Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2545/18.7T8VNG.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: ROSA TCHING
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
DANO BIOLÓGICO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
PROPOSTA RAZOÁVEL
EQUIDADE
Data do Acordão: 01/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : I. A compensação do dano biológico tem como base e fundamento a perda ou diminuição de capacidades funcionais que, mesmo não importando perda ou redução da capacidade para o exercício profissional da atividade habitual do lesado, impliquem ainda assim um maior esforço no exercício dessa atividade e/ou a supressão ou restrição de outras oportunidades profissionais ou de índole pessoal, no decurso do tempo de vida expectável, mesmo fora do quadro da sua profissão habitual.

II. Neste campo, relevam apenas e tão só as implicações de alcance económico e já não as respeitantes a outras incidências no espetro da qualidade de vida, mas sem um alcance dessa natureza.

III. A indemnização deste dano biológico não deve ser calculada com base nas tabelas financeiras na medida em que o sobredito défice funcional genérico não implica incapacidade parcial permanente para o exercício dessa atividade, envolvendo apenas esforços suplementares.

IV. E também não deve ser fixada com recurso às tabelas estabelecidas para efeitos de apresentação aos lesados de proposta razoável de indemnização, nos termos do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21.08, por estas se destinarem a ser aplicadas na esfera extrajudicial, não sendo lícita a sua sobreposição ao critério legal da equidade previsto no artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil.

V. Neste tipo de situações, a solução seguida pela jurisprudência deste Supremo Tribunal é a de fixar um montante indemnizatório por via da equidade, ao abrigo do disposto no artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil, em função das circunstâncias concretas de cada caso, segundo os padrões que têm vindo a ser delineados, atentos os graus de gravidade das lesões sofridas e do seu impacto na capacidade económica do lesado, considerando quer as suas potencialidades de aumento de ganho quer uma expetativa de vida ativa não confinada à idade-limite para a reforma.

VI. Tendo o lesado, à data do acidente com 32 anos de idade, ficado a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 4 pontos, sendo as sequelas em termos de repercussão permanente na atividade profissional compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicando ligeiros esforços suplementares nomeadamente nas tarefas que obriguem à permanência em pé durante períodos prolongados, quer parado quer em marcha ou a subir e descer muitas escadas, afigura-se justa e equitativa a quantia de € 20.000,00 fixada no acórdão recorrido como valor indemnizatório pela perda da capacidade geral do lesado.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL


***



I. Relatório

1. AA instaurou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra “Seguradoras Unidas, S.A.”, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe, a título de indemnização pelos danos por ele sofridos em consequência do seu atropelamento pelo veículo seguro na ré, a quantia de 162.557,42 Euros,  acrescida dos juros de mora, calculados no dobro da taxa legal nos termos do disposto nos n. 2 dos artigos 38.º e 39.º do DL 291/2007 desde a data da citação até efetivo e integral pagamento, bem como na indemnização que, por força dos factos alegados nos artigos 116.º a 120.º e 124.º a 134.º deste articulado vier a ser fixada em momento ulterior.

2. Citada, contestou a ré, assumindo a responsabilidade pelo pagamento dos danos emergentes do acidente para o autor, mas impugnando parcialmente os danos por ele alegados bem como os respetivos montantes.

3. Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador, identificado o objeto do litígio e elencados os temas da prova.

4. Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença  que julgou a presente ação parcialmente procedente e, em consequência, condenou a ré Seguradoras Unidas, S.A. a pagar ao autor AA a quantia global de € 50.118,40, acrescida de juros à taxa de 4% desde a citação e até integral pagamento, e tudo o que se vier a liquidar em execução de sentença e que seja consequência de extração cirúrgica de material de osteossíntese, absolvendo a ré da parte sobrante do pedido.


5. Inconformados com esta decisão, dela apelaram o autor e a ré para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão proferido em 11.05.2020, julgou totalmente improcedente o recurso interposto pelo autor e parcialmente procedente o recurso interposto pela ré e, revogando parcialmente a decisão recorrida, fixou em € 20.000,00 o valor indemnizatório devido ao autor pelo dano biológico consubstanciado no défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de que o mesmo ficou a padecer em consequência do atropelamento de que foi vítima. Em tudo o mais manteve a decisão recorrida.


 6.  Inconformado com este acórdão, o autor dele interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«1. O recurso ora interposto do douto acórdão proferido é apresentado na firme convicção de que a matéria de facto apurada nestes autos impunha ao Tribunal a quo a adopção de uma decisão diferente da seguida, especificamente, quanto ao dano biológico.

2. A indemnização aqui em discussão foi estabelecida com recurso à equidade, pelo o que se pretende, desde logo, é que este Supremo Tribunal verifique se os critérios utilizados no acórdão em crise se encontram conformes aos que usualmente este Supremo utiliza para fundamentar as suas decisões. Sendo certo que, naturalmente, na opinião do aqui Apelante a resposta é, necessariamente, negativa.

3. Isto porque entendeu o Tribunal a quo afastar a aplicação do critério, ainda que meramente orientador, do recurso às tabelas financeiras, porquanto no caso em concreto não está uma efetiva perda de rendimentos – conclusão que o Apelante não adere.

4. É que não obstante o dano referente ao défice funcional permanente da integridade físico-psíquica não traduzir numa efectiva perda de rendimentos, representa sempre um dano autónomo, indemnizável independentemente da perda ou diminuição imediata da retribuição salarial.

5. Donde, no cálculo da indemnização, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 566.º do Código Civil deverá recorrer-se à equidade, às circunstâncias específicas do caso concreto e o recurso ao método auxiliar de utilização de tabelas financeiras deverá servir de base de comparação.

6.  Nesse sentido, os acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça de 14 de janeiro de 2020, processo 5173.15.5 T8BRG.G1.S2 - https://www.direitoemdia.pt/document/s/f5c5f6;  de 10 de dezembro de 2019, processo 32/14.1TBMTR.G1.S1-https://www.direitoemdia.pt/document/s/044a68; de 29 de outubro de 2019, processo 683/11.6TBPDL.L1.S2 - https://www.direitoemdia.pt/document/s/5d5984; e de 30 de maio de 2019, processo 3710/12.6TJVNF.G1.S1 - https://www.direitoemdia.pt/document/s/eeea20.

7. De comum em todos os arestos vindos de citar está a circunstância de se identificar como critério orientador da equidade, entre outros, o salário auferido e de recorrem às tabelas financeiras como método auxiliar para se determinar uma indemnização que correspondesse a capital produtor de rendimento que o lesado deixará de perceber em razão da incapacidade/défice de que fiou a padecer.

8. Em face do exposto, entende o Apelante que há que ponderar a sua idade à data da consolidação médica (32 anos); a esperança média de vida em geral (82 anos); o vencimento anual de €32.270,00 (valor ilíquido auferido de €2.305,00) e que ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 04 pontos, é compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam ligeiros esforços suplementares, nomeadamente nas tarefas que obriguem à permanência em pé durante períodos prolongados, quer parado, quer em marcha, ou a subir e descer muitas escadas.

9. Donde, 32.270,00 x 50 anos = 1.613.500,00 x 4% = €64.540,00

10. A este valor de €64.540,00 não deverá ser deduzida qualquer percentagem pela entrega antecipada do capital. Isto porque, por um lado, há que atentar às actuais taxas de juro quase de 0% e a previsibilidade de as mesmas se manterem inalteradas nos próximos anos. E, por outro lado, há que ponderar a evolução do vencimento do Apelante ao longo de todo o período da sua vida activa, a inflação e a evolução dos índices económicos.

11. A admitir-se uma qualquer dedução, a mesma deverá ser residual, o que, ainda assim, evidencia que os €20.000,00 fixados pelo Tribunal a quo se mostram manifestamente insuficientes para indemnizar o dano sofrido pelo Apelante.

12. Determina ainda alguma Jurisprudência deste Supremo que o valor a considerar como equitativo seja padronizado com outras decisões em casos similares. Assim,

13. No acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 30 de maio de 2019, processo 3710/12.6TJVNF.G1.S1 - https://www.direitoemdia.pt/document/s/eeea20 foi arbitrada uma indemnização de €80.000,00 à lesada que tinha 21 anos (contra 32 anos do Apelante), foi considerado o valor € 1.009,70 como sendo o ganho médio mensal (mulher), num total anual de 12.116,40€ (contra os 32.270,00 auferidos) e o défice de incapacidade de 14 pontos (contra os 4 dos presentes Autos).

14. No acórdão de 22.01.2015 (Revista n.º 133/10.5TBSTS.P1.S1 - 2.ª Secção) foi arbitrada uma indemnização de €30.000,00, quando a lesada tinha 19 anos à data da consolidação médica e ficou a padecer de um défice de 3 pontos.

15. O acórdão de 24-05-2018, Revista n.º 7952/09.3TBVNG.P1.S1 - 7.ª Secção, concluiu que o valor arbitrado de €26.381,91 peca por defeito para quem tinha a mesma idade (32 anos) e ficou a padecer de um défice de 5 pontos.

16. O acórdão deste Supremo de 10.01.2017, Revista n.º 1965/11.2TBBRR.L1.S1 concluiu que não merece censura a indemnização de €100.000,00 à lesada que tinha 38 anos (contra os 32 do Apelante), auferia rendimento profissional anual de €55.000,00 (contra os €32.270,00 auferidos) e ficou com incapacidade temporária permanente de 11 pontos (contra os 4 pontos).

17. Por fim, o acórdão deste Supremo de 27.11.2018, Revista n.º 46/13.9TBGLG.E1.S1, arbitrou 30.000,00€ a título de dano biológico para um lesado que tinha idade bastante superior (47 vs. 32 anos) e uma incapacidade inferior (3 pontos em vez de 4).

18. Em face do vindo de referir, pela análise do caso concreto, por confronto com as decisões supra referidas e sempre com o devido respeito, os 20.000,00€ arbitrados pelo Tribunal a quo mostram-se manifestamente insuficientes para compensar equitativamente o dano biológico sofrido pelo aqui Apelante.

19. Entende, por isso, o Apelante que deve o douto acórdão do Tribunal a quo ser revogado e substituído por acórdão que, em consequência, condene a Apelada em quantia não inferior a €65.000,00.

Pelo exposto,

20. O douto acórdão em crise, sempre com o devido respeito por opinião contrária, violou o disposto nos artigos 496º, 562º, 564º e 566.º n.º 3 todos do Código Civil».

Termos em que requer seja julgado procedente o presente recurso.

7. A Seguradoras Unidas S.A. respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.


8.  Dados os vistos, cumpre apreciar e decidir.



***



II. Delimitação do objeto do recurso


Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa[1].


Assim, a esta luz, a única questão a decidir consiste em determinar o quantum da indemnização devida ao autor pelos danos patrimoniais futuros decorrentes do défice funcional de que o mesmo ficou a padecer em consequência do atropelamento de que foi vítima.



***



III. Fundamentação


3.1. Fundamentação de facto


A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:

«1) No dia … de junho de 2015, pelas 2 horas e 10 minutos, no parque de estacionamento de um … que se realizava na localidade …, …, ocorreu um atropelamento.

2) Foram intervenientes no acidente o aqui Autor e o veículo com matrícula … conduzido por BB.

3) Naquele parque de estacionamento encontrava-se o aqui Autor, acompanhado de um grupo de amigos e familiares.

4) O condutor do PG, quando se preparava para sair do referido estacionamento, não reparou no grupo de pessoas que ali se encontrava e que integrava o Autor.

5) E, ao dar a volta ao recinto, o PG embateu com a parte dianteira/lateral/esquerda no aqui Autor.

6) A responsabilidade civil do PG estava transferida para a então Açoreana Seguros através da apólice n.º ….; tal companhia foi, depois, incorporada por fusão na Companhia de Seguros Tranquilidade que, por sua vez, alterou a denominação para SEGURADORAS UNIDAS - cfr. fls. 159 a 163.

7) A Ré SEGURADORAS UNIDAS (então Açoreana Seguros), procedeu ao pagamento de algumas despesas e períodos de incapacidade.

8) O Autor auferia mensalmente, à data do sinistro, € 2.005,00€ de remuneração base, sendo o valor ilíquido auferido de € 2.305,00 e líquido de € 1.543,48, conforme recibo de vencimento junto a fls. 28 e que aqui se dá integralmente por reproduzido.

9) Foram declaradas à Segurança Social as remunerações do Autor conforme doc. de fls. 91 a 95 cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido, nomeadamente foi declarado em julho de 2015 a remuneração base de € 801,98 e o subsídio de carácter regular mensal de € 120,00; em outubro a remuneração base de € 370,16 por 12,5 dias de trabalho e os subsídios de alimentação e de carácter regular mensal respetivamente de € 99,74 e 55,39; em novembro e dezembro os valores respetivos de € 2.005,00 (30 dias de trabalho), € 99,74 e € 300,00, a que acresce em dezembro o valor de € 2.555,00 de subsídio de natal; e em janeiro os valores de € 2.035,77 (30 dias), € 99,74 e € 300,00.

10) O Autor realizou despesas com meia elástica, consultas e exames, que se computam em € 118,40.

11) O Autor teve necessidade de auxílio por parte da sua esposa, durante o primeiro mês após a alta hospitalar.

12) O Autor foi socorrido pelos Bombeiros Voluntários, que o transportaram até ao Centro Hospitalar … .

13) Do sinistro resultou um traumatismo na perna esquerda, atingindo tíbia e perónio, designadamente uma fratura distal dos ossos da perna esquerda com extensão ao pilão tibial e exposição Gustillo grau I.

14) Foi operado, tendo sido realizada osteossíntese do maléolo externo com placa de reconstrução Stryker SPS e osteossíntese da tíbia com placa deslizada Stryker AxSOS de tíbia distal medial (e parafusos).

15) Teve alta hospitalar no dia 30 de julho de 2015.

16) Posteriormente, realizou curativos no Centro de Saúde … .

17) Durante o curativo detetou-se que da aplicação da tala resultou edema do pé esquerdo, pelo que o aqui Autor, recorreu ao Serviço de Urgências do hospital, onde lhe foi diagnosticado edema por compressão da tala, tendo a mesma sido retirada e aplicada novamente tala.

18) Um mês e meio depois retirou o gesso e foi-lhe aplicada uma Bota Walker, que manteve durante 30 dias, altura em que iniciou deambulação sem carga e com apoio de canadianas.

19) Em setembro de 2015 foi observado pelos serviços clínicos da aqui Ré.

20) Em outubro de 2015 foi observado em nova consulta de ortopedia onde foi medicado com derivados de cálcio.

21) Iniciou a sua atividade profissional no dia ... de outubro de 2015, mantendo os tratamentos de fisioterapia e hidroterapia; continuou a andar com recurso a uma canadiana; a 10 de dezembro terminou os tratamentos de fisioterapia.

22) No dia … de janeiro de 2016 teve alta, sendo essa a data da consolidação médico-legal das lesões.

23) Durante o período em que o Autor esteve em recuperação, teve, sempre que possível, a ajuda de familiares para as mais básicas necessidades do quotidiano, como tomar banho, deslocar-se à casa de banho, sair de casa, deslocar-se para o hospital.

24) A sua esposa à data encontrava-se grávida.

25) No dia … de agosto de 2015 nasceu a filha do aqui Autor - cfr. doc. de fls. 61 e 62.

26) O Autor não conseguiu acompanhar e ajudar a sua esposa nos últimos tempos de gravidez do seu primeiro filho, o que o desgostou.

27) Esteve impossibilitado de ajudar a sua esposa após as primeiras horas do nascimento da sua filha, bem como nos primeiros tempos de vida.

28) Do referido traumatismo adveio sofrimento físico e dores.

29) O Autor esteve cerca de onze horas à espera da cirurgia a que foi submetido a que acrescem as horas despendidas em transporte, exames e diagnóstico.

30) Teve que tomar comprimidos anestésicos durante os primeiros quinze dias em que esteve em casa, em face das dores.

31) Durante o período em que teve de usar canadianas, passou a ter dores nos braços e calos nas mãos.

32) O Autor praticava desporto, nomeadamente atletismo, ciclismo, e era frequentador de ginásios (2/3 vezes por semana); participou em provas de atletismo.

33) Agora não corre nem pratica desporto por não se sentir capaz, e sente limitações nas atividades a realizar com as filhas.

34) O Autor ficou com 3 cicatrizes na perna esquerda, uma na região antero-medial do terço médio, com 1,5 x 0,2 cm, duas de tipo operatório: uma sobre o maléolo interno com 6x 1,5 cm, outra acima e sobre o maléolo externo, com 8 x 1,5 cm, com área hiperpigmentada e descamativa; sendo o dano estético permanente fixável no grau 2/7.

35) O Autor poderá ser sujeito a uma extração cirúrgica de material de osteossíntese pelo que terá que se sujeitar a novas consultas da especialidade e submeter-se a exames de diagnóstico e anestesia, obrigando a um período de incapacidade temporária total e parcial.

36) Vai ter de tomar mais medicamentos, sejam analgésicos, sejam anti-inflamatórios, além das dores e incómodos que lhe estão associados.

37) O Autor teve um défice funcional temporário total fixável em 3 dias (de 28/6/2015 a 30/06/2015); um défice funcional temporário parcial fixável em 192 dias (de 1/07/2015 a 8/01/2016); em termos de repercussão temporária na atividade profissional total, tal período situou-se entre 28/06/2015 e 11/10/2015, sendo fixável num período de 106 dias; a repercussão temporária na atividade profissional parcial situou-se entre 12/10/2015 e 8/01/2016, sendo fixável num período total de 89 dias.

38) O “quantum doloris” é fixável no grau 4/7.

39) O défice funcional permanente da integridade físico-psíquica é fixável em 4 pontos.

40) As sequelas são, em termos de repercussão permanente na atividade profissional, compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam ligeiros esforços suplementares, nomeadamente nas tarefas que obriguem à permanência em pé durante períodos prolongados, quer parado, quer em marcha, ou a subir e descer muitas escadas.

41) O Autor nasceu em …/03/83.».



*


“Factos não provados:

- Por força do embate e da extrema violência deste, o Autor foi projetado para o chão/voou.

- As calças e os ténis que o Autor envergava à data do acidente, ficaram completamente destruídos; os referidos objetos valiam não menos de € 240,00 –€ 100,00 os ténis e € 140,00 as calças.

- O Autor teve ainda outras despesas, nomeadamente medicamentosas, para além do que resulta do ponto 10 dos factos provados.

- De … de outubro de 2015 até a … de janeiro de 2016, o Autor esteve (totalmente) impossibilitado de exercer a sua atividade profissional devido ao acidente supra referenciado (-sem prejuízo da incapacidade parcial “supra” provada), e durante esse lapso temporal não recebeu qualquer remuneração; os salários frustrados pela impossibilidade de o Autor trabalhar totalizam € 2.098,13.

- Por força do estado do Autor, a sua esposa ficou impossibilitada de trabalhar e, consequentemente, não recebeu o salário a que teria direito se pudesse trabalhar; à data, a esposa do Autor auferia € 1.495,00/mês.

- O Autor, após a alta hospitalar, ficou retido no leito, deitado, durante mês e meio.

- O Autor não acompanhou a sua esposa às últimas consultas de obstetrícia.

- Não conseguiu deslocar-se ao hospital para presenciar o nascimento da sua filha.

- O Autor, sofreu bastante com a impossibilidade de poder presenciar momentos únicos da vida da sua filha; sentiu-se inútil numa altura em que era suposto amparar a sua esposa.

- O Autor havia frequentado curso de preparação para o parto.

- No momento em que a esposa entrou em trabalho de parto, o Autor sentiu uma impotência enorme por não conseguir acalmar a esposa, ajudá-la a pegar nos sacos e encaminhá-la para o hospital.

- A cirurgia a que foi sujeito decorreu durante o período de cinco horas.

- O período de recuperação do Autor foi atribulado e com algumas recaídas, bem como resultou em diversas tornas ao hospital (sem prejuízo do que consta dos factos provados).

- Teve necessidade de tomar injeções diárias para que o sangue fluísse – o que ocorreu durante trinta dias.

- Por não conseguir suportar as dores, não conseguia descansar e dormir, e atento o estado de gravidez da sua mulher, acabou por abandonar o quarto e passou a pernoitar na sala.

- Por força da profissão que exerce tem de percorrer os 20.000 m2 que a fábrica onde trabalha tem, duas a três vezes por dia.

- Sempre que algum problema surgia numa máquina, o Autor era o primeiro a resolver; agora, ora não consegue, ora tem muita dificuldade em se colocar em posição que permita resolver o problema.

- O Autor estará ainda, futuramente, dependente de substâncias medicamentosas.

- A cirurgia para retirar o material, para além de dolorosa, acarretará uma incapacidade para o trabalho absoluta (ITA) de pelo menos 30 dias.

- Vai necessitar de se submeter a sessões de fisioterapia por força dessa operação.

- Além da medicação que terá de tomar ao longo da vida para minimizar as dores que vai sofrendo.

- O Autor não consegue correr, pegar ao colo ou participar em brincadeiras com a filha dado que os movimentos mais bruscos causam-lhe dor.”


***



3.2. Fundamentação de direito


 Conforme já se deixou dito, o presente recurso prende-se unicamente com a questão do quantum da indemnização devida ao autor pelos danos patrimoniais futuros decorrentes do défice funcional de que o mesmo ficou a padecer em consequência do atropelamento de que foi vítima.


Quanto à indemnização devida a este título, convém, antes de mais, recordar que o autor, alegando ter ficado a padecer de uma incapacidade permanente geral fixável em, pelo menos, 11 pontos, peticionou a condenação da ré na quantia de € 110.000,00.


A sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, tendo em conta resultar dos factos provados e supra descritos no nº 39 que o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de que o autor ficou a padecer é fixável em 4 pontos e considerando este dano indemnizável como dano não patrimonial, decidiu fixar o quantum indemnizatório em € 30.000,00, acrescendo juros moratórios a partir da citação.


O acórdão recorrido, perspetivando o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 4 pontos de que o autor ficou a padecer  como um  dano biológico, autónomo e ressarcível como dano patrimonial futuro, e indagando dos critérios a ponderar na sua quantificação considerou, na esteira do decidido nos Acórdãos do STJ, de 06.12.2017 (processo nº 1509.1TVLSB.L1.S1) e de 17.12.2019 (processo nº 2224/17.2T8BRG.G1.S1)[2] que:

 i) a indemnização deste dano biológico  não deve ser calculada em função « do  rendimento anual do lesado já que  não é a perda de rendimento que está em causa, mas antes o impacto dos esforços suplementares exigidos na capacidade económica do lesado» nem com o recurso às tabelas financeiras, «sob pena de se tratar de forma igual - em sede indemnizatória - os casos em que o défice  funcional perante apurado tem efetiva repercussão na atividade profissional e assim  nos rendimentos laborais e os caso em que aquele implica apenas um esforço acrescido  no exercício da atividade habitual».

ii) não há que atender às tabelas previstas no DL nº 291/2007, de 21.08 e Portaria nº 377/2008, de 26.05, na redação dada pela Portaria nº 679/2009, porquanto o campo de aplicação destes critérios específicos é «extrajudicial e embora possam ser ponderados, não vinculam o julgador porquanto se não sobrepõem às regras de determinação judicial de indemnização fixadas pelo Código Civil». 

iii) a fixação do valor indemnizatório nestes casos, terá de ser feita com recurso a critérios de equidade, de acordo com o disposto no artigo 566º, nº 3 do CC, para tanto ponderando as circunstâncias  do caso concreto, ou seja, nas palavras do citado Acórdão do STJ, de 17.12.2019  «segundo os padrões que têm vindo a ser delineados, atentos os graus de gravidade das lesões sofridas e do seu impacto na capacidade económica do lesado, considerando uma expetativa de vida ativa não confinada à idade-limite para a reforma», relevando, neste campo, apenas «as implicações de alcance económico e já não as respeitantes a outras incidências no espetro  da qualidade de vida, mas sem um alcance dessa natureza».

Assim, guiando-se pelo  critério da equidade, nos termos  do nº 3 do art. 566º do C. Civil,  considerou, para tanto, que das sequelas apuradas resultou para o autor um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 4 pontos, com repercussão permanente na vida profissional do lesado, condicionando o exercício  da sua atividade profissional habitual - porquanto exige do autor esforços suplementares, ainda que ligeiros, nomeadamente nas tarefas que obriguem à permanência em pé durante períodos prolongados, quer parado, quer em marcha, ou a subir e descer muitas escadas - bem como as suas oportunidades no mercado laboral, na medida correspondente destas suas limitações; «a idade do autor à data do acidente, 32 anos e assim uma esperança de vida de mais 46 anos, considerando a esperança média de vida de 78 anos em 2015 para os homens» e «ainda os padrões jurisprudenciais em casos similares», designadamente os seguidos nos Acórdãos do STJ, de 17.12.2019 ( já citado); de 29.10.2019, (processo nº 7614/15.2T8GMR.G1.S1); de  e 07.03.2019 ( processo nº 203/14.0T2AVR.P1.S1) e de 10.01.2019 ( processo  nº 499/13.5TBVVD.G1.S2)[3], realçando  que embora a primeira decisão «tenha arbitrado o valor de € 10.000,00 num caso de défice funcional de 4 pontos (tal como o autor) tem uma relevante diferença na idade do lesado (61 anos de idade versus os 32 do autor); no segundo caso o valor de € 36.000,00 teve subjacente um défice funcional de 16 pontos (contra os 4 pontos do autor), embora a idade seja próxima; no 3º caso perante um lesado com idade próxima mas com défice funcional de 19 pontos foi atribuído um valor indemnizatório de € 40.000,00; finalmente no 4º caso perante um défice de cerca de 17 pontos e uma lesada com 57 anos foi atribuído um valor indemnizatório de € 24.000,00 » .

E, com base nesta ponderação, concluiu que «o valor de € 30.000,00 fixado pelo tribunal a quo excede de forma substancial e injustificada os referidos padrões jurisprudenciais que têm vindo a ser adotados, mesmo de acordo com a orientação atualística e evolutiva defendida pela jurisprudência, justificando a sua redução para o valor de € 20.000,00 (…) reportado (para efeitos de juros) à data da citação».

Por sua vez e não obstante pugnar pelo cálculo da indemnização segundo a equidade, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 566.º do Código Civil, persiste o autor em defender o recurso ao método auxiliar de utilização de tabelas financeiras, que deverá servir de base de comparação.

Assim, tendo em conta a  sua idade à data  da consolidação médica (32 anos), a esperança  média de vida em geral (82 anos); o vencimento anual de € 32.270,00 (valor líquido auferido de € 2.305,00) e que ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 04 pontos, compatíveis  com o exercício da atividade habitual, mas que implicam ligeiros esforços suplementares, nomeadamente nas tarefas que obriguem à permanência em pé durante períodos prolongados, quer parado, quer em marcha, ou a subir e descer muitas escadas, pugna pela  fixação da indemnização, a este título, em  € 65.000,00 (32.270,00 x 50 anos = 1.613.500,00 x 4% = € 64.540,00).


Que dizer ?

Desde logo e com o devido respeito, que não se aceita as bases de cálculo adotadas pelo recorrente, mormente que a indemnização deste dano biológico deva ser calculada com recurso às tabelas financeiras e em função do rendimento anual do lesado, pois como se afirma no já citado Acórdão do STJ, de 06.12.2017 (processo nº 1509/13.1TVLSB.L1.S1)[4], tal equivaleria a qualificar e a indemnizar o défice atribuído  como se de uma incapacidade parcial permanente (IPP) se tratasse e a verdade é que o défice funcional genérico não implica incapacidade parcial permanente para o exercício dessa atividade, envolvendo apenas esforços suplementares.

Tal como nos dão conta o  supra citado  Acórdão do STJ, de 06.12.2017 e o Acórdão do STJ, de 28.03.2019 (processo nº 1120/12.4TBPTL.G1.S1 )[5], «neste tipo de situações, a solução seguida pela jurisprudência deste Supremo Tribunal é a de fixar um montante indemnizatório por via da equidade, ao abrigo do disposto no artigo 566.º, n.º 3, do CC, em função das circunstâncias concretas de cada caso, segundo os padrões que têm vindo a ser delineados, atentos os graus de gravidade das lesões sofridas e do seu impacto na capacidade económica do lesado, considerando uma expetativa de vida ativa não confinada à idade-limite para a reforma ».

E foi esta mesma linha de entendimento que se seguiu quer no citado Acórdão de 10.01.2019 (processo nº 499/13.5TBVVD.G1.S2 ), quer no Acórdão do STJ, de 06.02.2020 (processo nº 2251/12.6TBVNG.P1.S1)[6] bem como no recente Acórdão do STJ, de 29.10.2020[7].

Vale tudo isto por dizer que se aceitam todas as bases de cálculo adotadas no acórdão recorrido e os critérios jurisprudenciais que devem ser seguidos na concretização do juízo de equidade.

E porque no caso dos autos não se vê que o critério seguido pela Relação se afaste dos padrões que vêm sendo seguidos pela jurisprudência deste Supremo Tribunal  em casos similares,  tudo ponderado,  julgamos ser equitativo o montante de € 20.000.00  arbitrado ao autor no acórdão recorrido e reportado à data da citação, partir da qual acrescem juros de mora até integral pagamento. 


Termos em que improcedem todas as razões invocadas pelo recorrente.  


***


IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

As custas do recurso ficam a cargo do recorrente.

Notifique.


***



Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A, de 13-3, aditado pelo DL nº 20/20, de 1-5, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade da Exmª. Senhora Conselheira Catarina Serra e do Exmº Senhor Conselheiro Paulo Rijo Ferreira que compõem este coletivo.


***



Supremo Tribunal de Justiça, 14 de janeiro, de 2021

Maria Rosa Oliveira Tching (Relatora)

Catarina Serra

Paulo Rijo Ferreira

__________

[1] Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respetivamente.
[2] Ambos acessíveis in www.dgsi/stj.pt.
[3] Todos acessíveis in www dgi/stj.pt.
[4] Relatado pelo Conselheiro Tomé Gomes, subscrito pela ora relatora, na qualidade de Juíza Adjunta e acessível in www.dgsi.pt/jstj.
[5] Relatado pelo Conselheiro Tomé Gomes, subscrito pela ora relatora, na qualidade de Juíza Adjunta e acessível in www.dgsi.pt/jstj.
[6] Ambos relatados pela ora relatora e acessíveis in www.dgsi/stj.pt
[7] Relatado pela Conselheira Maria da Graça Trigo, subscrito pela ora relatora e pela Conselheira Catarina Serra,  na qualidade de Juízas Adjuntas  e acessível  in www.dgsi.pt/jstj.