Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06B1998
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: BETTENCOURT DE FARIA
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
RECURSO DE APELAÇÃO
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
Nº do Documento: SJ200609140019982
Data do Acordão: 09/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA REVISTA
Sumário :
I - Deve ser rejeitado o pedido de alteração da matéria de facto formulado na apelação que se refira unicamente aos depoimentos de determinadas testemunhas, mas omita os concretos pontos da
gravação das declarações daquelas que impunham uma decisão diversa sobre os trechos da matéria de facto impugnada (art. 690.º-A, n.º 2, do CPC).
II - A possibilidade de se ordenar o aperfeiçoamento, em sede recursal, reporta-se às alegações do recorrente e respectivas conclusões nos casos previstos no art. 690.º, n.º 4, do CPC, não sucedendo o mesmo quanto ao recurso da matéria de facto (art. 690.º-A, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I
AA SA moveu a presente acção ordinária contra BB, pedindo que a ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 67.500.000, acrescida dos juros vencidos até 28.03.03, à taxa legal de 7%, no valor de € 3.828,54, bem como dos vincendos, a partir dessa data, à mesma taxa e até integral pagamento.
A ré contestou, a que se seguiu a réplica da autora.
O processo seguiu os seus trâmites e, feito o julgamento, foi proferida sentença em que a ré foi condenada a pagar à autora a quantia de capital e juros vencidos peticionada, mais sendo a ré condenada a pagar os juros vincendos a partir de 29.03.03 a mesma taxa anual e à taxa de 4% a partir de 01.05.03 e até integral pagamento.
Apelou a ré, mas sem êxito.
Recorre a mesma novamente, a qual, nas suas alegações de recurso, apresenta, em síntese, as seguintes alegações:

1 A prova do alegado pagamento da autora à CC, tinha de ser feita por meio de documento que respondesse às exigências definidas pela Administração Fiscal e constantes do Plano Oficial de Contabilidade.
2 A rejeição do recurso devido a omissão, por mero lapso, da indicação da gravação, segundo o referido na acta, constitui uma interpretação demasiado restritiva do preceito do artº 690º-A nº 1 e 2 do C. P. Civil e é inconstitucional, por violação dos artºs 13º e 20º nº 4 da CRP.
3 Ao juiz assiste o poder dever de convidar as partes a corrigir erros e deficiências nas peças processuais que possam comprometer o sucesso da lide.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

II
Apreciando

Uma vez que a recorrente coloca uma questão relativa à fixação da matéria de facto, só depois da sua apreciação se consignará a matéria de facto assente.
Alega a requerente que a prova de determinado pagamento estava sujeito à produção de certo meio de prova.
O princípio que vigora neste campo é o da regra ser o da liberdade dos meios de prova, salvo disposição legal em contrário.

Ora, não divisamos que, no caso em apreço, exista norma impondo que a prova do pagamento tenha de ser feita por determinado meio em especial.
Aliás, das alegações do recurso conclui-se que a recorrente afinal não reclama a prova por documento, como refere nas suas conclusões, mas apenas – fls. 390 – que considera insuficiente a prova que foi feita – o depoimento do representante da autora.
Trata-se, portanto, de um problema de mera convicção de que este STJ não pode agora conhecer.

2 A recorrente alega que o seu pedido de alteração da matéria de facto não deveria ter sido rejeitado por falta de referência ao ponto da gravação que fundava o seu pedido, dado tratar-se duma interpretação restritiva do disposto no artº 690-A do C. P. Civil.
Diz este preceito no seu nº 2 que a impugnação da matéria de facto será rejeitado se o recorrente não especificar os concretos meios probatórios constantes de gravação, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
A Relação ao rejeitar o recurso com o fundamento de que a recorrente não cumpriu o ónus que lhe era imposto pelo aludido nº 2 não fez deste modo qualquer interpretação restritiva, mas meramente literal.
O princípio a que aqui se deve atender é o de que não é possível contrapor à oralidade e imediação das provas em audiência de julgamento, um sistema de apreciação formal através de análise de documentos e registos. Assim o duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, não pode significar um julgamento em bloco e ex novo dessa matéria. Como é próprio dos recursos, trata-se apenas de sindicar a correcção do julgamento feito em primeiro instância. O que, como é manifesto não implica a reapreciação global dos factos assentes, mas apenas a reapreciação em concreto de certos pontos de tais factos.
Anteriormente esse objectivo era conseguido pela transcrição das passagens da gravação que fundamentavam o pedido de alteração da matéria de facto fixada.
Reconhecido como demasiado oneroso para as partes, foi o mesmo sistema substituído pelo actual em que, em vez da transcrição, se indicam os pontos concretos que antes teriam de ser transcritos. A intenção do legislador não mudou.
Ora, a recorrente indicou os depoimentos, mas não os concretos pontos da gravação. Logo, a rejeição do recurso não resulta de interpretação restritiva, mas, como já se disse, de um entendimento literal do preceito. Se fosse a aceitar a mera indicação do depoimento estar-se-ia a ir para a apreciação global das provas, o que, pelo que atrás consignámos, iria contra o espírito que deve presidir à reapreciação em recurso dos factos.
A recorrente fala em inconstitucionalidade dessa interpretação, fazendo apelo aos artºs 13º e 20 da CRP, que consagram a igualdade de todos os cidadãos, nomeadamente quando intervêm em causa judicial.
A verdade é que o entendimento que defende é que levaria a uma desigualdade das partes, conferindo ao recorrente a possibilidade de ampliar o litígio para além do razoável e pondo em causa a segurança da outra parte quanto aos limites que lhe são garantidos pela letra da lei sobre a impugnação da matéria de facto que lhe é favorável.


3 A terceira questão posta pela recorrente é a de que o juiz deveria mandar aperfeiçoar as suas alegações de recurso antes de as rejeitar.
O juiz pode diligenciar pela supressão de imperfeições, mas não de omissões, salvo se a lei expressamente a estas se referir - cf. artº 265º nº 2 do C. P. Civil - .
No primeiro caso está apenas a cumprir o dever de boa administração da justiça.
No segundo está a infringir os princípios da disponibilidade do processo pelas partes e do seu tratamento igual – cf. artºs 3º -A e 264º do C. P. Civil - .
Na primeira hipótese sabe-se o que a parte quer, na segunda seria abusivo deduzir a sua vontade. Além de que se tornaria numa substituição pelo tribunal do ónus que impende sobre as partes de litigar diligentemente. E iria contender com o direito da outra parte a fazer-se valer, de acordo com o princípio da igualdade de armas, da forma como a contra parte litiga.
Acresce que o artº 690º nº 4 do C. P. Civil permite ao juiz convidar o recorrente a apresentar conclusões, se este o não fez. Se o legislador quisesse o mesmo regime para a indicação dos concretos meios probatórios, certamente não deixaria de o assinalar.

4 Não há, portanto, que alterar a matéria de facto fixada, a qual se consigna remetendo para o que consta de fls. 351 a 359, nos termos do artº 713º nº 6 do C. P. Civil.
5 Sem essa alteração à matéria de facto e uma vez que a recorrente não põe em causa no recurso a disciplina jurídica a ela aplicada, resta apenas confirmar o decidido em 2ª instância.

Pelo exposto, acordam em negar a revista e confirmam o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 14 de Setembro de 2006

Bettencourt de Faria
Pereira da Silva
Rodrigues dos Santos