Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | URBANO DIAS | ||
Descritores: | TESTAMENTO PER RELATIONEM | ||
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Nº do Documento: | SJ20070619018611 | ||
Data do Acordão: | 06/19/2007 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA | ||
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Sumário : | 1 – À luz do art. 2184º do CC, a parte complementar do testamento, no seu essencial, tem de constar do próprio testamento. As instruções ou recomendações só podem respeitar a aspectos já mais de execução. 2 – Não havendo o mínimo de concretização e na forma referida, a deixa em causa terá de ser considerada como nula. 3 – Por força do disposto no art. 2309º do CC, não pode arguir esta nulidade a pessoa interessada que, por qualquer forma, a tiver confirmado. Para tanto, importa averiguar se a mesma fez alguma declaração (expressa ou tácita) nesse sentido. Tal objectivo só de consegue se algo tiver sido alegado nesse sentido, ou através da invocação de comportamentos concludentes, de manifestações de vontade ou qualquer outro modo demonstrativo de conformação da sua vontade com a parte do testamento em causa. 4 – Decretada a nulidade da deixa, em obediência ao preceituado no art. 2184º do CC, abre-se em relação à mesma a respectiva sucessão. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I – Relatório AA intentou, no Tribunal Judicial de Braga, acção ordinária contra BB e CC, pedindo a declaração de nulidade do testamento outorgado porDD e a declaração de abertura da sucessão legítima em relação às jóias, bens de uso pessoal e bens móveis. Para o efeito alegou incapacidade mental da testadora, por um lado, e nulidade da deixa testamentária per relationem relativa às jóias, bens de uso pessoal e bens móveis, por outro. Os RR. contestaram, arguindo, desde logo, a sua ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário, e impugnaram parte da matéria vertida na petição. Na réplica, a A. contrariou a defesa excepcional dos RR.. À cautela, deduziu o incidente de intervenção principal de EE e FF. O incidente foi admitido, tendo os intervenientes, no respectivo articulado, seguido de perto a posição da A., e, outrossim, pedindo a declaração da nulidade da disposição testamentária per relationem com a consequente declaração de abertura da sucessão legítima em relação aos bens nela contemplada. Mais tarde vieram, ainda, a intervir TT, MT, e GF que declararam fazer seus os articulados dos RR.. O processo seguiu a sua tramitação normal até julgamento, após o qual foi proferida sentença a julgar improcedente a acção. Mediante apelação da A., acompanhada de dois agravos entretanto interpostos também por ela, a Relação de Guimarães, confirmou o sentenciado na 1ª instância. Ainda irressignada a A. pede revista do aresto proferido a coberto de seguinte discurso conclusivo: 1 -DD fez testamento cerrado que foi aprovado pelo 2° Cartório Notarial de Braga, em 24 de Maio de 2001, e faleceu no dia 29 de Abril de 2002, pelas 7 horas e 30 minutos. 2 -DD, adiante designada por testadora, quando fez o testamento cerrado tinha 76 anos e 10 meses de idade e faleceu com 78 anos de idade. 3 - A testadora era irmã da mãe da A. e do R. CC, aqui recorrente e recorrido, respectivamente. 4 - A testadora no seu testamento cerrado nomeou BB e CC como testamenteiros, ficando em 1º e em 2° lugares, respectivamente, e instituiu herdeiro do remanescente o sobrinho CC , testamenteiro nomeado em 2° lugar. 5 - A testadora disse no seu testamento cerrado, quanto às jóias e objectos de uso pessoal (de valor elevado) bem como aos móveis existentes na sua residência ou noutro local, à hora do seu falecimento, que: “Serão distribuídos pelas pessoas que deixo indicadas numas cartas por mim manuscritas, datadas e assinadas com data deste testamento”, isto é, com data de 24.05.2001. 6 - Segundo informação dada pelo 2° R., ora recorrido, à A., ora recorrente, a testadora não deixou nenhumas cartas manuscritas, datadas e assinadas com data de 24.05.2001, conforme mencionou no seu testamento e ficou provado na audiência de julgamento que não existiam tais cartas com data de 24.05.2001, mas apareceram cartas com datas de 22.04.1996 e 22.06.2000 que eram referidas noutros testamentos que foram revogados. 7 - Nos termos do art. 2184° do CC – testamento per relationem – a deixa testamentária relativa às jóias, bens de uso pessoal e móveis existentes na sua residência ou noutro local à hora do falecimento da testadora é nula por não existirem nenhumas cartas manuscritas assinadas e datadas com a data do testamento de 24 de Maio de 2000. 8 - Ficou provado no processo que a testadora após ter ficado viúva, em 1999, passou a auto medicamentar-se com sedativos e anti-depressivos, tendo sido internada entre 29/10/99 a 9/11/99 na Clínica de Santa Catarina, no Porto, estabelecimento para doenças mentais, em 09.12.2001 foi internada na Clínica Médica de Santa Tecla, em Braga, estando aí internada até 14.01.2002 e em 24 de Março de 2002 foi internada na Ordem Terceira. 9 - Não ficou provado o nº 20 dos factos a provar, isto é, que a testadora quisesse ou que fosse a sua última vontade que outras cartas, designadamente as cartas de 22.04.1996 ou de 22.06.2000, substituíssem as cartas por ela mencionadas com data “deste testamento”, de 24.05.2001. 10 - A testadora fez legado de uma parte de um prédio, de que era comproprietária com outros familiares, dizendo que o valor da sua parte, após a sua morte, seria a dividir em partes iguais pela recorrente e seu irmão CC, ora recorrido, mas ainda em vida da testadora esse prédio foi vendido por esta e a sua parte do preço foi recebido pela testadora. Assim, 11 - O legado referido no nº 10 destas conclusões deixou de existir por ter deixado de existir o objecto do legado e a testadora não disse que deixava o dinheiro que recebeu correspondente à sua parte do prédio que foi vendido. 12 - Ficou provado que esse prédio referido no nº 10 destas alegações foi vendido pelo preço “verdadeiro” de 40.000.000$00 e não pelo preço de 60.000.000$00 que consta na escritura e que é simulado. 13 - A Recorrente requereu que a alínea I) dos factos provados fosse rectificado, sendo o preço de 40.000.000$00 aí colocado, pois o preço que nessa alínea constava de 60.000.000$00 era o preço simulado, conforme requerimento da recorrente, admitido pelos recorridos, que o não contestaram. 14 - A sentença e o acórdão recorridos não podem ignorar o preço simulado e devia ter rectificado porque lhe foi dado a conhecer o preço verdadeiro e esse facto lhe foi requerido. 15 - O nº 17 dos factos a provar está mal formulado porque não se pode dar cumprimento à distribuição de bens ou valores que à morte da testadora já não existem e o Tribunal tinha conhecimento desse facto que o prédio já tinha sido vendido em vida da testadora e, por isso, esta formulação do nº 17 é contrária à lei. 16 - A recorrente requereu o depoimento de parte do R. CC a factos que lhe foram desfavoráveis o que lhe foi negado, tendo interposto recurso de agravo desse despacho. 17 - Nos termos do art. 2184° do C. Civil, o testamento “per relationem” é nulo por não existirem as cartas manuscritas, assinadas e datadas com data deste testamento de 24.05.2001. 18 - Os bens mencionados no testamento “per relationem” são relegados do testamento e devem entrar na sucessão legítima, devendo ser distribuídos pelos herdeiros legítimos da testadora. 19 - O acórdão recorrido é um acórdão contra a lei porque violou o art. 2184° do C. Civil e, ainda, as als. b) e c) do nº 1 do art. 668° do CPC, em que a decisão está contrária aos factos dados como provados e não provados, havendo, por isso, contradição com os seus fundamentos, devendo ser revogado e substituído por outro que considere o testamento “per relationem” nulo, dando-se, em consequência, provimento ao presente recurso de revista. Os recorrentes responderam em defesa da manutenção do acórdão impugnado. II – As instâncias fixaram o seguinte quadro factual: 1º-DD, nascida a 3/07/1924, faleceu no dia 29/04/02, no seu domicílio no lugar de Outeiro, freguesia de Adaúfe, Braga. 2º-DD deixou testamento cerrado que fez e foi aprovado pelo Segundo Cartório Notarial de Braga no dia 24/05/2001. 3º- No referido testamento, DD declarou (além do mais) o seguinte: A – lego ao meu sobrinho CC o usufruto vitalício de todas as minhas propriedades sitas no lugar do Outeiro, freguesia de Adaúfe (Quinta de Santa Rita), onde actualmente resido; B – lego aos meus segundos sobrinhos TT e MT, a raiz da acima referida minha propriedade; C – lego o meu jazigo designado pelo nº 57 da 1ª secção do Cemitério Municipal de Monte de Arcos, da cidade de Braga, a meu sobrinho por afinidade BB; D – lego à Casa do Gaiato, de Paço de Sousa, a quantia de dois mil contos; E – lego a minha prima GF, o direito de habitação de uma dependência que mandei construir na minha referida propriedade sita no Lugar do Outeiro (Quinta de Santa Rita) com direito de uso de todo o seu recheio; F – lego a parte que me pertence do prédio urbano sito na Avenida Central nº 114 e 116 de polícia, da cidade de Braga, aos meus sobrinhos CC e irmã MB; G – as minhas jóias, objectos de uso pessoal, bem como os móveis existentes na minha actual residência ou outro local à hora do meu falecimento, serão distribuídos pelas pessoas que deixo indicadas numas cartas por mim manuscritas, datadas e assinadas, na data deste testamento; H – instituo herdeiro do remanescente da minha herança meu sobrinho CC, acima referido com a expressa obrigação de mandar proceder ao meu funeral de acordo com as instruções numa carta, com data deste testamento, que por escrito indico e que estão junto deste testamento; I – nomeio testamenteiro, em primeiro lugar, o meu sobrinho por afinidade BB e, em segundo lugar, o meu sobrinho CC, meu herdeiro; J – revogo qualquer outro testamento com data anterior; 4º- DD não deixou cartas manuscritas, datadas e assinadas com data de 24/05/01. 5º- DD deixou cartas manuscritas com data de 22/04/1996. 6º- No dia do seu falecimento, DD encontrava-se na Casa da Quinta de Santa Rita, acompanhada da empregada ..., que lhe assistiu à morte. 7º- O R. CC encontrou, dentro do cofre existente na Casa da Quinta de Santa Rita, o testamento referido no anterior facto 3º, tendo junto instruções para realização do funeral e ainda, em invólucro fechado, cartas referidas no anterior número 5º. 8º- Outras das cartas referidas no anterior número 5º foram encontradas, em invólucro fechado, na gaveta de uma mesinha de cabeceira de quarto da Casa de Santa Rita, quarto de dormir da DD, juntas com a chave do cofre referido no anterior número. 9º- Junto das cartas referidas, encontrava-se outra, manuscrita pela DD e com data de 22/06/00, em que ela refere doar a ...o seu automóvel Ford Escort, 25-69-FG. 10º- Numa das referidas cartas, dirigida ao R. CC e sua esposa, DD declara: “a imagem de S. Bento não é minha. É da Dina” (diminutivo familiar pelo qual era conhecida a irmã, GA). 11º- Noutra das referidas cartas dirigida ao R. CC e esposa, a DD indica-lhe para entregar a MM e à mulher deste um contador antigo que estava na entrada, que pertencia a seu falecido marido MB, e um “par de botões de punho em ouro e brilhantes que ofereceram quando o MB fez 80 anos”. 12º- Noutra das referidas cartas juntas com o seu testamento dirigida ao R. CC e esposa, DD pede que “os móveis não saiam desta casa Quinta de Santa Rita e ficam aqui sem repartição”, fazendo também referência, na mesma carta, à mesa de trabalho de seu pai, que pretende fique em Adaúfe. 13º- Com todas as pessoas nomeadas nas cartas encontradas junto do testamento da DD, manteve ela até à hora da morte relações pessoais, assim com as manteve durante os anos precedentes. 14º- Não constam das cartas referidas os intervenientes EE e FF. 15º- DD outorgou no Cartório Notarial de Braga, em 22/05/96, instrumento de aprovação de testamento cerrado. 16º- No testamento referido no anterior número, DD deixou parte do terreno da Quinta de Santa Rita a uma empregada de nome Glória, que esteve ao seu serviço e de seu marido durante anos. 17º- Na altura em que fez o testamento referido nas anteriores alíneas, DD escreveu à mão e assinou as cartas referidas no anterior nº 5. 18º- Por divergências com a DD, a Glória deixou de lhe prestar serviço. 19º- Perante essa ruptura, DD sentiu necessidade de revogar o testamento em que beneficiava e fazer um novo, fazendo o testamento referido no anterior nº 3. 20º- O testamento referido nos anteriores nºs 16º e 17º não apareceu. 21º- As disposições de DD sobre as jóias, objectos e uso pessoal e móveis não abrangeram a totalidade desses seus bens. 22º- DD esteve internada desde 29/10/99 a 9/11/99 na Clínica de Santa Catarina, no Porto, estabelecimento para doenças mentais. 23º- Em 9/12/2001 foi internada na Clínica Médica de Santa Tecla, em Braga, tendo estado aí internada até 14/01/02. 24º- Em 24 de Março de 2002 foi internada na Ordem da Trindade. 25º- Desde 1999 e até à sua morte a DD tomava medicamentos prescritos pelos médicos. 26º- Em escrito particular de 12/12/01, DD, GA, CC e esposa, AT, MB, EE e FF e esposa, MF, declarando serem os herdeiros, com exclusão de outrem, de MA, estando a herança desta ainda não partilhada, dela fazendo parte o prédio urbano sito na Av. Central, nº 114, cidade de Braga, declararam prometer vender à sociedade Estima – Sociedade Imobiliária, Lda., representada pelo gerente GG, o referido prédio, tendo a referida sociedade declarado prometer comprar, pelo preço de 60.000.000$00, pago de uma só vez, no acto da assinatura de tal acordo, devendo a escritura correspondente ao negócio prometido ser celebrado no prazo de um ano. 27º- O preço foi totalmente pago no acto da assinatura do escrito referido, tendo a DD recebido a parte que lhe cabia. 28º- Em instrumento outorgado em 25/01/02 no Terceiro Cartório Notarial de Braga, DD declarou constituir seu bastante procurador GG, conferindo-lhe os poderes necessários para prometer vender e vender, com os demais interessados, herdeiros ou comproprietários, pelo preço e condições que entender, o prédio urbano sito na Av. Central, nº 114, Braga, podendo outorgar as respectivas escrituras, mais declarando ser tal procuração conferida no interesse do mandatário e irrevogável, não caducando os poderes conferidos por morte, interdição ou inabilitação dos outorgantes, podendo os referidos poderes ser exercidos na celebração de negócio consigo mesmo. 29º- Em instrumento outorgado no dia 6/02/02 no Primeiro Cartório Notarial de Competência Especializada de Lisboa, AA declarou constituir seu bastante procurador GG, conferindo-lhe os poderes necessários para prometer vender e vender, com os demais interessados ou co-herdeiros, pelo preço e condições que entender por convenientes, o prédio urbano sito na Av. Central, nº 114, Braga, podendo receber os preços, dar quitações, outorgar as respectivas escrituras, mais declarando ser tal procuração passada para o mandatário celebrar negócio consigo mesmo, sendo ela conferida no interesse do mandatário não podendo ser revogada sem o seu acordo. 30º- Em escritura pública outorgada no Segundo Cartório Notarial de Famalicão no dia 7/05/02, GG, outorgando na qualidade de procurador de GA, de DD , FF, EE, AA e CC, declarou vender a Estima – Sociedade Imobiliária, Lda., que declarou comprar, o prédio urbano sito na Av. Central, nº 114 a 116, Braga, pelo preço de 299.278,74 €. 31º- Em 8/05/02, o R. CC habilitou a A. com uma fotocópia do testamento referido no anterior facto 3º e respectiva abertura notarial. 32º- O R. CC, para dar cumprimento ao testamento referido no anterior nº 3, f), disponibilizou à A., através de cheque emitido a seu favor em 8/05/02, metade do preço recebido pela DD na venda referida nos anteriores números alíneas 27º a 30º. 33º- A A. fez seu o montante do referido cheque sem qualquer reserva. 34º- A DD e as pessoas referidas no anterior nº 15º (os intervenientes EE e FF) não se visitavam mutuamente, resumindo-se as suas relações a telefonemas por ocasião do Natal. III – Quid iuris? No início da sua peça alegatória, a recorrente teve oportunidade de limitar o âmbito de recurso à parte do testamento per relationem. Pormenor que passou despercebido aos recorridos que se aprestaram ab initio a defender a manutenção do acórdão impugnado precisamente pelo ponto que foi abandonado nesta sede pela recorrente, o relativo à invocada sanidade mental da testadora. Esclarecido este ponto, importa analisar o mérito do recurso à luz das questões contidas nas conclusões apresentadas pela recorrente e com as quais fechou a sua minuta de recurso. E neste aspecto temos de dizer que as questões suscitadas e que podem e devem ser aqui apreciadas são apenas as que dizem respeito às arguidas nulidades da decisão impugnada e ao mérito da mesma no que tange à interpretação e aplicação do art. 2184º do CC. Tudo o mais nelas referido diz respeito a algo que escapa à cognição deste STJ (cfr. art. 721º, nºs 1 e 2, do CPC). Logicamente a nossa análise começa pelas invocadas nulidades de decisão: assim o impõe o nº 1 do art. 660º, ex vi arts. 713º e 726º, todos do CPC. A primeira nulidade invocada é a que está prevista na al. b), do nº 1, do art. 668º do CPC. De acordo como este preceito legal, a decisão é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão. A irregularidade prende-se aqui com o dever imposto ao julgador de motivar as suas decisões (cfr. art. 659º, nº 2, 713º, nº 2 e 726º, todos do CPC). Mas uma coisa é falta absoluta de motivação (caso em que, na verdade, ocorre a nulidade em apreciação), outra, bem diferente, é a fundamentação medíocre ou insuficiente. Esta afecta apenas o valor doutrinal da decisão, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada em sede de recurso, mas não produz nulidade (vide Alberto dos Reis in Código de Processo Civil anotado, Volume V, pág. 139 e 140, e Anselmo de Castro, in Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, pág. 141). O acórdão ora censurado limitou-se a aderir ao arrazoado da 1ª instância no que tange ao mérito da acção, ao abrigo do nº 5 do art. 713º do CPC. Como assim, para podermos dar resposta à questão, teremos de virar a nossa atenção para a argumentação da sentença proferida pelo Mº Juiz do Círculo de Braga. Lendo e relendo esta e tanto quanto nos é dado perceber do seu conteúdo, somos levados a concluir que, neste ponto concreto, a razão não está do lado da recorrente. Com efeito, o Mº Juiz para chegar à conclusão de que a pretensão da recorrente não podia proceder lançou mão do material fáctico apurado e dele partiu para, interpretando os preceitos que convocou, maxime os arts. 2309º e 2184º do CC, concluir que a A. não confirmou a disposição per relationem, mas que confirmou o testamento no seu todo e, por isso, não podia fazer-se valer da nulidade invocada. E, em reforço da ideia defendida, deixou escrito que “os documentos ressalvados no art. 2184º do CC só são relevantes para completar a disposição testamentária e para desta forma passarem a ser sua parte integrante quando se destinem a dar executoriedade àquela vontade já declarada no texto do testamento ou para determinar aquilo que no testamento foi declarado de forma tão somente determinável”. E, por via deste raciocínio, finalizou: “apurar da validade ou invalidade da referida deixa testamentária depende da prévia interpretação do testamento, buscando-se assim o que esse testamento, ônticamente, está destinado a conter – a vontade do testador”. No fundo, foi com esta base argumentativa que o Mº Juiz do Círculo de Braga chegou à conclusão de que não havia razão para que o testamento tivesse sido posto em crise no seu todo, acabando por julgar in totum improcedente a pretensão da A.. Feita esta resenha do julgado, fácil é concluir que a referida nulidade estribada na falta de fundamentação, quer de facto, quer de direito, não tem cabimento. O que pode acontecer – a ver vamos… – é outra cousa, bem diferente da nulidade da decisão, é a decisão estar errada. A outra nulidade arguida pela recorrente tem a ver com alegada contradição entre a decisão e a fundamentação e encontra guarida na al. c), do nº 1, do art. 668º, do CPC. Para que com legitimidade se possa falar de contradição entre os fundamentos e a decisão é mister que a construção da sentença seja viciosa, “pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto” (ainda Alberto dos Reis, obra citada, pág. 141). No fundo, a contradição entre os fundamentos e a decisão acaba por redundar em falta de fundamentação, como lucidamente nota Anselmo de Castro (obra citada, pág. 142). O que ficou dito a propósito da nulidade da al. b) permite intuir que, também neste ponto, a razão não está do lado da recorrente. De qualquer forma, não deixa de ser despiciendo frisar que a decisão seguiu um caminho lógico: não havia razão para decretar a nulidade do testamento, a recorrente tinha inclusive confirmado o testamento no seu todo, as cartas juntas, embora anteriores ao testamento, são elementos interpretativos deste, e, tudo isto, a apontar para a validade total do testamento. A fundamentação espelhada na decisão tem lógica. Resta saber se a sua lógica obedece aos ditames da Lógica. Posto isto, é altura de nos debruçarmos sobre a parte nobre do recurso, saber se a A.-recorrente tem razão na sua pretensão no que tange à cláusula per relationem. Relembremos que o que está verdadeiramente em causa é a parte do testamento em que a testadora deixou escrito “as minhas jóias, objectos de uso pessoal, bem como os móveis existentes na minha actual residência ou outro local à hora do meu falecimento, serão distribuídas pelas pessoas que deixo indicadas numas cartas por mim manuscritas, datadas e assinadas com data deste testamento”. A este respeito prescreve o art. 2184º, do CC: “É nula a disposição que dependa de instruções ou recomendações feitas a outrem secretamente, ou se reporte a documentos não autênticos, ou não escritos e assinados pelo testador com data anterior à data do testamento ou contemporânea desta”. Uma leitura minimamente atenta deste dispositivo legal permite, desde já, concluir que o ponto do testamento posto em crise não pode, de forma alguma, ser considerado como válido pela singela razão de que não foram encontradas cartas nas condições referidas no próprio testamento. As cartas que serviram de suporte às decisões das instâncias são de data anterior à feitura do testamento, facto este suficiente para determinar a invalidade da parte do testamento em causa, como doutamente é salientado no Parecer junto da autoria do Professor Doutor Oliveira Ascensão. Id est, a remissão que a testadora fez para cartas contemporâneas do testamento não foram encontradas, facto que permite dizer que a referida deixa ficou sem qualquer suporte fáctico de apoio, ficou incompleta, ficou, em suma, sem objecto. E não se diga que a testadora teve em mente, no momento em que lavrou o testamento, as ditas cartas que foram encontradas de data anterior à da feitura do mesmo, que era a elas que se queria referir, em suma. Na verdade, a precisão da cláusula em apreço (“serão distribuídas pelas pessoas que deixo indicadas numas cartas por mim manuscritas, datadas e assinadas com data deste testamento”) permite antes concluir que a intenção da testadora era, através de cartas por si assinadas e com aquela mesma data, dar destino às suas jóias, objectos de uso pessoal e móveis encontrados na sua residência à data da sua morte. Ou seja, através de cartas escritas no próprio dia em que outorgou o testamento daria ela destino a tais bens. A testadora apontou nitidamente para uma data: deixou bem expresso que, na mesma data (concretamente, em 24/05/2001), disporia de tais bens móveis, distribuindo-os (“pelas pessoas que deixo indicadas numas cartas por mim assinadas na data deste testamento”). Não atender a este pormenor deveras importante da data das cartas indicativas da distribuição de tais bens representaria não respeitar a vontade da testadora. Na interpretação dos testamentos a lei manda observar a vontade real do autor do testamento e, para isso, há que encontrar no texto “não o sentido mais conforme à expectativa de cada chamado, mas a mais próxima da vontade aparente do de cuius” (assim, Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume VI, pág. 304). Aqui, na interpretação dos testamentos, “vale a teoria segundo a qual a interpretação tem por escopo a descoberta da verdadeira, real intenção do testador (apud Erro e Interpretação Na Teoria do Negócio Jurídico, de Ferrer Correia, pág. 305). Não se ignora que na pesquisa da vontade do testador “é admitido o recurso à chamada prova complementar ou extrínseca, isto é, a elementos ou circunstâncias estranhas aos termos do testamento”, mas a mesma, para poder ser considerada há-de ter o mínimo de correspondência com a vontade do testador expressa, tal como determina o nº 2 do art. 2187º do CC (vide, v.g., Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, pág. 424). Precisamente porque temos presentes todos estes ensinamentos doutrinais é que somos levados a concluir que, face à matéria de facto dada como provada, nada permite que seja feita interpretação diferente da cláusula já assinalada. Repete-se a ideia: a testadora deixou claro que o destino a dar às suas jóias, objectos de uso pessoal e móveis encontrados na sua residência seria concretizado através de cartas por ela manuscritas e com a data daquele testamento. Mas há mais a dizer. Centremos, mais uma vez, a nossa atenção no art. 2184º do CC. Vistas bem as cousas, compreende-se a exigência nele contida em relação aos aspectos formais: sendo o testamento “o negócio jurídico por excelência, porque é aquele em que a vontade do autor atinge o máximo da possível relevância, o mesmo tem de ser formal a fim de “garantir a genuinidade daquela vontade” (Oliveira Ascensão, A Teoria Geral do Negócio Jurídico e o Negócio Testamentário, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, pág. 873 e 878). A parte complementar do testamento, no seu essencial, tem de constar do próprio testamento, sob pena de violação não da letra mas do espírito do citado artigo. De acordo com a lição de Oliveira Ascensão, “as instruções ou recomendações só podem respeitar a aspectos já mais de execução”. E em reforço da sua argumentação não deixa este A. de trazer à colação, por via analógica, o nº 1, do art. 2182º do CC – “dele resulta que têm de constar da própria disposição a instituição de herdeiros ou a nomeação de legatários, o objecto da disposição e o carácter vinculativo desta”, e, como assim, “…não poderão estes aspectos deixar de constar da declaração testamentária de vontade, nos termos do art. 2184º” (in Direito Civil Sucessões, pág. 66). À luz das considerações acabadas de referir a cláusula testamentária em apreciação também é nula. Com efeito, ela não se limita a ser o “passaporte” para a execução de instruções, ela atira para documentos exteriores a expressão da vontade da sua autora, quer quanto à indicação precisa dos bens, quer quanto à instituição de herdeiros ou nomeação de legatários. Aceitar a mesma “deixa” como válida seria desvirtuar a natureza formal do testamento que o legislador teve em mente pelas razões assinaladas. A respeito das ditas cartas encontradas aquando do falecimento da testadora (datadas de 22.04.1996 e 22.06.2000) importa, ainda, dizer, para completa clarificação, que nas mesmas não é feita a mínima referência ao destino das jóias, objectos de uso pessoal e móveis da residência, como resulta dos factos supra elencados nos nºs 7, 8, 9, 10, 11 e 12. Ademais, não ficou provado que a testadora tivesse querido como manifestação de última vontade que outras cartas, designadamente as referidas, datadas de 22.04.1996 e de 22.06.2000, substituíssem as cartas por ela mencionadas com a “data deste testamento”, ou seja com a data de 24.05.2001, como resulta da resposta dada ao quesito 20º da base instrutória. Em suma, podemos, agora, dizer que para que as ditas cartas, as cartas “datadas e assinadas na data deste testamento”, pudessem ser consideradas como manifestação de vontade da testadora era necessário que elas existissem, que tivessem aparecido. Sabe-se que não apareceram. Sem elas, a “deixa” per relationem fica sem suporte, sem objecto, como já foi salientado. A terem aparecido, teria a “deixa” em causa, para ser considerada, de obedecer à forma do testamento e conter “o mínimo de concretização, sob pena de serem consideradas nulas à luz do critério do art. 2184º do CC. As outras cartas aparecidos à data da morte da testadora nunca poderiam ser consideradas como “passaportes” da sua vontade não só pelo facto de nada apontar para o respeito da mesma com referência a cartas com datas anteriores, mas também por as mesmas não conterem referências que permitissem ir de encontro daquela mesma vontade de distribuição de bens. Usando a terminologia de Oliveira Ascensão, a relevância da dita “deixa” teria de ser vista não só positivamente, o que equivale por dizer que o próprio testamento tinha de lhe fazer uma expressa referência, não sendo legítimo procurar chegar à vontade do testador através de elementos que não tenham o mínimo de correspondência com aquela (“não há vontade, por mais categórica que aparente ser, que se possa impor do exterior do negócio testamentário”). Mas não só: teria de ter o mínimo de concretização nos elementos exteriores ao testamento (relevância negativa da vontade do testador). Nada disso aconteceu – as cartas juntas (cujas datas não coincidem com a do testamento) nada dizem de concreto sobre o destino “das minhas jóias, objectos de uso pessoal, bens como móveis existentes na minha actual residência ou noutro local à hora do meu falecimento”, e, como tais, não podem deixar de ser consideradas irrelevantes (vide A Teoria Geral do Negócio Jurídico e o Negócio Testamentário, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, pág. 877 e ss.). Por todas as razões referidas, a solução a dar a essa “deixa testamentária” não pode ser outra que não seja a de decretar a sua nulidade, por força do já referido art. 2184º do CC. E aqui chegados, uma outra questão se nos depara, qual seja a de saber quais as verdadeiras consequências de tal decretamento. Debrucemos, pois, a nossa atenção para este (importante) ponto. De acordo com a máxima “utile per inutile non viciatur” que mereceu consagração no art. 292º do CC – “a nulidade ou anulação parcial não determina a invalidade de todo o negócio, salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada” – a parte da deixa testamentária que é nula não tem a virtualidade de determinar a nulidade de todo o testamento. Vigora aqui o princípio do favor testamenti, tal como em relação a todos os outros negócios jurídicos. “Mas manifesta-se aqui com particular vigor, por o testamento ser acto irrepetível e haver que respeitar quanto possível a última vontade do seu autor” (assim, Oliveira Ascensão in Direito Civil Sucessões – 5ª edição -, pág. 298). Verdade se diga que as partes nunca manifestaram ao longo de todo o processo a ideia de anulação de todo testamento ou, melhor dito, nunca defenderam a ideia de que a validade do testamento estava dependente da validade da “deixa” referente às jóias, pertenças pessoais e móveis da residência da testadora. Dito isto, limitamos, em definitivo, a parte malsã do testamento. É em relação a ela que devemos, então, colocar (apenas e só) a questão da legitimidade da A. para arguir a nulidade em causa, atenta a regra do art. 2309º do CC – “não pode prevalecer-se da nulidade ou anulabilidade do testamento ou da disposição testamentária aquele que a tiver confirmado”. Naturalmente que é importante saber se a A. confirmou a “deixa”. Por via de tal averiguação ficaremos a saber da sua legitimidade para arguir a nulidade da mesma, tendo em devida conta a doutrina consagrada no já referido art. 2309º do CC. Para alcançarmos tal desideratum importa saber se ela fez alguma declaração expressa ou tácita nesse sentido: as declarações negociais podem manifestar-se através das formas referidas (cfr. art. 217º, nº 1 do CC). Tal objectivo só se alcançaria se algo tivesse sido alegado (pela Defesa, evidentemente) nesse sentido, ou através da invocação de comportamentos concludentes, de manifestações indicadoras de vontade, ou qualquer outro modo demonstrativo de conformação da sua vontade com a parte do testamento em causa, aceitando uma ou outra coisa, por exemplo (neste, por exemplo, Heinrich Ewald Horster, in A Parte Geral Do Código Civil Português – Teoria Geral do Direito Civil – pág. 596). Entende-se que são factos concludentes “todos aqueles nos quais se possa apoiar uma ilação para se constituir o significado do comportamento, sendo este o resultado da ilação” (cfr. Paulo Mota Pinto, in Declaração e Comportamento Concludente No Negócio Jurídico, pág. 892). Mas nada consta nos autos neste sentido, no sentido de a A. ter confirmado a tal parte viciada do testamento por qualquer uma das formas referidas. A essa conclusão chegaram, aliás, as instâncias: “a autora não confirmou a disposição testamentária per relationem constante do testamento”. Tanto basta para afastar qualquer impedimento em relação à A.-recorrente em fazer invocar, como invocou, a nulidade referida. E aqui chegados, estamos em condições de responder à tal derradeira questão, a relativa às consequências da nulidade decretada. Neste ponto a nossa tarefa está deveras facilitada. Na verdade, encontramos a resposta no douto Parecer junto, para o qual, data venia, remetemos: “… A questão reconduz-se a parte dos bens – os referidos móveis. Em relação a eles, não houve disposição válida e eficaz. … Abre-se portanto, nesta parte, a sucessão legítima. A abertura da sucessão legítima tem todas as consequências que lhe são próprias, e nomeadamente a atribuição da qualidade de herdeiro aos sucessíveis prioritários que foram chamados e aceitaram”. É o que terá de acontecer: em relação aos bens móveis em causa – joías e outros – abre-se a sucessão legítima. A testadora deixou apenas herdeiros legítimos: serão eles, todos eles, os chamados a partilhar esse naco da herança. A A. pediu na sua petição que o testamento fosse declarado nulo por força da incapacidade mental da testadora. Subsidiariamente, pediu a declaração da nulidade da disposição per relationem relativa às jóias, bens pessoais e bens móveis e a consequente declaração de abertura da sucessão legítima em relação a tais bens. No âmbito da revista, como ficou dito, restringiu a sua pretensão ao pedido subsidiário. Este, como se demonstrou tem necessariamente que proceder, impondo-se a revogação do aresto da Relação de Guimarães. IV – Decisão Em conformidade com o exposto e sem necessidade de qualquer outra consideração, concede-se a revista e condenam-se os recorridos e os intervenientes que os acompanharam, tanto aqui como nas instâncias, no pagamento das respectivas custas. Lisboa, aos 19 de Junho de 2007 Urbano Dias Paulo Sá Faria Antunes |