Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06P2032
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS CABRAL
Descritores: PECULATO
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
BURLA INFORMÁTICA E NAS COMUNICAÇÕES
Nº do Documento: SJ200607120020323
Data do Acordão: 07/12/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: REJEITADO.
Sumário : I - O tipo legal do crime de peculato, p. e p. pelo art. 375.º do CP, configura uma dupla protecção: por um lado, tutela bens jurídicos patrimoniais, na medida em que criminaliza a apropriação ou oneração ilegítima de bens alheios; por outro, tutela a probidade e fidelidade dos funcionários para se garantir o bom andamento e a imparcialidade da administração pública, ou, por outras palavras, a "intangibilidade da legalidade material da administração pública", punindo casos de abusos de cargo ou função.
II - Para se preencher esse tipo legal, esses dois elementos (o crime patrimonial e o abuso duma função pública ou equiparada) terão de se relacionar entre si: assim, há abuso de função pelo facto de o agente se apropriar ou onerar bens de que tem a posse em razão das funções que exerce, violando, com esse comportamento, a relação de fidelidade pré-existente - o agente "viola os limites intrínsecos do exercício da posse que lhe foi conferida em razão do seu ofício ou serviço".
III - Pode dizer-se que o crime de peculato é um crime de furto qualificado ou de abuso de confiança, qualificados em razão da especial qualidade do agente.
IV - Não existe a alternativa entre a actual punição pelo crime de burla informática e um prévio vazio de impunidade, no domínio da legislação anterior, pela violação ilícita do património de outrem. Na verdade, «quanto ao bem jurídico, a burla informática consubstancia um crime contra o património (...). Perspectivada do ângulo da conduta, a burla informática constitui um crime de execução vinculada. (...) a natureza "vinculada" do tipo legal do nº 1 do artigo 221º restringe-se, por isso, à exigência de que a lesão do património se produza através da utilização de meios informáticos (...); (...) as condutas integráveis no mencionado artigo 221º, nº 1, já se [apresentam], por força do conceito de "coisa" subjacente ao direito positivo português (...) subsumíveis nos tipos legais do furto, do abuso de confiança ou da infidelidade». *

* Sumário elaborado pelo Relator.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


"AA" veio, ao abrigo do disposto no artigo 437º e seguintes do Código de Processo Penal, interpor recurso extraordinário com a finalidade de fixação de jurisprudência.
As razões da sua pretensão encontram-se expressas nas conclusões da sua motivação de recurso onde se refere que:
I - O arguido foi condenado em prisão efectiva de 4 anos e seis meses de prisão, pelo Acórdão do STJ de 25 de Outubro de 2005, decisão que já transitou em julgado, encontrando-se a decorrer o prazo de trinta dias subsequentes para interposição do recurso de fixação de jurisprudência, por a sua contagem ter estado suspensa a aguardar decisão do Tribunal Constitucional sobre a decisão do STJ de não aceitação de recurso referente a inconstitucionalidade do Acórdão.
II - A decisão recorrida encontra-se em contradição com a contida no Acórdão de 09 de Outubro de 1997. Havendo fundamento para interposição do recurso de fixação de jurisprudência, por se verificar uma oposição entre dois Acórdãos do STJ, sobre a mesma questão de direito, no domínio da mesma legislação, e tendo havido transito em julgado de ambas as decisões em confronto.
III - Os factos pelos quais o arguido vem condenado no presente processo, ao contrário do que se decidiu no douto Acórdão, não consubstanciam um crime de furto, por não se verificarem os elementos objectivos que integram o respectivo tipo, nomeadamente não estarmos em presença do objecto essencial a prática dos factos, nem ter havido actos de subtracção que correspondam ao comportamento tipificado como furto.
IV - A jurisprudência deve ser fixada no sentido de considerar tratar-se de um crime de falsificação de documentos, por ser esse o facto cometido quando o arguido alterou os dados da conta bancária da sociedade da qual era sócio, através da manipulação de dados informáticos, mais concretamente da introdução de factos falsos na respectiva conta, contendo operações de depósito não realizadas de facto.
V - Os actos praticados pelo arguido, embora desenvolvidos para obtenção de benefícios, não afectaram a propriedade do lesado, ou pelo menos não foi através daqueles actos que ficaram provados que foi lesada a propriedade do assistente. Devendo a conduta do arguido ser enquadrada unicamente como crime de falsificação de documentos.
VI - O arguido deve ser absolvido por já ter prescrito o procedimento criminal referente ao crime de falsificação de documentos, por ter decorrido, desde a prática dos factos, um prazo superior ao prazo normal da prescrição acrescido de metade, de acordo com o disposto no art. 121.0 n.º 3 do Código Penal.
VII - A considerar-se que o arguido lesou a propriedade da assistente, foi através de factos que só passaram a estar tipificados a partir de 1995, com a criação do crime de burla informática, p.p. no art. 221 do Código Penal, e que antes não consubstanciavam nenhum tipo legal de crime. Não podendo o arguido ser condenado.
VIII - A considerar-se que o arguido tenha cometido um crime contra a propriedade, só pode ter sido um crime de abuso de confiança, pois aproveitou-­se dos montantes pertencentes ao Banco (Empresa-A) e colocados a sua disposição, através do sistema informático a que tinha acesso como funcionário bancário, para concretizar as operações efectuadas nos balcões da Empresa-A, colocando-os em seu proveito numa conta que movimentava na qualidade de sócio da sociedade que era titular da conta. Apropriando-se para si de montantes colocados a sua disposição para outras utilizações. Não tendo utilizado qualquer estratagema ou artifício enganador, mas apenas colocando em seu benefício montantes que estavam a sua mercê por força das funções que desempenhava. Sendo a sua conduta integrada no art. 300 do Código Penal de 1982.
IX - Considerando que o arguido cometeu um crime de abuso de confiança devem os factos ser articulados com os que foram objecto do processo crime que corre u precisamente contra o arguido e que levaria a decisão do STJ, em Acórdão de 22 de Outubro de 2004, no processo 2824/04­3 por crime de falsificação de documentos e de abuso de confiança. Assim, se deve entender tratar-se de um crime continuado por terem sido cometidos vários tipos de crime, lesando o mesmo bem jurídico, com homogeneidade na actuação e nas circunstâncias, com diminuição da culpa do arguido.
X - O arguido, de acordo com a interpretação perfilhada deve ser condenado numa única pena, que, de acordo com o disposto no art. 79º n.º 1 do Código Penal corresponde a moldura penal mais elevada das várias circunstâncias concretas. Nesta conformidade, deverá ser punido com a pena de prisão de três anos, ficando a pena suspensa por forca das regras do artº 50 do Código Penal.
Pelo ExºMº Sr.Procurador Geral Adjunto foi emitido parecer no sentido de que os acórdãos supostamente em oposição não incidiram sobre a mesma questão de direito
Os autos tiveram os vistos legais.

Cumpre decidir.
- Nos termos do artigo 437 do Código de Processo Penal constitui pressuposto de admissibilidade do recurso interposto, e entre outros, a existência de um julgamento contraditório sobre a mesma questão de direito. Por outras palavras dir-se-á que é condição daquela admissibilidade que uma categoria de factos análogos tenha obtido diversa qualificação jurídica em distintas decisões emitidas pelas entidades elencadas no normativo.
Nesta conformidade, e para uma correcta avaliação do quadro factual sobre o qual este Supremo Tribunal é chamado a pronunciar-se, indica-se a matéria de facto constante da decisão recorrida:
1 - O arguido, em 1 de Junho de 1986, e com início nesse mesmo dia, celebrou um contrato de trabalho por tempo indeterminado com a cooperativa Empresa-A de ... (doravante ....), com sede no Largo de ...., em Nelas, mediante o qual se obrigava a desempenhar as funções de caixa, o que sucedeu até Julho de 1998, consistindo aquelas nomeadamente, na abertura, operação; e encerramento diário dos terminais de computador afecto ao posto de trabalho; atendimento de clientes, execução das tarefas de pagamento s, depósitos e transferências de valores em cheques, numerário e outros meios autorizados, efectuados com valores ou cheques sobre a Empresa-A... ou sobre outras instituições de crédito; e elaboração, em final de dia, de mapas que permitissem determinar os movimentos e posteriormente a contabilização; dos mesmos, por cada um dos caixas,· elaboração de listagens de cheques e outras meios de pagamento e recebimentos efectuados ao longo do dia, bem assim como a soma desses mesmos valores.
2 - O arguido, pelo menos desde o início de Janeiro de 1994 e durante todo esse ano de 1994, decidiu aproveitar a natureza das suas funções e as tarefas que, no exercício das mesmas, lhe cabiam na ...e a falta de um sistema de controlo eficaz da mesma Empresa-A que permitisse detectar erro ou omissão ocorrida para, em prejuízo da Empresa-A, obter para si e para a sociedade Empresa-B, de que era sócio-gerente, elevados benefícios patrimoniais, apropriando-se ilegitimamente de diversas quantias.
3 - Na prossecução de tal fim, o arguido, no último dia de cada um dos meses a seguir indicados, através da entrada não autorizada no sistema informático da Empresa-A e por manipulação; ilegítima dos respectivos dados informáticos, acedia aos elementos informáticos relativos a conta n.º 2985 da Empresa-A, titulada pela sociedade Empresa-B, e, mediante ilegítima e inverídica utilização desses dados informáticos, alterava o saldo final do respectivo mês, inscrevendo um valor superior, de forma que no dia seguinte (primeiro dia do mês seguinte) o saldo daquela conta se apresentava com um valor diferente, não correspondendo a diferença; de saldos a qualquer operação de crédito em vigor no sistema bancário por si efectuada.
4 - Assim, e actuando da forma descrita, o arguido aumentou o saldo final dos seguintes meses daquela conta da Empresa-B: relativo ao mês de Janeiro de 1994, em 4.050.000$00; relativo ao mês de Fevereiro de 1994, em 830.000$00; relativo ao mês de Abril de 1994, em 4.680.000$00; relativo ao mês de Maio de 1994, em 5.200.000$00; relativo ao mês de Junho de 1994, em 6.620.000$00; relativo ao mês de Julho de 1994, em 7.000.000$00; relativo ao mês de Agosto de 1994, em 2.500.000$00; relativo ao mês de Setembro de 1994, em 4.000.000$00; relativo ao mês de Outubro de 1994, em 1.550.000$00; e relativo ao mês de Dezembro de 1994, em 4.960.301$30, o que perfaz o montante global de 41.390.301$30 lE 206.453,95.
5 - Estes montantes, que da forma descrita foram sucessivamente "creditados" na conta bancária referida, foram subtraídos pelo arguido á Empresa-A, que deles se apropriou, tendo-os destinado, como lhe aprouve, em benefício próprio e/ou da sociedade Empresa-B, pelo menos em iguais montantes.
6 - O arguido, agindo como descrito, após se apoderar no final do mês de Janeiro de 1994 da quantia mencionada, praticou idênticas condutas nos subsequentes meses, até Dezembro desse ano de 1994, aproveitando-se da natureza e do tipo de tarefas inerentes ás suas funções, do fácil acesso ao sistema informático, da confiança então depositada em si pela Empresa-A enquanto seu funcionário e da falta de controlo eficaz da própria Empresa-A, criando-se assim condições externas favoráveis á repetição da prática, pelo arguido, da relatada conduta ilícita, sendo certo que este, ao longo desses meses, se convenceu renovadamente de que a sua conduta criminosa tinha sido bem sucedida e permanecera impune.
7 - Ao proceder como descrito, agiu o arguido voluntária, livre e conscientemente, com o propósito concretizado de, através da entrada não autorizada no sistema informático da Empresa-A, e por manipulação ilegítima dos respectivos dados informáticos, proceder ficticiamente a "créditos" na conta n.º 2985, titulada pela sociedade Empresa-B, não correspondentes a qualquer crédito de numerário ou valores, para assim se apropriar de todas as quantias acima referidas, que correspondentemente subtraiu, bem sabendo que o fazia sem conhecimento, contra a vontade e sem o consentimento dos legais representantes da Empresa-A.
No Acórdão fundamento consigna-se a seguinte materialidade:
- O arguido exerceu o cargo de tesoureiro da Junta de Freguesia de Almedina, no período compreendido entre 27/ 01/77 e 14/01/90, e o de secretário da mesma Junta entre 15/01/90 e 31/12/93, assim integrando, nos lapsos de tempo referidos, órgão representativo de autarquia local.
A Junta de Freguesia de Almedina era titular da conta a prazo nº 019215/220, no balcão de Coimbra (0255), da Empresa-C e também da conta á ordem nº 0192215/532, da mesma instituição bancária.
Como tesoureiro daquela Junta, incumbia ao arguido, além do mais, proceder ao depósito das receitas da Junta na Empresa-C, nomeadamente dos duodécimos enviados pela Câmara Municipal de Coimbra para aquela Junta.
Além de tesoureiro da Junta de Freguesia, o arguido exercia funções como empregado bancário da secretaria no citado balcão de Coimbra da Empresa-C
Assim, o arguido não só porque era o tesoureiro da Junta de Freguesia, mas também porque era empregado bancário na instituição onde a Junta tinha as suas cantas, tinha a confiança do presidente da Junta de Freguesia e dos demais membros para movimentar as cantas da Junta, o que, aliás, fazia por inerência das suas funções de tesoureiro.
Mesmo como secretário da Junta de Freguesia, o arguido continuou a ser o responsável pela movimentação das contas da Junta na Empresa-C, dada a relação de confiança de que gozava dos demais membros da Junta, a ponto de continuarem a confiar-lhe essa tarefa e, também, de vida ao facto de, como empregado bancário, se disponibilizar a fazer os citados movimentos.
A partir de 1987, o arguido, como tesoureiro da Junta de Freguesia de Almedina, dada a sua qualidade de bancário e aproveitando as relações de confiança atrás referidas, resolveu apoderar-se das importâncias que eram enviadas pela Câmara Municipal de Coimbra, tituladas por cheques da Empresa-C e Banco Empresa-E, para a Junta de Freguesia.
No exercício da suas funções, o arguido recebia então os cheques emitidos pela Câmara e dirigidos á Junta, cheques cruzados, nos mais variados montantes, os quais, pelo exercício da suas funções, o arguido deveria creditar na canta a prazo da Junta.
Porém, aproveitando-se de se tratar de cheques cruzados, creditava-os na sua conta pessoal, á ordem, nº 027/4030, de que era o único titular, no balcão de Coimbra da Empresa-C, desta feita entrando na posse das referidas importâncias, que gastava em seu próprio beneficio, ficando a Junta lesada patrimonial mente nos valores correspondentes.
Utilizando sempre o método referido, e no período compreendido entre o ano de 1987 e Dezembro de 1993, o arguido apoderou-se da importância de 3.397.003$00, titulada por 19 cheques que sabia serem pertencia da Junta de Freguesia de Almedina, importância que gastou em seu próprio beneficio, lesando aquele órgão autárquico nesse montante.
A fim de ocultar o desvio de tais importâncias, e poder continuar a desviar outras, aproveitou a sua profissão e de empregado bancário na agência de Coimbra da Empresa-C
Assim, e sem que para tal estivesse autorizado, emitiu abusivamente certidões de saldo de conta a prazo da Junta de Freguesia, que forjou, nos quais fazia constar saldos falsos que corresponderiam ás importâncias que deveriam ter sido creditadas na conta a prazo, quando realmente eram por ele desviadas para a sua conta.
Desta maneira, fez o arguido crer á Junta de Freguesia que era titular da conta a prazo com saldo substancialmente superior ao real, já que o saldo de tal conta, mercê da conduta do arguido, se manteve inalterado desde 31/12/87 a 31/12/93, em 960.000$00.
A fim de ocultar os desvios, o arguido procedeu mesmo á transferência da importância de 3.140.000$00 da massa falida da Empresa-D, sem conhecimento nem autorização da Caixa, com a intenção de Ih e permitir a missão de titulo de depósito a prazo de igual montante a favor da Junta de Freguesia de Almedina, não afectando o saldo da conta daquela empresa por tal operação ter sido estornada no mesmo dia.
Assinado com o sucesso do primeiro desvio, ocorrido ainda no ano de 1987, e por não ter sido então descoberto, o arguido, por ser empregado bancário naquela instituição e lidar com cheques cruzados, circunstancias que Ihe permitiam desenvolver esta conduta com menores riscos de ser descoberto, resolveu continuar a sua actividade de forma homogénea e reiterada, apoderando-se de importâncias cuja beneficiária sabia ser a Junta de Freguesia de Almedina.
Agiu sempre livre e conscientemente, sabendo que as suas condutas não eram legalmente permitidas e que com elas incorria em ilícito criminalmente puníveis.

Em face do quadro factual descrito torna-se mais facilmente compreensível a lógica argumentativa do recorrente que se reconduz a três premissas distintas:
a)- Os factos pelos quais o arguido vem condenado no presente processo não consubstanciam um crime de furto, por não se verificarem os elementos objectivos que integram o respectivo tipo.
b)-A jurisprudência deve ser fixada no sentido de considerar tratar-se de um crime de falsificação de documentos, por ser esse o facto cometido quando o arguido alterou os dados da conta bancária da sociedade da qual era sócio, através da manipulação de dados informáticos, mais concretamente da introdução de factos falsos na respectiva conta, contendo operações de depósito não realizadas de facto.
c)- Os actos praticados pelo arguido, embora desenvolvidos para obtenção de benefícios, não afectaram a propriedade do lesado e a sua conduta do arguido deve ser enquadrada unicamente como crime de falsificação de documentos.
A petição formulada pelo requerente não tem sustentação nas decisões invocadas. Como questão prévia importa precisar que o que está em causa na decisão recorrida não se resume á mera manipulação informática mas, como a mesma decisão aponta, e o recorrente omite é, também o facto de os montantes em causa," que da forma descrita foram sucessivamente "creditados" na conta bancária referida, terem sido subtraídos pelo arguido á Empresa-A, que deles se apropriou, tendo-os destinado, como lhe aprouve, em benefício próprio e/ou da sociedade Empresa-B, pelo menos em iguais montantes.
Por seu turno, o acórdão fundamento incide sobre a actuação de arguido que, na qualidade de tesoureiro da Junta de Freguesia, se utilizou os cheques emitidos pela Câmara Municipal a favor da mesma Freguesia creditou-os na respectiva conta pessoal e se apoderou dos respectivos montantes. Afim de ocultar o desvio de tais importâncias e poder continuar a desviar outras, usando a sua qualidade de funcionário da entidade bancária emitiu certidões de saldo da conta da Junta de freguesia que forjou.
Dois momentos de um processo sequencial perfeitamente definido e em que a falsificação aparece num momento posterior ao acto de desapossamento dos montantes. O mesmo crime de falsificação não assume qualquer natureza instrumental em relação á transferência, ou subtracção, patrimonial e apenas emerge, posteriormente, da necessidade de ocultar perante a autarquia a que pertencia a prática do ilícito.
Qualificando os actos praticados o acórdão fundamento apontou a integração do crime de peculato e de falsificação previstos, respectivamente, nos artigos 375 e 256 do Código Penal de 1995.
Saliente-se que aquele tipo legal configura uma dupla protecção: por um lado, tutela bens jurídicos patrimoniais, na medida em que criminaliza a apropriação ou oneração ilegítima de bens alheios; por outro lado, tutela a probidade e fidelidade dos funcionários para se garantir o bom andamento e a imparcialidade da administração, ou, por outras palavras, a "intangibilidade da legalidade material da administração pública" punindo abusos de cargo ou função. Assim, o peculato integra dois elementos: o crime patrimonial e o abuso duma função pública (ou equiparada; quanto ao conceito de funcionário cf. art. 386°). Para se preencher o presente tipo legal, estes dois elementos terão de se relacionar entre si; assim, há abuso de função pelo facto do agente se apro­priar ou onerar bens de que tem a posse em razão das funções que exerce, violando, com esse comportamento, a relação de fidelidade pré-existente - o agente "viola os limites intrínsecos do exercício da posse que lhe foi confe­rida em razão do seu ofício ou serviço"
Quer os bens sejam do Estado quer de particulares, está sempre em causa um direito patrimonial. Esta ideia é o ponto de partida a partir do qual se pode estabelecer a distinção entre o crime de peculato e o de furto e, ainda, entre o crime de peculato e o de abuso de confiança. Assim, pode dizer-se que o crime de peculato é um crime de furto qualificado em razão da qualidade especial do agente ou um crime de abuso de confiança qualificado em razão da qua­lidade de funcionário no exercício de funções públi­cas.
Estamos, assim, inteiramente de acordo com o entendimento expresso no Código Penal Conimbricense no sentido de que, em última análise, o crime de peculato é um crime qualificado, de furto ou de abuso de confiança. Mais se defende que o crime de peculato apresenta maiores convergências com o crime de abuso de confiança, urna vez que também neste preceito o agente se apropria de um bem que possui em nome alheio, violando urna relação de fidúcia pré-existente.

No caso vertente a situação descrita na decisão recorrida é perfeitamente distinta pois que o arguido não utiliza a sua qualidade de funcionário bancário em momento posterior ao acto de desapossamento, e para dissimular este, mas essa qualidade de funcionário é essencial para se apoderar ilegitimamente das quantias em causa a seu favor e da sociedade de que era sócio gerente e tudo isto sem a vontade da mesma instituição bancária
Como crime de furto foi tal actuação classificada na decisão deste Supremo Tribunal constante dos presentes autos e por aqui se vislumbra que as duas decisões em análise incidem sobre questões distintas. O requerente omite a condenação por crime de peculato naquele primeiro Acórdão fundamento e contrapõe a condenação ali constante pela prática do crime de falsificação á condenação nos presentes autos pela prática do crime de furto. Porém, o termo de comparação deverá estabelecer-se entre a factualidade integradora do crime de furto e a factualidade integradora do crime de peculato.
Realidades distintas e que mereceram tratamento diverso. Seja permitido, a propósito, recordar os traços fundamentais de distinção dos tipos em apreço que, tantas vezes, é objecto de alguma confusão
Conforme refere Lizt, ao pronunciar-se sobre os traços comuns dos crimes de furto; burla e abuso de confiança, a coisa, em qualquer uma daquelas infracções não deve encontrar-se no poder ou sobre a guarda do agente do crime, mas de outrem, e a acção constitutiva do crime é a subtracção, isto é, a violação do poder de facto que tem o detentor de guardar o objecto do crime, ou dispor dele, e a substituição desse poder pelo do agente.
Deixa de existir, porém, a subtracção quando o agente obtém do detentor da coisa que ele lhe transmita, ou lhe confie o seu poder de guarda sobre ela, numa palavra, que lhe entregue. É neste ponto que aparece nítida a diferenciação entre o furto;a burla e o abuso de confiança.
Conforme refere o professor Beleza dos Santos ( Abuso de Confiança pag 7): no primeiro, a coisa passa por subtracção, isto é, sem a vontade do detentor, para o poder do agente; nos dois últimos, a coisa não é subtraída, mas entregue: é confiada ou posta á disposição do agente do crime por vontade do detentor. Esta transmissão consensual, como diz Maggiore, não se opera por subtracção, como na furto, mas por vontade do detentor, embora essa vontade seja determinada por erro provocado ou, aproveitado fraudulentamente, pelo agente do crime.Há, aqui, um vício na aquisição do seu poder sobre o objecto do crime; esta aquisição é consensual, mas fraudulenta.

Tal síntese teórica tem inteiro cabimento na destrinça entre a situação daquele que recebe legitimamente, porque cabe no âmbito das suas funções, títulos que incorporam ordem de pagamento e, posteriormente os subtrai do seu fim legitimo integrando-os no seu património (acórdão fundamento) e aquele que, sem (contra) a vontade da instituição onde exerce funções, subtrai, através de operação informática, montante que integra no seu património. Ainda neste segmento é importante recordar que o recorrente, sufragando-se no voto de vencido constante da decisão recorrida, elabora raciocínio com as seguintes premissas:
a) No caso vertente existiu uma mera manipulação de dados informáticos (simples operação contabilística)
b)Tal conduta integraria hoje o crime p.p. no artigo 22º do Código penal mas, ao tempo da sua prática, (e excluindo a aplicabilidade do tipo legal do crime de burla) apenas existiria u crime de falsificação de documento.
c) Consequentemente, atento o lapso de tempo decorrido seria sempre de equacionar a prescrição
Tal lógica omite que os saldos creditados na respectiva conta bancária foram subtraídos pelo arguido que deles se apropriou em proveito próprio.
Não é aceitável, em termos teóricos, que, existindo uma ofensa ao património de terceiro, se perspective como tipo como legal infringido aquele que visa proteger a segurança e credibilidade do tráfico jurídico consubstanciada na falsificação documental .Como refere Jescheck (1), «o direito penal tem por missão proteger bens jurídicos. Em todas a normas jurídico-penais subjazem juízos de valor positivo sobre bens vitais que são indispensáveis para a convivência humana na comunidade e que consequentemente devem ser protegidos, pelo poder coactivo do Estado através da pena pública. (...) Todos os preceitos penais podem reconduzir-se à protecção de um ou vários bens jurídicos. O desvalor do resultado radica na lesão ou o colocar em perigo de um objecto da acção (ou do ataque) que o preceito penal deseja assegurar, do titular do bem jurídico protegido»
E , como bem se equacionou na decisão proferida nos presentes autos, não existe a alternativa entre a actual punição pelo crime de burla informática e um prévio vazio de impunidade, no domínio da legislação anterior, pela violação ilícita do património de outrem. Na verdade, como se indica no Comentário Conimbricense ao Código Penal :"Quanto ao bem jurídico, a burla informática consubstancia um crime contra o património (...).Perspectivada do ângulo da conduta, a burla informática constitui um crime de execução vinculada. (...) a natureza "vinculada" do tipo legal do nº 1 do artigo 221º restringe-se, por isso, à exigência de que a lesão do património se produza através da utilização de meios informáticos (...)" .(...) as condutas integráveis no mencionado artigo 221º, nº 1, já se [apresentam], por força do conceito de "coisa" subjacente ao direito positivo português (...) subsumíveis nos tipos legais do furto, do abuso de confiança ou da infidelidade".Traduz-se o exposto na circunstância de, em plúrimas situações actuações que hoje se reconduzem á prática do crime previsto no artigo 221º já previamente se integravam nos tipos legais ora indicados relativos a ofensa ao património(2) .

Nesta conformidade entende-se que as decisões em análise incidiram basicamente sobre questões de direito com perfil distinto em que sobressai, na ofensa da propriedade de terceiro, o facto de existência, ou não, de uma subtracção praticada contra vontade do proprietário ou uma subtracção praticada por aquele a quem estava, legalmente, cometido o ónus de administrar o objecto da mesma subtracção.
Não existindo oposição de julgados, e ao abrigo do disposto no artigo 441º do Código de Processo Penal rejeita-se o presente recurso
Custas pelo recorrente
Taxa de Justiça 6 UC

Lisboa, 12 de Julho de 2006

Santos Cabral (relator)
Oliveira Mendes
Pires Salpico
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(1)Tratado de Derecho Penal, Parte General, 4.ª Edição, pág. 6]
(2) Sobre a necessidade do tipo legal em preço ver Cândido Pumpido Ferrero "Estafas" pag 215 e seg