Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05A585
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ALVES VELHO
Descritores: CASAMENTO
UNIÃO DE FACTO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: SJ200505240005851
Data do Acordão: 05/24/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 1643/04
Data: 10/12/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Sumário : - A Constituição da República (art. 36º) reconhece uma relevância fundamental à família assente no casamento e ainda, independentemente do vínculo conjugal, à família constituída por pais e filhos;
- O art. 36º CR não conduz a que nele se veja, sem mais, a consagração do direito a estabelecer a união de facto como alternativa ao casamento, exigindo um tratamento indiferenciado ou isento de discriminações entre cônjuges e unidos de facto;
- Impõe-se, então, averiguar se tais discriminações, quando existam, carecem de uma "justificação razoável", revelando-se, à luz do princípio da proporcionalidade, vedadas pelo conteúdo das normas fundamentais, o que poderá acontecer quanto a disposições que "directamente contendam com a protecção dos membros da família";
- No concreto circunstancialismo, em que o A. e o falecido "cônjuge de facto" viveram maritalmente nos dois anos e dois meses que precederam o acidente causador do dano morte e não há filhos, não parece que, na enunciada perspectiva da proporcionalidade, o reconhecimento do direito à compensação por danos não patrimoniais atribuído pelo n.º 2 do art. 496º C. Civil seja reclamado pelo sistema jurídico como uma medida de protecção exigível para o unido de facto, malgrado a tutela constitucional directa imposta para a família natural constituída por pais e filhos, com carácter de estabilidade.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1. - "A" intentou contra "Companhia de Seguros B, S.A." acção declarativa, para efectivação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, reclamando da Ré o pagamento de € 49.879,79, dos quais € 42.771,92 por danos não patrimoniais, quer decorrentes do abalo que sofreu com o acidente quer com a morte da sua companheira.

A final, a Seguradora foi condenada a pagar a quantia de € 26.436,28, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais - sendo € 1.496,39 referentes aos danos sofridos directamente pelo A. e € 24.939,89 pela morte da companheira - e, a título de danos patrimoniais, o que vier a ser liquidado em execução de sentença, decisão de que ambas as Partes interpuseram recurso.

A Relação reduziu a indemnização pelos danos sofridos pelo A. com o acidente para € 500,00, absolveu a R. do pedido indemnizatório fundado na morte da companheira do A. e manteve, no mais, o decidido na 1ª Instância.


Pede ainda revista o Autor, que sustenta nas conclusões:
- A questão prende-se apenas com os danos directamente sofridos pelo Recorrente, primeiro quanto à conformidade com a Constituição do art. 496º-2 do C. Civil e depois quanto à fixação do quantum indemnizatório;
- A inconstitucionalidade decorre do facto de a não abrangência do unido de facto sobrevivo pela norma do n.º 2 do art. 496º violar a 1ª parte do n.º 1 do art. 36º da CRP quando prevê expressamente o direito de constituir família para além da relação matrimonial;
- O art. 496º-2 deve, portanto, ser objecto de uma interpretação extensiva pelo argumento a pari, por paridade de razão;
- Assim, deve a indemnização pelos danos não patrimoniais ser fixada em não menos de € 42.771,92, acrescida de juros legais desde a citação.
- Quando assim se não entenda deve ser fixada indemnização não inferior a € 12.500,00 para ressarcimento dos danos morais próprios emergentes do acidente em causa.

A Recorrida apresentou resposta em que pugna pela manutenção do julgado.

2. - Das conclusões formuladas resulta serem duas as questões propostas e para decidir:
- A inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do art. 496º C. Civil, quando interpretada no sentido de excluir o "cônjuge da facto" do direito a ser indemnizado pela morte do companheiro; e,
- A fixação da compensação pelos danos não patrimoniais reclamados pelo Autor.

3. - Das Instâncias vem assente a seguinte factualidade:

A 30/01/00, pelas 1,45h., na EN 347, no sentido Alfarelos-Condeixa, ocorreu um acidente de viação que consistiu num despiste e colisão com uma árvore do veículo ligeiro de passageiros de matrícula PJ, que era conduzido por C e no qual seguiam como passageiros o Autor e D;
Em consequência do embate, D sofreu lesões corporais, das quais resultou a sua morte;
O Autor trabalha na Embaixada de Espanha, em Portugal como funcionário administrativo;
No momento imediatamente anterior ao acidente, o A. pensou que poderia ficar gravemente ferido ou mesmo morrer em consequência do mesmo, o que lhe causou angústia e terror;
O Autor receou que todos os seus projectos de vida pessoais e profissionais pudessem ser interrompidos em consequência do acidente;
O Autor também exercia a actividade de tradutor por conta própria;
Em consequência do acidente, deixou de fazer trabalhos de tradução que já tinha ajustado, facto que lhe causou prejuízo;
Estragou o seu blusão, as calças e perdeu o seu relógio;
O A. foi imediatamente assistido no Hospital dos Covões, em Coimbra, e posteriormente no de Santa Maria, em Lisboa;
Ainda em consequência do acidente, o A. sofre de falta de concentração no trabalho;
À data do acidente o Autor vivia maritalmente com a D, desde Novembro de 1997, e projectavam casar e ter filhos;
Entre os dois existia amor, união e carinho;
O A. sofreu um choque e uma grande dor com a morte da D, vivendo hoje com tristeza e recordando-a constantemente;
O Autor nasceu em 07/02/961;
A responsabilidade civil por danos causados pelo veículo PJ encontrava-se transferida para a Seguradora Ré.

4. - Mérito do recurso.

4. 1. - A constitucionalidade e interpretação do n.º 2 do art. 496º do Código Civil.

O Recorrente funda a sua pretensão de interpretação extensiva da norma do n.º 2 do art. 496º e correspondente afastamento da interpretação literal, por forma a nela incluir as pessoas que viviam com a vítima numa situação de união de facto, na violação do direito de constituir família para além da relação matrimonial, acolhido pelo n.º 1 do art. 36º da Constituição da República, que não já no princípio da igualdade que o art. 13º da mesma Lei Fundamental consagra.

O preceito em causa dispõem assim: "Por morte da vítima, o direito á indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem".

Trata-se de um caso em que a lei atribui a determinadas pessoas ou grupos de pessoas, sucessivamente, a titularidade do direito a indemnização por danos próprios, mas por factos em que considera lesado alguém que não é o titular do direito violado.
Desaparecido, pela produção do dano-morte, o sujeito do direito de personalidade violado, a quem pelos princípios gerais da responsabilidade civil caberia o direito à indemnização, a lei elege como titulares originários desta certos terceiros em atenção às suas relações familiares com a vítima.

A opção pela indicação taxativa e graduada das pessoas cujos danos são atendíveis deve-se a razões de certeza e segurança, apesar de poder verificar-se que o facto cause danos, porventura mais graves, a outras pessoas ou mesmo que as pessoas contempladas sofram dor ou desgosto por forma não coincidente com a ordem de precedências estabelecida no preceito. O legislador quis sacrificar "as excelências da equidade (...) às incontestáveis vantagens do direito estrito" (P. DE LIMA e A. VARELA, "C. Civil, Anotado", 4ª ed., 501).

A letra da lei exclui, pois, da titularidade do direito, quer quaisquer pessoas nela não referidas, quer, de entre as referidas, as que resultem afastadas pela precedência da respectiva graduação.
Exclui-o também, quanto ao "cônjuge de facto", como se refere no Acórdão deste Tribunal de 4/11/03 (CJ XI-III-135), "o enquadramento histórico da norma, nascida num tempo e num espaço de absoluta rejeição dos valores que suportam as uniões de facto".

Mas, será que a norma deve ser interpretada extensivamente, incluindo na classe do cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens, filhos ou outros descendentes, o unido de facto ou companheiro do falecido, relevando os elementos teleológico e actualista postulados pelo direito constitucionalmente reconhecido de constituir família para além da relação matrimonial (art. 36 n. 1-1ª parte) e pela evolução legislativa sobre o reconhecimento das uniões de facto?

O art. 36 n. 1 CRP, revelando abertura à "pluralidade e diversidade das relações familiares", admite expressamente o direito de constituir família sem casamento, inculcando claramente adoptar o conceito de "família" como uma realidade mais ampla que a da família conjugal, resultante do casamento.
A Constituição da República reconhece uma relevância fundamental à família assente no casamento e ainda, independentemente do vínculo conjugal, à família constituída por pais e filhos. É o que resulta da autonomização do direito de contrair casamento e do estatuto e efeitos da sociedade conjugal aludidos nos n.ºs 1 e 2 do art. 36º, por um lado, e da preocupação com o estatuto da filiação e da família constituída por pais e filhos, nascidos ou não de casamento, por outro lado - arts. 36 n. 3, 4, 5 e 6, 68º e 69º.
Deste modo, como escrevem JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS (" CRP, Anotada", Tomo I, 399), «nesta perspectiva, no direito de constituir família, o art. 36º-1 abrange, ao lado da família conjugal, a família constituída por pais e filhos, podendo extrair-se do preceito um direito fundamental, não apenas a procriar, mas também ao conhecimento e reconhecimento da paternidade e maternidade".
Para além disso, o art. 36º, não excluindo do seu âmbito de previsão outras relações de tipo familiar ou parafamiliar e a respectiva tutela jurídica, nomeadamente quanto às uniões de facto, também não conduz a que nele se veja, sem mais, a consagração do direito a estabelecer a união de facto como alternativa ao casamento, exigindo um tratamento indiferenciado para cônjuges e unidos de facto, apesar de, como dito, o direito de constituir família poder resultar de uma união de facto estável e duradoura, nos termos que o legislador ordinário fixar, dentro da liberdade de conformação (cfr. ob. cit., 402).

Da diferença entre a situação de cônjuges e "cônjuges de facto" ou unidos de facto - para além do âmbito da protecção específica do casamento e da família constituída por pais e filhos, como se deixou referido - resulta, pois, que não possam ser excluídas discriminações de tratamento entre uns e outros.
Ponto é averiguar se umas tais discriminações, quando existam, carecem de "uma justificação razoável", revelando-se, à luz do princípio da proporcionalidade vedadas pelo conteúdo das normas fundamentais, o que poderá acontecer quanto a disposições que "directamente contendam com a protecção dos membros da família, protegendo designadamente o membro enfraquecido e que não sejam aceitáveis como instrumento de eventuais políticas de incentivo à família que se funda no casamento" (id. ib., 404, citando o Ac. TC n.º 275/02 - DR, II, de 24/7/02, pg. 12901).

Ora, também se aceita que, em abstracto, não haverá uma justificação atendível para a solução de excluir de plano todos e quaisquer danos não patrimoniais sofridos pessoalmente por quem não convivia com a vítima de um homicídio doloso em condições análogas à dos cônjuges, à luz do preceito constitucional em apreço e dos princípios subjacentes à Lei n.º 7/2001, de 11/5, estranhos que são os objectivos da indemnização aos mencionados meios e desígnios de incentivo à família assente no casamento, como se ponderou e escreveu no douto acórdão citado.

Acontece que perante a concreta inconstitucionalidade arguida, a decisão não pode ser desligada da também concreta situação substantiva em análise, ou seja, dos específicos contornos e fisionomia do caso retratado no processo.
A Lei apenas atribui relevância às relações decorrentes da união de facto em casos pontuais, referindo taxativamente esses casos e respectivos efeitos, todos com incidência na área das normas de protecção (alimentos, transmissão da casa de morada de família e benefícios sociais) - arts. 3º a 7º da Lei n.º 7/01.
E, apesar disso, só o faz quando a situações em que a relação de facto se apresente com carácter de estabilidade e durabilidade, numa situação análoga à dos cônjuges, que "convença" da sua tendência para a perpetuidade, numa "ficção de casamento" (FRANÇA PITÃO, "Os novos Casamentos ...", in "Comemorações dos 35 Anos do Código Civil", Vol. I, 192).
Como se faz notar no acima citado aresto deste Tribunal, o também invocado acórdão do T.C. foi tirado sobre um caso de homicídio doloso e a solução nele encontrada tem confessadamente a marca da gravidade extrema do ilícito e tem, acrescentamos nós, a particularidade contemplar uma situação de facto da qual havia filhos.
Vale isto por dizer que ali está presente uma família constituída por pais e filhos, a situação que o art. 36º directamente confere tutela. No caso sub juditio, diversamente, sabe-se apenas que o Autor e a falecida "viviam maritalmente desde Novembro de 1997 (dois anos e dois meses antes do acidente), projectavam casar e ter filhos" sem que algo mais se saiba, designadamente quando ao facto impeditivo aludido na al. c) do art. 2º da Lei 7/01, apesar de se saber, porque alegado pelo Autor, haver um casamento anterior (seria divorciado quando instaurou a acção) e uma filha dele e de Clara Garcia da Silva, nascida em 16/10/2000, muito depois do acidente (cfr. p.i e fls. 335).
Ora, no concreto circunstancialismo reflectido nos autos, não nos parece que, na enunciada perspectiva da proporcionalidade, o reconhecimento do direito à compensação por danos não patrimoniais atribuído pelo n.º 2 do art. 496º C. Civil seja reclamado pelo sistema jurídico como uma medida de protecção exigível para o unido de facto, malgrado a tutela constitucional directa imposta para a família natural constituída por pais e filhos, com carácter de estabilidade.

Como também já se deixou referido, o direito conferido ao cônjuge no falado preceito do Código Civil, encontra a sua razão de ser na vontade legislativa de evitar a apresentação de uma multiplicidade de pretensões indemnizatórias por danos morais por morte da vítima, ainda que, não fora essa opção, se mostrassem atendíveis.
Por isso, como se argumenta no voto de vencido lavrado no mesmo Ac. T.C. 275/02, em tese, nada obstaria a que, com o mesmo objectivo e na mesma perspectiva limitadora, o legislador viesse a reconhecer o direito à indemnização a quem estivesse mais proximamente ligado à vítima, designadamente por via da união de facto. Porém, não o quis fazer, concedendo a sua titularidade apenas às pessoas taxativamente indicadas e pela ordem de preferência que, repete-se, bem pode não coincidir com a gravidade do dano realmente sofrido.

Ora, uma vez mais, se esse comportamento do legislador não pode considerar-se constitucionalmente imposto, na medida em que não encontra fundamento directo na exigência no direito à protecção da família, aceitando-se como razoável o escopo prosseguido com a limitação e graduação vertidas na norma de direito ordinário, não caberá falar de violação do princípio da proporcionalidade.

Em conclusão, entende-se que a interpretação feita pelo acórdão impugnado da norma do n.º 2 do art. 496º C. Civil, no sentido de excluir o Recorrente da titularidade do direito a indemnização por danos não patrimoniais por morte da sua companheira não merece censura e não padece da inconstitucionalidade que lhe é assacada.

4. 2. - Os danos morais próprios do Autor emergentes do acidente.

A este título o Recorrente reclama a quantia de € 12.500,00, insurgindo-se contra a exiguidade da verba de € 500,00 que a Relação lhe atribuiu.

A factualidade relevante, recorde-se, diz respeito à angústia e terror que o A. sentiu, receando a morte ou ferimentos graves, ao aperceber-se do acidente; a ter recebido assistência em dois hospitais - Coimbra e Lisboa; e, como sequela, a ter ficado a sofrer de falta de concentração no trabalho.

Não se questiona a gravidade dos danos, para efeito de merecimento da tutela do direito, devendo a compensação a atribuir abranger tanto as consequências passadas como as futuras resultantes do evento danoso - art. 496º-1 C. Civil.
Trata-se de compensar prejuízos de natureza infungível, em que não é possível a reintegração por equivalente, em que o critério de fixação assenta na equidade.
Tais compensações não devem, como é hoje jurisprudência firme, ter um alcance que não se restrinja à atribuição de valores meramente simbólicos, mas que efectivamente permitam ao beneficiário obter as satisfações que, de algum modo, constituam um lenitivo para o mal sofrido.

Assim, tudo ponderado, mas atendendo a que não se sabe, por não alegado, em que grau e medida se reflectiu ou reflecte na vida do A. a dita falta de concentração, tem-se por equitativa a compensação de 4.000 euros, para a qual se eleva a que, já actualizada, vem arbitrada pela Relação.

5. - Decisão.

Pelo exposto, decide-se:
- Conceder parcialmente a revista;
- Alterar o decidido no acórdão recorrido quanto à quantia em que a Ré foi condenada a pagar ao Autor "a título de danos morais", fixando-a, agora, em € 4.000,00 (quatro mil euros), com juros moratórios, à taxa legal, desde a data do acórdão impugnado (12/10/04), mantendo-se, em tudo o mais, a decisão proferida; e,
- Condenar nas custas ambas as Partes, na proporção do respectivo vencimento.

Lisboa, 24 de Maio de 2005
Alves Velho,
Moreira Camilo,
Lopes Pinto.