Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B2739
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS BERNARDINO
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
PRÉDIO RÚSTICO
PRÉDIO URBANO
ABUSO DO DIREITO
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: SJ20071004027392
Data do Acordão: 10/04/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
1. No regime estabelecido no art. 1380º do CC, a reciprocidade do direito de preferência só se verificava entre proprietários de terrenos confinantes, com área inferior à unidade de cultura.
2. O Dec-lei 384/88, de 25 de Outubro, que veio estabelecer em novos moldes o regime jurídico do emparcelamento rural, modificou o regime da preferência legal relacionada com os minifúndios.
3. A reciprocidade do direito de preferência é alargada, face ao teor do art. 18º do aludido diploma: os proprietários de terrenos confinantes, quando um deles tenha área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência, qualquer que seja a área do outro.
4. A apresentação na Rep. de Finanças, feita pelo dono de um prédio rústico, como tal inscrito na respectiva matriz, na antevéspera da venda deste, de uma declaração para a sua inscrição como urbano, não opera automaticamente a transmutação da sua natureza de rústico em urbano, não inviabilizando o exercício do direito de preferência por parte do proprietário confinante.
5. Terreno urbano ou terreno para construção é uma coisa que se define não só pela sua identidade física, mas principalmente pela sua aptidão juridicamente reconhecida, i.e., objecto de um direito de construir, nunca originário, mas sempre adquirido, por força da iniciativa da Administração Pública ou por licença desta perante a pretensão formulada pelo respectivo proprietário, nos limites topográficos e normativos dum plano de urbanização ou dum loteamento.
6. Para que o facto impeditivo do direito de preferência, aludido na 2ª parte da alínea a) do art. 1381º do CC, opere os seus efeitos, é necessário que o adquirente alegue e prove, não só a sua intenção de dar ao prédio adquirido uma outra afectação ou um outro destino que não a cultura, mas também que essa projectada mudança de destino é permitida por lei.
7. Existe abuso de direito quando um certo direito, admitido como válido em tese geral, surge, num determinado caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, entendida segundo o critério social dominante.
8. É contraditório com a invocação do abuso do direito a negação da existência do direito que se afirma abusivamente exercitado.
9. A faculdade conferida ao STJ pelo art. 729º/3 do CPC só deve ser exercitada quando as instâncias seleccionarem imperfeitamente a matéria da prova, amputando-a, assim, de elementos que consideraram dispensáveis, mas que se verifica serem indispensáveis para o Supremo definir o direito.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1.

AA e mulher BB intentaram, em 16.09.2003, no Tribunal Judicial da comarca de Ílhavo, contra CC e mulher DD e EE, L.da, acção com processo ordinário, alegando, em síntese, que são donos de um prédio rústico, composto de terreno de cultura e eucaliptal, sito em Ervosas – Ílhavo, confinante com um prédio rústico, pertencente aos primeiros réus, sendo ambos os prédios de área inferior à unidade de cultura e destinados a utilização agrícola, tendo os primeiros réus, por escritura pública de 13.06.2003, vendido à ré sociedade, pelo preço de € 35.000,00 e sem prévio conhecimento aos autores, o seu referido prédio, depois de o haverem transformado em prédio urbano, por declaração para inscrição na matriz, apesar de tal prédio se inserir em zona interdita à construção e pertencente à Reserva Agrícola Nacional (RAN).
Com base em tais factos, pedem os autores que seja declarada nula e de nenhum efeito a alteração da natureza do prédio alienado – de rústico para urbano – feita pelos primeiros réus, e que lhes seja reconhecido o direito de preferência na alienação do mesmo, e o direito de o haverem para si, mediante depósito do respectivo preço, sisa, despesas notariais e outras, condenando-se a ré sociedade a entregar-lho, livre de pessoas e bens.
A ré sociedade contestou, alegando, com interesse, para além da ilegitimidade da autora mulher, que adquiriu o prédio para o destinar a construção urbana, assim estando identificado na respectiva matriz predial e na escritura de aquisição, e não se achando ele integrado na RAN, sendo admitida a sua utilização para fins diferentes da agricultura, designadamente para construção urbana. Acrescentou que na data da venda já o prédio tinha a natureza urbana, pelo que inexistia o invocado direito de preferência do autor, a quem, ademais, foi perguntado se estava interessado na aquisição, tendo ele respondido negativamente.
Replicaram os autores; e, seguindo o processo a sua normal tramitação, veio a ser efectuada a audiência de julgamento e a ser proferida sentença, que julgou a acção procedente, declarando nula e de nenhum efeito a alteração da natureza do prédio alienado e reconhecendo aos autores o direito de preferência na alienação desse prédio e a haverem para si o direito de propriedade sobre ele, substituindo-se à ré sociedade na posição de compradores, sendo a esta devido o depósito do preço, sisa, despesas notariais e outras, e condenando-a a entregar o prédio aos autores, livre de pessoas e bens.
Da sentença interpôs a ré sociedade o pertinente recurso de apelação.
Não logrou, porém, grande êxito, pois a Relação de Coimbra apenas julgou procedente o recurso na parte em que a sentença recorrida declarou nula e de nenhum efeito a alteração da natureza do prédio alienado, declarando o tribunal materialmente incompetente para conhecer desse pedido e absolvendo, nessa parte, os réus da instância, mas confirmando, quanto ao mais, a dita sentença.
De novo inconformada, a EE traz agora a este Supremo Tribunal o presente recurso de revista, finalizando as respectivas alegações com a enunciação das seguintes conclusões:
1ª - Decorre da decisão da Relação que o prédio alienado é e se mantém um prédio urbano e que foi assim e por isso que a recorrente o adquiriu;
2ª - Daí resulta que o interesse da recorrente na aquisição do prédio e o destino que pretendia e pretende dar-lhe não é o de cultivo ou de exploração agrícola;
3ª - Não está demonstrado que a recorrente não possa edificar naquele terreno;
4ª - Não cabia nem cabe à recorrente o ónus de demonstrar ser possível construir nesse terreno;
5ª - De qualquer modo, o que releva para a verificação do impedimento estabelecido na al. a), 2ª parte, do art. 1381º do Código Civil ao exercício do direito de preferência é que o destino dado ao prédio seja diferente da exploração agrícola, não sendo necessário que o destino dado ao mesmo seja a construção;
6ª - No caso é patente que a recorrente não adquiriu o prédio para exploração agrícola, e também que o não destina a esse fim – sendo possível uma infinidade de aplicações lícitas diferentes da construção e da exploração agrícola;
7ª - Não se verifica um dos requisitos essenciais do direito de preferência – o da reciprocidade – dada a natureza e utilização, desde há largos anos, do imóvel alienado;
8ª - É patente que os autores não pretendem adquirir o prédio para aumentar a sua exploração agrícola, mas para, pelo aumento de área, valorizarem o seu próprio terreno para fins urbanos, que é, fatalmente, o destino de ambos os terrenos, na zona em que se inserem;
9ª - Assim, desvirtuando completa e clamorosamente o fim social e económico que dá justificação ao direito que pretendem exercer, os autores actuam em claro abuso de direito, nos termos do art. 334º do Cód. Civil;
10ª - O acórdão recorrido violou o disposto nas normas legais citadas;
11ª - A entender-se que a matéria de facto provada não permite as conclusões que antecedem, há que ter em conta que a recorrente alegou, na sua contestação, factos que não foram submetidos a julgamento, com manifesto interesse para esclarecimento daqueles pontos no sentido ora pretendido, e que enumerou na sua reclamação da base instrutória, os quais podem ser oficiosamente considerados, por ocorrer insuficiência da matéria de facto;
12ª - Esses factos – referidos nos arts. 54º, 55º, 66º, 69º, 75º, 76º, 78º, 82º, 83º, 86º a 88º, 91º, 92º, 96ºa 98º, 100º a 102º, 106º a 109º, 122º a 124º, 127º a 131º, 133º, 136º a 139º, 141º a 148º, 151º, 154º e 155º da contestação – permitirão demonstrar, se submetidos a julgamento, que o destino dado pela recorrente ao prédio que adquiriu não é o de exploração agrícola, que este há muito a isso não é destinado, que não existe a reciprocidade do direito de preferência e que, ao pretender exercê-la, os autores actuam em abuso de direito.
Em contra-alegações, os autores pugnam pelo não provimento do recurso, e pela manutenção do acórdão recorrido.
Corridos os vistos legais cumpre agora conhecer do mérito do recurso.
2.

É o seguinte o complexo factual que vem provado:
1) - O autor é dono e legítimo possuidor do prédio rústico “terra de cultura e eucaliptal, sito em Ervosas, freguesia e concelho de Ílhavo, que confronta de Norte com .. (actualmente com o Réu CC), nascente com caminho, sul com ... e poente com a estrada, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 7255”;
2) - Por escritura pública lavrada em 13 de Junho de 2003, a folhas cento e dezoito a cento e dezanove, do livro de notas para escrituras diversas número 268-F, do 2° Cartório Notarial de Aveiro, os réus BB e mulher, DD, declararam vender à 2ª ré “EE, Lda.”, que declarou aceitar esta alienação, o seguinte prédio: “parcela de terreno para construção urbana, sito em Ervosas, freguesia e concelho de Ílhavo, omisso na matriz, (mas foi apresentada no serviço de Finanças de Ílhavo a declaração para a sua inscrição em 11/06/2003), antes inscrito na matriz sob o artigo rústico n° 7254, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ílhavo, sob o n.º 2277, cujo direito de propriedade se encontra aí registado, pela inscrição G3”;
3) - O prédio descrito no n.º anterior tem 3.040 m2;
4) - À data da aquisição deste prédio a 2ª ré não era dona de qualquer prédio rústico confinante;
5) - O prédio descrito no n.º 2) tem, pelo seu lado sul, a estrema comum com o prédio descrito em 1), situando-se os dois terrenos ao mesmo nível, e sem que entre eles se interponha qualquer obstáculo;
6) - O preço do prédio referido no n.º 2) foi de € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros);
7) - O respectivo imposto municipal de sisa pago pela 2ª ré foi liquidado em € 2.275,00, as despesas notariais correspondentes ascenderam a € 489,00, a certidão do registo predial a € 28,25 e a certidão relativa à matriz a € 5,00;
8) - O prédio descrito no n.º 1) tem 8.320 m2 de área;
9) - No prédio referido em 2) sempre foi explorada a cultura de milho, batata e outros produtos idênticos;
10) - Os solos de ambos os prédios apresentam potencialidades agrícolas semelhantes, sendo ambos afectos à cultura dos referidos produtos;
11) - O prédio referido em 1), somando a sua área à do prédio referido em 2), ascende a 11.360 m2;
12) - Os 1os réus venderam o prédio à 2ª ré, sem terem comunicado tal facto, nem lhe ter dito o preço, forma de pagamento e dia da realização da escritura,
13) - Apesar de o autor marido ter feito saber junto do réu marido o seu interesse,
14) – O que levou os 1os réus a alterarem a natureza do prédio transformando-o em urbano;
15) - O prédio vendido insere-se num espaço agrícola, coincidente parte dele com a Reserva Agrícola Nacional;
16) - A 2ª ré adquiriu tal terreno para o destinar a construção urbana;
17) - Os terrenos em causa entestam com a estrada que liga Ílhavo às Quintãs;
18) - Pelo norte entesta com outra estrada que entronca na que liga Ervosas às Quintãs;
19) - Os terrenos encontram-se situados a 100 metros, para norte, da zona industrial de Ervosas e a 500 metros para sul do complexo da antiga fábrica da SMIDA, que existe uma casas de habitação praticamente em frente, e outras já mais afastadas para o lado daquelas instalações fabris;
20) - Na sequência das negociações entre os réus, houve igualmente contactos com o autor marido a propósito do mesmo, e da possibilidade de vender igualmente o seu, não tendo chegado a acordo quanto ao preço;
21) - A 2ª ré (sem prejuízo do referido em 9) utiliza entretanto tal terreno como depósito de materiais.
3.

As conclusões da alegação da recorrente suscitam quatro questões, que irão ser analisadas na exposição subsequente.
Não, porém, pela ordem por que foram enunciadas pela recorrente, mas de acordo com a sua ordenação lógica no quadro da acção em causa.
3.1. A primeira dessas questões respeita à verificação dos requisitos do direito de preferência.
No dizer da recorrente, falta, no caso, um desses requisitos – o da reciprocidade.
Com a alteração da natureza do prédio alienado – de rústico para urbano – e com a revogação, pela Relação, da sentença da 1ª instância na parte em que esta havia anulado a dita alteração, aquele prédio é, para todos os efeitos, um prédio urbano, destinado a construção.
E, assim, se os primeiros réus não tivessem alienado o terreno à recorrente, e o tivessem conservado inculto e com uma placa a anunciar a venda para edificação, não poderiam, no caso de alienação do terreno dos autores, exercer o direito de preferência nesta alienação.
Ora, o direito de preferência estabelecido no art. 1380º do CC só existe e só pode ser reconhecido quando haja reciprocidade, ou seja, quando qualquer dos proprietários confinantes possa valer-se, ou seja titular, de idêntico direito relativamente à venda, dação em cumprimento ou aforamento do prédio confinante com o seu – o que não era o caso dos primeiros réus na data em que venderam o prédio à recorrente, pois que, nessa data, tal prédio já não tinha a natureza de prédio rústico.
Que dizer desta argumentação?
Quem pretender o reconhecimento judicial de um direito real de preferência, invocando a qualidade de proprietário confinante, deverá alegar e provar, tendo em conta as regras de repartição do ónus da prova do art. 342º do CC, os pressupostos ou factos constitutivos do seu direito, indicados no n.º 1 do art. 1380º do mesmo Código:
- que tenha sido objecto de venda, dação em cumprimento ou aforamento um prédio com área inferior à unidade de cultura;
- que (ele, preferente) é dono de prédio confinante com o prédio alienado;
- que o adquirente do prédio não seja proprietário confinante.
O n.º 1 do art. 1380º contém ainda uma outra exigência – a de também o prédio (confinante) de quem se apresenta a preferir ter área inferior à unidade de cultura.
E é esta exigência que concretiza a reciprocidade a que alude a recorrente: o direito de preferência, tal como vem estruturado naquele aludido preceito, é, como aliás decorre da letra da lei, um direito recíproco entre proprietários de terrenos confinantes, com áreas que não atingem a unidade de cultura(1).
Não era assim no direito anterior (Lei 2116, de 14 de Agosto de 1962), em que a preferência, embora só podendo igualmente exercer-se sobre prédios inferiores à unidade de cultura – e nunca sobre prédios de área igual ou superior à referida unidade – era conferida aos proprietários dos prédios confinantes, independentemente da sua superfície. Ou seja: se ambos os prédios fossem minifúndios(2), o direito de preferência era recíproco; se só um deles o fosse, o direito de preferência existia apenas a favor do dono do outro, o que vale dizer que a preferência era exclusiva deste, deixando de poder falar-se de reciprocidade; se nenhum deles tivesse estrutura minifundiária, pura e simplesmente não havia direito de preferência.
O Dec-lei 384/88, de 25 de Outubro, que veio estabelecer em novos moldes o regime jurídico do emparcelamento rural(3), modificou de novo o regime da preferência legal relacionada com os minifúndios. De acordo com o art. 18º deste diploma (4) , os proprietários de terrenos confinantes, quando um deles tenha área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência, qualquer que seja a área do outro. A preferência continua a ser um direito recíproco, que se aplica não só à alienação de minifúndios como também à venda de prédios de área igual ou superior à unidade de cultura, e que aproveita ao mesmo tempo, quer aos donos de minifúndios, quer aos proprietários de prédios com área superior à unidade de cultura, desde que o prédio de um deles (seja o do titular da preferência seja o do obrigado à preferência) seja inferior à unidade de cultura. O direito recíproco de preferir, estabelecido por este normativo, a favor dos donos dos prédios confinantes, existe, pois, desde que um dos terrenos confinantes tenha área inferior à unidade de cultura.
Decorre, assim, do que vem de ser dito, que a questão da reciprocidade do direito não se coloca no plano em que a situa a ora recorrente. Nem é de um requisito do direito de preferência que se trata, pois que o preferente não tem de alegar (e, menos ainda, provar) a verificação de um direito recíproco do proprietário obrigado à preferência.
A alteração, de rústico para urbano, da natureza do prédio alienado pode, é certo, ter a ver com a existência do direito de preferência: não, porém, por apelo à aludida reciprocidade do direito, mas apenas porque o direito de preferência está previsto na lei para os prédios rústicos, aptos para a cultura e exploração agrícola (ou florestal), e não também para os prédios urbanos: o inciso terreno é utilizado, quer no art. 1380º e 1381º do CC, quer no art. 18º do Dec-lei 384/88, de 25 de Outubro, com o sentido de prédio rústico (art. 204º/2 do CC). O que vale dizer que, a ter sido alienado, no caso em apreço, um prédio urbano, os autores, ora recorridos, não teriam direito de preferência na venda.
Importará, por isso, indagar da natureza do dito prédio, no sentido de determinar se ele constituía, para o efeito visado, um verdadeiro terreno.
E a tal não obstará, seguramente, o facto de, em 11.06.2003, na antevéspera da celebração do contrato através do qual transferiram a propriedade do prédio para a ora recorrente, terem os réus alienantes apresentado, no serviço de Finanças de Ílhavo, a declaração para a sua inscrição como urbano – prédio que, convém recordar, se achava matricialmente inscrito como rústico (sob o artigo rústico n° 7254). Não é a mera declaração do dono do prédio que determina a classificação deste, a sua natureza rústica ou urbana, nem opera, como num passe de mágica, a transformação da sua fisionomia. E menos ainda quando resulta da facticidade assente que foi para frustrar o direito de preferência dos autores, ora recorridos, que tal declaração foi emitida. É, a este propósito, esclarecedora a matéria de facto vazada nos n.os 12), 13) e 14) do antecedente n.º 2.: os 1os réus venderam o prédio à 2ª ré, sem terem comunicado (ao autor) tal facto, nem lhe ter dito o preço, forma de pagamento e dia da realização da escritura, apesar de o autor marido ter feito saber junto do réu marido o seu interesse, o que levou os 1os réus a alterarem a natureza do prédio transformando-o em urbano.
A natureza do prédio, para o efeito aqui tido em conta, tem de procurar-se por outra via.
De acordo com o art. 204º/2 do CC, entende-se por prédio rústico uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia económica, e por prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro.
Decorre da matéria de facto assente que o prédio alienado tem 3.040 m2 de área, e nele sempre foi explorada a cultura de milho, batata e outros produtos idênticos; e que os solos de ambos os prédios – o vendido e o confinante, dos autores – apresentam potencialidades agrícolas semelhantes, sendo ambos afectos à cultura dos referidos produtos. E ambos estavam, à data da venda do primeiro, inscritos na matriz predial rústica respectiva, como se colhe, quanto a este, da escritura de compra e venda e do documento junto a fls. 252/253 – inserindo-se o prédio vendido num espaço agrícola, e coincidindo parte dele com a RAN (Reserva Agrícola Nacional).
Deve, pois, concluir-se que, para efeitos do disposto nos arts. 1380º e 1381º do CC, o que foi vendido à ora recorrente foi um prédio rústico, um terreno de cultura de produtos agrícolas, e não um prédio urbano, ou um terreno destinado à construção urbana. Ademais, e como acentua o Prof. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, o terreno urbano ou terreno para construção é uma coisa que se define não só pela sua identidade física, mas principalmente pela sua aptidão juridicamente reconhecida, i.e., objecto de um direito de construir, nunca originário, mas sempre adquirido, por força da iniciativa da Administração Pública ou por licença desta perante a pretensão formulada pelo respectivo proprietário, nos limites topográficos e normativos dum plano de urbanização ou dum loteamento (5). – requisitos que quedam indemonstrados relativamente ao terreno alienado.
É, por isso, abusivo pretender-se que, à data da alienação, o prédio aqui em causa não tinha já a natureza de rústico. E, sendo um prédio rústico, afecto à cultura agrícola, nada obstava, á partida, que na sua alienação, estivesse sujeito ao regime legal da preferência, previsto nos já mencionados arts. 1380º e 1381º do CC e 18º do Dec-lei 384/88, de 25 de Outubro.
3.2. Certo é, porém, que, mesmo tendo os autores alegado e provado todos os pressupostos ou factos constitutivos do direito que invocam, ainda assim não se segue necessariamente que se lhes deva reconhecer esse direito.
É que a ré, ora recorrente, alegou um facto impeditivo de tal direito – o de ter adquirido o prédio para o destinar a construção urbana. Pretendeu, pois, valer-se do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 1381º citado, que estatui que não gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes quando algum dos terrenos se destine a algum fim que não seja a cultura.
Nas instâncias não foi atendida esta pretensão da ré, por se haver entendido que a esta competia não só a alegação e prova do fim diferente do da cultura, mas também a da possibilidade legal do fim visado – e esta última não foi demonstrada.
Agora, a recorrente retoma esta matéria, sustentando que não está demonstrado que não possa edificar no terreno adquirido, não lhe cabendo o ónus de demonstrar o facto (positivo) contrário, ou seja, o de ser possível construir nesse terreno. E, ademais – acrescenta – o que releva para a verificação do facto impeditivo, é que o destino dado ao prédio seja diferente da cultura, não sendo necessário que esse destino seja, forçosamente, a construção – e é patente que ela, recorrente, não adquiriu o prédio para exploração agrícola, nem o destina a esse fim.
A recorrente não tem razão.
Não se põe em causa que ela adquiriu o prédio para o afectar a um fim diferente do da cultura: está provado que o fez para o destinar a construção urbana (n.º 16 da matéria de facto supra), e que o vem utilizando como depósito de materiais (n.º 21).
Mas isto não basta.
Como vem sendo reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência, o adquirente tem ainda de provar, como defenderam as instâncias, que nada se opõe a que se concretize a sua intenção de dar ao prédio uma outra afectação ou um outro destino, e que, portanto, essa projectada mudança de destino é legalmente possível, é permitida por lei.
É matéria que se insere no âmbito do facto impeditivo do direito invocado pelos autores e, por isso, o respectivo ónus probatório recai sobre “aquele contra quem a invocação é feita”, o mesmo é dizer, sobre a recorrente.
Ao contrário, pois, do que esta pensa, não era aos autores, ora recorridos, que cumpria fazer a prova de que a ré recorrente não pode edificar no terreno adquirido; a ela, recorrente é que cabia demonstrar que o podia fazer.
E até diligenciou por isso – encontrava-se já a correr a audiência de discussão e julgamento – através de requerimento, datado de 14.09.2004, em que solicitou à Câmara Municipal de Ílhavo informação sobre a viabilidade de implantar no terreno uma moradia. Todavia, como se alcança do documento que se acha a fls. 313 a 318, obteve resposta desfavorável, por o terreno se situar fora do perímetro urbano, em área abrangida pela Reserva Ecológica Nacional.
Vale, pois, concluir que, não tendo demonstrado a viabilidade legal de afectação do prédio adquirido ao fim concreto que lhe pretendia dar – construção urbana – a ré recorrente não logrou afastar o direito de preferência dos autores.
É certo que o que releva para a verificação do facto impeditivo é que o destino dado ao prédio seja diferente da cultura, não sendo necessário que esse destino seja, forçosamente, a construção – e é também patente que ela, recorrente, não adquiriu o prédio para exploração agrícola, nem o destina a esse fim. Mas o reconhecimento desta evidência não altera a situação: tendo adquirido o prédio para fim diferente da cultura, sempre o adquirente tem de demonstrar a possibilidade legal do fim que tem em vista, qualquer que este seja. Se o destina a construção tem de provar que nele é possível construir; se o destina a outro fim, diferente deste, tem que demonstrar que esse concreto fim visado é legalmente possível.
A recorrente vem utilizando o terreno como depósito de materiais. Mas, tal como refere a Relação, “também aqui, porque inserido na RAN e tratando-se de uma utilização não estritamente agrícola, tal afectação carece de autorização da comissão regional da reserva agrícola, (...) e a ré não provou essa autorização”.
É que “a possibilidade de afectar um terreno de cultura a finalidade diferente deve depender, não do critério egoísta dos proprietários vizinhos, mas antes e apenas de uma decisão administrativa, tomada em função dos interesses gerais da colectividade, de acordo com os planos de ordenamento do território” (6).
3.3. E terão os autores, com a instauração da presente acção, actuado “em claro abuso de direito”, como sustenta a recorrente?
O invocado abuso radica, no dizer desta, na circunstância de não pretenderem os autores, com o exercício do direito de preferência, redimensionar a sua exploração agrícola, aumentando a área desta, mas apenas a valorização do seu próprio terreno para fins urbanos, pelo aumento da área deste – fins a que ambos os terrenos estarão fatalmente votados. E, sendo essa a motivação dos autores, resulta clamorosa e absolutamente desvirtuado o fim social e económico em atenção ao qual o direito de preferência é concedido.
É, porém, evidente a falta de razão da recorrente.
A doutrina do abuso de direito tem, para o Prof. MANUEL DE ANDRADE, a função de obstar a “injustiças clamorosas”, a que possa conduzir, em concreto, a aplicação dos comandos abstractos da lei. E assim, para este insigne Mestre, haverá abuso de direito quando um certo direito, admitido como válido em tese geral, surge, num determinado caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, entendida segundo o critério social dominante.
Nas mesmas águas navega o Prof. VAZ SERRA, para quem “de um modo geral, há abuso de direito quando o direito, legítimo (razoável) em princípio, é exercido em determinado caso de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante”.
O abuso de direito é, como refere CASTANHEIRA NEVES, um princípio normativo, um postulado axiológico-normativo do direito positivo.
“Surge como uma forma de adaptação do direito à evolução da vida: por um lado, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social em determinado momento histórico, por outro, evitando que, observada a estrutura formal do poder que a lei confere, se exceda manifestamente os limites que se devem observar, tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo.”
Não precisaria sequer de ser afirmado em lei para se aceitar a sua vigência.
Mas o princípio tem consagração legal, repousando no seio do art. 334º do Cód. Civil.
Aí se dispõe que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Ora, o que pode, antes de mais, dizer-se, é que a invocação do abuso de direito surge como algo de contraditório no discurso global da recorrente. Contraditório porque, como vimos, a figura do abuso do direito pressupõe a existência do direito, sancionando apenas o modo como ele é exercitado, no caso concreto.
Negando a existência do direito dos autores – como o faz a recorrente – como pode esta sustentar, sem atropelo da lógica e da coerência, e sem incorrer em inultrapassável contradição, que aqueles abusam do (inexistente) direito?
Mas, ainda que assim não fosse, sempre a invocação do abuso de direito claudicaria, pela simples mas decisiva razão de que, em sede de julgamento da matéria de facto, não logrou a recorrente fazer a prova do que alegara como suporte para o alegado abuso de direito: o quesito 19º, que condensava essa matéria de facto, obteve a resposta de “não provado”. E da factualidade apurada nada permite concluir que a pretensão formulada pelos autores, nas circunstâncias e com os contornos que a rodeiam, tenha adentrado os domínios do excesso manifesto dos limites da boa fé ou do fim económico ou social do direito respectivo, que o art. 334º visa sancionar.
Carece, assim, de fundamento, a imputação aos autores do exercício do direito em termos indevidos e abusivos.
3.4. A solução dada às questões analisadas nos números precedentes permite intuir facilmente a resposta a dar à questão que a recorrente relegou para o final da sua peça recursória, para as duas últimas conclusões, tal como acima as deixámos enunciadas – a da insuficiência da matéria de facto.
Tal como decorre do disposto no art. 729º/1 do CPC(7)., o Supremo Tribunal de Justiça julga normalmente através do sistema de substituição: aplica aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue adequado.
O Supremo é um tribunal de revista, e, enquanto tal – e valendo-nos das palavras do Prof. ALBERTO DOS REIS – “um tribunal cuja função própria e normal é restabelecer o império da lei, corrigindo os erros de interpretação e aplicação das normas jurídicas cometidos pela Relação ou pelo Tribunal de 1ª instância”(8).
Por isso, não conhece, em regra, de questões de facto; a fixação dos factos cabe, em princípio, às instâncias.
No tocante à matéria de facto, a decisão proferida pelo tribunal recorrido não a pode o Supremo alterar, a não ser no caso excepcional previsto no n.º 2 do art. 722º, isto é, se houver ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
Já, porém, lhe é permitido fazer voltar o processo ao tribunal recorrido quando entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, de modo a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito (art. 729º/3).
Se o tribunal a quo não cumpre a sua função de explicitar, em indicação completa e exaustiva, os factos materiais da causa coarcta ao Supremo a possibilidade de definir o direito aplicável. Daí a faculdade que a este é conferida por este último preceito. Na verdade, como anota J. RODRIGUES BASTOS, essa faculdade “é para ser exercida quando as instâncias seleccionarem imperfeitamente a matéria da prova, amputando-a, assim, de elementos que consideraram dispensáveis mas que se verifica serem indispensáveis para o Supremo definir o direito”(9)..
Ora, como evidencia a análise feita às questões suscitadas nos números antecedentes, não se verifica o condicionalismo, acima referido, previsto no art. 729º/3: a matéria de facto submetida a julgamento (a provada e a não provada), conjugada com a que foi considerada assente na selecção operada na 1ª instância, permite dar resposta às questões de direito suscitadas na presente acção, não carecendo este Supremo Tribunal de mais alargada base factual para definir o direito.
Deve, aliás, salientar-se que a matéria agora enunciada pela recorrente como devendo ser sujeita a julgamento é exactamente a mesma que integrou a reclamação contra a selecção da matéria de facto, por aquela oportunamente formulada nos termos do n.º 2 do art. 511º. E essa reclamação foi exaustivamente apreciada pelo Ex.mo Juiz, e até mereceu parcial deferimento, com o aditamento de mais dois quesitos, um complementando a matéria dos arts. 122º, 123º, 124º, 127º e 128º da contestação (quesito 14º-A), e outro abarcando a matéria dos arts. 141º a 148º, respeitante ao abuso de direito (quesito 19º) – circunstância que, incompreensivelmente, a recorrente não teve em conta na formulação da última das suas conclusões, pois que também aí inclui, entre a que deveria ser sujeita a julgamento, a matéria destes apontados artigos.
Vale assim concluir que, também quanto à questão acabada de apreciar, não pode lograr atendimento a pretensão da recorrente.

4.

Face a tudo quanto se deixa exposto, no reconhecimento da improcedência das razões em que assenta, nega-se a revista.
Custas pela recorrente.


Lisboa, 04 de Outubro de 2007



Santos Bernardino(relator)
Bettencourt de Faria
Pereira da Silva
_________________________________

(1) Cfr. PIRES DE LIMA/A. VARELA, Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed., em anotação ao art. 1380º.
(2) Entendendo-se como tal os prédios de área inferior à unidade de cultura.
(3) Revogando os diplomas que vigoravam sobre a matéria – a já citada Lei 2116 e o Decreto 44.647, de 26 de Outubro de 1962.
(4) Na interpretação que temos como mais ajustada à letra e ao espírito da lei, e que vem, com a maestria habitual, explicitada pelo Prof. A. VARELA, na RLJ, ano 127º, a págs. 308 e ss., 326 e ss. e 365 e ss., em anotação ao Ac. do STJ, de 13.10.93, publicado na mesma revista, a págs. 294 e ss., que igualmente perfilhou o mesmo entendimento.
(5)Direito Económico, 1979, pág. 431.
(6) Direito de Preferência – parecer do Prof. HENRIQUE MESQUITA, Col. Jur., ano XI, t. 5, pág. 52.
(7) São deste Código as normas citadas na exposição subsequente sem indicação do diploma a que pertencem.
(8) Cód. Proc. Civil Anotado, vol. VI, (reimpressão), pág. 2.
(9) Notas ao Cód. Proc. Civil, vol. III, 1972, pág. 363.