Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
238/08.2JAAVR.C1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA MENDES
Descritores: HOMICÍDIO QUALIFICADO
HOMICÍDIO
ESPECIAL CENSURABILIDADE
ESPECIAL PERVERSIDADE
MOTIVO FÚTIL
PREMEDITAÇÃO
FRIEZA DE ÂNIMO
ANOMALIA PSÍQUICA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 01/06/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :

I - A qualificação do homicídio assenta num especial tipo de culpa, num tipo de culpa agravado, traduzido num acentuado desvalor da atitude do agente, que tanto pode decorrer de um maior desvalor da acção, como de uma motivação especialmente reprovável.

II - No n.º 2 do art. 132.º indiciam-se circunstâncias susceptíveis de revelar especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, elementos indiciadores da ocorrência de culpa relevante, cuja verificação, atenta a sua natureza indiciária, não implica, obviamente, a qualificação automática do homicídio, isto é, sem mais. Qualificação que, por outro lado, atenta a natureza exemplificativa das referidas circunstâncias, o que claramente resulta da lei, concretamente da expressão entre outras, pode decorrer da verificação de outras situações valorativamente análogas às descritas no texto legal, sendo certo, porém, que a ausência de qualquer das circunstâncias previstas nas als. a) a m) do n.º 2 do art. 132.º, constitui indício da inexistência de especial censurabilidade ou perversidade do agente, ou seja, indica que o caso se deve subsumir no art. 131.º (homicídio simples).

III - As circunstâncias em questão são, assim, não só um indício, mas também uma referência; circunstâncias que, não fazendo parte do tipo objectivo de ilícito, se devem ter por verificadas a partir da situação tal qual ela foi representada pelo agente, perguntando se a situação, tal qual foi representada, corresponde a um exemplo-padrão ou a uma situação substancialmente análoga; e se, em caso afirmativo, se comprova uma especial censurabilidade ou perversidade do agente.

IV - A circunstância qualificativa prevista na parte final da al. e) do n.º 2 do art. 132.º do CP – motivo fútil – destina-se a tutelar situações em que o agente se determine por mesquinhez, frivolidade ou insignificância, ou seja, por motivo gratuito.

V - No caso em que o arguido formou o propósito de tirar a vida à ofendida por não se haver conformado com o rompimento da relação de namoro existente entre ambos há que afastar liminarmente a verificação da circunstância qualificativa motivo fútil.

VI - Por outro lado, apenas se provou que o arguido, na sequência do termo da referida relação de namoro, o que sucedeu no dia 20-07-2008, por não se conformar com isso, formou o propósito de tirar a vida à vítima, evento que veio a ocorrer na manhã do dia 22-07-2008, o que significa que se desconhece o momento em que o arguido formou a intenção de matar, pelo que também há que afastar a verificação da circunstância qualificativa da premeditação, ou seja, da circunstância prevista na parte final da al. j) do n.º 2 do art. 132.º do CP.

VII - A circunstância da frieza de ânimo traduz-se numa actuação calculada, reflexiva, em que o agente toma a deliberação de matar e firma a sua vontade de modo frio, denotando sangue frio e alguma indiferença ou insensibilidade perante a vítima, ou seja, quando o agente, tendo oportunidade de reflectir sobre a sua intenção ou plano, ponderou a sua actuação, mostrando-se indiferente perante as consequências do seu acto.

VIII - O quadro factual provado revela que o arguido é portador de anomalia psíquica, caracterizada por fases depressivas, com debilidade mental ligeira e alterações comportamentais, que se expressam através de agitação motora e agressividade, apresenta fragilidades a nível afectivo e emocional e já tentou suicidar-se duas vezes (a última das quais na sequência dos factos delituosos objecto dos autos), do que decorre que, embora imputável, o arguido é portador de anomalia que de algum modo afecta a sua capacidade de entender e de se determinar, circunstância que não pode deixar de influir no juízo de culpa sobre o seu comportamento delituoso, neutralizando a aparência calculista, reflexiva e insensível da conduta assumida, de forma a considerar-se por não verificada a ocorrência de frieza de ânimo, a significar que o crime efectivamente cometido é o do art. 131.º do CP.

Decisão Texto Integral:

*
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
No âmbito do processo comum com intervenção do tribunal colectivo n.º 238/08. 2JAAVR, do Juízo de Média Instância Criminal, da comarca do Baixo Vouga, AA, com os sinais dos autos, foi condenado como autor material, em concurso real, de um crime de homicídio e de um crime de detenção de arma proibida nas penas de 14 anos e 1 ano e 6 meses de prisão, respectivamente, e, em cúmulo jurídico, na pena conjunta de 14 anos e 6 meses de prisão (1).
Na parcial procedência do pedido de indemnização civil deduzido contra o arguido, foi este condenado a pagar à demandante BB a importância de € 25.000,00, acrescida de juros de mora contados a partir da prolação do acórdão.
Interpôs recurso o Ministério Público.
É do seguinte teor o segmento conclusivo da respectiva motivação:
1. O arguido agiu por ciúmes, o que não é motivo para medianamente se poder explicar ou atenuar a sua conduta, pelo que se poderá afirmar que o mesmo agiu determinado por motivo fútil, à luz do conceito consagrado no artigo 132º, n.º 2, alínea e), do Código Penal.
2. A actuação por ciúme não é incompatível com a existência de frieza de ânimo e foi essa a actuação do arguido (Neste sentido – Ac. do S.T.J. de 07.05.95, in C.J., STJ, III, 2, 201.
3. O arguido revelou frieza de ânimo e sangue frio na preparação e na persistência da reflexão sobre a intenção de matar, o que constitui atitude e personalidade perversa e altamente censurável por parte do arguido (Neste sentido Ac. S.T.J. de 21.01.09, proferido no P. 08P4030, in www.dgsi.pt.
4. Com efeito, tendo a vítima assumido unilateralmente o termo da relação de namoro, que durara dois anos, o que aconteceu dois dias antes do crime, vingativamente, no dia seguinte apresenta-se em cada da vítima, para levar consigo as ofertas pessoais que lhe fizera durante esse período.
5. Mais uma vez revelou absoluto desrespeito pela liberdade de comportamento e de escolha da vida afectiva, por parte da vítima, e sobrepôs o seu sentimento pessoal ao dever de respeito pela liberdade de escolha que ela detinha sobre a sua própria vida.
6. Essa atitude não pode merecer por parte do direito uma valoração positiva, antes agrava a culpa, pelo desprezo que evidencia pelos valores fundamentais ligados à pessoa humana. Neste sentido – Ac. S.T.J. de 24.04.09, proferido no P. 43/07.OPAMAI, in www.dgsi.pt.
7. O arguido desde as 22 horas da véspera do crime persistiu na reflexão sobre a intenção de matar e durante essa noite, sem dormir, resolveu matar a sua namorada.
8. Pegou na arma, carregou-a com cinco tiros, escondeu-a por baixo da roupa que vestia e percorrendo vários quilómetros, de motorizada, vai até casa da vítima.
9. Bateu-lhe à porta, entra, discute por causa da mensagem que vira no telemóvel, onde alguém convidava a vítima a ir a um baile e chegando a mãe da vítima, consegue que aquela saia para fora de casa.
10. Ausentando-se os terceiros que apareceram, volta a bater em casa da vítima, e saindo aquela, continuando a discussão, possuído por ciúmes, dispara a dois metros, cinco tiros sobre a vítima, que vêm a ser causa da sua morte.
11. Revela o arguido absoluta insensibilidade sobre a consideração, estima e respeito que deveria merecer a mulher que fora sua durante dois anos de envolvência afectiva.
12. Revelou o arguido sangue-frio no modo como, com tempo, persistindo na bem reflectida intenção de matar, durante mais de 24 horas, conseguiu executar o seu acto.
13. E executa-o com absoluta frieza de ânimo: dispara todas as munições que a arma possuía, à curta distância de dois metros, sem qualquer reacção prévia de violência por parte da vítima, e só pelo prazer de satisfazer o seu “ego” ciumento.
14. A actuação do arguido está marcada por uma conduta individualista, marcada pela traição à confiança que a vítima nele depositara nos dois anos em que a relação durara, a traduzir-se numa maior culpabilidade, e a justificar uma agravada censura penal. Neste sentido – Ac do S.T.J. de 12.05.97, proferido no P. 97P970, in www.dgsi.pt.
15. Nestes termos e citando o referido Ac. desse Alto Tribunal de 21.01.09:
“… na leitura compreensiva dos factos provados, o contexto do conflito, de espaço e tempo, revela a persistência na reflexão sobre a intenção de matar, sangue-frio na execução, insensibilidade e indiferença na consideração de motivo que não é motivo, revelando a imagem global do facto frieza de ânimo e motivo fútil».
16. Estamos pois na presença de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo artigo 132º, n.º 2, alínea e), do Código Penal, a punir com pena de prisão não inferior a 16 anos, atentas as circunstâncias dadas como provadas e que nos apresentam uma personalidade do arguido bastante marcada pela ausência de afectos desde a infância.
Não foi apresentada resposta.
A Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal de Justiça emitiu douto parecer no qual se pronuncia no sentido da confirmação da decisão recorrida, sob o entendimento de que a menor capacidade do arguido de avaliar a ilicitude dos seus actos e de se determinar de acordo com essa avaliação justificam a sua condenação pelo crime de homicídio simples.
Não foi apresentada resposta.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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Única questão colocada no recurso é a da qualificação jurídica dos factos, entendendo o Magistrado recorrente que o arguido AA foi determinado por motivo fútil e agiu com frieza de ânimo, tendo persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas, razão pela qual deve ser censurado como autor material do crime de homicídio qualificado do artigo 132º, do Código Penal, fixando-se a pena, pelo menos, em 16 anos de prisão.
O tribunal colectivo considerou provados os seguintes factos (2) :

Factos provados:

1. O arguido e CC mantiveram uma relação de namora que durou cerca de dois anos, tendo a CC terminado tal relacionamento no dia 20 de Julho de 2008.
2. No dia 21 de Julho o arguido deslocou-se a casa de CC para recuperar os objectos que lhe tinha dado, entre os quais um cartão de telemóvel, no qual viu uma mensagem que o levou a ficar com ciúmes.
3. O arguido, não se conformando com o rompimento da sua relação de namoro com CC, formou o seu propósito de lhe tirar a vida.
4. No dia 22 de Julho de 2008, cerca das 7h15m, o arguido, não estando devidamente habilitado por licença que lhe permita deter armas de fogo, muniu-se de uma pistola e respectivo carregador, marca Tanfoglio, de modelo GT28, originalmente de calibre nominal 8 mm, posteriormente adaptada a disparar munições com projéctil de calibre 6,35 mm, sem número de série visível, apresentando as falsas inscrições “Star”, melhor descrita no relatório de fls. 352 e seg., sua propriedade, que não se encontrava registada, nem manifestada.
5. Acto seguido, com esta arma, e com aquele propósito, o arguido dirigiu-se à residência de CC, sita na Rua da Encosta, ..., Agras do Norte, Esgueira, nesta comarca.
6. Ali chegado, o arguido bateu à porta, tendo esta sido aberta pela CC.
7. O arguido entrou na residência desta onde manteve uma discussão com CC, tendo sido interpelado para sair da casa pela mãe daquela, que entretanto chegara.
8. Aguardou no exterior da residência e depois da mãe de CC se ir embora bateu novamente à porta, tendo aquela saído para o exterior da residência.
9. Após uma curta conversa, estando ambos no pátio anexo à residência, quando o arguido e a vítima se encontravam frente a frente, a cerca de 2 metros de distância, o arguido empunhando a pistola acima descrita, apontou-a em direcção de CC, sua ex-namorada, e disparou cinco tiros, vindo a atingi-la com dois projécteis na região abdominal, dois projécteis no tórax e um projéctil no pescoço.
10. Em consequência de tais disparos, sofreu a CC equimose do tórax, intensa infiltração sanguínea dos músculos latero-cervicais direitos, fractura das costelas, contusão pulmonar; contusão do saco pericárdico, hemotorax, hemopericárdio, laceração do saco pericárdico, laceração da aorta; hemoperitoneu; contusão da raiz de mesentério e hematoma retroperitoneal.
11. As lesões traumáticas toraco-abdominais, da ráquis lombo-sagrado e dos membros descritas supra e no relatório de autópsia, produzidas pelos tiros da arma de fogo, foram causa adequada da morte de CC.
12. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com intenção de tirar a vida a CC, o que efectivamente fez, dirigindo os disparos da arma de fogo que empunhava, quando se encontrava a não mais de dois metros da vítima, para zonas do corpo da CC que sabia conter órgãos vitais.
13. Sabia, ainda, o arguido, que não podia deter uma arma de fogo, não manifestada, nem registada, e sem se encontrar autorizado por licença para esse efeito.
14. Conhecia, ainda, o arguido o carácter ilícito das suas condutas.

Mais se provou:
15. O arguido depois de disparar contra CC disparou contra si, tendo sido atingido no abdómen; ficou caído sobre o corpo daquela.
16. Em meados de 2008 o arguido foi visto em consulta de psiquiatria, a pedido do EP de Aveio, apresentando um quadro depressivo com ansiedade marcada e alterações do sono, após tentativa de suicídio, em virtude da qual esteve internado no Hospital de Aveiro.
17. O pai do arguido já faleceu e não tem relacionamento com a sua mãe. Os seus irmãos procuraram-no no Hospital quando souberam do sucedido.
18. Trabalhava na construção civil, como pedreiro para M...A...C...; auferindo cerca de 600 euros por mês. Pagava 50 euros de renda pela casa onde vivia.
19. No EP recebe visitas do Sr. A... e dos tios.
20. Completou a 4ª classe com 30 anos.
21. O arguido, nas suas relações conjugais e afectivas, é muito controlador e ciumento. Tem uma auto-estima muito baixa.
22. Desde os 15 anos que o arguido apresenta cefaleias intensas, sendo submetido a acompanhamento clínico, tratamentos com antidepressivos e psicoterapia de apoio de modo a reforçar a sua auto-estima.
23. Tem sintomatologia depressiva: ao nível cognitivo tem uma visão negativa do próprio, da vida e do futuro, pensamentos com conteúdo recorrente e fixação em situações de vida do passado recente; ao nível afectivo e emocional apresenta embotamento afectivo com dificuldade em exteriorizar as emoções; e ao nível comportamental apresenta desmotivação que se traduz em tendência ao isolamento.
24. Revela fragilidade ao nível afectivo e emocional, não possuindo uma retaguarda familiar que constitua um suporte ou referência de apoio.
25. Casou a primeira vez com 21 anos, tendo estado casado durante 3 anos; dessa relação nasceu um filho com 11 anos de idade, que vive com a sua mãe. Foi a sua então mulher que o deixou.
26. Em 2005 voltou a casar com a M..., tendo estado casados cerca de um ano e meio. Também foi deixado pela sua então mulher.
27. Após o primeiro divorcio efectuou uma tentativa de suicídio, com remédio de escaravelho, sendo depois seguido em consultas de psiquiatria. Teve muitas dificuldades em esquecer a ex-mulher.
28. Apresenta fases depressivas de forma arrastada, com debilidade mental ligeira com alterações comportamentais diversas, que se expressam muitas vezes com agitação motora e agressividade.
29. Em 27.2.2008 foi a uma consulta no centro de saúde com queixas relativas a um desgosto amoroso.
30. É respeitado pelas pessoas que lhe são próximas, considerado como uma pessoa educado e trabalhador (muito embora o faça de forma irregular).
31. O arguido manifestou arrependimento pelos actos praticados.
32. O arguido, por factos ocorridos em 15.9.2000, foi condenado pela prática de um crime de ameaça, em pena de multa, por sentença proferida em 24.6.2000, transitada em julgado.

Do pedido de indemnização cível:
33. Em virtude dos factos praticados pelo arguido os demandantes ficaram numa situação de desespero, sofrimento e dor.
34. BB era a única filha da vítima, que por sua vez era filha de J...A... e CC.
35. CC vivia com a sua filha, BB, numa residência próxima da dos seus pais, a quem apoiava.
36. BB, após a morte da sua mãe, passou por dificuldades financeiras para pagar a renda da casa, tendo mudado para uma casa cuja renda era mais barata.
37. CC nasceu em 17.2.63 e faleceu no estado de divorciada.
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No nosso ordenamento jurídico o crime de homicídio qualificado não é um tipo legal autónomo, com elementos constitutivos específicos, constituindo antes uma forma agravada de homicídio (3) , em que a morte é produzida em circunstâncias reveladoras de especial censurabilidade ou perversidade (4).

A qualificação do homicídio assenta, pois, num especial tipo de culpa, num tipo de culpa agravado, traduzido num acentuado desvalor da atitude do agente, que tanto pode decorrer de um maior desvalor da acção, como de uma motivação especialmente reprovável (5).
Como refere Figueiredo Dias, o pensamento da lei é o de imputar à “especial censurabilidade” aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à “especial perversidade” aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas (6). Ou, como entende Teresa Serra, citando Sousa Brito, a especial censurabilidade refere-se às componentes da culpa relativas ao facto e a especial perversidade à atitude do agente (7).
No n.º 2 do artigo 132º indicam-se circunstâncias susceptíveis de revelar especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, elementos indiciadores da ocorrência de culpa relevante, cuja verificação, atenta a sua natureza indiciária, não implica, obviamente, a qualificação automática do homicídio, isto é, sem mais. Qualificação que, por outro lado, atenta a natureza exemplificativa das referidas circunstâncias, o que claramente resulta da letra da lei, concretamente da expressão entre outras (8) , pode decorrer da verificação de outras situações valorativamente análogas às descritas no texto legal (9), sendo certo, porém, que a ausência de qualquer das circunstâncias previstas nas alíneas a) a m) do n.º 2 do artigo 132º, constitui indício da inexistência de especial censurabilidade ou perversidade do agente, ou seja, indicia que o caso se deve subsumir no artigo 131º (homicídio simples) (10).
Tudo dependerá, como doutamente refere Figueiredo Dias (11), de uma imagem global do facto agravada que corresponda ao especial tipo de culpa que aqui se deve ter em conta. Tipo de culpa que, perante a inexistência de qualquer uma das circunstâncias previstas no texto legal, só se deve ter por verificado perante circunstâncias extraordinárias ou um conjunto de circunstâncias especiais (reveladoras da especial censurabilidade ou perversidade do agente), que exprimam um grau de gravidade e possuam uma estrutura valorativa correspondente à imagem de cada um dos exemplo-padrão enunciados no texto legal (12).

As circunstâncias em questão são, assim, não só um indício, mas também uma referência. Circunstâncias que, não fazendo parte do tipo objectivo de ilícito, se devem ter por verificadas a partir da situação tal qual ela foi representada pelo agente, perguntando se a situação, tal qual foi representada, corresponde a um exemplo-padrão ou a uma situação substancialmente análoga; e se, em caso afirmativo, se comprova uma especial censurabilidade ou perversidade do agente (13).

Entende o Magistrado recorrente que os factos perpetrados pelo arguido AA devem ser subsumidos à norma do artigo 132º, do Código Penal, sob a alegação de que aquele agiu por motivo fútil e com frieza de ânimo, tendo persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas, ou seja, por verificação das circunstâncias qualificativas previstas na parte final da alínea e) e na primeira e última partes da alínea j) do n.º 2 daquele artigo.
Vem provado que o arguido AA formou o propósito de tirar a vida à CC por não se haver conformado com o rompimento da relação de namoro existente entre ambos.
Sendo certo que a circunstância qualificativa prevista na parte final da alínea e) do n.º 2 do artigo 132º do Código Penal – motivo fútil – se destina a tutelar situações em que o agente se determina por mesquinhez, frivolidade ou insignificância, ou seja, por motivo gratuito (14) -, há que afastar liminarmente a sua verificação.
Por outro lado, apenas vem provado que o arguido AA, na sequência do termo da referida relação de namoro, o que sucedeu no dia 20 de Julho de 2008, por não se conformar com isso, formou o propósito de tirar a vida à CC, evento que veio a ocorrer na manhã do dia 22 de Julho de 2008.
Assim sendo, desconhecendo-se o momento em que o arguido formou a intenção de matar, também há que a afastar a verificação da circunstância qualificativa da premeditação, ou seja, da circunstância prevista na parte final da alínea j) do n.º 2 do artigo 132º do Código Penal.
Relativamente à circunstância frieza de ânimo, a qual se traduz numa actuação calculada, reflexiva, em que o agente toma a deliberação de matar e firma a sua vontade de modo frio, denotando sangue frio e alguma indiferença ou insensibilidade perante a vítima, ou seja, quando o agente, tendo oportunidade de reflectir sobre a sua intenção ou plano, ponderou a sua actuação, mostrando-se indiferente perante as consequências do seu acto (14), conquanto se reconheça que a mesma é susceptível de se mostrar objectivamente preenchida, face ao comportamento deliberado, aparentemente reflexivo, frio e persistente assumido pelo arguido, a verdade é que a conduta daquele terá de ser analisada e julgada, como atrás se deixou consignado, sem perder de vista a imagem global do facto.
Vem provado, também, que desde os 15 anos o arguido AA apresenta cefaleias intensas, sendo submetido a acompanhamento clínico, tratamentos com anti-depressivos e psicoterapia de apoio de modo a reforçar a sua auto-estima.
Tem sintomatologia depressiva: ao nível cognitivo tem uma visão negativa do próprio, da vida e do futuro, pensamentos com conteúdo recorrente e fixação em situações de vida do passado recente; ao nível afectivo e emocional apresenta embotamento afectivo com dificuldade em exteriorizar as emoções; e ao nível comportamental apresenta desmotivação que se traduz em tendência ao isolamento.
Revela fragilidade ao nível afectivo e emocional, não possuindo uma retaguarda familiar que constitua um suporte ou referência de apoio.
Apresenta fases depressivas de forma arrastada, com debilidade mental ligeira com alterações comportamentais diversas, que se expressam muitas vezes com agitação motora e agressividade.
Após o primeiro divorcio efectuou uma tentativa de suicídio, com remédio de escaravelho, sendo depois seguido em consultas de psiquiatria.
Depois de disparar contra CC disparou contra si, atingido o abdómen, tendo ficado caído sobre o corpo daquela.
O quadro factual transcrito revela-nos que o arguido é portador de anomia psíquica, caracterizada por fases depressivas, com debilidade mental ligeira e alterações comportamentais, que se expressam através de agitação motora e agressividade.
Apresenta fragilidades a nível afectivo e emocional.
Já tentou suicidar-se por duas vezes, a última das quais na sequência dos factos delituosos objecto dos autos.
Daqui decorre que o arguido AA, conquanto imputável, é portador de anomia que de algum modo afecta a sua capacidade de entender e de se determinar, circunstância que não pode deixar de influir no juízo de culpa sobre o seu comportamento delituoso, neutralizando a aparência calculista, reflexiva e insensível da conduta assumida, de forma a considerar-se por não verificada a ocorrência de frieza de ânimo, a significar que o crime efectivamente cometido é o do artigo 131º, do Código Penal (16) .
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Termos em que se acorda negar provimento ao recurso.
Sem tributação.
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Supremo Tribunal de Justiça, 6 de Janeiro de 2010
Oliveira Mendes (relator)
Maia Costa
_________________
(1) - Nos termos do artigo 380º, n.ºs 1, alínea b) e 2, do Código de Processo Penal, rectifica-se o acórdão impugnado, consignando-se que o crime de homicídio pelo qual o arguido foi condenado é o do artigo 131º, do Código Penal, e não o do artigo 132º, n.º 1, como do respectivo texto consta.

(2) - O texto que a seguir se transcreve corresponde integralmente ao do acórdão impugnado.

(3) Como refere Teresa Serra, Homicídio Qualificado Tipo de Culpa e Medida da Pena, 81, o homicídio qualificado é um caso especialmente grave de homicídio, pelo que é correcto afirmar que este caso especialmente grave está totalmente referido ao tipo de homicídio simples previsto no artigo 131º.
Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, 25, assume posição coincidente ao defender que o homicídio qualificado não é mais que uma forma agravada do homicídio simples previsto no artigo 131º.

(4) Sob a epígrafe de homicídio qualificado estabelece o n.º 1 do artigo 132º do Código Penal:
«Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos».

(5) - Neste sentido se pronuncia a doutrina mais representativa – entre outros, Figueiredo Dias, ibidem, I, 29, Teresa Serra, ibidem, 40, Augusto Silva Dias, Materiais para o estudo da Parte Especial do Direito Penal – Crimes contra a vida e a integridade física, 16/17, e Eduardo Correia que no seio da Comissão Revisora do Código Penal – Actas das Sessões Parte Especial, 25, referiu ter sido sempre sua intenção considerar as circunstâncias do n.º 2 do artigo 138º (actual artigo 132º) como simples elementos da culpa.
Em sentido não coincidente pronuncia-se, isoladamente, Fernanda Palma, ao defender que não se pode fundamentar um tipo qualificado unicamente com base num critério de culpa, devendo considerar-se um misto de ilicitude e de culpa – Direito penal, parte especial (crimes contra as pessoas), 44 e ss.

(6) - Ibidem, 29.

(7) - Ibidem, 64.

(8) - É do seguinte teor o corpo do n.º 2 do artigo 132º do Código Penal:
«É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:…».

(9) - Cf. Figueiredo Dias, ibidem, 26 e Teresa Serra, ibidem, 66/67.

(10) - Cf. Teresa Serra, ibidem, 71.

(11) - ibidem, 26.

(12) - Neste sentido Teresa Serra, ibidem, 71 e “Homicídios em série”, Jornadas sobre a revisão do Código Penal (1998), 135, segundo a qual a decisão do juiz terá de ser uma decisão vinculada, sendo que de outra forma o juiz deixará de ter critérios seguros na sua decisão, e esta passa a ser discricionária; se não se guiar pelos exemplo-padrão previstos na lei o juiz tenderá a guiar-se pelos seus próprios critérios do que seja censurabilidade ou perversidade. Estar-se-á então perante analogia aplicada à mais gravosa norma incriminadora prevista no Código Penal, o que seria inadmissível e, desde logo, inconstitucional, sendo certo que o princípio da legalidade vigora, não apenas para o pressuposto da ilicitude, mas para todos os pressupostos da punibilidade e para as próprias sanções jurídico-penais.

(13) - Cf. Figueiredo Dias, ibidem, 42/43

(14) Cf. Figueiredo Dias, ibidem, 32,bem como o acórdão deste Supremo Tribunal de 86.05.07, publicado no BMJ, 357/211.
Como se decidiu nos acórdãos deste Supremo Tribunal de 05.12.15 e de 07.10.18, motivo fútil é o motivo frívolo, leviano, irrelevante, a ninharia que leva o agente à prática do crime – Processos n.ºs 2978/05 e 2586/07.

(15) - Cf. Fernando Silva, Direito Penal Especial – Crimes Contra as Pessoas, 73.
Em sentido coincidente vem-se manifestando este Supremo Tribunal ao considerar que frieza de ânimo traduz a formação da vontade de praticar o acto de modo frio, reflexivo, cauteloso, calmo na preparação e execução, persistente na resolução – entre muitos outros, os acórdãos de 06.06.21, 07.09.26 e 08.11.12, proferidos nos Processos n.ºs 1913/06, 2591/07 e 2826/08, respectivamente

(16) - Em sentido coincidente, vejam-se os acórdãos deste Supremo Tribunal de 06.10.18 e de 09.02.18, proferidos nos Processos n.ºs 2679/06 e 3775/08.