformado com aquele desatendimento.

3- Os efeitos do registo da penhora, em processo executivo, mantêm-se até à arrematação dos respectivos bens.

4- O acórdão recorrido violou os art°s.824°. e 1311°., do Cód. Civil, e 5°. do Cód. do Reg. Predial.


B- Face à posição do recorrente vertida nas conclusões das alegações, delimitativas do âmbito do recurso, a questão a dilucidar reconduz-se, no essencial, a averiguar se a aquisição de imóvel por venda judicial deve prevalecer sobre alienação anterior, mesmo que registada posteriormente a esta. E, na hipótese afirmativa, se o arrematante agiu, in casu, de boa fé.

III. Fundamentação

A- Os factos

O acórdão recorrido teve como assentes os seguintes factos:

1. Acha-se registada a favor dos autores, através das inscrições G-3, de 5 de Novembro de 1991, a aquisição definitiva das fracções autónomas designadas pelas letras “I” e “J” do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, denominado “Edifício S. Jorge”, sito em.........., vila e freguesia de Quarteira, inscrito na respectiva matriz urbana sob o artigo 4.254º e descrito na Conservatório do Registo Predial de Loulé sob o número......7::..... com base em arrematação em hasta pública.

2. Sobre estas fracções, impendia uma penhora a favor da União de Bancos Portugueses, SA, registada em 18 de Março de 1987, através das inscrições...., na Conservatória do Registo Predial de Loulé.

3. Encontra-se registada na mesma Conservatória, a favor dos réus, em 28 de Setembro de 1990, o direito de propriedade das fracções referidas em 1., com base num contrato de permuta celebrado com a empresa de Construções do ..... Lda., através das inscrições.....

4. No Primeiro Cartório Notarial de Loulé, a folhas 15 a 17 verso do livro 139 – C, no dia 5 de Dezembro de 1983, foi outorgada escritura pública de permuta e de constituição da propriedade horizontal, pela qual os réus, como donos dum lote de terreno para construção urbana sito em Cavacos, freguesia de Quarteira, concelho de Loulé, contrataram com a ‘Empresa deEE, Limitada”, como construtora do Edifício S. Jorge edificado nesse terreno, que esta construtora lhes adquire o dito lote e lhes cede as fracções do dito Edifício S. Jorge, designadas pelas letras “B”, “I”, “J”, “Q” e “Z”, assim ficando os réus a ser donos destas fracções, por via da permuta com o referido terreno, e ficando a “Empresa de EE, Limitada” a ser dona de todas as demais fracções excluídas da permuta, sendo certo que esta escritura é a concretização de anterior contrato de permuta com eficácia real, celebrado entre as mesmas partes, por escritura de 20 de Julho de 1980, outorgada a folhas 83 do livro ...... do mesmo Cartório.

5. No Primeiro Cartório Notarial de Loulé, a folhas 83 a 86 verso do livro ....., no dia 20 de Junho de 1980, foi outorgada escritura pública de contrato-promessa de permuta com eficácia real, pela qual os réus, como donos dum lote de terreno para construção urbana sito em Cavacos, freguesia de Quarteira, concelho de Loulé, contrataram com ‘Empresa de FF, Limitada”, como construtora, que prometeu ceder a esta o terreno em causa, prometendo a dita construtora, em contrapartida, ceder aos réus quatro apartamentos a construir sobre o terreno prometido ceder, ficando logo pelas partes atribuída eficácia real ao contrato-promessa.

6. Os réus têm estado em poder das fracções aludidas em 1., que recusam a entregar aos autores.

7. Os referidos apartamentos localizam-se no centro da Vila de Quarteira, a pouca distância da praia e são compostos, cada um, de três vestíbulos, dois quartos, sala comum, duas varandas e duas casas de banho.

8. E são susceptíveis de serem dados em arrendamento.
B- O direito

Enquanto na 1ª instância a acção procedeu, parcialmente, com base na prevalência decorrente do facto da penhora das fracções ter sido levado ao registo primeiro do que o foi a aquisição pelos réus dessas mesmas fracções, já no acórdão recorrido se considerou que a aquisição das fracções pelos réus é oponível aos autores por estes não estarem de boa fé no momento da sua aquisição.

Os autores têm a aquisição das duas fracções reivindicadas inscrita a seu favor, inscrição de 5 de Novembro de 1991, aquisição que se operou através de venda judicial a que se procedeu no decurso de execução instaurada contra Empresa de FF, Ldª, havendo a penhora sido igualmente inscrita no registo, a 24 de Abril de 1990.
Por sua vez, os réus/recorridos invocam a seu favor o contrato de permuta celebrado com a sociedade Empresa de FF, Ldª, contrato esse formalizado por escritura pública de 5 de Dezembro de 1983, sendo a aquisição inscrita a 28 de Setembro de 1990.

Por mero efeito do contrato de permuta (ao contrato de troca ou permuta aplicam-se as normas da compra e venda –art. 939º C.Civil), que observou a forma então legalmente prescrita (875º C.Civil e nº 1 do art. 80º C.Notariado), transmitiu-se para os recorridos, nos termos dos arts. 408º, nº 1, 879º, al. a) ex vi 939º e 1317º, todos C.Civil, o direito de propriedade da permutante sobre aquelas fracções prediais.
Esta aquisição foi registada posteriormente ao registo da penhora mas antes da venda executiva, como se deixou consignado no acórdão recorrido, facto que este Tribunal tem de aceitar.

A aquisição do direito de propriedade sobre imóveis está sujeita a registo e os factos a ele sujeitos só produzem efeitos em relação a terceiros após a data do respectivo registo – arts. 2º, nº 1, al. a) e 5º, nº 1, C.R.Predial.
Preconiza, por sua vez, o art. 7º do mesmo diploma que o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, ao passo que o art. 6º proclama o princípio de que o direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens.
Só quem tiver a qualidade de terceiro é que beneficia da presunção e prioridade decorrentes do registo.

Apesar das divergências doutrinais e jurisprudenciais sobre o conceito de terceiros para efeitos de registo, o acórdão uniformizador nº 3/99, de 18 de Maio de 1999, revendo anterior jurisprudência, veio consagrar o conceito tradicional de terceiro, considerando que terceiros, para efeitos do art. 5° do Cód. Reg. Predial, são os adquirentes, de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa.
Aliás, em consonância com a doutrina emergente deste acórdão, foi aditado um nº 4 ao art. 5º C.R.Predial, pelo Dec-Lei 533/99, de 11 Dezembro, em que se consigna que terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si.
Ainda que divergindo a doutrina e a jurisprudência sobre a verdadeira natureza da venda executiva, vem-se entendendo maioritariamente que ela se configura como uma alienação efectuada pelo Estado, não em representação do executado, mas no exercício de um poder de direito público. Como sustenta Lebre de Freitas (1), não obstante o bem continuar, até à venda, a pertencer ao executado, quem aliena é o Estado, nem sequer em representação do devedor, mas no exercício de um poder de alienar que é de direito público e não se confunde com o poder de alienação do executado, que o mantém apesar da penhora.
Também Anselmo de Castro(2) defende que a tese mais seguida é a que considera a venda como um acto do Estado como órgão público e não a título privado.
Na verdade, esta é uma venda forçada, alheia à vontade do executado, para a qual ele em nada contribui, não chegando sequer a emitir qualquer declaração em vista do negócio efectuado.

Ora, na situação ajuizada é diferente o transmitente que procedeu à alienação das fracções reivindicadas. É a Empresa de FF, Ldª, que permuta as fracções com os recorridos e as mesmas fracções são adquiridas através de venda judicial pelos autores.
Daqui decorre que, tendo o executado alienado validamente o direito de propriedade das fracções em causa aos réus, a posterior venda executiva dessas mesmas fracções aos autores não deriva do mesmo autor comum, não revestindo, por isso, os autores a qualidade de terceiro para efeitos de registo.

Poder-se-ia argumentar que a penhora daquelas fracções havia sido registada em data anterior ao registo da permuta e, como tal, a viabilidade executiva faria prevalecer a posterior venda judicial, por ser esse o efeito essencial do registo.
Porém, a penhora foi registada quando as fracções já haviam sido alienadas, ainda que sem o competente registo. E como a titularidade do direito sobre um bem se transfere por força do contrato, neste caso de permuta, com a sua eficácia real (arts. 408º e 879º C.Civil), e não por força do registo, acontece que as fracções já haviam saído do património do executado aquando do registo da penhora, não podendo, por isso, garantir as suas dívidas.
O direito real de propriedade sobrepõe-se aqui ao direito real de garantia.

Pode-se, assim, concluir que a alienação do direito de propriedade sobre imóvel efectivada mediante contrato de permuta, ainda que levada ao registo em data posterior à penhora desse mesmo imóvel, prevalece sobre a venda executiva subsequente, com registo de aquisição a ter lugar em momento ulterior àquele alienação.
Na aplicação deste princípio ao caso vertente, temos que o contrato de permuta mediante o qual os réus adquiriram o direito de propriedade sobre as duas fracções prediais, apesar de levado ao registo em data posterior ao registo da penhora dessas mesmas fracções, prevalece e produz efeitos contra os autores, adquirentes das mesmas fracções através de venda no processo executivo.

Mesmo que se entendesse que, na venda executiva, quem surge como vendedor é o próprio executado, que apenas é substituído no acto pelo Estado, e que, como tal, as duas alienações (mediante permuta e venda executiva) advêm de transmitente comum, ainda assim a aquisição dos autores através da venda executiva não poderia prevalecer sobre a aquisição dos réus efectuada mediante o contrato de permuta.
É que, e como bem se observa no acórdão recorrido, não se pode aceitar que os autores, adquirentes na venda executiva, estivessem de boa fé.
Efectivamente, a eficácia do registo assenta na boa fé de quem regista. A partir do momento em que do registo consta uma nova titularidade, o adquirente fica alertado para o facto de estar a negociar com alguém que já não será proprietário do bem. E se mesmo assim prosseguir nesse negócio, não estará com toda a certeza a agir de boa fé.

Uma vez que, no acto da arrematação, ocorrida a 19 de Dezembro de 1990, como se afirma no acórdão recorrido, já se mostrava registada a aquisição das fracções pelos réus, os autores não podiam ignorar essa realidade, em suma, não poderiam estar de boa fé quando e na medida em que o alienante já não constava do registo como titular dos bens a negociar.
E esta conclusão não se mostra prejudicada pelo facto do ponto nº 18 da base instrutória, em que se questionava se os autores foram alertados, no acto da praça, de que as fracções a arrematar pertenciam aos réus e não à executada, ter merecido resposta negativa. É que da resposta negativa a um ponto controvertido não se infere o facto contrário, mas apenas a conclusão de que o facto questionado se não provou.
Ora, inexistindo boa fé não poderiam os autores opor aos réus a aquisição das fracções que concretizaram mediante venda judicial, pelo que igualmente prevaleceria a alienação voluntária inicial.


Daí que, ainda que por razões não coincidentes com as invocadas no acórdão recorrido, este seja de manter.


IV. Decisão

Perante tudo quanto exposto fica, acorda-se em negar a revista.

Custas pelo recorrente.


Lisboa, 06 de Março de 2008

Alberto Sobrinho (relato)
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Lázaro Faria
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(1) - in A Acção Executiva, 4ª ed., pág. 348, nota 44
(2) - in A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, pág. 254