Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
526/17.7T9PFR.P1.S1-A
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: RECUSA
JUIZ CONSELHEIRO
FUNDAMENTOS
IMPARCIALIDADE
ISENÇÃO
PROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 03/21/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA / RECUSA
Decisão: PROCEDÊNCIA / DECRETAMENTO TOTAL.
Sumário :
I - Tendo o processo sido distribuído ao Exmo. Juiz Conselheiro peticionante, como relator – devido a impedimento da primitiva Exma. Juíza Conselheira relatora –, depois de proferido o acórdão deste Supremo Tribunal que confirmou o acórdão da Relação – por sua vez, confirmatório do acórdão condenatório da 1ª instância – bem como, depois de proferido o acórdão que indeferiu a nulidade invocada pelo arguido recorrente contra aquele primeiro acórdão, e estando pendente no TC recurso interposto pelo arguido tendo por objecto o acórdão que indeferiu a referida nulidade, face à possibilidade de a decisão a proferir pelo TC poder determinar a reforma, quer de um, quer de ambos os acórdãos proferidos por este STJ, deve ser considerado tempestivo o pedido de escusa formulado.
II - Tendo o Exmo. Juiz Conselheiro peticionante, no desempenho de altas funções na administração prisional, tido relacionamento com o arguido enquanto seu subordinado, na sequência do qual, determinou a instauração de um inquérito disciplinar para investigação de eventuais ilícitos disciplinares integradores da prática de crimes e, posteriormente, ordenou a conversão de tal inquérito em processo disciplinar, designadamente, contra o arguido, e tendo estes procedimentos dado origem ao processo n.º …, no qual veio a ser condenado o arguido, face à circunstância de ter sido agora sorteado como relator do dito processo, é razoável admitir que o cidadão de formação média, ao tomar dela conhecimento, considere estar objectivamente afectada a imparcialidade do Exmo. Juiz Conselheiro peticionante para, caso venha a ser necessário, nele proferir novas decisões.
Decisão Texto Integral:

INCIDENTE DE ESCUSA Nº 526/17.7T9PFR.P1.S1-A


*


Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça


I


O Exmo. Juiz Conselheiro deste Supremo Tribunal, Dr. AA vem, ao abrigo do disposto nos arts. 43º e seguintes do C. Processo Penal, formular pedido de escusa a fim de não intervir, como conselheiro relator, na subsequente tramitação do processo nº 526/17.7T9PFR.P1.S1, em que é arguido BB.


Funda a pretensão, em síntese, nas seguintes razões:


- O processo em referência foi distribuído ao requerente;


- O requerente, na qualidade de ... de Reinserção e dos Serviços Prisionais, que exerceu entre ... de 2016 e ... de 2019, conheceu o guarda prisional e ora arguido BB, , então seu subordinado;


- Nesse período, o arguido solicitou uma audiência ao requerente na qual lhe relatou factos ocorridos no Estabelecimento Prisional ... e que deram origem ao processo nº 526/17.7T9PFR.P1.S1, no qual foi o mesmo condenado;


- Na sequência dessa audiência, o requerente ordenou que fosse instaurado um inquérito disciplinar, que correu termos na Delegação ... dos serviços de Auditoria e Inspecção daquela Direcção-Geral, visando a investigação de eventuais ilícitos disciplinares integradores da práticas de crimes de tráfico e outras actividades ilícitas e de corrupção, tendo sido dado conhecimento à Polícia Judiciária, como era usual, da instauração do inquérito;


- No desenvolvimento da investigação, o requerente ordenou a conversão do inquérito disciplinar em processo disciplinar, designadamente, contra o arguido;


- Neste quadro, o requerente teme que a sua intervenção no processo que ora lhe foi distribuído, como relator, e as eventuais decisões que nele venha a tomar, independentemente do respectivo sentido, possam vir a ser consideradas suspeitas, existindo, por isso, motivo sério e adequado para que tal intervenção possa gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, fundamentador da solicitada concessão de escusa.


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A consulta electrónica do processo permitiu obter as informações necessárias sobre o seu estado e o seguimento dado ao requerimento apresentado pelo arguido na 1ª instância, invocando uma nulidade insanável.


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Dispensados os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


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II


Dos Factos


Dos autos e da consulta electrónica do processo principal resulta a seguinte factualidade, relevante para a decisão:


1. Por acórdão de 23 de Dezembro de 2021 do Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo Central Criminal de ... – Juiz ..., na parte em que agora interessa, foi o arguido BB condenado, pela prática de um crime de tráfico e outras actividades ilícitas agravado, p. e p. pelos arts. 21º, nº 1 e 24º e) e h) do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de oito anos de prisão, pela prática de dois crimes de corrupção passiva para acto ilícito, p. e p. pelo art. 373º, nº 1 do C. Penal, na pena de dois anos e seis meses de prisão por cada um, e em cúmulo, na pena única de nove anos de prisão;


2. Inconformado com a decisão, recorreu o arguido para o Tribunal da Relação ... que, por acórdão de 8 de Junho de 2022, negou provimento ao recurso;


3. Novamente inconformado, recorreu o arguido para este Supremo Tribunal que, por acórdão de 23 de Novembro de 2023, negou provimento ao recurso;


4. O arguido reclamou do acórdão referido em 3, invocando a nulidade do mesmo, reclamação que foi indeferida por acórdão deste Supremo Tribunal de 18 de Janeiro de 2024;


5. O arguido recorreu para o Tribunal Constitucional do acórdão de 18 de Janeiro de 2024, recurso que foi admitido por despacho de 18 de Fevereiro de 2024, tendo os autos sido remetidos àquele tribunal em 20 de Fevereiro de 2024, onde ainda se encontram;


6. O arguido apresentou em 19 de Fevereiro de 2024, no Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo Central Criminal de ... – Juiz ..., um requerimento onde arguiu a nulidade insanável do processo, prevista na alínea c) do nº 1 do art. 119º do C. Processo Penal, requerimento que foi remetido a este Supremo Tribunal, por se ter entendido estar esgotado o poder jurisdicional do tribunal de 1ª instância, e competir o conhecimento da nulidade invocada ao Supremo Tribunal de Justiça;


7. Devido ao impedimento temporário da Exma. Juíza Conselheira Relatora, foi o processo/expediente apresentado à Exma. Juíza Conselheira Presidente da 5ª Secção deste Supremo Tribunal que, por despacho de 4 de Março de 2024, determinou a sua apresentação ao Exmo. Juiz Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, por se encontrar o arguido sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, com termo previsto para Maio próximo;


8. Por despacho de 6 de Março de 2024 o Exmo. Juiz Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, considerando o impedimento temporário da Exma. Juíza Conselheira Relatora e a urgência do processo/expediente, determinou a redistribuição dos autos;


9. Em 7 de Março de 2024 procedeu-se a nova distribuição, apenas quanto ao Juiz Conselheiro Relator, da qual resultou a indigitação do Exmo. Juiz Conselheiro AA para relator;


10. No dia 8 de Março o Exmo. Juiz Conselheiro AA apresentou o pedido de escusa;


11. O Exmo. Juiz Conselheiro AA foi ... de Reinserção e dos Serviços Prisionais entre ... de 2016 e ... de 2019 e nesta qualidade, conheceu o arguido BB, então seu subordinado, como guarda prisional;


12. No hiato temporal referido em 11, o arguido solicitou uma audiência ao Exmo. Juiz Conselheiro AA, na qual lhe relatou factos ocorridos no Estabelecimento Prisional ..., que deram origem ao processo nº 526/17.7T9PFR.P1.S1, no qual veio a ser condenado nos termos sobreditos;


13. Na sequência dessa audiência, o Exmo. Juiz Conselheiro AA determinou a instauração de um inquérito disciplinar, que correu termos na Delegação ... dos serviços de Auditoria e Inspecção da referida Direcção-Geral, visando a investigação de eventuais ilícitos disciplinares integradores da prática de crimes de tráfico e outras actividades ilícitas e de corrupção, tendo sido dado conhecimento à Polícia Judiciária, como era usual, da instauração do inquérito;


14. No decorrência da investigação, o Exmo. Juiz Conselheiro AA ordenou a conversão do inquérito disciplinar em processo disciplinar, designadamente, contra o arguido.


*


Do Direito


1. Dispõe o art. 44º do C. Processo Penal que a formulação do pedido de escusa é admissível até ao início da audiência, até ao início da conferência nos recursos ou até ao início do debate instrutório, só o sendo posteriormente, e apenas até à sentença ou até à decisão instrutória, quando os factos que o fundamentam sejam supervenientes ou de conhecimento posterior ao início da audiência ou do debate.


A fixação de momentos processuais para a dedução dos incidentes de recusa e de escusa prende-se com a necessidade de evitar o seu uso abusivo, em detrimento do normal andamento do processo, não lhe sendo também alheio o fim de obstar à sua utilização inútil quando, por já ter sido proferida a decisão final, se encontrar esbatido o risco de conduta parcial do juiz.


Assim, o pedido de recusa e de escusa só pode ser apresentado até ao momento em que, razoavelmente, o requerente se podia aperceber ou ter apercebido da existência de fundamento para a sua dedução, pressupondo a lei serem tais momentos, para o juiz de instrução, até ao início do debate instrutório, para o juiz de julgamento, até ao início da audiência, e para os juízes dos tribunais superiores, até ao início da conferência (Henriques Gaspar, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, 2014, Almedina, pág. 169-170 e Mouraz Lopes, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, obra colectiva, Tomo I, 2021, Almedina, pág. 495-496). Quando o fundamento para a dedução do incidente ocorra ou seja conhecido pelo interessado depois do início do debate instrutório ou da audiência, o mesmo pode ser deduzido até à decisão instrutória ou até à sentença, respectivamente.


Pois bem.


Resultando dos factos elencados que nos autos – processo nº 526/17.7T9PFR.P1.S1 – o arguido interpôs recurso do acórdão da Relação ... de 8 de Junho de 2022 – confirmatório do acórdão condenatório proferido pela 1ª instância – para este Supremo Tribunal que, por acórdão de 23 de Novembro de 2023, negou provimento ao recurso e que, por acórdão de 18 de Janeiro de 2024, indeferiu a reclamação apresentada contra aquele outro, evidente se torna que, tendo o pedido de escusa de que cuidamos sido apresentado em 8 de Março de 2024, tal apresentação é posterior à conferência relativa a qualquer um dos acórdãos proferidos nos autos por este Supremo Tribunal, pelo que, numa interpretação literal do disposto no art. 44º do C. Processo Penal, é a mesma extemporânea.


Acontece, porém, que o incidente em apreço apresenta características que, em nosso entender, se não compadecem com um alinhamento estrito da letra da lei, sob pena de frustração dos fins visados com o incidente de escusa.


Vejamos.


A norma do art. 44º do C. Processo Penal – visando o juiz de instrução, o juiz do julgamento e o juiz do recurso – foi pensada para a situação modelo segundo a qual, conforme acima referido, o concreto juiz suspeito exerce funções no processo nos momentos processuais previstos como balizas temporais da dedução do incidente, presumindo a lei que tais momentos delimitam o tempo tido por razoavelmente necessário para que o interessado se aperceba da existência de fundamento para a sua dedução.


Manifestamente, não é isto o que sucede nos autos, pois que o Exmo. Juiz Conselheiro peticionante foi sorteado como relator do incidente no dia 7 de Março de 2024 e no dia imediato, suscitou o incidente. No limite, terá sido no dia 7 de Março que se apercebeu da existência de fundamento para a escusa peticionada, pois que ele resulta, pura e simplesmente, da própria distribuição, do resultado do sorteio.


Falha, assim, no caso, a referida presunção, na medida em que não existe, pura e simplesmente, prazo, qualquer prazo, para que o Exmo. Juiz Conselheiro pudesse deduzir o pedido de escusa e isto, independentemente da gravidade do fundamento invocado.


Por outro lado, porque se trata de um pedido de escusa, não vemos que possa colocar-se a possibilidade de o mesmo radicar numa mera estratégia processual, reflexo do seu uso abusivo.


Finalmente, estando, além do mais, pendente no Tribunal Constitucional um recurso interposto pelo arguido, tendo por objecto o acórdão deste Supremo Tribunal de 18 de Janeiro de 2024, existe a possibilidade de a decisão de tal recurso determinar a reformulação do acórdão visado, o que significa que o presente incidente pode não ser absolutamente inútil dada, a verificar-se tal hipótese, a necessidade de prolação de um novo acórdão.


Neste caso, aliás, porque o acórdão reformulador terá de ser decidido em conferência, no limite, poderá entender-se renascer aqui este momento processual – até ao início da conferência – para admissão do incidente.


Em suma, dada a excepcionalidade da situação em causa, completamente fora dos parâmetros habituais da dedução do incidente de escusa, entendemos, numa interpretação mais flexível da norma do art. 44º do C. Processo Penal, que atendeu, essencialmente, às razões determinantes da fixação de balizas temporais à dedução do incidente, e à sua não afectação, no caso concreto, ser tempestivo o pedido de escusa deduzido pelo Exmo. Juiz Conselheiro AA.


Dispõe o art. 45º, nº 1, b) do C. Processo Penal que o pedido de escusa, tratando-se de juiz pertencente à secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, é apresentado perante essa mesma secção.


Estando em causa um pedido de escusa de um Exmo. Juiz Conselheiro, mostra-se o mesmo correctamente apresentado perante esta secção criminal.


Nada obsta, pois, ao conhecimento do mérito do incidente, pelo que passamos à sua apreciação.


2. Compete aos tribunais, enquanto órgãos de soberania, administrar a justiça em nome do povo (art. 202º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa). Nesta função, os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei (art. 203º, da Constituição da República Portuguesa).


O princípio constitucional da independência dos tribunais impõe a independência dos juízes e a sua imparcialidade, qualidades igualmente garantidas pela Constituição da República Portuguesa (cfr. art. 216º), e asseguradas pela lei ordinária (art. 4º da Lei da Organização do Sistema Judiciário).


Com efeito, o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, bem como, a decisão das causas em prazo razoável e mediante processo equitativo, que a Constituição da República garante a todos os cidadãos no seu art. 20º, nºs 1 e 4, têm como pressuposto a imparcialidade de quem julga pois, sem ela, é impossível a realização do direito no caso concreto.


Visando assegurar a efectiva imparcialidade do julgador, o C. Processo Penal regula, no Livro I, Título I, Capítulo VI, o regime dos impedimentos e das suspeiçõesrecusas e escusas – do juiz.


Relativamente às recusas e escusas, estabelece o art. 43º:


1 – A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.”.


2 – Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do nº 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40º.


3 – A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis.


4 – O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos nºs 1 e 2.”.


Recusa e escusa são pois, figuras processuais que comungam o mesmo objecto, obstar a que um juiz intervenha num processo quando exista um motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, distinguindo-as a diferente legitimidade para a respectiva dedução [a recusa pode ser deduzida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis (art. 43º, nº 3, do C. Processo Penal), enquanto a escusa só pode ser pedida pelo próprio juiz (nº 4 do mesmo artigo)].


A imparcialidade, enquanto atributo do juiz, é concebida numa perspectiva subjectiva e numa perspectiva objectiva.


Na perspectiva subjectiva, ela respeita à posição pessoal do juiz sobre qualquer circunstância que possa favorecer ou desfavorecer qualquer interessado na decisão. Como afirma Paulo Pinto de Albuquerque, o teste subjectivo da imparcialidade visa apurar se o juiz deu mostras de um interesse pessoal no destino da causa ou de um preconceito sobre o mérito da causa (Comentário do Código de Processo Penal, 2007, Universidade Católica Editora, pág. 127). A imparcialidade subjectiva presume-se, pelo que, só a existência de provas da parcialidade, podem afastar a presunção.


Na perspectiva objectiva, relevam as aparências – circunstâncias de carácter orgânico e funcional, ou circunstâncias externas – que, sob o ponto de vista do cidadão comum, e não tanto do destinatário directo da decisão, possam afectar a imagem do juiz e, nessa medida, suscitar dúvidas sobre a sua imparcialidade. Aqui, a dúvida sobre a imparcialidade do juiz resulta de uma especial relação sua com algum dos sujeitos processuais, ou com o processo.


Como se escreveu no Ac. do STJ de 06/07/2005 (CJ, S, XIII, II, 236), os motivos que podem afectar a garantia da imparcialidade objectiva, que mais do que juiz e do “ser” relevam do “parecer”, têm de se apresentar, nos termos da lei, “sério” e “grave”. (…) não basta um qualquer motivo que impressione subjectivamente o destinatário da decisão relativamente ao risco de algum prejuízo ou preconceito que possa ser tomado contra si, mas, antes, que o motivo invocado tem de ser de tal modo relevante que, objectivamente, pelo lado não apenas do destinatário da decisão, mas também de um homem médio, possa ser entendido como susceptível de afectar, na aparência, a garantia da boa justiça, por poder ser externamente (…) como susceptível de afectar (gerar desconfiança) a imparcialidade.


Em suma, o motivo sério e grave referido no nº 1, do art. 43º, do C. Processo Penal, tem de resultar de uma concreta situação de facto, onde os elementos processuais ou pessoais se revelem objectivamente adequados a fazer nascer e suportar a dúvida sobre a imparcialidade do juiz.


A concordância prática entre o princípio do juiz natural e a suspeita fundamentadora da escusa exige uma especial gravidade desta, suportada em factos objectivos, por forma a que o afastamento do juiz não resulte de motivos menores. Por isso, vem a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça adoptando um critério apertado para a avaliação da seriedade e gravidade do motivo que suporta a suspeição, critério que, partindo do caso concreto, deve ser conjugado com as regras da experiência e do senso comum, conforme o juízo do bonus pater familiae (acórdãos deste Supremo Tribunal de 19 de Abril de 2023, processo nº 37/23.1JAFAR-A.E1-A.S1 e de 26 de Outubro de 2022, processo nº 193/20.0GBABF.E1-A.S1, ambos in www.dgsi.pt).


3. Tendo presente que o deferimento de qualquer escusa constitui, sempre, uma derrogação do princípio do juiz natural, constitucionalmente garantido pelo art. 32º, nº 9 da Constituição da República Portuguesa, princípio este que constitui uma das garantias de defesa em processo penal e visa, ao proibir a designação arbitrária de um juiz ou tribunal para decidir um caso concreto, assegurar a imparcialidade e isenção da decisão a proferir, atentemos agora nos factos invocados pelo Exmo. Juiz Conselheiro peticionante, fundamentadores do pedido.


i) Começamos por notar, na perspectiva subjectiva de imparcialidade, que não está em causa qualquer concreto comportamento do Exmo. Sr. Juiz Conselheiro, susceptível de levantar suspeita, por mínima que seja, sobre a sua imparcialidade.


ii) Atentemos agora na questão a decidir, na perspectiva objectiva de imparcialidade.


In casu, o Exmo. Juiz Conselheiro peticionante é, desde 7 de Março de 2024, conselheiro relator do processo nº 526/17.7T9PFR.P1.S1, no qual é arguido, BB.


Em tempos – entre ... de 2016 e ... de 2019 – o Exmo. Juiz Conselheiro peticionante foi ... de Reinserção e dos Serviços Prisionais e nesta qualidade concedeu ao arguido, enquanto guarda prisional e seu subordinado, uma audiência, no decurso da qual este lhe relatou factos ocorridos no Estabelecimento prisional de ..., vindo o Exmo. Conselheiro a determinar a instauração de um inquérito disciplinar, visando a investigação de factos conexionados com crimes de tráfico e outras actividades ilícitas e de corrupção e, posteriormente, a determinar a conversão do inquérito em processo disciplinar.


Os factos relatados pelo arguido ao Exmo. Juiz Conselheiro peticionante e a investigação subsequente deram origem ao processo nº 526/17.7T9PFR.P1.S1, no âmbito do qual, foi aquele condenado, pela prática de um crime de tráfico e outras actividades ilícitas agravado e de dois crimes de corrupção passiva para acto ilícito, na pena única de nove anos de prisão, por decisão da 1ª instância, confirmada por acórdãos da Relação ... e deste Supremo Tribunal, encontrando-se neste momento pendente, o recurso interposto pelo arguido para o Tribunal Constitucional, do último acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça.


Em matéria de imparcialidade do juiz, não basta que este seja imparcial, é também preciso que o pareça.


A lei, como sabemos, faz depender o deferimento do pedido da verificação e escusa de uma cláusula geral de suspeição, da existência de motivo sério e grave, adequado a gerar a desconfiança sobre a imparcialidade do juiz. Porém, não define os conceitos de seriedade e gravidade do motivo da escusa, conceitos que terão, então, de ser densificados, em cada caso, a partir de regras de razoabilidade e do senso comum e, portanto, tendo em conta a perspectiva do homem médio, do cidadão comum, representativo do sentir da comunidade.


Consagra, pois, a lei um critério individual-objectivo de suspeição, uma solução eminentemente objectiva, mas direccionada à concreta actuação do juiz e/ou aos condicionalismos que a rodeiam (Figueiredo Dias e Nuno Brandão, Direito Processual Penal, Os Sujeitos Processuais, 1ª Edição, 2022, Gestlegal, págs. 61-62).


No caso sub judice o processo foi distribuído a um Juiz Conselheiro relator que, anos antes, e enquanto ... funcionário da administração prisional, não só teve contacto directo com o arguido, como determinou a instauração de um inquérito que veio a dar origem aos presentes autos, nos quais foi este condenado em pena de prisão, nos termos que se deixaram expostos.


É certo que este Supremo Tribunal proferiu nos autos dois acórdãos, um confirmando o acórdão da Relação – por sua vez, confirmatório do acórdão condenatório da 1ª instância – e outro, julgando improcedente a arguição de nulidade deduzida pelo arguido contra aquela outra sua decisão, o que poderia suscitar, conforme já referido, a absoluta inutilidade do deduzido incidente, com o entendimento de que, nesta fase do processo, já não seria viável a prática de qualquer conduta do novo conselheiro relator susceptível de criar suspeita fundada sobre a sua imparcialidade. Contudo, e como também já deixámos dito, sempre com ressalva do respeito devido por diversa opinião, não cremos que assim seja pois que, dada a pendência de um recurso interposto pelo arguido junto do Tribunal Constitucional, umas das possibilidades que ainda está em aberto – e não cabe aqui especular sobre a maior ou menor probabilidade da sua verificação – é a de este tribunal determinar a reformulação do acórdão deste Supremo Tribunal de 18 de Janeiro de 2024, reformulação que poderá ainda vir a afectar o acórdão de 23 de Novembro de 2023, igualmente, deste Supremo Tribunal.


A verificar-se este panorama, quando o relacionamento pretérito entre o Exmo. Juiz Conselheiro peticionante e o arguido, bem como as acções ordenadas por aquele enquanto ... funcionário da administração prisional, e as suas concretas consequências designadamente, quanto ao arguido, chegarem ao conhecimento do cidadão de formação média, é razoável admitir que, para este, face a tal circunstancialismo, estará objectivamente afectada a capacidade de assegurar a equidistância que deve ser mantida por quem tem a função de julgar, ou seja, que em seu juízo, e face às referidas circunstâncias, a imparcialidade do Exmo. Juiz Conselheiro peticionante poderá ter deixado de existir.


Deste modo e pelas sobreditas razões, entendemos que existe motivo sério e grave que, objectivamente, suportará um juízo de suspeita sobre o Exmo. Juiz Conselheiro peticionante, caso seja mantida a sua intervenção, como relator no processo em referência, pelo que, é desaconselhada a sua permanência como novo titular dos autos.


Estando, assim, verificados os pressupostos da escusa, previstos no art. 43º, nºs 1 e 4, do C. Processo Penal, relativamente ao processo nº 526/17.7T9PFR.P1.S1, deve a mesma ser concedida.


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III


Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em deferir o pedido de escusa formulado pela Exmo. Juiz Conselheiro Dr. AA, relativamente à sua intervenção no processo nº 526/17.7T9PFR.P1.S1, na qualidade de relator.


Incidente sem tributação.


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(O acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos signatários, nos termos do art. 94º, nº 2 do C. Processo Penal).


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Lisboa, 21 de Março de 2024


Vasques Osório (Relator por vencimento)


Leonor Furtado (1ª Adjunta)


João Rato (2º Adjunto - com Declaração de Voto de Vencido)


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Processo n.º 526/17.7T9PFR.P1.S1-A


(Escusa)


Declaração de voto de vencido


Enquanto primitivo relator, apresentei projeto de acórdão no sentido da rejeição, por intempestividade, do pedido de escusa, o qual não logrou vencimento.


Continuo convicto de que o projeto corresponde à melhor, rectius, única leitura possível do artigo 44º do CPP, segundo o qual, os pedidos de recusa e de escusa só podem ter lugar nos prazos nele estabelecidos, sendo intempestivos se e quando apresentados fora ou para além deles, por ser nessa altura inviável prevenir a imparcialidade que constitui a sua razão de ser.


Os fundamentos desse entendimento constam do acórdão de 8.11.2023, proferido no processo n.º 121/08.1TELSB.L1.S1-F, de que fui relator, disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, que, por isso e porque transponíveis, com as necessárias adaptações, para o presente caso, me escuso de reproduzir.


Acrescento apenas que aquela convicção sobre a bondade da solução proposta está em linha com a jurisprudência do STJ e do TC consultada, a citada no referido acórdão e a que vem referenciada em diversos comentários às pertinentes normas do CPP, sem divergências quanto à natureza perentória daquele prazo e à inutilidade da recusa ou escusa para além dos momentos processuais referidos no artigo 44º.


E que essa mesma convicção sai reforçada da leitura comparativa do texto dos artigos 41º e 44º do CPP, o primeiro relativo à declaração de impedimento, que deve/pode ser feita, oficiosa e imediatamente ou a requerimento, “(…) em qualquer estado do processo ( …)”, o segundo quanto à recusa e escusa, que só “(…) são admissíveis até ao início da audiência, até ao início da conferência nos recursos ou até ao início do debate instrutório” e “só o são posteriormente até à sentença, ou até à decisão instrutória (…)”, diferença cujo significado não pode ser desprezado pelo intérprete e aplicador da lei, na presunção legal de que o legislador soube exprimir corretamente o seu pensamento e que aqui merece pleno acolhimento, considerando que o impedimento se reporta a circunstâncias pessoais e relacionais, próximas e remotas, do juiz com outros intervenientes processuais e com o próprio processo, ao passo que a recusa e a escusa se referem e aferem em função do objeto do processo e da respetiva decisão correspondente a cada uma das suas possíveis diferentes fases.


Lisboa, 21 de março de 2024


João Rato (2º Adjunto)