Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3411/06.4TTLSB.L1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: SOUSA GRANDÃO
Descritores: VIOLAÇÃO DE REGRAS DE SEGURANÇA
RESPONSABILIDADE AGRAVADA
DESCARACTERIZAÇÃO DE ACIDENTE DE TRABALHO
ÓNUS DA PROVA
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
Data do Acordão: 11/10/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário : I - No âmbito da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro (LAT) a responsabilidade principal e agravada do empregador pode ter dois fundamentos autónomos: - um comportamento culposo da sua parte; - a violação, pelo mesmo empregador, de preceitos legais ou regulamentares ou de directrizes sobre higiene e segurança no trabalho.
II - A par, respectivamente, daquele comportamento culposo ou desta violação normativa, ambos os fundamentos exigem a necessária prova do nexo causal entre o acto ou a omissão – que os corporizam – e o acidente que veio a ocorrer.
III - O ónus da prova dos factos susceptíveis de agravar a responsabilidade do empregador recai sobre quem dela tirar proveito, sejam os beneficiários do direito reparatório, sejam as instituições seguradoras que pretendem ver desonerada a sua responsabilidade infortunística.
IV - Para se verificar o agravamento da responsabilidade do empregador por falta de observação das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho é necessária a concorrência de dois pressupostos: - que recaia sobre o empregador o dever de observar determinadas regras de comportamento, cuja observância teria impedido, segura ou muito provavelmente, a consumação do evento, assim se omitindo o cuidado exigível a um empregador normal; - que entre essa conduta omissiva e o acidente intercorra um nexo de causalidade adequada.
V - A lei exige, para fundamentar a reparação, que o comportamento do agente seja abstracta e concretamente adequado a produzir o efeito lesivo, pelo que a afirmação do nexo causal entre o facto e o dano comporta duas vertentes: a vertente naturalística, de conhecimento exclusivo das instâncias, porque contido no âmbito restrito da matéria factual, que consiste em saber se o facto praticado pelo agente, em termos de fenomenologia real e concreta, deu origem ao dano; a vertente jurídica, já sindicável pelo Supremo, que consiste em apurar se esse facto concreto pode ser havido, em abstracto, como causa idónea do dano ocorrido.
VI - A adequação concreta – nexo naturalístico – entre o comportamento do agente e o efeito lesivo tanto pode ser firmada através da prova que tenha sido alcançada directamente sobre a matéria, como pode ser indirectamente obtida por meio de presunções judiciais, sendo, em qualquer dos casos, um domínio que é da soberania exclusiva das instâncias.
VII - Porque as presunções judiciais se inserem no julgamento da matéria de facto e constituem um meio probatório da livre apreciação do julgador, está vedado ao Supremo proceder à sua avocação, visto que a sua competência funcional, afora as situações de controlo da prova tabelada, se restringe à apreciação definitiva do regime jurídico, que julgue adequado, aos factos materiais fixados pelas instâncias e, pela mesma razão, não pode o Supremo sindicar o uso, ou não uso, pela Relação, desse meio probatório.
VIII - Por ser uma questão de direito, o Supremo já pode intervir para averiguar se as presunções extraídas pelas instâncias violam os artigos 349.º e 351.º do Código Civil, ou seja, se foram inferidas de factos desconhecidos – designadamente por não terem sido provados – ou irrelevantes para o efeito – designadamente porque o facto presumido exige um grau superior de segurança na prova – e, bem assim, se a ilação extraída conflitua com factualidade provada ou contraria outra que, submetida expressamente ao crivo probatório, tenha sido dada como não provada.
IX - A omissão genérica da empregadora consistente em não providenciar pela frequência do trabalhador em acções de formação em matéria de segurança, higiene e saúde no trabalho e em não o informar sobre os riscos inerentes ao exercício da sua actividade, não tem aptidão para viabilizar o juízo conclusivo sobre a existência do nexo causal entre essa omissão e a ocorrência do acidente quando está demonstrado que o trabalhador sabia exactamente como funcionava a máquina, como se instalavam os seus mecanismos de segurança e que perigos concretos se pretendia com eles evitar e que, para além de ter perfeita habilidade e capacidade técnica para a actividade de carpinteiro, também tinha experiência no tipo de instrumentos utilizados.
X - Correspondendo a “negligência grosseira” à “culpa grave”, a sua verificação pressupõe que a conduta do agente – porque gratuita e de todo infundada – se configure como altamente reprovável, à luz do mais elementar senso comum.
XI - A exclusão da responsabilidade prevista na alínea b) do n.º 1 do art. 7.º da LAT, a par de um comportamento altamente reprovável do trabalhador exige que o acidente tenha resultado em exclusivo desse comportamento.
XII - Não estando provado que o acidente haja ocorrido por culpa exclusiva do trabalhador, soçobra, sem mais, a “descaracterização” do acidente.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

1 – RELATÓRIO

1-1
AA, com o patrocínio do M.º P.º, intentou, no Tribunal do Trabalho de Lisboa, a presente acção especial, emergente de acidente de trabalho, contra “Companhia de Seguros BB, S.A.” e “Igreja CC”, reclamando da segunda demandada – como principal responsável, por incumprimento das condições de Segurança – e da Seguradora – como responsável meramente subsidiária – a reparação do acidente laboral de que foi vítima, peticionando, nesse contexto, o pagamento das diversas prestações oportunamente qualificadas e quantificada na P.I..
A título subsidiário – para a eventualidade de não se provar a aduzida violação das normas de segurança atendíveis – pede que a reparação fique a cargo exclusivo da Seguradora, desta feita sem o agravante legal.
Ambas as Rés contestaram:
- aderindo a Seguradora à tese principal do Autor e rejeitando, por isso, a sua tese subsidiária;
- sustentando a Ré patronal que o acidente se ficou a dever à negligência do próprio trabalhador.
Instruída e discutida a causa, veio a 1.ª instância a proferir sentença que, na procedência parcial da acção, condenou:
“a) a 2.ª Ré, “Igreja CC”, a pagar ao A., AA, uma pensão anual vitalícia de € 7.337, 40, com início a 02.12.2006;
b) Subsidiariamente, a Ré “BB Seguros, S.A.” a pagar ao A. uma pensão anual e vitalícia de € 5.094,18 (€ 24.258 x 70% x 30%), com início a 02.12.2006;
c) a 2.ª Ré, “Igreja CC”, a pagar a diferença entre a remuneração integral do A. e a retribuição efectivamente auferida com os descontos efectuados, quanto ao dia 01.12.2006;
d) os juros legais civis sobre as referidas datas e quantias até integral pagamento, absolvendo as Rés do demais peticionado (…)”.
Debalde apelou a Ré Patronal – e apenas esta – porquanto o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou na integra a sentença impugnada.
Em síntese, subscreveram as instâncias o entendimento de que o acidente resultou da inobservância das regras – genericamente contidas no artigo 8.º ns.º 1 e 2 do D.L. n.º 441/91 de 14 de Novembro – que a entidade patronal estava obrigada a cumprir.
1-3
Continuando irresignada, a Ré empregadora pede a presente revista, onde convoca o seguinte quadro conclusivo:
1 – não estão provados quaisquer factos que permitam concluir pela existência de nexo de causalidade entre o acidente sofrido pelo Recorrido/sinistrado e qualquer violação de regras de segurança por parte do Recorrente;
2 – do factualismo provado resulta que o recorrido/sinistrado, para além de ter à sua disposição os meios de segurança necessários, quer colectivos no próprio equipamento, quer individuais, como seja óculos de protecção, era conhecedor da sua actividade e experiente, logo, tinha conhecimento e saber suficientes para saber que tinha de utilizar os meios de segurança ao seu dispor;
3 – não existe qualquer nexo de causalidade entre a falta de formação (parcial, pois foi dada inicialmente sobre o funcionamento) e o acidente;
4 – não está provado que fosse pela falta de formação ou de chamada de atenção que o Recorrido/sinistrado não utilizava os equipamentos de segurança;
5 – não se poderá concluir, como se faz no Acórdão em apreço, que por falta de formação, necessariamente ocorre o acidente trabalho;
6 – não se está perante uma situação de acidente de trabalho em resultado da violação das regras de segurança (art. 18.º, n.º 1, al. b), e art. 37.º, n.º 2, da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro), mas sim de descaracterização do acidente por violação de regras de segurança por parte do sinistrado, ou de negligência grosseira deste na sua actuação (art. 7.º, n.º 1, als. a) e b) da Lei n.º 100/97);
7 – ou, caso não se considere estar perante violação de regras de segurança ou negligência grosseira do Recorrido/sinistrado, então a responsabilidade pela reparação do acidente deverá ser imputada à R. Seguradora.
Termina reclamando a sua absolvição do pedido.
1-4
A Ré Seguradora e o Autor – ainda com o patrocínio do M.º P.º – contra-alegaram sustentando a improcedência do recurso e a consequente confirmação do julgado.
1.5
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2 – FACTOS
2-1
A 1.ª instância deu como provada a seguinte factualidade:
a) no dia 8/5/2008, pelas 14 horas, num armazém da 2.ª Ré, sito na Rua …entro Empresarial de ….º …, em Lisboa, o A. foi vítima de um acidente quando prestava a sua actividade de carpinteiro, sob a autoridade, direcção e fiscalização da 2.ª Ré, na execução de um balcão em madeira, tendo sido atingido por uma farpa de madeira, com cerca de 10cm x 0,3 cm no olho esquerdo;
b) do acidente descrito no número anterior resultaram para o A. as lesões descritas nos autos de exame de fls. 53, 54 e 101 a 103;
c) à data do acidente, o sinistrado auferia a retribuição de € 1.648,00 x 14 (vencimento base), € 126,00 x 11 (subsídio de alimentação), o que corresponde a uma retribuição anual bruta de € 24.458,00;
d) a responsabilidade emergente do acidente de trabalho estava transferida para a 1.ª Ré, através de contrato de seguro do ramo Acidentes de Trabalho, titulado pela apólice n.º …;
e) na tentativa de conciliação as Rés reconheceram a existência e caracterização do acidente como de trabalho e o nexo de causalidade entre o mesmo e as lesões consideradas pela perita médica no seu exame;
f) a 2.ª Ré solicitou ao A. que este procedesse ao corte de algumas peças de madeira que se encontravam no seu estabelecimento – no Armazém sito na Rua …, em …, onde o A. exercia as suas funções profissionais – com vista à execução do balcão a que se refere a al. A);
g) o A., aquando do acidente, não usava os equipamentos de protecção, a saber, óculos de protecção, luvas, viseira ou anteparo;
1) o A. trabalha para a 2.ª Ré pelo menos desde Setembro de 1997, exercendo nos últimos anos as funções de caseiro de uma Quinta da 2.ª Ré. Nos últimos 6 meses tem desempenhado funções de carpinteiro;
2) tem perfeita habilidade e capacidade técnica para a actividade de carpinteiro;
3) o acidente a que alude a al. a) da matéria de facto assente deu-se num dia em que o A. procedia ao corte de peças de madeira com uma máquina eléctrica universal;
4) o serviço que o A. executava na altura do acidente já estava na fase de acabamentos;
5) e o A. já o vinha efectuando há cerca de uma semana;
6) o A., aquando da produção do acidente, já havia procedido ao corte doutras peças de madeira;
7) quando passava junto à máquina eléctrica de corte, após pousar uma peça de madeira, e quando se preparava para ir buscar outra peça de madeira, foi atingido no olho esquerdo por uma farpa projectada pela lâmina de corte, que se encontrava em funcionamento;
8) a máquina a que se refere o n.º 3 era propriedade da 2.ª Ré;
9) tal máquina era, à data do acidente, uma máquina recente, munida da marcação CE e conforme as regras do fabricante;
10) tal máquina é de um modelo equipado com uma protecção de lâmina de disco amovível;
11) a lâmina de corte da máquina eléctrica universal utilizada pelo A. não estava provida de qualquer tipo de protecção aquando do corte das madeiras pelo sinistrado;
12) as peças de madeira deviam ser cortadas em forma arredondada;
13) para se obter a forma arredondada das madeiras em causa, as mesmas tinham de ir sendo rodadas sobre a mencionada máquina;
14) a máquina eléctrica universal utilizada pelo A. não constitui uma ferramenta apropriada para executar a tarefa de corte arredondado de peças de madeira, antes tal tarefa deveria ter sido executada com recurso a uma serra de fita ou com um tico-tico;
15) estavam à disposição do A., no dia do acidente e antes dele, os elementos de segurança da própria máquina com que o A. trabalhava e a que alude o n.º 3;
16) os quais foram adquiridos pela 2.ª Ré aquando da aquisição da mesma máquina;
17) entre os referidos elementos de segurança, estão a peça de protecção da lâmina de corte e o tubo de aspiração da serradura, lascas de madeira e outras partículas que possam ser libertadas pela máquina aquando da execução de trabalhos de corte;
18) a peça de protecção da lâmina de corte está intimamente ligada com o sistema de aspiração da máquina;
19) este, por sua vez, é completado por um sistema de mangueiras que lhe estão ligadas e que permitem a circulação das impurezas e partículas que se separam das peças e que são “aspiradas” para o seu interior, de forma a que não sejam libertadas para cima dos funcionários que estejam a executar trabalhos na máquina;
20) na máquina em que o A. executava funções, existe um sistema de aspiração superior que se liga à serra circular e que é colocado precisamente por cima da serra circular - serra essa que era a que vinha sendo utilizada pelo A. quando da execução do trabalho de corte da madeira;
21) por sua vez, a mangueira que se liga ao referido sistema de aspiração apresenta um diâmetro adequado à aspiração da generalidade farpas e poeiras resultantes da utilização da serra;
22) é por este sistema de aspiração e respectiva mangueira que as peças e resíduos de madeira são “aspirados”, precisamente para evitar que partículas e outras lascas de madeira se libertem e possam cair sobre os funcionários que estejam a operar a máquina respectiva;
23) o corte de madeira da máquina eléctrica universal utilizada pelo sinistrado provoca a acumulação de farpas junto à lâmina de corte;
24) por sua vez, o movimento da mencionada lâmina provoca a projecção das farpas;
25) o A. tinha grande experiência no tipo de instrumentos e mecanismos utilizados, não desconhecendo o que se refere nos números 13) a 20);
26) o A. decidiu não utilizar a protecção de serra e a mangueira de aspiração aquando dos trabalhos do dia do acidente;
27) a instalação da protecção da serra evita a projecção da generalidade das farpas e poeiras;
28) “Não provado”;
29) “prejudicado pela resposta ao quesito anterior”;
30) e 37) No armazém onde se deu o acidente e para utilização por parte dos funcionários da 2.ª Ré existiam luvas, botas, óculos e outros equipamentos de protecção;
31) o A. ignorava a existência de óculos ou viseiras que pudesse utilizar;
32) à excepção da secção de apresentação da máquina pela empresa vendedora, nomeadamente do funcionamento dos seus mecanismos de projecção, a 2.ª Ré não providenciou pela frequência do A. de acções de formação nomeadamente em matéria de segurança, higiene e saúde no trabalho, nem este fora informado sobre os riscos inerentes ao exercício da sua actividade, quer oralmente, quer por escrito;
33 e 34) “Não provados”;
35) ao A. foram ministrados os necessários conhecimentos para que aquele pudesse manusear a máquina de corte pela empresa que procedeu à venda e instalação da máquina no Armazém, na pessoa do seu técnico, DD, funcionário da N...;
36) em Novembro de 2005, deslocando-se ao local onde o acidente se veio a dar uma técnica de Higiene e Saúde no Trabalho, que emitiu o Relatório que constitui o documento n.º 1 com a contestação da 2.ª Ré;
37) “provado apenas o que consta da resposta ao quesito 30.º;
38) a 2.ª Ré, desde a data do acidente até 30/11/2006, procedeu sempre ao pagamento integral do salário do A. (o qual teve alta a 02.12.2006), sem que tivesse efectuado qualquer desconto;
39) a 2.ª Ré desde Dezembro de 2006 e até à data da elaboração da contestação, vem pagando ao A. a quantia líquida de € 1.065,67, devida como contrapartida pela prestação do trabalho deste.
2-2
A 2.ª instância acolheu por inteiro a factualidade descrita, com excepção do facto n.º 31, que considerou “Não Provado”.
3 – DIREITO
3-1
Já sabemos que as instâncias imputam à Ré Empregadora uma violação do comando enunciado pelo artigo 8.º ns. 1 e 2 do D.L. n.º 441/91.
Examinando o núcleo conclusivo recursório, verifica-se que a mesma Ré não focaliza a sua censura nessa concreta imputação mas, mais a jusante, no juízo responsabilizador que as instâncias extraíram dessa afirmada violação, ou seja, no inerente nexo causal.
Assim, deflui de tal núcleo que a Recorrente coloca, na presente revista, as questões de saber:
1.ª – se existe nexo de causalidade entre a apontada violação e o acidente ocorrido;
2.ª – se o acidente deve ser “descaracterizado”;
3.ª – se a Ré Seguradora deve assumir por inteiro a responsabilidade pela reparação do sinistro.
As três questões estão intrinsecamente ligadas, no sentido de que as respostas a dar condicionam, por necessário, as que se lhe seguem:
- a resposta afirmativa à 1.ª questão determina a improcedência das restantes; a sua resposta negativa obriga a enfrentar a 2.ª questão; o conhecimento da última pressupõe uma resposta negativa às duas anteriores.
3-2-1
Atenta a data do acidente – 8 de Maio de 2006 – é pacificamente convocável o quadro normativo emergente da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, (L.A.T.), visto que a Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, que aprovou o Código do Trabalho de 2003, ao postergar para o momento da respectiva regulamentação – que nunca se produziu – a entrada em vigor das normas contidas nesse compêndio sobre “Acidentes de Trabalho”, acabou por ressalvar, deste jeito, a subsistência da mencionada Lei n.º 100/97.
Prescreve o art. 18.º desta Lei sob a epígrafe “casos especiais de reparação”:
“n.º 1- Quando o acidente tiver sido provocado pela entidade empregadora ou seu representante ou resultar da falta de observação das regras de segurança, higiene e saúde no trabalho, as prestações fixar-se-ão segundo as regras seguintes:
(…)”
Essas regras enunciam critérios, nelas descritos, que beneficiam o sinistrado e agravam a responsabilidade da entidade que responde pela reparação, identificada, como segue, no sequente artigo 37.º n.º 2:
“verificando-se alguma das situações referidas no artigo 18.º n.º 1, a responsabilidade nela prevista recai sobre a entidade empregadora, sendo a instituição seguradora apenas subsidiariamente responsável pelas prestações normais previstas na presente lei”.
Como se vê, no contexto do regime atendível, a responsabilidade, principal e agravada, do empregador pode ter dois fundamentos autónomos:
- um comportamento culposo da sua parte;
- a violação, pelo mesmo empregador, de preceitos legais ou regulamentares ou de directrizes sobre higiene e segurança no trabalho.
A par, respectivamente, daquele comportamento culposo ou desta violação normativa, ambos os fundamentos exigem a necessária prova do nexo causal entre o acto ou a omissão – que os corporizam – e o acidente que veio a ocorrer.
É pacífico que o ónus da prova dos factos susceptíveis de agravar a responsabilidade do empregador recai sobre quem dela tirar proveito, sejam os beneficiários do direito reparatório, sejam as instituições seguradoras que pretendem ver desonerada a sua responsabilidade infortunística.
3.2.2
Cingindo-nos como importa ao fundamento questionado (2.ª parte do transcrito artigo 18.º n.º 1), logo se conclui que a sua verificação exige a concorrência de dois pressupostos:
- que recaia sobre o empregador o dever de observar determinadas regras de comportamento, cuja observância teria impedido, segura ou muito provavelmente, a consumação do evento, assim se omitindo o cuidado exigível a um empregador normal;
- que entre essa conduta omissiva e o acidente intercorra um nexo de causalidade adequada.
A censura da Recorrente circunscreve-se, em concreto, ao juízo decisório da Relação que afirmou a existência de um nexo causal entre a falta de formação ao sinistrado e o acidente que o atingiu.
Por isso, é sobre este concreto pressuposto que importa agora reflectir.
A tal propósito, o Acórdão em crise discorreu do seguinte modo:
“Verifica-se, assim, que o acidente em apreço se mostra directamente relacionado, em termos de causa-efeito, não só com o facto de o Autor ter usado uma máquina eléctrica universal para o trabalho em causa, sendo certo que a mesma não constituía uma ferramenta apropriada para executar a tarefa de corte arrredondado de peças de madeira, pois tal tarefa deveria ter sido executada com recurso a uma serra de fita ou com um tico-tico, mas também com a circunstância da lâmina de corte da máquina eléctrica universal utilizada pelo trabalhador não se encontrar munida – como devia – da competente protecção, que existia, aquando do corte das madeiras pelo mesmo; isto é, a peça de protecção da lâmina de corte e o tubo de aspiração de serradura, lascas de madeira e outras partículas que possam ser libertadas pela máquina aquando da execução de trabalhos de corte.
Se tem utilizado tais protecções, é de presumir que a farpa teria sido aspirada e, mesmo que isso não acontecesse, a protecção da lâmina certamente apararia a farpa que o atingiu.
O mesmo se dirá da utilização de óculos ou protecções para os olhos que existiam no local de trabalho, sendo que nem sequer se provou que o sinistrado soubesse dessa existência;
Esgrimir-se-à que tais factos nada têm a ver com a falta de observância por parte da recorrente de normas sobre segurança, higiene e saúde no trabalho.
Contudo, não é assim.
É que a recorrente/entidade patronal, à excepção da sessão de apresentação da máquina pela empresa vendedora, nomeadamente do funcionamento dos seus mecanismos de protecção, não providenciou pela frequência do A. de acções de formação, nomeadamente em matéria de segurança, higiene e saúde no trabalho, nem este fora informado sobre os riscos inerentes ao exercício da sua actividade, quer oralmente, quer por escrito.
Se o tem feito e o Autor tem sido devidamente chamado à atenção sobre os perigos que corria naquele tipo de actividade – o mesmo não teria decidido não instalar a protecção da serra e a mangueira de aspiração aquando do início dos trabalhos do dia do acidente e não o levaria a cabo sem protecções para os olhos – e o acidente não teria ocorrido ou não teria tido consequências tão gravosas.
Aliás no caso concreto, nem ao menos se provou que soubesse que no local de trabalho existiam óculos de protecção.
E, também não se esgrima que em Novembro de 2005 deslocou-se ao local onde o acidente se veio a dar uma técnica de Higiene e Saúde no Trabalho, que emitiu o Relatório que constituiu o documento n.º 1 com a contestação da 2.ª Ré.
Tal visita, só por si, não configura nem equivale a acção de formação em matéria de segurança, higiene e saúde no trabalho.
E o mesmo se dirá da sessão de apresentação da máquina pela empresa vendedora, nomeadamente do funcionamento dos seus mecanismos de protecção.
Esses actos também não se afiguram substitutivos de informação sobre os riscos inerentes ao exercício da sua actividade, quer em termos orais quer escritos.
Cabe, assim, considerar que o acidente ocorreu em resultado da inobservância por parte da recorrente das regras sobre segurança e saúde no trabalho que as circunstâncias em que incumbiu o Autor de fazer [o trabalho] lhe exigiam.
Como tal, o acidente em apreço reclama a reparação referida na al. a) do n.º 1 do art. 18.º da LAT, tal como se decidiu no Tribunal “a quo”” (FIM DE TRANSCRIÇÃO).
Em discordância do entendimento transcrito, sustenta a Recorrente a inexistência de qualquer nexo causal entre a falta de formação “(parcial, pois foi dada inicialmente sobre o funcionamento da máquina)” e o sinistro, não estando provado que fosse por falta de formação ou de chamada de atenção que o Autor não utilizava os equipamentos de segurança.
3-2-3
A produção de um dano resulta necessariamente de um processo causal, onde podem concorrer circunstâncias da mais variada natureza.
Sendo assim, e porque a obrigação de indemnizar só tem cabimento quando existir um nexo de causalidade entre o acto ilícito do agente e o dano produzido, a questão que se coloca reside em saber quando é que o resultado lesivo se há-de ter como efeito daquele sobredito comportamento.
Debruçando-se sobre esta temática, Pessoa Jorge começa por aludir à “teoria da equivalência das condições”, para a qual “… cada condição sine qua non seria causa de todo o efeito, porque, sem ela, as outras condições não teriam actuado” (in “Ensaio Sobre os Pressupostos Da Responsabilidade Civil” – “Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal”, Lisboa 1972, reedição, página 389).
Sendo notório, porém, que uma tal teoria jamais poderia ser transposta, na sua genuinidade, para o domínio da responsabilidade civil – por ser patentemente injusto responsabilizar alguém por prejuízos que nada tiveram a ver em concreto, com a sua conduta – haverá que eleger então, de entre as várias condições do dano, aquelas que legitimam a imposição ao respectivo agente da obrigação de indemnizar.
O nosso sistema positivo acolheu a “teoria da causalidade adequada”, ao consignar, no artigo 563.º do Código Civil, que “… a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”.
Como a transcrita previsão legal logo sugere, a adequação relevante não é aquela que se basta com o simples confronto entre o facto e o dano isoladamente considerados mas, pelo contrário, aquela que atende a todo o processo causal que, na prática, conduziu efectivamente ao dano.
E, nessa medida, exige-se “… que o efeito danoso tenha resultado do facto, considerado causa dele, pelo processo por que este é abstractamente adequado a produzi-lo”, como salienta o mesmo Professor que, logo a seguir, explicita:
“Pode, na verdade, suceder que o comportamento do agente seja adequado (por si e em abstracto) a provocar o dano, mas este se produza segundo um processo diferente daquele que leva a considerar tal comportamento como causa adequada desse dano”, o que leva a excluir da reparabilidade “… não só os prejuízos que este normalmente não produziria, como também aqueles que normalmente produziria, mas por processo diferente do que realmente se deu” (obra citada, páginas 395 e 396 – sublinhados nossos).
Conforme se vê, a lei exige, para fundamentar a reparação, que o comportamento do agente seja abstracta e concretamente adequado a produzir o efeito lesivo.
Por isso se diz que a afirmação de um nexo causal entre o facto e o dano comporta duas vertentes:
- a vertente naturalística, de conhecimento exclusivo das instâncias, porque contido no âmbito restrito da matéria factual, que consiste em saber se o facto praticado pelo agente, em termos de fenomenologia real e concreta, deu origem ao dano;
- a vertente jurídica, já sindicável pelo Supremo, que consiste em apurar se esse facto concreto pode ser havido, em abstracto, como causa idónea do dano ocorrido.
Estas duas vertentes são cumulativas e, portanto, indissociáveis na tarefa de indagação do processo causal para efeitos da reparabilidade de um sinistro.
A adequação concreta – nexo naturalístico – entre o comportamento do agente e o efeito lesivo tanto pode ser firmada através da prova que tenha sido alcançada directamente sobre a matéria, como pode ser indirectamente obtida por meio de presunções judiciais.
Em qualquer dos casos, estamos sempre num domínio que é da soberania exclusiva das instâncias.
Na verdade:
“presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”, sendo que “as presunções judiciais só são admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal” – artigos 349.º e 351.º, respectivamente, do Código Civil.
Ora, porque as presunções judiciais se inserem no julgamento da matéria de facto e constituem um meio probatório da livre apreciação do julgador, está de todo vedado ao Supremo proceder à sua avocação, visto que a sua competência funcional, afora as situações de controlo da prova tabelada, se restringe à apreciação definitiva do regime jurídico, que julgue adequado, aos factos materiais fixados pelas instâncias – artigos 87.º do C.P.T. e 721.º e 729.º do C.P.C..
Pela mesmíssima razão, não pode o Supremo sindicar o uso, ou não uso, pela Relação, desse meio probatório.
Mas já poderá intervir – por ser uma questão de direito – para averiguar se as presunções extraídas pelas instâncias violam os transcritos artigos 349.º e 351.º, ou seja, se foram inferidos de factos desconhecidos – designadamente por não terem sido provados – ou irrelevantes para o efeito – designadamente porque o facto presumido exige um grau superior de segurança na prova – e, bem assim, se a ilação extraída conflitua com factualidade provada ou contraria outra que, submetida expressamente ao crivo probatório, tenha sido dada como não provada.
3.2-4
Examinando a factualidade dada como provada, não se vislumbra que ali se contenha na íntegra a chamada “dinâmica do acidente” por forma a determinar directamente se o sinistro foi provocado pela apontada conduta omissiva da Ré Empregadora.
O que se verifica é que a Relação veio a alcançar indirectamente esse juízo afirmativo:
- partindo do facto vertido no ponto n.º 32, concluiu que o Autor, se acaso lhe tivessem sido ministrados acções de formação, nomeadamente em matéria de segurança, higiene e saúde no trabalho, e se tivesse sido informado pela Ré sobre os riscos inerentes ao exercício da sua actividade, jamais teria optado por não instalar os mecanismos de segurança da máquina – protecção da serra e ligação da mangueira de aspiração – nem teria laborado sem os óculos protectores, o que tudo consequenciaria que o acidente não tivesse ocorrido ou, pelo menos, não tivesse sequelas tão gravosas.
Em termos abstractos, importa reconhecer que os assinalados mecanismos de segurança e de protecção tinham a virtualidade de evitar o acidente ou quando menos, de minimizar as suas consequências – cfr. pontos ns. 18, 19, 20, 21, 22 e 27 da decisão factual.
Importa reflectir então sobre a afirmada adequação concreta.
O ponto n.º 32 demonstra, na 2.ª parte, que a Ré não providenciou pela frequência do Autor de acções de formação – nomeadamente em matéria de Segurança, Higiene e Saúde no Trabalho – nem o informou sobre os riscos inerentes ao exercício da sua actividade.
Evidencia-se, desde logo, que estamos perante uma omissão genérica, atinente ao exercício global das funções, cometidas ao demandante pela sua entidade patronal.
Todavia, para a problemática do nexo causal – e é essa que aqui releva – o que importa é saber que repercussão pode esse comportamento omissivo ter representado para a atitude volitiva do sinistrado – dispensa dos mecanismos de segurança e protecção – que conduziu à produção do acidente.
Sem negar, em tese geral, que o sobredito comportamento da Ré podia ser adequado a determinar, em concreto, a atitude assumida pelo Autor, já não será lícito desprezar, sem mais, a factualidade contida na 1.ª parte daquele ponto 32, segundo a qual a empresa vendedora ministrou uma sessão para a apresentação da máquina, onde explicou o funcionamento dos seus mecanismos de protecção.
E está provado também que ao Autor, em concreto, foram ministrados os necessários conhecimentos para que pudesse manusear a máquina - ponto n.º 35.
Bem se compreende, por isso, que ele soubesse exactamente como funcionava a máquina, como se instalavam os seus mecanismos de segurança e que perigos concretos se pretendia com eles evitar – pontos ns. 13 a 20 e 25.
Ademais, está ainda provado que o Autor, para além de ter perfeita habilidade e capacidade técnica para a actividade de carpinteiro, também tinha grande experiência no tipo de instrumentos utilizados – pontos ns. 2 e 25.
Perante este condicionalismo factual, é forçoso concluir que a omissão genérica da Ré Empregadora, apontada no ponto n.º 32, não tinha a aptidão de viabilizar o juízo conclusivo extraído pela Relação sobre o questionado nexo causal.
Mais: essa ilação contraria frontalmente a restante factualidade que deixámos elencada.
Consequentemente, torna-se inevitável ignorar a sobredita ilação e, com isso, decidir que queda improvado qualquer nexo causal entre a referida omissão da empregadora e o acidente ocorrido.
Tanto basta para afastar a responsabilidade agravada que as instâncias imputam à ora recorrente, cuja revista merece ser concedida, pois, nesta específica vertente.
3.3-1
A solução ora alcançada obriga-nos a enfrentar a questão seguinte.
A “descaracterização” do acidente foi reclamada pela Ré Empregadora na sua contestação, sob o fundamento de que “… foi o A. que, com a sua actuação dolosa, criou todas as condições para que se produzisse o acidente” (artigo 33.º) “… que se deveu a uma actuação sua que importou, sem causa justificativa, a violação das regras de segurança estabelecidas pela própria natureza da actividade exercida e amplamente divulgadas pela entidade patronal” (artigo 47.º).
Mais adiante, em jeito conclusivo, acrescentou:
“A violação das regras de segurança fixadas pela entidade patronal ou de que a mesma delas tivesse dado conhecimento aos funcionários, sem causa justificativa, por parte do próprio sinistrado, são suficientes para, por si só, descaracterizar o acidente de trabalho e, bem assim, também o acidente dos autos”.
A 1.ª instância, a tal propósito, decidiu como segue:
“concluindo-se pela responsabilidade da entidade patronal, fica prejudicado o conhecimento da descaracterização do acidente por negligência grosseira do sinistrado: art. 27/1/b [quereria certamente dizer-se art. 7º/1/b] da Lei n.º 100/97 (LAT)”.
Na sua apelação, a Ré Patronal insiste na “descaracterização” do acidente mas, desta feita, fá-lo cumulativamente “… por violação de regras de segurança por parte do sinistrado, ou de negligência grosseira deste na sua actuação (art. 7.º n.º 1 als. a) e b) da Lei n.º 100/97)”.
A Relação dedicou pronúncia expressa a esta temática, sendo que a apreciou na vertente exclusiva da suposta “negligência grosseira” do Autor.
Com efeito, assim se consignou no Aresto em crise:
“Cabe, agora, conhecer da segunda questão suscitada no recurso.
Esta consiste em saber se o acidente de trabalho em exame se encontra descaracterizado por se dever exclusivamente a negligência grosseira do sinistrado”.
Na presente revista, a Recorrente retoma na íntegra a postura que assumira na anterior apelação.
Como se vê, a Ré Empregadora começou por estribar a reclamada “descaracterização” do sinistro na previsão enunciado pelo artigo 7.º n.º 1 al. a) da L.A.T., segundo a qual não dá direito à reparação o acidente que “for dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier do seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei”.
Fê-lo, na contestação, local próprio para o efeito, pois que toda a defesa deve ser deduzida nesse articulado, salvo os meios de defesa que sejam supervenientes ou que a lei admita expressamente, os quais podem ser aduzidos em momento ulterior (artigo 489.º n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil).
Deste modo, a modalidade de descaracterização atendível ficou circunscrita, desde os articulados, à suposta violação de regras de segurança por banda do Autor.
Não obstante, a Empregadora veio aditar um novo fundamento de descaracterização no seu recurso de apelação – “negligência grosseira” – e retoma essa adução na presente revista.
Por sua vez, a Relação apreciou o novo fundamento invocado e guardou absoluto silêncio sobre aquele que fora tempestivamente aduzido.
Sendo evidente que as sobreditas modalidades de “descaracterização” configuram questões distintas, as consequências do apontado quadro adjectivo hão-de ser encontradas na disciplina legal atinente às nulidades decisórias, conjugada com a função típica dos recursos.
Assim:
- ao invocar, na apelação, a “negligência grosseira” como fundamento da “descaracterização”, a Empregadora suscitou uma “questão nova”;
- apesar disso, a Relação apreciou-a, e, em contrapartida, não apreciou o fundamento atendível.
Ao actuar deste jeito, a Relação cometeu duas nulidades:
- uma delas por excesso de pronúncia (ao apreciar a “questão nova”);
- a outra por omissão de pronúncia (ao ignorar a questão atendível).
Nenhuma das partes reagiu contra tais vícios decisórios que, por isso, e não sendo eles do conhecimento oficioso, ficaram sanados.
Por outro lado, o Tribunal “ad quem” só pode conhecer as questões que tenham sido efectivamente apreciadas pela decisão recorrida, visto que os recursos se destinam a reapreciar – eventualmente modificando-as – as decisões impugnadas.
Deste modo, a nossa pronúncia há-de circunscrever-se, por necessário, à descaracterização” do acidente por “negligência grosseira” do Autor.
3-3-2
Depois de enunciar os pressupostos da “descaracterização” do acidente por “negligência grosseira” da vítima, a Relação ponderou como segue:
“…Afigura-se que incumbia à recorrente (art. 342.º n.º 1 e 2 do Código Civil) provar que o acidente se deu por culpa exclusiva do sinistrado.
De facto, o ónus da prova de factos impeditivos do direito do impetrante cabe à entidade responsável pela reparação do acidente.
Ora, afigura-se que a 2.ª Ré, embora os tenha alegado, não o logrou fazer, visto que embora não se tenha provado que o sinistrado ignorava a existência de óculos ou viseiras que pudesse utilizar também não se provou – o que era necessário para obter a descaracterização do acidente – o contrário; ou seja, que o sinistrado sabia da existência de óculos ou viseiras que pudesse utilizar e não o fez de forma voluntária, sujeitando-se aos inerentes riscos.
E nem se argumente com a falta de protecção da serra, sendo certo que, por motivos evidentes, não se pode considerar que o acidente se deu exclusivamente em virtude dessa falta.
Pelo menos, para a sua verificação sempre concorreu a falta de utilização de óculos ou viseiras.
Como tal, não se pode, sem mais, considerar provado o cariz absolutamente temerário da conduta em questão.
Desta forma, figura-se que a matéria apurada é insuficiente para se concluir que o acidente se deveu exclusivamente a negligência grosseira do sinistrado, o que acarreta a improcedência do recurso a tal nível” (FIM DE TRANSCRIÇÃO).
3-3-3
Sob a epígrafe “Descaracterização do Acidente”, prescreve o artigo 7.º n.º 1 alínea b) da Lei n.º 100/97 que “… não dá direito a reparação o acidente que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado”.
Por seu turno, o artigo 8.º n.º 2 do respectivo Regulamento (D.L. n.º 143/99, de 30 de Abril) veio precisar que por “negligência grosseira” deve entender-se “… o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancia em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão.”
A negligência ou mera culpa consiste na violação de um dever objectivo de cuidado, sendo usual distinguir entre aquelas situações em que o agente prevê como possível a produção do resultado lesivo mas crê, por leviandade ou incúria, na sua não verificação (negligência consciente) e aquelas em que o agente, podendo e devendo prever aquele resultado e cabendo-lhe evitá-lo, nem sequer concebe a possibilidade da sua verificação (negligência inconsciente).
Segundo a terminologia clássica, a negligência também pode assumir diferentes graus, em função da ilicitude e da culpa: será levíssima quando o agente tiver omitido os deveres de cuidado que uma pessoa excepcionalmente diligente teria observado, será leve quando o parâmetro atendível for o comportamento de uma pessoa normalmente diligente e, enfim, será grave quando a omissão corresponder àquela em que só uma pessoa especialmente descuidada e incauta teria também incorrido.
Correspondendo a “negligência grosseira” à “culpa grave”, a sua verificação pressupõe que a conduta do agente – porque gratuita e de todo infundada – se configure como altamente reprovável, à luz do mais elementar senso comum.
A par de um tal comportamento, a assinalada exclusão de responsabilidade mais exige que o acidente tenha resultado em exclusivo desse comportamento.
3-3-4
No caso dos autos, não devemos ter por preenchidos esses dois conjugados pressupostos.
Por um lado – e como bem sublinha a Relação – não está provado que o acidente haja ocorrido por culpa exclusiva do Autor.
Com efeito, tal ocorrência foi cumulativamente motivada pela falta de instalação dos mecanismos de segurança da máquina e pela falta de utilização de óculos ou viseira.
Ora, se aquela primeira omissão se ficou a dever a um acto volitivo do Autor, o mesmo se não dirá da segunda, pois quedou improvado que o demandante conhecesse a existência daqueles utensílios, disponibilizados pelo empregador, e destinados a serem utilizados na tarefa que lhe estava cometida.
Tal insuficiência probatória reverte em desfavor da Ré Patronal, onerada com a prova concreta de que o Autor conhecia a existência no local dos falados objectos e que, por sua iniciativa, entendeu não os utilizar (artigos 342.º n.º 1 do C.C. e 510.º do C.P.C.).
E é bem certo – como também anota a Relação – que os óculos ou a viseira sempre teriam a virtualidade de evitar o acidente ou minimizar as suas consequências, mesmo sem os mecanismos de protecção da máquina.
Cabe concluir, pois, que resultou improvada a concorrência exclusiva do Autor para a produção do sinistro.
E, sem essa prova, soçobra, sem mais, a pretendida “descaracterização”.
Por outro lado, o Autor tem perfeita capacidade técnica para a actividade de carpinteiro, a par de grande experiência no tipo de instrumentos e mecanismos manuseados, sendo que a tarefa em causa estava já em fase de acabamento, após cerca de uma semana de trabalho.
Este circunstancialismo viabiliza o entendimento de que o Autor possa ter confiado na sua experiência profissional, por forma a supor que não lhe adviria qualquer acidente, do mesmo passo que a repetição de tarefas perigosas tende a diminuir a capacidade de concentração e de avaliação do risco, o que também levaria a ter por preenchido o quadro excludente da “descaracterização” enunciado no artigo 8.º n.º 2 do RLAT.
Assim, haverá que rejeitar a tese da Recorrente quanto à questão em análise.
3-4
Afastada a responsabilidade agravada da Empregadora e, bem assim, a “descaracterização” do acidente, temos que a sua reparação ficará a cargo exclusivo da Ré Seguradora, por virtude do contrato de seguro firmado com aquela entidade.
4 – DECISÃO
Em face do exposto, decide-se:
1 – revogar os segmentos decisórios transcritos a fls. 1 vs, sob as alíneas a) e b) – constantes da sentença lavrada em 1.ª instância e acolhidos pelo Acórdão em crise-;
2 – condenar a Ré, “BB Seguros, S.A” a pagar ao Autor uma pensão anual e vitalícia de € 5.094,18 (€ 24.258 x 70% x 30%), com início a 2/12/2006;
3 – manter, no mais, a decisão impugnada.
Custas nas instâncias e no Supremo, pelo Autor e pelos Réus, na proporção do decaimento.
Lisboa, 10 de Novembro de 2010

Sousa Grandão (Relator)
Vasques Dinis
Manuel Pereira