Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
075346
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: AUGUSTO MARTINS
Descritores: ARRENDAMENTO RURAL
DIREITO DE PREFERÊNCIA
UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ19993020200075346
Data do Acordão: 02/02/1993
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Referência de Publicação: DR IS 1993/04/06, PÁG.1737 A 1742
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O PLENO
Decisão: UNIFORMIZADA JURISPRUDÊNCIA
Sumário :
O direito de preferência concedido ao arrendatário rural pelo artigo 29.º da Lei n.º 76/77, de 29 de Setembro, abrange a renda de quota do prédio.
Decisão Texto Integral:
Acordam no pleno do Supremo Tribunal de Justiça:

AA e esposa, BB, recorreram para o pleno deste Tribunal com fundamento em oposição entre os Acórdãos deste mesmo Tribunal de 24 de Novembro de 1987, proferido no processo n.º 75346, 1.ª Secção, e de 10 de Fevereiro de 1983, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 324, a pp. 561 e segs.
Reconhecida a existência da invocada oposição, o recurso prosseguiu.
Nas suas alegações, os recorrentes pedem que se revogue o acórdão impugnado e se lavre assento no sentido de que «o direito de preferência concedido ao arrendatário pelo artigo 29.º de Lei n.º 76/77, de 29 de Setembro (Lei do Arrendamento Rural), não abrange a venda de quota do prédio, regendo, em tal caso, o artigo 1409.º, n.º 1, do Código Civil».
Os recorridos, após defenderem que não há oposição relevante, por não serem iguais as situações de facto que serviam de pressuposto às decisões tomadas, sustentam que, sendo diferente o entendimento do Tribunal, deve ser negado provimento ao recurso e firmado assento que declare que, «na compra e venda de quota de prédio rústico arrendado, o arrendatário rural tem, nos termos do disposto no artigo 27.º da Lei n.º 76/77, de 29 de Setembro, direito de preferência em relação a terceiro não arrendatário».
O Exmo. Magistrado do Ministério Público pronunciou-se pela confirmação do acórdão recorrido e pela solução do conflito de jurisprudência através de assento com a seguinte formulação:
O direito de preferência concedido ao arrendatário pelo artigo 29.º da Lei n.º 76/77, de 29 de Setembro (Lei do Arrendamento Rural), abrange a venda de quotas do prédio.
Cumpre decidir.
O tribunal pleno não está vinculado à decisão preliminar da secção, como expressamente dispõe o n.º 3 do artigo 766.º do Código de Processo Civil; há, pois, que reexaminar a questão com o fim de se decidir se se verificam os pressupostos que condicionam o conhecimento do objecto do recurso.
Ora, fazendo o seu reexame, concluímos que são idênticas as situações de facto apreciadas nos dois acórdãos que se dizem em oposição, pois trata-se, em qualquer dos casos, da venda de quota ideal de prédio rústico, dado de arrendamento rural, a pessoa diferente do arrendatário e relativamente à qual este pretende exercer o direito de preferência.
Com efeito, no Acórdão de 10 de Fevereiro de 1983, com o qual se invoca a oposição, cuidou-se do caso da venda de seis décimas partes indivisas de um prédio rústico, de que os autores eram arrendatários, feita pelo seu dono a terceiro, não arrendatário desse prédio, por escritura pública de 2 de Novembro de 1977; e no Acórdão de 24 de Novembro de 1987 foi versada a preferência na venda do direito a metade de um prédio rústico feita pelo proprietário, por escritura pública de 29 de Setembro de 1979, a pessoa diferente do respectivo arrendatário rural.
Não obstante esta identidade de situações de facto, no acórdão-fundamento foi negado ao arrendatário o direito de preferência, enquanto no acórdão recorrido foi-lhe reconhecido esse direito.
Adoptaram, pois, soluções clara e diametralmente opostas relativamente à mesma questão fundamental de direito, não tendo havido, durante o intervalo de publicação dos dois acórdãos, qualquer modificação legislativa a interferir, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida; os dois arestos foram proferidos em processos diferentes e presume-se o trânsito em julgado do acórdão anterior.
É assim de reconhecer a oposição entre os mencionados acórdãos, proferidos no domínio da mesma legislação (Lei n.º 76/77, de 29 de Setembro), relativamente à mesma questão fundamental de direito, pelo que se considera justificado o recurso para o tribunal pleno, passando-se a conhecer do seu objecto.
Segundo o artigo 29.º, n.º 1, da Lei n.º 76/77, de 29 de Setembro, com base no qual foram proferidos os acórdãos em oposição:
No caso da venda ou dação em cumprimento de prédios objecto de arrendamento rural, têm direito de preferência, em primeiro lugar, os respectivos arrendatários.
De que lado estará afinal a boa doutrina? Do lado do acórdão recorrido ou do lado do acórdão-fundamento?
Por outras palavras: o direito de preferência concedido ao arrendatário rural não abrange a venda de quota ideal do prédio, mas apenas a venda de todo o imóvel? Ou abrange também a venda de quota ideal?
No primeiro sentido, para além do acórdão-fundamento, pronunciou-se o Acórdão da Relação de Coimbra de 14 de Outubro de 1980 (Colectânea de Jurisprudência, ano V, t. 3, p. 30).
E no segundo, além do acórdão recorrido, decidiram os Acórdãos da Relação de Coimbra de 15 de Março de 1983 (sumariado no Boletim, n.º 326, p. 534) e do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Janeiro de 1984 (Boletim, n.º 333, p. 428).
Propendemos afoitamente para a solução adoptada no Acórdão de 24 de Novembro de 1987.
Vejamos os fundamentos do Acórdão de 10 de Fevereiro de 1983, segundo a descrição feita por Antunes Varela, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 119.º, p. 382:
a) Letra do texto - o artigo 29.º da Lei n.º 76/77 refere-se à venda de prédios, e não de quotas de prédios;
b) Natureza da norma - o carácter excepcional do direito de preferência não premite a sua aplicação analógica a casos não previstos na lei;
c) História do preceito - o confronto do artigo 29.º da Lei n.º 76/77 com o artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 201/75 revela que o novo diploma omitiu deliberadamente a referência à transmissão «de quota ideal de prédio indiviso», para não conceder o direito de preferência ao arrendatário nesse caso. Ideia confirmada pelo facto de a nova lei ter eliminado a doutrina proclamada na parte final do n.º 1 do artigo 25.º do diploma anterior - segundo a qual a preferência do arrendatário rural cedia em face do direito de preferência do co-herdeiro e do comproprietário. A cedência deixou de ter lugar precisamente porque deixou de existir o direito de preferência do arrendatário no caso de venda ou dação em cumprimento de «quota ideal do prédio indiviso»;
d) Espírito da lei - o direito de preferência visa, no caso do arrendamento rural, eliminar a relação senhorio-arrendatário. E esse objectivo não é, no caso, alcançado com a solução aceite pelas instâncias. O arrendatário tornar-se-ia comproprietário do imóvel, em 6/10 dele, mas continuaria como arrendatário em relação aos 4/10 restantes.
Como acentua aquele mestre, nenhum dos argumentos se revela convincente.
O texto da disposição legal exerce, sem dúvida nenhuma, uma dupla influência, muito importante, na fixação do sentido da respectiva norma.
Por um lado, todos sabem que a norma não pode valer com um sentido que não encontre um mínimo bastante de correspondência no invólucro verbal da respectiva disposição (artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil).
Por outro lado, é certo também que o sentido que melhor corresponda ao significado natural das palavras usadas na lei fica, por esse simples facto, melhor credenciado que os outros para se impor ao intérprete avisado como a verdadeira expressão do pensamento legislativo. A tal resultado conduz, com efeito, a presunção estabelecida na própria lei, em matéria de interpretação de textos, de que o legislador, ao mesmo tempo que consagrou as soluções mais acertadas «soube exprimir o seu pensamento em termos adequados».
E acrescenta o insigne professor:
Só que a utilização do argumento não parece conduzir, no caso presente, ao resultado prático advogado no acórdão.
É verdade que no texto do artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 201/85 se aludia expressis verbis à transmissão do direito de propriedade sobre prédio arrendado ou de quota ideal de prédio indiviso arrendado, enquanto o artigo 29.º da Lei n.º 76/77 se refere ao «caso de venda ou dação em cumprimento de prédios objecto de arrendamento rural». E do confronto entre os dois textos pode, à primeira vista, colher-se a impressão de que o legislador de 1977 quis realmente afastar a preferência do arrendatário rural no caso de venda da quota ideal do prédio arrendado pertencente a um comproprietário.
Simplesmente, o raciocínio assenta apenas sobre meia verdade da realidade textual ou literal que ao intérprete compete ponderar.
É que o texto do artigo 29.º da Lei n.º 76/77 não se limita a conceder o direito de preferência aos arrendatários, «no caso de venda ou dação em cumprimento de prédios objecto de arrendamento rural».
O artigo 29.º proclama textualmente que os arrendatários «têm direito de preferência, em primeiro lugar».
Quer isto dizer que o artigo 25.º do diploma de 1975, submisso à doutrina geral do artigo 1409.º do Código Civil (segundo o qual «o comproprietário goza do direito de preferência e tem o primeiro lugar entre os preferentes legais»), declara expressamente que a preferência do rendeiro e entidades equiparadas cedia em face do direito de preferência do co-herdeiro e do comproprietário.
O artigo 29.º da Lei n.º 76/77, mais fiel neste ponto ao espírito revolucionário da época e mais coerente com o pensamento geral da reforma agrária, veio, pelo contrário, colocar o arrendatário rural na vanguarda dos preferentes legais, tendo concreta e especialmente em vista a concorrência do direito de preferência do comproprietário.
O confronto do texto do artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 201/75 com o texto do artigo 29.º da Lei n.º 76/77 cria, no intérprete, duas impressões contraditórias.
Por um lado, a omissão da venda de quota ideal do prédio arrendado na previsão factual do artigo 29.º leva a supor que o legislador de 1977 quis afastar a preferência do arrendatário rural em benefício do comproprietário, respeitando o princípio geral proclamado no artigo 1409.º do Código Civil.
Por outro lado, a proclamação expressa de que os arrendatários rurais têm o direito de preferência em primeiro lugar, confrontada com a doutrina geral do artigo 1409.º do Código Civil e sobretudo com a parte final do n.º 1 do artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 201/25, tem todo o ar de um pendão de revolta contra o primado do direito de preferência do comproprietário (e do co-herdeiro).
Qual das duas impressões contraditórias é mais forte e credenciada aos olhos do bom intérprete da lei?
De acordo com o sentido que o Acórdão de 10 de Fevereiro de 1983 atribuiu ao artigo 29.º da Lei do Arrendamento Rural, o arrendatário só poderá ter direito de preferência quando a alienação ou dação em cumprimento tiver por objecto todo o prédio sobre que incide o arrendamento rural.
O arrendatário, quando o prédio pertença a mais de uma pessoa, só terá esse direito no caso excepcional de todos os comproprietários se decidirem a vender ao mesmo tempo o conjunto das suas quotas por um preço global. Só então se poderia falar em venda do prédio.
E a que fica então reduzida a vistosa e enfática proclamação, feita no n.º 1 do artigo 29.º da Lei n.º 76/77, de que os arrendatários rurais têm «direito de preferência, em primeiro lugar»?
A aceitar-se que a preferência do arrendatário rural não procede contra a alienação da quota do comproprietário do imóvel ou do quinhão do co-herdeiro (cf. artigos 1409.º, n.º 1, e 2130.º, n.º 1, do Código Civil) e sabendo-se, por outro lado, que nenhuma concorrência pode haver, em princípio, pela diferente natureza do seu objecto, entre a preferência do arrendatário rural e a preferência do arrendatário do prédio urbano (seja qual for o fim da locação: artigos 1117.º e 1119.º do Código Civil e 1.º da Lei n.º 63/77, de 25 de Agosto), facilmente se chega à conclusão de que a tal colocação ostensiva da preferência do arrendatário rural no primeiro lugar dos preferentes legais apenas significaria afinal que o arrendatário preferente fica à frente dos preferentes especialmente contemplados nos artigos 1380.º, n.º 2 (proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura), 1535.º, n.º 1 (proprietário do solo em relação ao direito de superfície, como titular de uma preferência que a lei coloca incondicionalmente em último lugar), e 1555.º do Código Civil (proprietário de prédio onerado com a servidão legal de passagem perante a venda do prédio encravado).
Ora, não é nada crível, sobretudo em face do ambiente que, mesmo no ano de 1977, envolveu a discussão e a apreciação tanto da Lei do Arrendamento Rural, em especial, como da Reforma Agrária, em geral, que o legislador se tenha colocado decididamente nos bicos dos pés - como realmente se pôs - para elevar o direito de preferência do arrendatário rural ao primeiro plano dos preferentes legais, tendo apenas em vista a prevalência do seu direito nos casos de conflito especialmente contemplados nos artigos 1380.º, 1535.º e 1555.º
A ideia que o confronto entre o texto do artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 201/75 (declarando expressis verbis que a preferência do arrendatário «cede [...] em face do direito de preferência do co-herdeiro e do comproprietário») e a proclamação incisiva do artigo 29.º da Lei do Arrendamento Rural (colocando o direito de preferência dos arrendatários em primeiro lugar, com manifesta derrogação do preceito geral formulado no n.º 1 do artigo 1409.º do Código Civil) traz imediatamente ao espírito do intérprete avisado a de que o legislador quis, no caso especial do arrendamento rural, destronar abertamente a rainha das preferências legais, que é a do comproprietário e a do co-herdeiro, em homenagem ao direito do arrendatário do prédio rústico.
A essa conclusão opõe, no entanto, o acórdão o argumento de que a fórmula verbal escolhida pelo legislador, na redacção do artigo 29.º da Lei n.º 76/77, para demarcar o campo de aplicação da preferência do arrendatário, revela que ele quis decididamente afastar a preferência no caso de alienação da quota do comproprietário.
Mas não é convicente a afirmação.
Ao definir em novos termos os dois contratos fundamentais de alienação de bens (a compra e venda no artigo 874.º e a doação no artigo 940.º), a nova lei civil distinguiu entre a transmissão do direito de propriedade e a transmissão de outros direitos (direitos reais, direitos de crédito e certos direitos potestativos).
Compra e venda é o contrato pelo qual se transmitiu a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço, diz-se no artigo 874.º do Código Civil.
Quando, porém, se quer aludir à transmissão do direito de propriedade sobre uma coisa, é corrente, é vulgaríssimo, falar-se abreviadamente na transmissão da coisa. Transmissão da coisa, venda da coisa, compra da coisa, são, no fundo, fórmulas abreviadas e correntes da ideia mais completa de transmissão do direito de propriedade sobre a coisa, venda do direito de propriedade sobre a coisa, compra do direito de propriedade sobre a coisa, que não chegam a ser circunlóquios (maneiras de falar em que se exprime um pensamento de modo indirecto e impreciso; perífrases, rodeios) por serem a expressão correcta, perfeita, da ideia representada pelo autor.
O próprio Código Civil, não obstante o discreto apuro técnico da sua terminologia, não deixa de recorrer a cada passo a fórmulas abreviadas deste tipo e de tipo semelhante, que substituem sem inconveniente as expressões perifrásticas de maior preciosismo literário.
Se na definição de compra e venda o Código alude, com todo o rigor, à transmissão da propriedade de uma coisa (por contraposição à transmissão de outro direito), já na caracterização da doação a contraposição se faz entre a disposição gratuita de uma coisa (como quem diz da propriedade de uma coisa) e a disposição gratuita de um direito.
Esta flexibilidade ou maleabilidade de linguagem, traduzida no uso indistinto das expressões «transmissão (venda, compra) da propriedade da coisa» e «transmissão (venda, compra) da coisa», de que há muitas revelações no Código Civil vigente, nota-se ainda bastante mais na legislação avulsa e no vocabulário jurídico corrente, especialmente nas cláusulas contratuais.
Quando, por isso, no artigo 29.º da Lei do Arrendamento Rural se alude à venda dos prédios objecto de arrendamento rural, o que o legislador rigorosamente quis referir foi a venda da propriedade desses prédios.
E a venda da propriedade da coisa, ou seja, a alienação do direito de propriedade da coisa mediante um preço, tanto brange o direito de propriedade na sua totalidade (a titularidade única e exclusiva sobre a coisa), como qualquer das fracções ideais em que o direito de domínio se pode decompor.
Por um lado, é a própria lei civil que, sistemática e dogmaticamente, considera a compropriedade como uma variante do direito de propriedade, e, por outro lado, a preferência legal baseada na venda de determinada coisa tanto aproveita, pela sua especial razão de ser, à venda do direito de propriedade na sua totalidade, como à venda de uma quota ideal dele ou à venda de uma fracção determinada da coisa.
A prova comprovada desta asserção reside logo no facto de o artigo 1409.º do Código Civil estender o direito legal de preferência à venda da quota de qualquer dos consortes. E é ainda reforçada pelo facto de, nesse caso, a preferência aproveitar, não apenas aos consortes do alienante, mas também, conquanto só subsidiária ou sucessivamente, aos outros preferentes legais. Se assim não fosse, se a alienação da quota de um dos comproprietários apenas servisse de base ao direito de preferência dos outros comproprietários, nenhum sentido faria a prescrição expressa, contida no n.º 1 do artigo 1409.º, de que o comproprietário, além de gozar do direito de preferência, tem o primeiro lugar entre os preferentes legais no caso de venda ... a estranhos da quota de qualquer dos seus consortes.
Assim se conclui, por conseguinte, que a expressão usada na redacção do n.º 1 do artigo 29.º da Lei do Arrendamento Rural («venda [...] de prédios objecto de arrendamento rural»), visando directamente o caso da venda da propriedade do prédio que é objecto da locação, não exclui absolutamente, nem no seu espírito, nem no seu texto, a hipótese da venda da quota de qualquer dos comproprietários do prédio (rústico).
Logo, deve ser esse o sentido perfilhado pelo intérprete, quer por ser o que melhor corresponde à chamada ocasio legis (ao desejo de valorizar a posição do arrendatário rural no quadro da política de redistribuição dos solos na zona da reforma agrária), quer por se tratar da única interpretação que dá real consistência prática à expressiva colocação do arrendatário em primeiro lugar, entre os vários preferentes legais.
E uma vez afastado o frágil obstáculo erguido em torno do puro texto legal, fácil é verificar que atrás dele se esboroam, como construções sem alicerce próprio, todos os demais argumentos.
Com efeito, desde que a preferência do arrendatário rural na alienação da quota de um dos comproprietários do terreno arrendado cabe perfeitamente no texto e no espírito do artigo 29.º da Lei n.º 76/77, pouco ou nada interessa o carácter excepcional do direito de preferência, uma vez que o autor não necessita de recorrer à aplicação analógica dessa norma para fundamentar a procedência da sua pretensão.
Quanto à história do preceito, a dupla ilação que o confronto dos textos de 1975 e 1977 traz imediatamente ao espírito e à intuição do intérprete mais precavido é a de que a norma vigente não fez menção expressa da alienação da quota do comproprietário do prédio arrendado, por considerá-la justificadamente desnecessária, e não repetiu a tese de que a preferência do arrendatário cede perante o direito do comproprietário e o direito do co-herdeiro precisamente porque, colocando o arrendatário no galarim dos preferentes, o legislador, de caso pensado, quais firmar doutrina radicalmente oposta à de 1975.
Nenhuma força reveste finalmente o argumento tirado da circunstância puramente acidental de, no caso do Acórdão de 10 de Fevereiro de 1983, a tese da prioridade do direito do comproprietário levar à cessação da compropriedade, enquanto a tese contrária não conduziria à extinção da relação senhorio-arrendatário.
É que a propriedade estabelecida por lei entre os vários direitos de preferência concorrentes sobre a mesma coisa não assenta no carácter imediato ou mediato dos resultados práticos a que a vitória de uma ou outra conduz, mas na força relativa das razões em que cada uma das preferências se apoia, sendo essa força medida em termos puramente objectivos - cf. Prof. Antunes Varela, in Revista de Legislação e Jurisprudência, anos 119.º, pp. 380 e segs., e 120.º, pp. 14 e segs.
A orientação acima desenhada é ainda a dos Drs. Aragão Seia e Costa Calvão, Arrendamento Rural Anotado - Legislação Complementar, ed. de 1980, p. 76, do Dr. Mário Frota, docente da Faculdade de Direito de Coimbra, in Parecer junto ao Processo n.º 3980/3.ª Secção, do Tribunal da Relação do Porto; e do Prof. Pereira Coelho, Direito Civil I - Arrendamento - Lições ao Ciclo Complementar de Ciências Jurídicas em 1980-1981, Coimbra, 1980, p. 269.
Pelo exposto mantém-se a decisão do acórdão recorrido e, nos termos do artigo 768.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, formula-se o assento seguinte:
O direito de preferência concedido ao arrendatário rural pelo artigo 29.º da Lei n.º 76/77, de 29 de Setembro, abrange a venda de quota do prédio.
Custas pelos recorrentes.


Lisboa, 9 de Fevereiro de 1993.

Eduardo Augusto Martins - Costa Raposo - Martins da Costa - Miguel Montenegro - Fernando Fabião - Amâncio Ferreira - Dias Simão - Miranda Gusmão - Cardoso Bastos - Pereira Cardigos - Mora do Vale - Santos Monteiro - José Magalhães - Sá Couto - Chichorro Rodrigues - Guerra Pires - Araújo Ribeiro - Ramos dos Santos - Zeferino Faria - Mário Cancela - Baltazar Coelho - Lopes de Melo - Figueiredo de Sousa - Martins da Fonseca - Sampaio da Silva - Roger Lopes - Ramiro Vidigal - Pais de Sousa (vencido. Entendi que não há oposição de acórdãos. Por não referir expressamente a questão relativa ao direito de preferência dos comproprietários, não votei o assento) - Olímpio da Fonseca (vencido quanto à oposição) - Raul Mateus [vencido: a) quanto à questão prévia, entendi, face à diferença de situações fácticas de um e outro aresto, que não se regista oposição de acórdãos; b) quanto ao teor do assento, pelos fundamentos do Acórdão de 10 de Fevereiro de 1983, resumidos a fl. 3 deste aresto, votei a formulação de assento de sinal contrário] - Joaquim de Carvalho (vencido, nos termos do voto procedente) - Dionísio de Pinho (vencido, nos termos do douto voto do Exmo. Colega Dr. Raul Mateus) - Sousa Guedes (vencido, nos termos do voto de vencido do Exmo. Colega Dr. Raul Mateus) - Alves Ribeiro (vencido pelas mesmas razões) - Carlos da Silva (vencido, pois entendo que não existe oposição e, por outro lado, a doutrina do assento não contempla o direito do comproprietário (cujo direito de preferência se sobrepõe ao do rendeiro) - Ferreira da Silva (vencido, nos termos da declaração de voto que junto) - Sousa Macedo (vencido quanto à existência de oposição entre os acórdãos) - Ferreira Vidigal (vencido quanto à oposição, votei o assento) - César Marques (vencido quando à oposição, votei o assento) - Sá Nogueira (vencido, nos termos da declaração que junto) - Coelho Ventura (vencido, de harmonia com a declaração de voto do Exmo. Conselheiro Sá Nogueira).

Declaração de voto
Os assentos - artigo 2.º do Código Civil - reconduzem-se a actos de natureza normativa, traduzindo verdadeiros normas jurídicas legislativas, revestidas de eficácia impositiva universal - cf. Castanheira Neves, O Instituto dos Assentos e a Função Jurídica dos Supremos Tribunais, pp. 292 e segs., e «Assento», in Polis, I, p. 419; Gomes Canotilho, Revista de Legislação e Jurisprudência, 124.º, p. 131.
Ora, a função legislativa não compete aos tribunais - artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa.
De contrário, o munus judicial, ao ser chamado, através dos assentos, a exercer tal actividade, assumiria um carácter que está em aberta contradição com o sentido que lhe deverá corresponder no sistema político do Estado de direito dos nossos dias, baseado no princípio democrático da separação de funções, constitucionalmente consagrado no artigo 114.º, n.º 1: «Os órgãos de soberania devem observar a separação e a interdependência estabelecidas na Constituição» - cf. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5.ª ed., pp. 700 e segs.
Como decidiu a Comissão Constitucional «[...] haverá inconstitucionalidade - por violação da norma do artigo 114.º, n.º 1, ou do princípio constitucional da divisão e repartição de funções entre os diferentes órgãos de soberania - sempre que um órgão de soberania se atribua, fora dos casos em que a Constituição expressamente o permite, ou impõe, competência para o exercício de funções que essencialmente são conferidas a outro diferente órgão» - cf. Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 8.º, 1980, p. 212.
Tal competência cabe à Assembleia da República e ao Governo - cf. os artigos 164.º e 201.º da Constituição da República Portuguesa.
E este será, supomos, o entendimento do Tribunal Constitucional.
Na verdade, ao declarar, como tem acontecido, a inconstitucionalidade de assentos, partiu da sua natureza normativa, como tudo decorre, designadamente, dos artigos 225.º, 277.º e 281.º da Constituição.
É nesta linha de entendimento que deve situar-se a correcta interpretação do artigo 115.º, n.º 5, da lei fundamental: «Nenhuma lei pode criar outra categoria de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.»
A doutrina mais autorizada é no sentido de que os assentos devem ser qualificados como lei interpretativa - cf. as indicações feitas no Código Civil Anotado, de A. Neto e H. Martins, 6.ª ed., p. 26.
Em oposição ao que vem de ser dito, não pode invocar-se o artigo 122.º, n.º 1, alínea g), da Constituição.
É que este normativo, na lógica do sistema constitucional e no panorama legislativo actual, só pode referir-se à declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral, dos regulamentos administrativos - artigo 66.º, n.º 1, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos.
Em consequência, não votei o presente assento.
Ferreira da Silva.

Declaração de voto
Vencido.
Em primeiro lugar, sustento que não existe oposição de acórdãos relevante para justificar a prolação de um assento.
Com efeito, as situações em confronto nos dois acórdãos indicados como em oposição são suficientemente diferentes entre si para se poder dizer que respeitaram à aplicação da mesma regra de direito, uma vez que, no acórdão recorrido de 14 de Novembro de 1987, se contemplou o caso de venda de quota do prédio a terceiros (em que se pressupõe que os outros comproprietários não e quiseram preferir) e se concluiu que, em tal caso, o arrendatário rural tinha direito de preferência nessa venda, e que, no acórdão-fundamento, pelo contrário, se apreciou a situação de se saber se, numa venda de quota do prédio a comproprietário, o arrendatário rural tinha ou não direito de preferência, ou, pelo menos, se o seu normal direito de preferência prevalecia sobre o do comproprietário.
Parece-me, assim, evidente que os dois acórdãos se não pronunciaram sobre o mesmo ponto de direito, e, por isso, julgaria verificada a não oposição dos mesmos.
Por outro lado, e a entender-se que existe a invocada oposição, sustento que o assento deveria ser formulado em moldes opostos aos que vingaram, pelas seguintes razões:
Se defendo, tal como o fez o acórdão recorrido de 24 de Novembro de 1987 (no processo n.º 75346), e ao contrário do acórdão-fundamento de 10 de Fevereiro de 1983 (no processo n.º 70474, in Boletim, n.º 324, pp. 521 e segs.), que o direito de preferência conferido ao arrendatário rural pelo artigo 29.º da Lei do Arrendamento Rural (Lei n.º 76/77, de 29 de Setembro), na transmissão do prédio de que é inquilino, existe não só quando tal prédio é transmitido na totalidade, mas também quando o é por fracção ou quota alíquota, entendo igualmente que se mantém o direito de preferência conferido pelo artigo 1409.º, n.º 1, do Código Civil ao comproprietário de fracção indivisa do prédio, relativamente às transmissões das restantes fracções.
Há, assim, dois direitos de preferência distintos e que colidem entre si, quando se transmita uma fracção indivisa de prédio rústico arrendado:
O que tem como titular qualquer dos comproprietários do imóvel;
E o que tem como titular o arrendatário rural.
Numa tal situação de conflito é necessário hierarquizar os diferentes direitos de preferência, como parece evidente, e, a meu ver, tal hierarquização foi feita pelo próprio artigo 29.º já citado, quando, no seu n.º 2, veio referir expressamente que, «salvo o estabelecido nos n.os 3 e 4, é aplicável neste caso, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416.º a 418.º e 1410.º do Código Civil».
Ora, a disposição do artigo 1409.º do Código Civil estabelece um critério a que se deverá atender em todas as situações conflituais de preferência em que um dos titulares seja um comproprietário, ao referir que o direito de preferência deste é graduado em primeiro lugar relativamente a todos os outros preferentes.
São as considerações de unificação tendencial do direito real de propriedade que conduzem a uma tal primazia do direito do comproprietário, em detrimento dos dos outros preferentes.
Ora, em relação ao direito do arrendatário rural, não podemos esquecer que ele, para a nossa lei, é ainda considerado como titular de uma relação obrigacional, ainda que com determinados direitos de carácter real, como a titularidade desse direito de preferência.
Por outro lado, não podemos deixar de ter em atenção que, no novo regime do arrendamento urbano, o legislador já veio consignar que o direito de preferência do arrendatário urbano fica graduado imediatamente acima do mais inferior dos direitos de preferência, que é o respeitante ao direito de superfície.
É certo que se trata de um arrendamento que é diverso do arrendamento rural, mas, mesmo assim, não deixa de ser significativa a tomada de posição do legislador sobre tal hierarquização, claramente demonstrativa, a meu ver, do propósito de vincar que o direito de preferência do inquilino rural deverá sempre ficar abaixo do conferido ao comproprietário.
Tais cricunstâncias são mais dois factores a ter em atenção na indicada hierarquização dos direitos de preferência para, também nesse aspecto, se dever continuar a dar primazia ao direito de preferência do comproprietário, na sequência, de resto, do que resulta do Código Civil, como acima referi.
E tenha-se presente que o acórdão recorrido parece admitir que, quando se procede a uma alienação de parte indivisa de um prédio rústico que se encontre arrendado, o respectivo inquilino goza de direito de preferência na alienação, mesmo em detrimento de idêntico direito do comproprietário, o que se não configura como correcto à face das disposições legais referidas.
Pelas razões indicadas, defendi que:
1) Se deveria ter decidido pela inexistência de oposição de acórdãos, com a consequente extinção da instância, por falta dos adequados pressupostos legais;
2) A não se entender assim, o assento deveria ter sido formulado com a seguinte redacção:
O direito de preferência conferido pelo artigo 29.º da Lei n.º 76/77, de 29 de Setembro, ao arrendatário rural, na transmissão do prédio de que é inquilino, verifica-se tanto quando se transmite o prédio na sua totalidade como quando é transmitida uma fracção do mesmo, sem prejuízo, nesta última hipótese, do direito de preferência conferido pelo artigo 1409.º do Código Civil.