Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1292/20.4T8FAR-A.E1.S1-A
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: JORGE MANUEL ARCANJO RODRIGUES
Descritores: RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
ACORDÃO FUNDAMENTO
ACÓRDÃO RECORRIDO
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
NULIDADE PROCESSUAL
DECISÃO SINGULAR
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
REFORMA DE ACÓRDÃO
INCONSTITUCIONALIDADE
VIOLAÇÃO DE LEI
PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO
FALTA DE NOTIFICAÇÃO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Data do Acordão: 01/23/2025
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO UNIFORMIZAÇÃO JURISPRUDÊNCIA
Decisão: JULGAR IMPROCEDENTE E RECLAMAÇÃO E CONFIRMAR A DECISÃO SINGULAR.
Sumário :
I- A notificação às partes do parecer do Ministério Público, proferido no âmbito do Recurso de Uniformização de Jurisprudência, apenas é obrigatória se contiver uma posição inovadora, ou seja, questões novas relevantes para o sentido da decisão.

II- Não configura nulidade processual, por violação do contraditório ( art.3º nº3 CPC), a falta de notificação às partes do parecer do Ministério Público se o mesmo não apresentou qualquer questão nova, na medida em que o parecer foi no sentido de fixar jurisprudência uniformizadora em termos semelhantes ao decidido no acórdão recorrido, sobre o qual os recorrentes já se haviam pronunciado.

Decisão Texto Integral:
Processo nº 1292/20.4T8FAR-A. E1.S1-A

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

(Pleno das Secções Cíveis Conjuntas)

I – RELATÓRIO

1.1.- Os Autores - AA e esposa BB - interpuseram recurso para uniformização de jurisprudência, invocando contradição entre o acórdão proferido nos presentes autos (acórdão recorrido) e o acórdão do S.T.J. de 18/4/2002, proferido no processo n.º 217/1996, revista 02B950, transitado em julgado em 2/5/2002, propondo o seguinte segmento uniformizador:

Nos termos do disposto no art.º 498.º n.º1 do C.C., quando se determina que tal prazo se conta do momento em que o lesado teve conhecimento, quer significar-se apenas que se conta a partir da data em que, conhecendo a verificação do pressuposto que condicionou a responsabilidade, soube ter direito a indemnização pelos danos que sofreu e não da consciência da possibilidade legal de ressarcimento, e tal prazo de 3 anos só começa a contar a partir do momento em que o lesado tomou conhecimento da produção efectiva desses novos danos, se se tratar de um facto continuado, e no caso de obrigação futura só prescrevem no prazo de três anos contados do momento em que cada uma seja exigível ou conhecida do lesado”.

1.2. – O Ministério Público, em 20 de janeiro de 2023, emitiu parecer no sentido de ser fixada jurisprudência em termos semelhantes aos que decorrem do acórdão recorrido, e no seguinte sentido:

“No âmbito da responsabilidade civil extracontratual e para efeitos de contagem do termo inicial do prazo de prescrição estabelecido no art.º 498.º, n.º 1 do Código Civil, mostra-se irrelevante a natureza instantânea ou continuada do ato lesivo de que emerge o direito de indemnização, porquanto o critério objetivo de contagem do prazo da prescrição adotado pelo legislador no art.º 306º, n.º 1, do Código Civil, afasta qualquer consideração nesse sentido.”

“Assim, o prazo de prescrição inicia-se na data do conhecimento pelo lesado da existência dos factos que integram os pressupostos legais do direito de indemnização ancorado na responsabilidade civil extracontratual”.

1.3.- O Pleno das Secções Cíveis conjuntas, por acórdão de 15/6/2023, decidiu:

“Nega-se provimento ao recurso, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas a cargo dos Recorrentes.

Fixa-se a seguinte Uniformização de Jurisprudência:

“O termo inicial do prazo prescricional, estabelecido no artigo 498.º n.º 1 do Código Civil, do direito de indemnização, com fundamento em responsabilidade civil extracontratual decorrente de ocupação ilícita de imóvel, deverá coincidir com o momento em que o lesado adquira conhecimento dos factos que integram os pressupostos legais do direito invocado, independentemente de, à data do início da contagem daquele prazo, ainda não ter cessado a produção dos danos que venham a ser reclamados.

Oportunamente, remeta certidão do acórdão para publicação na 1.ª série do Diário da República.”

1.4. - A Autora (notificada em 20/6/2023) veio em 27/6/2023, reclamar, arguindo a nulidade do processo, após prolação do Parecer do Digno Procurador Geral Adjunto de 20/1/2023, alegando, em resumo:

A requerente só pela notificação do acórdão de 15/06/2023, tomou conhecimento do aliás douto parecer.

Salvo melhor opinião tal parecer deveria ter sido notificado à recorrente para sobre ele se pronunciar, quando, como decorre do direito a um processo equitativo e, que o artº 20º da C.R.P consagra, bem como dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, estabelecidos no artº 3º, 4º e 6º todos do C.P.C

Entende a recorrente, que, quando o Ministério Público se pronuncia sobre matéria de Recurso, nos termos do disposto no artº 687 nº 1 e 2, e artº 194 do C.P.C, as partes devem ser notificadas para se pronunciarem sobre o seu conteúdo, ademais quando, como aqui acontece, parte da argumentação expendida é partilhada no Acórdão subsequente, sob pena, de não o tendo sido, ser omitida uma formalidade que deveria ter sido seguida.

Tal omissão consubstancia uma nulidade prevista no artº 195 nº 1 do C.P.C, porque impediu a recorrente de se pronunciar sobre um parecer que lhe era desfavorável.

A aplicação ao caso dos autos do Acórdão Fundamento, uma vez que a extensão e natureza dos danos decorrentes da ocupação do imóvel, serão sempre diferentes dia a dia, atenta a quantificação e qualificação dos agentes, que ao longo do tempo, vão utilizando de formas e quantidades diferentes o mesmo imóvel.

A nulidade está a ser arguida dentro do prazo geral previsto no art. 199.º do C.P.C., ou seja, no prazo de 10 dias após a notificação do acórdão de 15 de junho de 2023, momento no qual o Recorrente tomou conhecimento da omissão da formalidade em apreço.

O presente acórdão não tem recurso ordinário possível, razão pela qual a nulidade tem de ser arguida perante o próprio Supremo Tribunal, não se tendo por esgotado o poder jurisdicional deste Tribunal quanto a tal matéria, como a doutrina e a jurisprudência têm entendido.

Por cautela, vem arguir-se a inconstitucionalidade do art. 687º Nº 1 do C.P.C quando interpretado no sentido de que, tendo o Ministério Público emitido parecer sobre a matéria de recurso, não têm as partes de ser notificadas para se pronunciarem, querendo, sobre o mesmo, ademais quando tal parecer é citado e tido em conta na argumentação do acórdão final proferido -, por violação do direito a um processo equitativo, tal como previsto no art. 20.º da C.R.P.

Por cautela, vem ainda arguir-se a inconstitucionalidade do art. 613.º do C.P.C., quando interpretado, no sentido de que, proferida decisão final não passível de recurso ordinário, está esgotado o poder jurisdicional do tribunal relativamente à arguição de uma nulidade praticada em momento anterior à prolação do acórdão, mas de que a parte só tomou conhecimento em momento posterior, por violação do direito a um processo equitativo, tal como previsto no art. 20.º da C.R.P.

Requereu que seja deferida a arguida nulidade do processado, após o parecer do Ministério Público, com as legais consequências, anulando-se o Acórdão de 15 de Junho de 2023, e dando-se às partes sempre a oportunidade de se pronunciarem sobre o mesmo parecer do Ministério Público.

1.5. – Por decisão de 14/7/2023 foi suspensa a instância por óbito do Autor marido.

1.6. – Por sentença de 2/2/2024 foram habilitados AA, CC e DD

1.7. – Em 15/2/2024, os habilitados CC e DD reafirmaram a arguição de nulidade reclamada pela Autora.

1.8 – Por decisão singular de 6 de maio de 2024 julgou-se improcedente a arguição de nulidade processual.

1.9.-Os requerentes AA, CC e DD reclamaram para a conferência artº 652 nº 3 do C.P.C, por força do artº 679 – 1ª parte e 687 do C.P.C,

Alegaram, em síntese:

O Parecer do Ministério Público enuncia um “pensamento novo que nem sequer foi tratado, nem propriamente no Acórdão Recorrido nem no Acórdão Fundamento” quando se afirma, para a exclusão da tese do “Acórdão Fundamento “que: “Um outro argumento a favor da tese para a qual propendemos, prende-se com o facto de o próprio legislador no artigo 498.º do Código Civil não ter distinguido entre ilícitos de produção instantânea e ilícitos de produção continuada. Se o legislador não o fez, afigura-se-nos que não cabe ao intérprete fazê-lo, já que, por exemplo, houve ocasiões em que aquele, a propósito da caducidade e da prescrição, distinguiu consoante as situações eram de facto continuado ou duradouro, designadamente nos seguintes casos: art.º 1085.º, n.º 2, do CCivil, relativamente à caducidade do direito à resolução do contrato de arrendamento, art.º 1786.º, n.º 2, do mesmo diploma, na redação anterior à Lei 61/2008, de 31 de outubro, relativamente aos factos continuados que fundamentavam o divórcio ou o artigo 3.º do DL 218/99, de 15 de Junho, nos termos do qual os créditos emergentes de cuidados hospitalares prescrevem no prazo de três anos a contar da cessação da prestação dos serviços que lhe deram origem. O mesmo sucede, por exemplo, nos crimes permanentes e nos crimes continuados e relativamente aos quais se estabelece que o prazo de prescrição do procedimento criminal só corre desde o dia em que cessa a consumação ou desde o dia da prática do último ato, cf. art.º 119.º do Código Penal. Cumpre ainda referir que a posição sufragada em nada prejudica o lesado/credor, porquanto não estando o exercício do direito de ação dependente nem da identificação segura da pessoa do responsável (art. 498º, nº 1, do CC), nem da delimitação e quantificação exata dos danos, os seus direitos ficam suficientemente salvaguardados, uma vez que é admissível a dedução de pedidos genéricos sujeitos a posterior liquidação (art. 559.º do CC), ou o juiz pode arbitrar uma indemnização provisória, dentro dos limites dos danos já provados à data da sentença (artigo 565.º CC), dentro dos limites do prazo ordinário de prescrição (art.º 309.º do CC), o lesado pode , ainda requerer a indemnização correspondente a qualquer novo dano de que só tenha conhecimento dentro dos três anos anteriores (Acórdão do STJ, 22.02.2009, 180/2002.S2)”.

Mas se assim é parece antes de mais, que se está a aderir à tese do Acórdão recorrido. Donde, se trata de um facto e de um argumento novo, trazido pelo próprio parecer, que carecia de ser respondido, escalpelizado e desenvolvido. Pois do que se trata, era que pelo menos os A.A recorrentes, pudessem ser indemnizados pelos danos produzidos nos três últimos anos da ocupação, pois como é claro, só deles tiveram conhecimento nesses mesmos três anos anteriores (um dano resultante de uma ocupação, só se produz na realização da mesma e não antes).”.

Quanto à inconstitucionalidade – “Reafirmando-se tudo o que nesta matéria anteriormente foi reproduzido, a interpretação em favor de Acórdão recorrido, ao não admitir, a possibilidade do exercício do direito a indemnização, viola manifestamente o direito a propriedade privada, pois na tese do Acórdão percorrido, quanto à quantificação do direito a indemnização, decorrente de um dano continuado, quando contabilizado para além dos três anos do seu inicio, possibilita-se que o ocupante, possa fazê-lo até ao fim da mesma ( sem existir reivindicação) sem indemnizar o proprietário, sendo assim tal interpretação inconstitucional por manifesta violação do disposto no artº 62 nº 1 da C.R.P”.

II - FUNDAMENTAÇÃO

2.1. – A decisão singular contém a seguinte fundamentação:

“Os Autores arguiram a nulidade processual (art.195 CPC) por violação do contraditório (art.3 nº3 CPC), alegando que não foram notificados do Parecer do Ministério Público e pretendem a anulação dos actos processuais subsequentes ao parecer, incluindo do acórdão.

Após a admissão do recurso para uniformização de jurisprudência, a lei determina que “o processo vai com vista ao Ministério Público, por 10 dias, para emissão de parecer sobre questão que origina a necessidade de uniformização e jurisprudência” (art. 687 nº1, por força do art.695 nº1 CPC).

O Ministério Público intervém, não como parte, mas como defensor da legalidade, visto estar em causa um interesse público, que é precisamente o da coerência jurisprudencial e da segurança jurídica, e tal atribuição decorre directamente da lei (art. 4º nº1 a) e m) da Lei nº 68/2019 de 27/8).

A lei processual não prevê a notificação do parecer do Ministério Público às partes, não tendo aplicação as regras das notificações dos arts.247 e 248 CPC, precisamente porque ao emitir parecer não actua como parte, assumindo antes uma posição de neutralidade, como amicus curiae, atenta a natureza e finalidade do recurso para uniformização de jurisprudência.

Por outro lado, a notificação do parecer do Ministério Público não decorre do princípio do contraditório, porque o art.3º nº3 CPC ao impor que o juiz deve fazer cumprir o contraditório, ao longo de todo o processo, reporta-se às partes. Ou seja, no recurso para uniformização de jurisprudência não se estabelece contraditório entre as partes e o Ministério Público.

Como é sabido, o princípio do contraditório, enquanto princípio estruturante do processo civil, exige que se dê a cada uma das partes a possibilidade de apresentar as suas razões (de facto e de direito), de oferecer as suas provas, de controlar as provas do adversário e de discretear sobre o valor e resultados de umas e outras. E a norma do nº3 do art.3º do CPC, introduzida pela Reforma de 1995/96, mantida no actual CPC, veio ampliar o âmbito tradicional do princípio do contraditório, como garantia de uma discussão dialéctica ou polémica entre as partes no desenvolvimento do processo.

Mas não sendo o Ministério Público parte, não há violação do princípio do contraditório, nem do princípio da igualdade das partes. Não prevendo a lei a notificação às partes do Parecer do Ministério Público, não se verifica qualquer violação da lei processual.

O Supremo Tribunal de Justiça já decidiu, de forma unânime, que no âmbito do recurso de uniformização de jurisprudência em processo penal o Parecer do Ministério Público não tem de ser notificado aos sujeitos processuais e a sua omissão não configura qualquer irregularidade processual. Assim, o Ac STJ de 18/1/2018 (proc nº1211/12.1PBSXL.L2-A.S1) “Não havendo disposição processual que preveja nem princípio do contraditório na dimensão material-processual que imponha a notificação do parecer que, na fase preliminar do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, o MP emite ao abrigo do disposto no art. 440.º, n.º 1, do CPP, não se verifica a arguida irregularidade”. No mesmo sentido, por exemplo, Ac STJ de 20/2/2013 (proc nº388/05.2TAVRL.P1-A.S1), Ac STJ de 19/4/2017 ( proc nº 13827/12.1T0.PRT.P1.S1), Ac STJ de 18/5/2017 (proc. nº 28/13.0TSPPRT.P1.S1), disponíveis em www dgsi.pt ).

Mas ainda que se considerasse a imposição legal da notificação do Parecer do Ministério Público, a sua omissão, na ausência de sanção especificamente declarada, consubstanciaria uma nulidade processual desde que tal irregularidade influísse no exame e decisão da causa (art.195 nº1 CPC), o que aqui não sucede.

Para se saber se a infracção cometida influi ou não no exame e decisão da causa pode convocar-se o chamado “critério do fim”, em que os actos do processo têm por finalidade assegurar a justa decisão da causa, ou seja, a “justa composição do litígio”, e a omissão da notificação do Parecer jamais comprometeu esse julgamento.

E não comprometeu porque, por um lado, o Parecer não é vinculativo, nem apresentou uma solução inovatória, e, por outro, tendo os Autores –recorrentes –pedido uniformização de jurisprudência, expondo nas respectivas alegações a sua posição sobre a questão de direito, é manifesto que o acórdão de uniformização foi tomado com respeito pelo contraditório, visto que os Autores tiveram a possibilidade de se pronunciarem.

A arguição de inconstitucionalidade:

Os reclamantes arguiram a inconstitucionalidade por violação do direito a um processo equitativo, tal como previsto no art. 20 da CRP, do art. 613 CPC., quando interpretado, no sentido de que, proferida decisão final não passível de recurso ordinário, está esgotado o poder jurisdicional do tribunal relativamente à arguição de uma nulidade praticada em momento anterior à prolação do acórdão, mas de que a parte só tomou conhecimento em momento posterior, e do art. 687 nº 1 do CPC quando interpretado no sentido de que, tendo o Ministério Público emitido parecer sobre a matéria de recurso, não têm as partes de ser notificadas para se pronunciarem.

Acrescentaram ainda que “o referido parecer e o entendimento do Acórdão de 15 de Junho de 2016, que lhe é consequente, face ao entendimento que prescreveu quanto à interpretação do disposto no art. 498 nº 1 do C.C., fixando o termo inicial do prazo prescricional aí definido, a coincidir com o momento em que o lesado adquiriu conhecimento dos factos que integram os pressupostos legais do direito invocado, sem atender ao momento da cessação dos danos que venham a ser reclamados, ( dano continuado) está ferido de inconstitucionalidade, por ofensa ao disposto no artº 62 nº 2 da C.R.P, nomeadamente pondo em causa o direito à justa indemnização prevista no seu nº2, e ofendendo assim o direito fundamental constitucionalmente aí consignado, o direito de propriedade - o que aqui se alega, também para os devidos efeitos, e por aplicação ainda do disposto nos artº 17º e 18º da C.R.P ( Direito análogo aos direitos fundamentais liberdades e garantias )”.

É sabido que o controlo da constitucionalidade tem natureza estritamente normativa, “em que a norma é tomada, não com o sentido genérico e objectivo plasmado no preceito (ou fonte) que a contem, mas em função do modo como foi perspectivada e aplicada à dirimição de certo caso concreto pelo julgador” ( cf. Lopes do Rego, “O objecto idóneo dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade: as interpretações normativas sindicáveis pelo Tribunal Constitucional“, Jurisprudência Constitucional nº3, Julho/Setembro 2004, pág.7 ).

Não é pertinente, nem oportuna, a alegada inconstitucionalidade do art.613 CPC, na medida em que a norma não foi aqui aplicada, logo não integra a ratio decidendi.

A alegada inconstitucionalidade, por violação do art.62 nº2 CRP, do Parecer do Ministério Público e do acórdão de uniformização terá que ser liminarmente rejeitada.

Em primeiro lugar porque o juízo de inconstitucionalidade apenas pode incidir sobre decisões dos tribunais (art.70 nº1 LTC) e não sobre pareceres.

Depois, porque a reclamação não é aqui o meio adequado, nem está em tempo, para a suscitação da inconstitucionalidade do acórdão de uniformização. É que a questão da inconstitucionalidade deve ser suscitada durante o processo de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer (arts. 70.º, n.º 1, als. b) e f), e 72.º, n.º 2 da LTC).

Afirma-se, por exemplo, no Acórdão nº 155/95 – “A inconstitucionalidade de uma norma jurídica só se suscita durante o processo, quando tal se faz a tempo de o tribunal recorrido poder decidir essa questão - o que, salvo casos excepcionais e anómalos, em que, por o recorrente não ter oportunidade processual de cumprir esse ónus, ele deve ser dispensado do seu cumprimento (cf., entre outros, o Acórdão nº 391/89, publicado no Diário da República, II série, de 10 de Setembro de 1989), exige que essa suscitação se faça antes de ser proferida decisão sobre a matéria a que respeita a questão de constitucionalidade. Além disso, necessário é ainda que tal questão seja suscitada “de forma clara e perceptível” (cf. Acórdão nº 560/94, publicado no Diário da República, II série, de 10 de Janeiro de 1995; cf. também o Acórdão nº 253/93, por publicar), que o mesmo é dizer que o seja em termos de o tribunal recorrido ficar a saber que tem essa questão para resolver (cf. o Acórdão nº 269/94, (Diário da República, II série, de 18 de Junho de 1994))”.

Os Autores tiveram oportunidade de suscitar eventual inconstitucionalidade nas alegações do recurso e não o fizeram. Por isso, se tem entendido que o incidente de arguição de nulidade processual não é o momento processual próprio para arguição de inconstitucionalidades.

Além disso, conforme jurisprudência constitucional uniforme, o recurso de constitucionalidade sobre determinada interpretação normativa deve incidir sobre o critério normativo da decisão, sobre uma regra abstratamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica, não podendo destinar-se a sindicar o puro acto de julgamento. Ora, a coberto da inconstitucionalidade, os reclamantes mais não fazem do que impugnar a solução ditada no acórdão de uniformização e a consequente manutenção do acórdão recorrido.

Resta apreciar a invocada inconstitucionalidade por violação do princípio a um processo equitativo, de modo a saber se este impunha ou não a notificação às partes do Parecer do Ministério Público.

A interpretação do art.687 nº1 CPC, no sentido de que não impõe a notificação do Parecer do Ministério Público às partes, não viola o art.20 da CRP, que garante a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos (nº 1) e a efectivação desse direito através de um processo equitativo (nº 4).

Da variada e profícua jurisprudência constitucional sobre o processo equitativo, realce para a síntese feita no Acórdão nº 462/2016 - “o direito de ação ou direito de agir em juízo, efetivado através de um processo equitativo, entendido num sentido amplo, significa não apenas que o processo deverá ser justo na sua conformação legislativa, mas também que deverá ser um processo informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais, de modo a que seja adequado a uma tutela judicial efetiva”. Assim, “a doutrina e a jurisprudência têm procurado densificar o princípio do processo equitativo através de outros princípios: (1) direito à igualdade de armas ou direito à igualdade de posições no processo, com proibição de todas as discriminações ou diferenças de tratamento arbitrárias; (2) o direito de defesa e o direito ao contraditório traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar as provas da outra parte, pronunciar-se sobre o valor e resultado destas provas; (3) direito a prazos razoáveis de ação ou de recurso, proibindo-se prazos de caducidade exíguos do direito de ação ou de recurso; (4) direito à fundamentação das decisões; (5) direito à decisão em tempo razoável; (6) direito ao conhecimento dos dados processuais; (7) direito à prova, isto é, à apresentação de provas destinadas a demonstrar e provar os factos alegados em juízo; (8) direito a um processo orientado para a justiça material sem demasiadas peias formalísticas. (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2007, págs. 415 e 416)”. Acrescentando “se é certo que a exigência de um processo equitativo não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta modelação do processo, impõe, contudo, no seu núcleo essencial, que os regimes adjetivos proporcionem aos interessados meios efetivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, bem como uma efetiva igualdade de armas entre as partes no processo, não estando o legislador autorizado a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva.”

O Tribunal Constitucional tem, portanto, defendido que o princípio do contraditório se integra no direito de acesso aos tribunais, consagrado no art.20 da CRP. Tal como se sublinhou, por exemplo, no Acórdão nº 358/98, reiterando o que se tinha afirmado no Acórdão nº 249/97 “o processo de um Estado de Direito (processo civil incluído) tem, assim, de ser um processo equitativo e leal. E, por isso, nele, cada uma das partes tem de poder fazer valer as suas razões (de facto e de direito) perante o tribunal, em regra, antes que este tome a sua decisão. É o direito de defesa, que as partes hão-de poder exercer em condições de igualdade. Nisso se analisa, essencialmente, o princípio do contraditório, que vai ínsito no direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20 nº1, da Constituição”.

Numa segunda observação, importa referir que a noção do processo equitativo reclama uma contextualização dos actos processuais, não de forma atomística de cada elemento, mas a consideração do processo no seu conjunto, como, a propósito do art.6 da CEDH, informa Irineu Cabral Barreto - “A figura do processo equitativo não pode ser definida in abstrato, antes deve ser verificada segundo as circunstâncias particulares de cada caso, tomando em consideração o processo no seu conjunto; e portanto, não pode ser considerado um elemento isolado, salvo se ele revestir uma importância tal que deva ser considerado decisivo para apreciação global do processo.”( “A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada”, 2010, 4.ª edição, Coimbra Editora, p. 165).

O recurso para uniformização de jurisprudência requerido pelos Autores, que culminou com o acórdão de uniformização, em que se perfilhou o entendimento do acórdão recorrido e se rejeitou os fundamentos alegados pelos recorrentes, respeitou o princípio do processo equitativo, na acepção definida.

A circunstância da lei, nomeadamente no art.687 nº1 CPC, não prever a expressa notificação do parecer às partes é justificada pela liberdade de conformação legislativa, tendo em conta a natureza e finalidade do recurso, bem como a natureza da intervenção do Ministério Público.

O Tribunal Constitucional tem jurisprudência reiterada e uniforme no sentido de que a audição prévia do recorrente sobre o parecer do Ministério Público apenas se impõe se por ele forem introduzidas questões novas relevantes para a decisão a proferir (cf., por exemplo, os Acórdãos n.ºs 354/2016, 604/2017, 442/2018, 255/2021, 552/2021, 746/2022, 49/2023, 157/2023, 426/2023, 86/2024).

Pois bem, a posição do Ministério Público não é inovatória, porquanto emitiu parecer no sentido de se acolher uma interpretação semelhante à adoptada no acórdão recorrido, alegando ser irrelevante a natureza instantânea ou continuada do acto lesivo de que emerge o direito de indemnização.

Mas sobre esta interpretação já os recorrentes/reclamantes se haviam pronunciado nas alegações de recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, contrapondo as suas objecções, baseadas no acórdão-fundamento.

Sendo assim, não se verifica qualquer agressão ao princípio do processo equitativo, por violação do contraditório.”

2.2. – Os reclamantes não trazem argumentos novos, porfiando na alegação anteriormente feita.

Por isso, validam a decisão singular de indeferimento da arguição de nulidade com base no segundo fundamento, adrede exposto, que se mostra alinhado pela jurisprudencial constitucional , afirmando-se, por exemplo, no Acórdão do TC nº 86/2024 –“ Constitui jurisprudência reiterada e uniforme deste Tribunal que a audição prévia do recorrente/reclamante sobre o parecer/resposta do Ministério Público apenas se impõe caso a posição por este assumida contenha questões novas, que sejam relevantes para o sentido da decisão a proferir (v., entre outros, os Acórdãos n.ºs 696/2013, 117/2014, 218/2016, 354/2016, 604/2017, 442/2018, 255/2021, 552/2021, 746/2022, 49/2023 e 157/2023)”.

Na verdade, muito embora o parecer do Ministério Público deva ser notificado às partes quando for inovador, por assim poder influir na decisão da causa, não ocorre aqui a preconizada nulidade processual, cominada no art.195 nº1 CPC, porque, conforme se justificou, a falta de notificação do parecer do Ministério Público não comprometeu a justa decisão adoptada, na medida em que não apresentou uma solução inovatória, tanto mais que foi no sentido de fixar jurisprudência uniformizadora em termos semelhantes ao decidido no acórdão recorrido, sobre o qual os recorrentes já se haviam pronunciado.

A coberto da arguição de nulidade processual os requerentes mais não fazem do que impugnar a decisão de mérito, ou seja, a pronúncia do Pleno sobre a uniformização de jurisprudência fixada, servindo-se dela para virem agora, de forma extemporânea, suscitar a inconstitucionalidade da norma interpretada no acórdão de uniformização de jurisprudência, quando não o fizeram nas alegações de recurso.

Mas, a arguição de nulidade processual, tal como “a arguição de nulidades de acórdão, ou o pedido de reforma do mesmo, não se traduz no mecanismo idóneo para solicitar ao tribunal que proferiu a decisão a reponderação do enquadramento jurídico das questões colocadas no recurso, nem tão pouco para invocar a não constitucionalidade de normas legais” (cf., por ex., Ac STJ de 20-6-2023, proc nº 6854/18.T8PRT.F. P1.S2, disponível em www dgsi ).

Reafirma-se que o parecer do Ministério Público não introduziu no recurso qualquer posição verdadeiramente inovatória em relação ao seu objecto. Aliás, sendo o parecer semelhante à posição adoptada pelo acórdão recorrido, como os próprios reclamantes reconhecem, e tendo-se uniformizado a jurisprudência nesse sentido, é abusivo falar-se em “pensamento novo”.

Os reclamantes insistem na alegação de inconstitucionalidade, agora dizendo que “a interpretação a favor do Acórdão recorrido, ao não admitir a possibilidade do direito a indemnização viola manifestamente o direito de propriedade privada”, pelo que tal interpretação é inconstitucional, por violação do art.62 nº1 CRP. Contudo, esta questão é suscitada já depois de esgotado o poder jurisdicional sobre a matéria em causa, objecto da uniformização jurisprudencial, não sendo o incidente da nulidade processual o meio adequado para o efeito.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:

Julgar improcedente a reclamação e confirmar a decisão singular.

Condenar os reclamantes nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 Ucs.

Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 23 de Janeiro de 2025

Jorge Manuel Arcanjo Rodrigues (Relato)

Ana Paula Lobo, com a declaração de que o parecer do Mº. Pº deve ser notificado.

Manuel José Aguiar Pereira

Isabel Salgado

Jorge Leal

Emídio Francisco Santos

Nelson Borges Carneiro

Luís Fernando dos Santos Correia de Mendonça

Maria do Rosário Gonçalves

Henrique Antunes

Maria de Deus Correia

Anabela Luna de Carvalho

Orlando dos Santos Nascimento

Cristina Coelho

Maria Teresa Albuquerque

Rui Machado e Moura

Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza

Maria Clara Sottomayor

Maria da Graça Trigo

Fátima Gomes

Graça Amaral

Maria Olinda Garcia

Catarina Serra

António Oliveira Abreu

Maria João Vaz Tomé

António Magalhães

José Maria Ferreira Lopes

António Barateiro Martins

Fernando Baptista

Ricardo Alberto Santos Costa, voto o acórdão, sem subscrever na íntegra a fundamentação exposta no ponto 2.2, antes apenas a constante da decisão singular reclamada.

Luís Espírito Santo (subscrevendo a declaração do Ex.º Conselheiro Dr. Ricardo Costa.)