Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7962/21.2T8VNG.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: ARGUIÇÃO DE NULIDADES
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
CONSTITUCIONALIDADE
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Data do Acordão: 01/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: ACLARAÇÃO INDEFERIDA
Sumário :

I - A nulidade por omissão de pronúncia, representando a sanção legal para a violação do estatuído no nº 2 do artigo 608º do CPC, apenas se verifica quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre as “questões” pelas partes submetidas ao seu escrutínio, ou de que deva conhecer oficiosamente, como tais se considerando as pretensões formuladas por aquelas, mas não os argumentos invocados, nem a mera qualificação jurídica oferecida pelos litigantes.

II - Não constitui nulidade por omissão de pronúncia o não conhecimento de uma suposta questão de constitucionalidade que não foi suscitada previamente e de modo processualmente adequado ao tribunal recorrido, em termos que o vinculassem a uma decisão.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

I – Relatório

1. Electronic Arts Inc., ré nestes autos, veio, ao abrigo do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), ex vi artigo 666.º e 685.º, todos do Código de Processo Civil (CPC), arguir nulidade por omissão de pronúncia do acórdão de 16.11.2023, no termos que de seguida se transcrevem:

«1. Por acórdão deste douto tribunal, foi declarada a competência internacional do Juízo Central Cível do Tribunal de ....

2. Sucede que não foram apreciadas todas as questões que competia analisar ao Supremo Tribunal de Justiça, designadamente a invocação da existência de interpretação inconstitucional do art.º 62.º, alínea b) do CPC, por se incluir no âmbito desta norma o critério de centro de interesses – questão identificada expressamente na motivação do recurso, sob os itens n.º 122 a 135 e conclusões sob as alíneas mm) e nn).

3. Com efeito, dentre as duas distintas questões de inconstitucionalidade expressamente suscitadas e sobre as quais explicitamente se requereu a prolação de decisão pelo Supremo (inclusive para efeitos dos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), 72.º, n.º 2 e 75.º-A, n.º 2, todos da Lei n.º 28/82), apenas foi objeto de apreciação a alegação de inconstitucionalidade art.º 38.º, n.º 1 da LOSJ e 351.º do CC (pela qual a ré sustentou que a declaração de incompetência não se baseou apenas nos factos alegados pelo autor, mas em presunções).

4. Questão diversa e que exige apreciação autónoma e separada pelo Tribunal é a relativa à primeira das duas questões de inconstitucionalidade suscitadas, relativa à inclusão de um critério de centro de interesses no art.º 62.º, alínea b) que se refere ao princípio da causalidade: a causa é indiscutivelmente distinta do efeito (no sentido de local da produção do dano).

5. O art.º 62.º, b) do CPC dispõe que:

– “Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:

(…) b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram”.

6. Todavia, a formulação interpretativo-normativa cuja inconstitucionalidade a reclamante suscita, que foi expressamente adotada pelo TRP, agora secundada pelo STJ, expõe-se nos seguintes termos:

– “Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:

b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram ou quando o autor tenha o seu centro de interesses em Portugal”

7. Esta interpretação normativa é inconstitucional, pois consiste na introdução dum critério interpretativo que não encontra expressão na lei positivada, no pensamento legislativo ou na unidade do sistema jurídico.

8. Afirmar o contrário, sob o pretexto do princípio de direito europeu da interpretação conforme constitui subversão da unidade do sistema jurídico a favor da importação de critérios interpretativos desenvolvidos pela jurisprudência europeia, para normativos distintos, com sentidos diferentes e cujo âmbito de aplicação e critérios interpretativos são distintos da lei nacional – como, aliás, foi já apontado, com notória acuidade, pelo Prof. Doutor Miguel Teixeira de Sousa1.

9. Como refere este Insigne Professor:

“…a jurisprudência do STJ que tem aceitado a competência dos tribunais portugueses para a apreciação da indemnização pedida pelos demandantes padece de um salto lógico na transposição da jurisprudência europeia para a ordem interna portuguesa e, em especial, para a aplicação do critério da causalidade estabelecido no art. 62.º, al. b), CPC.”.

(…) É, assim, mais do que discutível que a jurisprudência europeia possa ser transporta para um caso a solucionar pelo direito interno português, dado que este não comporta nenhumas regras semelhantes àquelas que se encontram estabelecidas nos referidos instrumentos europeus.”.

(…) Em conclusão: perante enquadramentos legais totalmente díspares e elementos de facto igualmente distintos não podem ser defendidas as mesmas soluções.”

10. A interpretação normativa inconstitucional ao produzir uma interpretação contra legem, em sentido que não apresenta correspondência com o texto da norma, prevista no art.º 62.º, b) do CPC, consubstancia violação dos princípios do estado de direito.

11. No recurso de constitucionalidade, explicitou-se que as regras de interpretação jurídica que integram o Estado de Direito e seus subprincípios da legalidade, da proteção da confiança dos cidadãos e da certeza e da segurança jurídicas, não permitem extrair de uma norma jurídica um sentido que não está, sob qualquer prisma, no seu texto.

12. O que foi feito, quando se chega ao ponto de ler no princípio da causalidade vertido no art.º 62.º, alínea b) do CPC um critério relativo ao centro de interesses do autor.

13. Afirmar que princípios interpretativos são intercambiáveis, independentemente da fonte normativa aplicável e do sentido positivado na norma em causa, comporta uma violação da Lei e de princípios fundamentais da Constituição da República Portuguesa.

14. Abordou-se, também, no decurso do processo e, em particular nas alegações de recurso de revista, que uma interpretação jurídica que assume estar integrado, no art.º 62.º, alínea b) do CPC, o critério do centro de interesses do autor é manifestamente contrária à lei e à sua literalidade, ao ponto de traduzir violação do princípio de separação dos poderes e dever de obediência à lei porque o tribunal decide contra o disposto na lei e “à boleia” de jurisprudência do TJUE sobre direito europeu, inaplicável a este pleito.

15. E competia ao Tribunal apreciar e decidir esta concreta questão de inconstitucionalidade, omissão que é cominada com a sanção de nulidade.

16. Como já este STJ afirmou, “Verifica-se a nulidade por omissão de pronúncia se o STJ não equacionou nem decidiu uma questão suscitada pela recorrente nas suas conclusões do recurso de revista, no caso a arguição da inconstitucionalidade do art.º 640.º, n.º 1, do C.P.C.” (acórdão do STJ de 14.10.2020, Proc. n.º 283/08.8TTBGC-B.G1.S1).

17. Ao STJ competia, como ressalta à saciedade, emitir pronúncia expressa, substantiva, também no âmbito desta invocação de inconstitucionalidade suscitada pela ré, relativa à adoção do critério do centro de interesses para apreciar a competência internacional, através da interpretação do art.º 62.º, alínea b) do CPC.

18. Não o tendo feito, o acórdão está irremediavelmente inquinado do vício de omissão de pronúncia como consolidadamente a jurisprudência das mais altas instâncias nacionais sucessivas vezes declarou:

– “É nula, por omissão de pronúncia, a sentença que não se pronuncie sobre questão de inconstitucionalidade, de conhecimento oficioso, suscitada pela impugnante nas suas alegações finais.” (acórdão do STA de 14.05.2014, Proc. n.º 0195/13).

19. Lendo-se ainda na fundamentação deste aresto do STA:

“Foi, porém, junto autos em 19 de Outubro de 2009 um parecer jurídico subscrito pelo Professor Doutor Casalta Nabais (…), no qual, para além do aprofundamento da questão da inconstitucionalidade material do artigo 18.º-A do Decreto-Lei n.º 442-B/88, se suscitaram ainda a questão da inconstitucionalidade orgânica de tal norma, por desrespeito da lei de autorização legislativa (…) e bem assim a própria inconstitucionalidade desta Lei de autorização legislativa, em virtude de a mesma não respeitar as exigências constitucionais relativas ao objecto, ao sentido e à extensão constitucionalmente impostas às leis de autorização legislativa, sendo por isso inconstitucional, por violação directa do princípio da legalidade fiscal (…) Nada se consignou na sentença recorrida a propósito desta última questão – que é verdadeiramente uma questão, e não apenas um novo argumento no sentido da inconstitucionalidade material do artigo 18.º-A do Decreto-Lei n.º 442-B/88 – sendo que se lhe impunha referência, porque de conhecimento oficioso e expressamente suscitada, razão pela qual, como alegado, está ferida de nulidade a sentença recorrida.”.

20. Deve por isso ser declarada a nulidade por omissão de pronúncia da decisão sub judice e este STJ conhecer e decidir a invocada inconstitucionalidade da interpretação do art.º 62.º, alínea b) do CPC, ao integrar-se o critério desenvolvido pela jurisprudência europeia denominado de “centro de interesses” no (diferente) critério da causalidade aí previsto.

Termos em que se requer que seja declarada a nulidade por omissão de pronúncia do acórdão de 16.11.2023, por não ter procedido à apreciação e decisão da primeira e autónoma inconstitucionalidade invocada pela ré, no recurso de revista (e em momentos anteriores dos autos na 1.ª instância e reposta ao recurso de apelação), relativa à integração do critério do centro de interesses na interpretação e aplicação do art.º 62.º, alínea b) do CPC que consagra o princípio da causalidade.

2. Notificado o recorrido do teor da reclamação, o autor nada veio dizer.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

1. Como, de modo reiterado, se afirma na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, «(…) a nulidade por omissão de pronúncia, representando a sanção legal para a violação do estatuído naquele nº 2 do artigo 608º do CPC, apenas se verifica quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre as “questões” pelas partes submetidas ao seu escrutínio, ou de que deva conhecer oficiosamente, como tais se considerando as pretensões formuladas por aquelas, mas não os argumentos invocados, nem a mera qualificação jurídica oferecida pelos litigantes” ( cfr. Acórdão do Supremo tribunal de Justiça, de 10.12.2020, proc. 12131/18.6T8LSB.L1.S1), não incorrendo em omissão de pronúncia o acórdão que, tendo conhecido das questões que lhe competia apreciar, não respondeu, um a um, a todos os argumentos avançados pelo recorrente ou não apreciou questões com conhecimento prejudicado pela solução dada à anterior questão (cfr. o Acórdão do Supremo tribunal de Justiça, de 16.10.2002, proc. 02S1599).

2. Alega a reclamante que suscitou uma questão de constitucionalidade de uma interpretação normativa do artigo 62.º, al. b), do CPC, nos termos da qual o centro de vida do autor seria o critério a utilizar para decidir da questão do tribunal competente, e que o Acórdão proferido por este Supremo Tribunal não a conheceu, tendo incorrido por isso em nulidade por omissão de pronúncia.

3. Vejamos:

Compulsado o acórdão recorrido, decorre que ao delimitar o thema decidendum, o Supremo nele inclui a seguinte questão:

«II – Inconstitucionalidade da aplicação dos artigos 62.º do CPC, 38.º, n.º 1, da LOSJ e 351.º do Código Civil a fim de reconhecer a competência internacional dos tribunais portugueses, por violação de normas e princípios constitucionais ínsitos nos artigos 2.º, 8.º, 13.º, n.º 1, 20.º, n.º 4, 203.º e 204.º da Constituição da República Portuguesa».

3. Tendo decidido o seguinte, conforme se passa a expor:

«7. Os pressupostos para que estejam reunidas as condições para o conhecimento de uma questão de constitucionalidade são exigentes e incluem a natureza normativa das questões suscitadas: (i) o seu caráter geral e abstrato, e a suscetibilidade de a resposta que lhe for dada valer para um número indeterminado de casos; (ii) a suscitação prévia e de modo processualmente adequado das questões de constitucionalidade normativa; e, por último, (iii) que a solução da questão de inconstitucionalidade ou de ilegalidade normativa, submetida à apreciação, possa repercutir-se, de forma útil e efetiva, na decisão proferida pelo tribunal recorrido acerca do caso concreto a dirimir. Ou seja, só haverá interesse processual em apreciar a questão de constitucionalidade suscitada quando o eventual julgamento de inconstitucionalidade for suscetível de se poder projetar ou repercutir na decisão recorrida, de modo a alterar ou modificar, no todo ou em parte, a solução jurídica que se obteve no caso concreto, implicando a respetiva reponderação (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 475/2023). Por isso, a utilidade do recurso de constitucionalidade encontra-se liminarmente afastada quando o critério normativo sindicado não coincide com o que foi aplicado pelo tribunal recorrido.

Ora, é precisamente o que sucede no presente caso. As pretensas interpretações normativas aqui impugnadas não foram aplicadas no acórdão recorrido, tal como, desde logo, decorre dos fundamentos da resposta à questão anterior, onde ficou exarado que o acórdão recorrido se fundou exclusivamente em factos alegados pelo autor na petição inicial e rigorosamente discriminados no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, agora impugnado em sede de revista. A orientação seguida no acórdão recorrido não foi a invocada pelo autor, que permitiria sustentar a competência internacional em presunções de facto, mas aquela, segundo a qual, a apreciação da competência internacional do tribunal se afere pelos termos em que o autor configura a relação material controvertida. É importante notar que não se verificou no acórdão recorrido qualquer juízo probatório, acompanhado da consequente fixação de quaisquer factos provados, mas tão-só a enumeração dos factos alegados que integraram a causa de pedir tal como foi delineada pelo autor. Avaliar da suficiência desta alegação e da sua veracidade probatória não compete aos tribunais nesta fase, em que está em causa unicamente a definição do tribunal competente, mas não o mérito da questão. Quem confunde ambas as vertentes é a recorrente na sua alegação de recurso de revista, não o acórdão recorrido e a jurisprudência que se tem pronunciado no sentido de reconhecer a competência internacional aos tribunais portugueses.

8. Pelo exposto, não se conhece da pretensa questão de constitucionalidade, por não constituir a interpretação normativa impugnada ratio decidendi do acórdão recorrido. Ou seja, ainda que fosse decidida a recusa de aplicação da norma impugnada, não teria a inconstitucionalidade da norma qualquer repercussão prática na decisão do caso concreto».

4. A reclamante, em momento algum nas conclusões de recurso colocou em causa a constitucionalidade da alínea b) do artigo 62.º do CPC, na interpretação normativa que agora invoca, tendo-se limitado a este propósito a discutir uma questão de interpretação de direito infraconstitucional, criticando o acórdão recorrido por aplicar direito comunitário e invocando a letra da lei para excluir a legalidade do entendimento, segundo o qual a competência do tribunal podia ser fundada no critério do centro de interesses do autor.

4.1. Foi assim a forma como a recorrente suscitou a pretensa questão de constitucionalidade nas suas conclusões de revista:

« b) A ré considera a decisão ilegal, com base na violação de lei substantiva, processual e da própria Constituição da República Portuguesa, destacando-se, entre outros, as seguintes normas e princípios jurídicos:

– princípio da causalidade, princípio da coincidência, princípio de interpretação autónoma dos Estados-Membros, princípio do Estado de Direito, princípio da proteção ou tutela da confiança, princípio da soberania, princípio da igualdade, princípio do processo equitativo e da igualdade das partes, princípio da tutela jurisdicional efetiva, princípio do dispositivo, princípio do contraditório, princípio do dever de obediência dos tribunais à lei, princípio da separação dos poderes e o princípio do primado do direito europeu;

– art.º 2.º, 8.º, 13.º, n.º 1, 20.º, n.º 4, 203.º e 204.º da Constituição da República Portuguesa;

art.º 62.º do CPC; destaque nosso

– art.º 22.º e 38.º, n.º 1 da LOSJ; – art.º 351.º do CC.

4.2. Ora, limitou-se pois, a recorrente, nas conclusões da revista, a suscitar a ilegalidade do preceito do artigo 62.º do CPC, invocando genericamente a violação da Constituição e de princípios constitucionais, não se referindo a qualquer dimensão ou interpretação normativa, no sentido exigido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, que expressamente afirma que a impugnação da constitucionalidade de preceitos não constitui uma suscitação adequada de uma questão de constitucionalidade normativa.

Tem sido orientação constante do Tribunal Constitucional (cfr., entre outros, Acórdãos n.ºs 141/2018, 27/2019, 346/2019 e 351/2019) o entendimento, segundo o qual, não basta ao recorrente a enumeração de um elenco de preceitos de direito ordinário aplicados na decisão recorrida, e de normas ou princípios constitucionais que considera terem sido violados, para que o requisito da suscitação prévia se encontre preenchido. Tem ainda de revelar qual o sentido ou critério normativo com o qual o preceito não pode ser aplicado sob pena de inconstitucionalidade, e tem de o fazer em termos gerais e abstratos, e destacados das especificidades da situação concreta dos autos, de tal forma que a norma assim construída seja suscetível de aplicação a um número indeterminado de casos e que os operadores judiciários possam saber com que sentido os referidos preceitos não podem ser interpretados e aplicados, sob pena de inconstitucionalidade. A construção normativa exigida deve, assim, ser expressa, inteligível, precisa e minimamente fundamentada, de forma a vincular o tribunal a quo a proferir uma pronúncia sobre essas questões antes de esgotado o seu poder jurisdicional.

No caso vertente, estamos perante um caso semelhante àqueles em que, nas palavras de Lopes do Rego (in Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 34-35), «embora sob a capa formal da invocação da inconstitucionalidade de certo preceito legal 'tal como foi aplicado pela decisão recorrida' - o que realmente se pretende controverter é a concreta e casuística valoração pelo julgador das múltiplas e específicas circunstâncias do caso 'sub judicio'».

4.3. Nas conclusões em que contesta a aplicação do critério do centro de interesses para determinar a competência internacional do tribunal, a recorrente discute apenas questões de interpretação de direito infraconstitucional, à luz dos critérios hermenêuticos fixados no artigo 9.º do Código Civil, conforme decorre das conclusões i), j), k), l), ll),mm) e nn), que se passam a reproduzir:

«i) Ao abrigo do princípio interpretação autónoma dos Estados-Membros e dos seus órgãos jurisdicionais sobre o seu direito nacional, não há que convocar a jurisprudência do TJUE sobre diplomas europeus, para interpretar a lei portuguesa.

j) Incluir no critério da causalidade do art.º 62.º, alínea b) do CPC, o centro do interesse do autor constitui violação manifesta das regras de interpretação jurídica e de normas e princípios constitucionais, como acima se detalhou e para onde se remete – reiterando-se o pedido de pronúncia expressa deste Tribunal.

k) Sendo inaplicável o regulamento n.º 1215/2012, o CPC estabelece no art.º 62.º do CPC o regime interno que define quais os fatores de atribuição da competência internacional, o qual tem de ser interpretado e aplicado de acordo comos critérios legais de interpretação das normas fixado no art.º 9.º do CC: elementos literal, teleológico, sistemático e histórico, sendo inconstitucional e ilegal qualquer interpretação contra ou praeter legem.

l) As fontes de direito português são as leis e diplomas equiparados (art.º 1.º do CC), em nada relevando a jurisprudência do TJUE sobre normas que não estão em causa, sob nenhuma forma, nestes autos.

(…)

ll) Daí que não se verifiquem nenhum dos fatores de conexão estabelecidos no art.º 62.º do CPC e não possa ser mantida, por ser inconstitucional a interpretação e aplicação da alínea b) pelas razões acima detalhadas, o que deve determinar a revogação do acórdão do TRP e a declaração da incompetência internacional dos tribunais portugueses.

mm) São inaplicáveis os conceitos relativos ao domicílio e centro de interesses do autor e, bem assim, quaisquer presunções judiciais ou factos que não estejam referidos na petição inicial e que não integrem a causa de pedir, sob pena de interpretação inconstitucional dos art.º 62.º do CPC, 38.º, n.º 1 da LOSJ, por violação nos termos detalhados nas alegações de recurso – aqui dados por reproduzidos e para os quais se remete –, entre outros, dos seguintes princípios:

– princípio do Estado de Direito (e seus subprincípios da legalidade, da proteção da confiança dos cidadãos e da certeza e da segurança jurídicas)

– princípio do processo equitativo (e subprincípios do dispositivo e do contraditório); – princípios da separação dos poderes e do dever de obediência à lei; e

– princípio do primado do direito europeu.

nn) Esta questão relativa à inconstitucionalidade da aplicação dos artigos 62.º do CPC, 38.º, n.º 1 da LOSJ e 351.º do CC e é suscitada para conhecimento expresso deste Supremo Tribunal, nos termos e para os efeitos dos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), 72.º, n.º 2 e 75.º-A, n.º 2, todas da Lei n.º 28/82 porque na interpretação abstrata da lei (e sua posterior concreta aplicação) do princípio da causalidade não cabe, por contrariar os princípios constitucionais acima elencados, o critério do centro de interesses, nem o emprego de factos presumidos, factos não alegados e factos que não integram a causa de pedir».

4.4. Destas conclusões decorre que a pretensa questão de constitucionalidade não tem natureza normativa, pois, sob a capa de uma alegação genérica de inconstitucionalidade, o que se discute são questões de interpretação do direito ordinário e os critérios hermenêuticos aplicados pelo tribunal recorrido para fixar o sentido do artigo 62.º, al. b), do CPC.

Ora, o Tribunal Constitucional, no âmbito da fiscalização concreta, aprecia apenas problemas de constitucionalidade normativa, não detendo, em geral, competência para controlar a interpretação e aplicação do direito infraconstitucional realizada pelos tribunais comuns.

A forma como a recorrente nas conclusões da revista delineou a questão de constitucionalidade não corresponde à enunciação de qualquer norma ou interpretação normativa aplicada na decisão recorrida, mas antes se refere à normal atividade jurisdicional de interpretação e aplicação das leis, atividade que teve por referência as circunstâncias fácticas do processo e que não é sindicável em termos de constitucionalidade uma vez que, «a autonomização e enunciação do critério normativo a sindicar deve ser, desde logo, efetuada em momento processual prévio à prolação da decisão recorrida, ou seja, sobre o recorrente recai o ónus de suscitar uma específica questão de constitucionalidade – enunciando o critério normativo e identificando o segmento de direito positivo de que o mesmo é extraível – junto do tribunal a quo, de uma forma expressa, direta e clara, assim criando para esse tribunal um dever de pronúncia sobre tal matéria» (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 49/2022)

4.5. Para além de o recorrente não definir, de forma precisa, a interpretação normativa impugnada, como exige a jurisprudência do Tribunal Constitucional, também não refere as normas e princípios constitucionais que são violados.

A remissão na alínea j) para “o que acima se detalhou” reporta-se à al. b) das conclusões, a qual tem uma formulação igualmente genérica, limitando-se a invocar a ilegalidade do artigo 62.º do CPC (e não a inconstitucionalidade) por violação de preceitos da Constituição e de um conjunto de princípios que se limita a enumerar, sem densificar o conteúdo dessas normas ou princípios e sem invocar qualquer fundamentação, ainda que mínima, para sustentar a violação dessas normas. O mesmo sucede na alínea mm) em que apenas invoca genericamente terem sido violados um conjunto de princípios e na alínea nn) em que se refere ao artigo 62.º da CRP em conjugação com o artigo 38.º, n.º 1, da LOSJ e 351.º do Código Civil, questão das alegadas presunções de facto em que o Tribunal da Relação se teria baseado para atribuir competência aos tribunais portugueses, que o Supremo considerou, no Acórdão agora impugnado, não constituir ratio decidendi do acórdão do Tribunal da Relação objeto do recurso de revista (cfr. a transcrição feita no ponto 3. da fundamentação do presente Acórdão).

Os n.º 122 a 135 da alegação de recurso também nada adiantam na concretização da interpretação normativa e na fundamentação da inconstitucionalidade, pois, apesar de definirem a interpretação impugnada como aquela que inclui o critério do centro de interesses na al. b) do artigo 62.º do CPC, a invocação da inconstitucionalidade continua genérica e ligada a discussões sobre interpretação e preenchimento de lacunas, entendendo a recorrente ter sido violado pelo Supremo o princípio da separação de poderes. Todavia, esta questão não constitui uma questão de constitucionalidade normativa, mas uma questão de teoria geral do direito sobre os limites do poder interpretativo do julgador em face da letra da lei.

5. Não tendo sido suscitada previamente e de modo processualmente adequado, a propósito da al. b) do artigo 62.º do CPC, qualquer questão de constitucionalidade de natureza normativa, o thema decidendum do recurso de revista também não a abrangeu, em termos que vinculassem este Supremo Tribunal a decidi-la, pelo que não se verifica qualquer nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, do CPC.

Decide-se, pois, indeferir a reclamação.

6. Anexa-se sumário elaborado de acordo com o n.º 7 do artigo 663.º do CPC:

I - A nulidade por omissão de pronúncia, representando a sanção legal para a violação do estatuído no nº 2 do artigo 608º do CPC, apenas se verifica quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre as “questões” pelas partes submetidas ao seu escrutínio, ou de que deva conhecer oficiosamente, como tais se considerando as pretensões formuladas por aquelas, mas não os argumentos invocados, nem a mera qualificação jurídica oferecida pelos litigantes.

II - Não constitui nulidade por omissão de pronúncia o não conhecimento de uma suposta questão de constitucionalidade que não foi suscitada previamente e de modo processualmente adequado ao tribunal recorrido, em termos que o vinculassem a uma decisão.

III – Decisão

Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação.

Custas pela reclamante.

Lisboa, 23 de janeiro de 2024

Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Jorge Arcanjo (1.º Adjunto)

Manuel Aguiar Pereira (2.º Adjunto)

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1. Designadamente em opinião publicada no reputado blog jurídico de acesso Blog do IPCC, disponível em https://blogippc.blogspot.com/2023/02/futebolistas-videojogos-e-competencia.html↩︎