Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07S4479
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PINTO HESPANHOL
Descritores: DESPEDIMENTO DE FACTO
DECLARAÇÃO TÁCITA
DECLARAÇÃO RECEPTÍCIA
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: SJ20080227044794
Data do Acordão: 02/27/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário : 1. O despedimento de facto terá de extrair-se de atitudes do empregador que revelem, inequivocamente, ao trabalhador, enquanto declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, a vontade do empregador de fazer cessar o contrato de trabalho.
2. Essa declaração de vontade é receptícia, o que significa que, para se tornar eficaz, tem de ser levada ao conhecimento do destinatário (artigo 224.º, n.º 1, do Código Civil), pelo que o efeito extintivo do contrato só se verifica depois de ser recebida pelo trabalhador ou de ser dele conhecida, sendo irrevogável, salvo declaração em contrário, desde esse momento (artigo 230.º, n.º 1, do Código Civil).
3. Não se provando que o empregador tenha, por qualquer forma, recusado a prestação de trabalho oferecida pelo trabalhador ou sequer impedido o acesso ao seu posto de trabalho, deve concluir-se que o trabalhador não fez prova, como lhe competia (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil), dos factos demonstrativos do despedimento.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

I

1. Em 25 de Fevereiro de 2005, no Tribunal do Trabalho de Cascais, AA intentou a presente acção declarativa, com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho contra BB, pedindo: a) se declare nula a estipulação do termo do contrato de trabalho celebrado entre as partes, em 1 de Setembro de 2001; b) se declare ilícito o despedimento promovido pela ré; c) a condenação da ré a pagar-lhe (i) a quantia de € 5.438,92, a título de indemnização pelo despedimento ilícito, (ii) as importâncias correspondentes ao valor das retribuições que deixou de auferir desde a data do despedimento até à data do trânsito em julgado da decisão do tribunal, deduzidas as retribuições respeitantes ao período decorrido desde o despedimento até 30 dias antes da propositura da presente acção, (iii) a quantia de € 3.863,32, a título de férias e subsídios de férias dos anos de 2002, 2003 e 2004, (iv) a quantia de € 647,99, a título de retribuição e subsídio de férias correspondentes ao período de férias proporcional ao tempo de serviço prestado no ano da cessação, (v) a quantia de € 323,75, a título de subsídio de Natal proporcional ao tempo de trabalho prestado no ano da cessação, (vi) a quantia de € 7.500, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais, (vii) as retribuições referentes a férias e subsídios de férias e de Natal que se vencerem até à data do trânsito em julgado da decisão final; (viii) juros sobre as quantias devidas, calculados desde a data de vencimento de cada uma das quantias reclamadas na presente acção, até efectivo e integral pagamento.

Alegou, em suma, que foi admitida pela ré como empregada doméstica, em 16 de Maio de 2001, mediante contrato verbal e por tempo indeterminado, auferindo retribuição constituída por prestações pecuniárias e em espécie (prestação do almoço e de alojamento), e que, em 1 de Setembro de 2001, celebrou com a ré um contrato de trabalho a termo certo por um ano, sendo a estipulação do termo nula, tendo a ré promovido, em 26 de Maio de 2004, o respectivo despedimento, ainda que tácito, que é ilícito, porque determinado sem justa causa, o que, no caso, se presume porque se encontrava no estado de puérpera, causando-lhe danos não patrimoniais; para além disso, achavam-se em dívida créditos emergentes do contrato e da sua cessação.

A acção, contestada pela ré, foi julgada parcialmente procedente, tendo a sentença declarado «nula a estipulação do termo no contrato celebrado entre a Autora e a Ré, em 1 de Setembro de 2001», considerado «ilícito o despedimento da Autora» e condenado a ré a pagar-lhe: a) € 2.890, a título de indemnização por despedimento; b) € 1.230, a título de remuneração de férias e respectivo subsídio, vencidas em 1 de Janeiro de 2002; c) € 650, a título de remuneração correspondente ao subsídio de férias vencido em 1 de Janeiro de 2003; d) € 1.300, a título de remuneração de férias e respectivo subsídio, vencidos em 1 de Janeiro de 2004; e) € 785,34, a título de proporcionais de férias e subsídios de férias e de Natal, tendo em conta o trabalho prestado em 2004; f) juros moratórios sobre essas quantias, à taxa legal de 7% até 30.4.03 e de 4% desde 1.05.03 e nos vincendos, à taxa legal, até integral pagamento.

2. Inconformados, a ré e a autora interpuseram recurso de apelação, sendo o primeiro independente e o segundo subordinado, tendo a Relação, por considerar que não se verificou uma declaração negocial de despedimento, julgado parcialmente procedente o recurso da ré, decidindo «revogar a sentença recorrida na parte em que considerou ilícito o despedimento da Autora e condenou a Ré a pagar-lhe a quantia de € 2.890 a título de indemnização», e julgado improcedente o recurso da autora.

É contra esta decisão da Relação que a autora agora se insurge, mediante recurso de revista, em que formula as seguintes conclusões:

«1 - A Recorrente foi despedida, tacitamente, pela Recorrida, como o demonstra o facto n.º 32 da matéria assente, confirmado pelos factos n.os 33, 34, 35 e 36;
2 - Um declaratário normal, colocado na posição da Recorrente, não poderia deixar de interpretar o comportamento da Recorrida como um despedimento;
3 - E tendo a Recorrida decidido despedir a Recorrente precisamente no momento em que esta se encontrava hospitalizada, não pode deixar de se interpretar como definitiva a intenção de não a readmitir;
4 - Ao contrário do decidido no acórdão recorrido, os factos que consubstanciam um despedimento não foram praticados apenas pelo marido da Recorrida, mas também por esta;
5 - Assim, foi a actuação da própria Recorrida que afectou a relação laboral de forma definitiva;
6 - E também ao contrário do afirmado no Acórdão recorrido, não foi apenas o marido da Recorrente, mas também esta a visada pelas atitudes em questão;
7 - Despedimento esse que, por carecer de justa causa e não ter sido precedido do formalismo legal, é ilícito;
8 - Consequentemente, tem a Recorrente direito à indemnização prevista no art. 31.º do D.L. n.º 235/92, de 24 de Outubro, ou seja, um mês por cada ano completo de serviço ou fracção, decorrido até à data em que tenha sido proferido o despedimento;
9 - Indemnização essa que, atendendo ao facto de se tratar de uma trabalhadora puérpera, terá necessariamente de ser elevada ao dobro, em virtude do disposto no art. 24.º, n.º 8, do D.L. n.º 4/84, de 5 de Abril, aplicável ao contrato de serviço doméstico por via do estipulado no art. 9.º deste decreto;
10 - A lei não exige qualquer nexo de causalidade entre o despedimento e a gravidez ou o parto, nem é tal preceito passível da interpretação restritiva no sentido de ser necessário tal nexo para que a indemnização possa ser elevada ao dobro;
11 - De qualquer modo, sempre caberia à Recorrida — dado tratar-se de um facto modificativo ou extintivo do direito da Recorrente — a alegação e prova da inexistência de tal nexo, o que esta não fez;
12 - Para além disso, o art. 437.º do C. do Trabalho tem aplicação, por via do disposto no art. 11.º deste Código, aos contratos de serviço doméstico, pelo que tem a Recorrente direito a receber as importâncias correspondentes ao valor das retribuições que deixou de auferir desde a data do despedimento até à data do trânsito em julgado da sentença;
13 - Norma cuja aplicação não é de afastar ainda que não fosse possível a reintegração;
14 - Em primeiro lugar, de acordo com o regime especial do art. 24.º, n.º 8, da Lei da Maternidade e da Paternidade, sempre seria admissível a reintegração;
15 - Por outro lado, a simples natureza pessoal da relação de trabalho não pode ser determinante para afastar a aplicação do disposto no art. 437.º do C. do Trabalho, pois tal direito é também consagrado relativamente a outras relações laborais assentes na natureza pessoal e na proximidade das partes;
16 - Em consequência, deve a Recorrida, além do mais, ser condenada no pagamento à Recorrente dos salários vencidos e não pagos desde a data do despedimento até o trânsito da sentença, descontando-se as retribuições respeitantes ao período desde o despedimento até 30 dias antes da propositura da acção, bem como as quantias auferidas após o despedimento, a liquidar em execução de sentença;
17 - De resto, tais salários vencidos após a alegada data de despedimento sempre seriam devidos, mesmo que se venha a concluir, como concluiu o Tribunal recorrido, que não se está perante um despedimento;
18 - Efectivamente, tendo transitado em julgado a decisão do Tribunal recorrido que concluiu que a relação laboral não cessou por abandono do trabalho, então, a não haver despedimento, a relação laboral mantém-se plenamente válida;
19 - Decidindo-se como se decidiu, foram violadas, designadamente, as normas dos artºs 11.º, 437.º e 439.º do C. do Trabalho e artºs 9.º e 24.º, n.º 8, da Lei n.º 4/84, de 5 de Abril.»

A ré contra-alegou, defendendo a confirmação do julgado.

Neste Supremo Tribunal, a Ex.ma Procuradora-Geral-Adjunta concluiu que a revista deve ser negada, parecer que, notificado às partes, suscitou resposta da autora para discordar daquela posição.

3. No caso vertente, as questões suscitadas são as que se passam a enunciar:

Se ocorreu o despedimento ilícito da autora [conclusões 1) a 7) da alegação do recurso de revista];
Em caso afirmativo, se a autora tem direito à indemnização prevista no artigo 31.º do Decreto-Lei n.º 235/92, de 24 de Outubro [conclusão 8) da alegação do recurso de revista];
Ainda, em caso afirmativo, se tal indemnização, atendendo ao facto de se tratar de uma trabalhadora puérpera, terá necessariamente de ser elevada ao dobro, face ao disposto no artigo 24.º, n.º 8, do Decreto-Lei n.º 4/84, de 5 de Abril, aplicável ao contrato de serviço doméstico por via do artigo 9.º do mesmo diploma legal [conclusões 9) a 11) e 19) da alegação do recurso de revista];
Também, em caso afirmativo, se o disposto no artigo 437.º do Código do Trabalho se aplica ao contrato de serviço doméstico e, em consequência, se a autora tem direito aos salários intercalares vencidos desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da decisão [conclusões 12) a 16) e 19) da alegação do recurso de revista].
Se os salários vencidos após a alegada data de despedimento sempre seriam devidos, mesmo que se venha a concluir, como concluiu o Tribunal recorrido, que não se está perante um despedimento [conclusões 17) e 18) da alegação do recurso de revista].

Estando em causa o despedimento de trabalhadora de serviço doméstico posterior à entrada em vigor do Código do Trabalho (dia 1 de Dezembro de 2003 — n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto), atento o disposto no n.º 1 do artigo 8.º da Lei n.º 99/2003, aplicam-se as regras daquele Código (artigo 11.º), bem como o regime jurídico aprovado pelo Decreto-Lei n.º 235/92, de 24 de Outubro.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

II

1. O tribunal recorrido deu como provada a seguinte matéria de facto:

1) A A. foi admitida ao trabalho da Ré em 16 de Maio de 2001, mediante acordo verbal, passando, desde então, a prestar os seus serviços sob as ordens, direcção e fiscalização da Ré, em casa desta, sita na Casa .... – ....., Malveira da Serra;
2) Casa onde a Ré vivia com o seu marido, RR, o filho da Ré, o F, com cerca de 19 anos e o filho da Ré e do seu marido, o V, nascido em 25 de Agosto de 2000;
3) Aí desenvolvendo actividades destinadas à satisfação das necessidades da Ré, seu marido e filhos, nomeadamente:
a) Confecção de refeições;
b) Lavagem e tratamento de roupas;
c) Limpeza e arrumo da casa;
d) Vigilância e assistência do V ..;
4) Auferindo a retribuição mensal líquida de € 500,00;
5) Em 1 de Setembro de 2001, A. e a Ré celebraram o acordo escrito consubstanciado no documento junto a fls. 62 dos autos, clausulando conforme consta do mesmo e, nomeadamente, que:
– A Autora é «admitida ao serviço» da Ré «com a categoria profissional de empregada doméstica» — cláusula 1.ª;
– «A retribuição a auferir» pela Autora «é mensal, fixada em Euros 341,23», «a qual será paga sob a forma de cheque, até ao último dia útil de cada mês, e sobre a qual incidirão os descontos legais» — cláusula 2.ª;
– «O local de trabalho é em Casa ... – ... – Malveira da Serra» — cláusula 3.ª;
– O contrato é celebrado pelo período de um ano «com início em 01 de Setembro de 2001, sem período experimental» — cláusula 5.ª;
– «O motivo justificativo da celebração do contrato de trabalho é o previsto na alínea D do n.º 1 do artigo 41.º do Dec. Lei 64-A/89, de 27 de Fevereiro, com conformidade com o disposto no art. 3.º da Lei 38/96, de 31 de Agosto, baseado no acréscimo do agregado familiar» — cláusula 7.ª;
6) Em 3 de Abril de 2002 nasceu um outro filho do casal, a N, tendo a Autora passado a desenvolver as actividades supra enunciadas, também relativamente à mesma;
7) Pese embora o valor consignado na cláusula 2.ª do referido acordo, a Autora continuou a receber a quantia supra aludida de € 500,00, até Abril de 2002, tendo essa retribuição sido aumentada para € 650,00 em Maio de 2002;
8) A retribuição era sempre paga em dinheiro, no último dia de cada mês;
9) Em 16 de Maio de 2001, a Autora e o marido viviam numa garagem, deslocando-se a Autora para casa da Ré;
10) A partir de Novembro de 2001, a Autora e seu marido passaram a residir num anexo da residência da Ré, com o conhecimento e autorização destes;
11) Tal habitação — anexo — foi mandada construir pela Ré e pelo seu marido, já depois de 16 de Maio de 2001, no terreno da sua casa e era constituída por sala, dois quartos, cozinha e casa de banho;
12) Pela utilização dessa casa, a Autora e o marido não pagavam qualquer quantia em dinheiro;
13) A A. almoçava diariamente em casa da Ré, fazendo-o desde 16 de Maio de 2001, na sequência de indicação da Ré nesse sentido, utilizando os condimentos e instrumentos fornecidos pela Ré;
14) A A. começava a trabalhar, diariamente, cerca das 8.30h até hora não concretamente apurada, com intervalo para almoçar, folgando à 3ª feira ou à 4ª feira;
15) Em Outubro de 2003, a Autora deu conhecimento à R. de que estava grávida;
16) Quando a A. deu conhecimento à R. de que estava grávida, a R. ficou feliz com a notícia,
17) Tendo, inclusivamente, oferecido uma prenda à A.,
18) E tendo-lhe dito que «era mais uma criança para criar e crescer ao pé dos seus filhos»;
19) A R. ofereceu à A. uma caminha para o bebé, que foi colocada num dos quartos da habitação da R., quarto este que foi preparado para receber o bebé quando este nascesse;
20) Assim como ofereceu todo o enxoval do seu filho V para o seu bebé, e roupas dos seus filhos;
21) Logo quando soube da notícia, a R. pediu à A. para saber se alguma amiga sua a poderia vir substituir enquanto esta ficasse de baixa, para ter o bebé;
22) Na segunda quinzena de Abril de 2004, a Ré e o seu marido foram de viagem a Angola, aí permanecendo pelo menos oito dias;
23) Ficando a Autora e a mãe da Ré a cuidar dos filhos da Ré, para o que a mãe da Ré se deslocou para casa da Ré, onde permaneceu durante a estada do casal em Angola;
24) Nesse período, uma cunhada da Ré deslocou-se diariamente a casa da Ré prestando também assistência aos filhos do casal;
25) A relação estabelecida entre a Ré — e o seu marido — e o marido da Autora começou a ser, pelo menos desde Abril de 2004, conflituosa;
26) Em Abril de 2004, a Ré proibiu a A. de lavar a sua roupa e do seu marido nas máquinas daquela, como fazia até então;
27) Além disso, pediu o comando do portão de entrada da casa e proibiu o marido da A. de recolher o seu carro no interior dos muros da quinta da R., pelo que teve de deixá-lo na rua a partir daí;
28) A Autora trabalhou até fins de Abril de 2004;
29) Em data indeterminada de Abril de 2004 ou início de Maio de 2005, o marido da Ré disse ao marido da Autora que este tinha de desocupar o anexo onde residia, no prazo de 15 a 30 dias;
30) No dia 03 de Maio de 2004 (2ª feira), a A. entrou de baixa, que se prolongou até 14 de Maio, iniciando novo período de baixa em 15 de Maio de 2004, por um período de mais 20 dias, conforme documentos juntos a fls. 63 e 64 dos autos;
31) No dia 25 de Maio de 2004, nasceu o filho da A., tendo esta ficado no Hospital até dia 28 de Maio;
32) No dia 26 do mesmo mês, o marido da R. ligou para o marido da A. dando-lhe conhecimento que ele e a Ré tinham posto todos os seus bens e haveres, incluindo os da Autora, fora do anexo, junto ao portão de entrada da quinta — no interior da quinta — e que tinham mudado as chaves do portão de entrada da quinta e do anexo;
33) Nesse dia, o marido da A. deslocou-se à entrada da quinta da Ré, acompanhado de algumas pessoas e aí presenciou que tinham sido colocadas fora da casa onde a Autora e o seu marido viviam os objectos representados nas fotografias juntas a fls. 66 a 68 dos autos;
34) O marido da A. foi impedido, nesse dia, de entrar na quinta da R. e pernoitar no anexo onde residia;
35) E, a partir desse dia, nunca mais foi autorizado a entrar na propriedade da Ré;
36) A Ré não entregou à Autora as novas chaves do portão de entrada da quinta nem do anexo, nem a Autora as pediu;
37) Quando a A. saiu do hospital, a Autora e o marido foram viver para uma casa sita no 2.º andar, letra A, do lote 00, na Rua ..., Alto da Pampilheira, em Cascais;
38) Tal casa foi-lhes disponibilizada pela Ré e pelo marido da Ré, na sequência de contactos feitos entre o Dr. F e o Dr. S, advogados, agindo, respectivamente, em representação da Autora e da Ré e seu marido;
39) Tendo a Autora, o seu marido e o filho do casal, recém-nascido, aí habitado até 1 de Setembro de 2004, data em que deixaram essa casa;
40) Pela utilização dessa casa, a Autora e o marido não pagaram qualquer quantia em dinheiro;
41) A Ré não solicitou qualquer parecer com vista à cessação do contrato com a Autora;
42) No ano de 2002, a A. gozou férias na primeira semana de Janeiro e nos dias 1 a 12 de Outubro;
43) No ano de 2003, a A. gozou férias;
44) Em virtude da factualidade descrita em 32. a 35., a Autora sentiu desgosto e ficou perturbada;
45) Os bens da A. e do seu marido, supra referidos em 32. e 33. foram, no dia a seguir, colocados na residência aludida em 37), pelo marido da Ré;
46) Depois do filho da Autora nascer, em data não apurada, a A. deslocou-se ao local de trabalho do marido da Ré com uma amiga, a Maria ....;
47) E disse ao marido da Ré que esta lhe estava a dever dinheiro, porque a tinha despedido;
48) O marido da Ré disse então à Autora que não a tinham despedido e que se a Autora quisesse podia continuar a trabalhar para a Ré;
49) Mais referindo à Autora que o marido da Autora é que não podia entrar em sua casa e da Ré;
50) Tendo a Autora dito ao marido da Ré que «Deus me livre, não quero mais voltar a trabalhar naquela casa»;
51) Na mesma ocasião, o marido da Ré disse à Autora que não havia qualquer hipótese de entendimento, porque a Ré não estava disposta a pagar o que quer que fosse;
52) Passados alguns dias, a Autora telefonou à Ré, por motivos relacionados com documentação alusiva à sua autorização de residência, não se tendo apurado o teor da conversa em causa;
53) À data da celebração do acordo aludido em 5), a Ré encontrava-se grávida da sua filha N;
54) A Ré tinha um relacionamento afável com a Autora e gostava do trabalho da A.;
55) O Dr. S, supra aludido sob o n.º 38, subscreveu a carta cuja cópia consta de fls. 203 dos autos.

Os factos materiais fixados pelo tribunal recorrido não foram objecto de impugnação pelas partes, nem se vislumbra qualquer das situações referidas no n.º 3 do artigo 729.º do Código de Processo Civil, pelo que será com base nesses factos que hão-de ser resolvidas as questões suscitadas no presente recurso.

2. Em primeira linha, a recorrente invoca que foi despedida, tacitamente, pela recorrida, como o demonstra o facto n.º 32 da matéria assente, confirmado pelos factos n.os 33, 34, 35 e 36, sendo que um declaratário normal, colocado na posição da recorrente, não poderia deixar de interpretar o comportamento da recorrida como um despedimento, o qual é ilícito, por carecer de justa causa e não ter sido precedido do formalismo legal.

2.1. Neste particular, o acórdão recorrido aduz a seguinte fundamentação:

« Da matéria de facto apurada, […], não se encontra qualquer facto praticado pela Ré que nos sugira, sequer, que esta pretendeu pôr termo à relação laboral com a Autora.
Apenas se faz alusão a uma relação conflituosa entre a Ré e o seu marido, com o marido da Autora — que não, com a Autora.
A relação de trabalho estabelecida entre Autora e Ré não mostra, até este momento, sinais de ter sido “beliscada”.
Escreveu-se na sentença recorrida que “esta factualidade é suficiente para se concluir que a cessação do contrato ficou a dever-se à vontade da entidade patronal, cuja actuação só é compreensível no âmbito de um quadro de ruptura da relação laboral, exercida, de forma unilateral, pela Ré, quando impediu a Autora de ter acesso ao seu local de trabalho e à habitação que constituía uma prestação em espécie, no âmbito desse contrato”.
Contudo não o entendemos assim.
Desde logo porque não existe nos autos qualquer facto imputável à Ré que demonstre essa vontade de ruptura.
Por outro lado não vemos em que factos se fundou a sentença para concluir que a Ré “impediu a Autora de ter acesso ao seu local de trabalho e à habitação” quando não existe qualquer facto que indique que a Autora ali se tenha deslocado — quer para trabalhar quer com intuito de continuar a residir — ou que a Ré tenha, sequer, tido qualquer comportamento (por palavras, gestos, atitudes…) em relação à Autora no período como sendo aquele em que “ocorreu” o despedimento.
Não poderia, pois, a Autora, retirar do apurado comportamento da Ré, a conclusão de que esta a estava a despedir.
É certo que a atitude do marido da Ré — que não desta (e é preciso distinguir a relação contratual existente entre a Ré e a Autora, das eventuais relações conflituosas com o marido da Autora, que não é parte na relação de trabalho em causa) — ao pôr os pertences do marido da Autora (e seus) fora da casa que esta também habitava, indica, claramente, que não os queria a viver naquele anexo.
Mas esta atitude não belisca a relação laboral — de que o marido da Ré não é parte — e, se conjugado com os restantes elementos dos autos, apenas parece querer significar que, para o marido da Ré, o elemento pernicioso era, ali, o marido da Autora (e não esta). Era este — o marido da Autora — que o marido da Ré queria afastar daquele local, e, não, a empregada da sua esposa.
Por outro lado, a retirada da habitação — “que constituía uma prestação em espécie”, nos termos da sentença — também não pode ser entendida como a ruptura da relação laboral. Apenas poderá ter-se como uma deficiência da prestação devida por parte da Ré, não “pagando” parte da retribuição.
Assim, analisados todos os elementos constantes dos autos, não podemos concluir, como o faz a sentença recorrida, que a Autora foi despedida pela Ré.
E competia à Autora a prova dos factos demonstrativos do despedimento.
Não tendo feito essa prova, improcedem todos os pedidos dependentes da verificação de despedimento ilícito, […].»

2.2. O despedimento é uma das formas de cessação do contrato de trabalho por parte do empregador e constitui, estruturalmente, um negócio jurídico unilateral receptício, através do qual o empregador revela a vontade de fazer cessar o contrato.

A declaração negocial extintiva por parte do empregador pode ser expressa, quando realizada directamente através de palavras, escrito ou qualquer outro meio directo de manifestação da vontade, e tácita, «quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam» (artigo 217.º, n.º 1, do Código Civil).

Neste domínio, a jurisprudência tem admitido a relevância dos chamados «despedimentos de facto», em que, não se verificando uma declaração expressa de despedimento, há, contudo, uma atitude inequívoca do empregador que configura a manifestação da vontade de fazer cessar a relação laboral e assim é entendida pelo trabalhador, nos termos do n.º 1 do artigo 236.º do Código Civil, preceito segundo o qual a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante (cf., entre outros, os acórdãos deste Supremo Tribunal, de 13 de Setembro de 2006, na Revista n.º 1547/06, de 12 de Setembro de 2007, na Revista n.º 1261/07, e de 16 de Janeiro de 2008, na Revista n.º 535/07, todos da 4.ª Secção).

Assim caracterizado, o despedimento de facto terá de extrair-se de atitudes do empregador que revelem, inequivocamente, ao trabalhador, enquanto declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, a vontade do empregador de fazer cessar o contrato de trabalho.

É que essa declaração de vontade é receptícia, o que significa que, para se tornar eficaz, tem de ser levada ao conhecimento do destinatário (artigo 224.º, n.º 1, do Código Civil), pelo que o efeito extintivo do contrato só se verifica depois de ser recebida pelo trabalhador ou de ser dele conhecida, sendo irrevogável, salvo declaração em contrário, desde esse momento (artigo 230.º, n.º 1, do Código Civil).

Refira-se, ainda, que consoante o estipulado no Código Civil, «[à]quele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado» (n.º 1), competindo a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado «àquele contra quem a invocação é feita» (n.º 2), e, em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito (n.º 3).

Assim, na acção de impugnação de despedimento, cabe ao trabalhador alegar e provar a existência de um contrato de trabalho e a sua cessação mediante despedimento por iniciativa do empregador (artigo 342.º, n.º 1, citado).

2.3. No caso vertente, a relação laboral emergente do contrato de serviço doméstico iniciou-se em 16 de Maio de 2001 [facto provado 1)].

Nessa data, a autora e o marido viviam numa garagem, deslocando-se a autora para casa da ré [facto provado 9)]. A partir de Novembro de 2001, a autora e seu marido passaram a residir num anexo da residência da ré, com o conhecimento e autorização destes [facto provado 10)], sendo que, pela sua utilização, a autora e o seu marido não pagavam qualquer quantia em dinheiro [facto provado 12)].

Pelo menos, desde Abril de 2004, a relação estabelecida entre a ré — e o seu marido — e o marido da autora começou a ser conflituosa, tendo a ré proibido a autora de lavar a sua roupa e do seu marido nas máquinas daquela, «como fazia até então», e proibido o marido da autora de recolher o seu carro no interior da quinta [factos provados 25) a 27)]; além disso, em data indeterminada de Abril ou princípio de Maio de 2004, o marido da ré disse ao marido da autora que tinha de desocupar o anexo onde residia dentro de 15 a 30 dias [facto provado 29)].

Nessa altura, a autora estava grávida [factos provados 15) a 21)], sendo que trabalhou até fins de Abril de 2004 [facto provado 28)], «entrando de baixa», em 3 de Maio de 2004, e iniciando novo período de baixa em 15 de Maio de 2004, por um período de mais 20 dias, tendo o seu filho nascido em 25 de Maio de 2004 e ficado hospitalizada até ao dia 28 de Maio seguinte [factos provados 30) e 31)].

Mais se provou que, em 26 de Maio de 2004, «o marido da R. ligou para o marido da A. dando-lhe conhecimento que ele e a Ré tinham posto todos os seus bens e haveres, incluindo os da Autora, fora do anexo, junto ao portão de entrada da quinta — no interior da quinta — e que tinham mudado as chaves do portão de entrada da quinta e do anexo» [facto provado 32)], que, nesse dia, «o marido da A. deslocou-se à entrada da quinta da Ré, acompanhado de algumas pessoas e aí presenciou que tinham sido colocadas fora da casa onde a Autora e o seu marido viviam os objectos representados nas fotografias juntas a fls. 66 a 68 dos autos» [facto provado 33)], sendo que «[o] marido da A. foi impedido, nesse dia, de entrar na quinta da R. e pernoitar no anexo onde residia» [facto provado 34)] e, «a partir desse dia, nunca mais foi autorizado a entrar na propriedade da Ré» [facto provado 35)].

Resultou, ainda, provado que a ré «não entregou à Autora as novas chaves do portão de entrada da quinta nem do anexo», mas, também, que a autora nunca as pediu [facto provado 36)], e que, quando a autora saiu do hospital, foi viver com a família para uma casa disponibilizada pela ré e pelo marido da ré, onde habitou até 1 de Setembro de 2004, não tendo pago qualquer renda [factos provados 37) a 40)].

Ora, perante a factualidade enunciada, não se pode concluir, como pretende a recorrente, que o comportamento da ré revele, perceptível e inequivocamente, a vontade de pôr termo à relação laboral entre elas estabelecida.

Na verdade, não se provou que a ré tenha, por qualquer forma, recusado a prestação de trabalho oferecida pela autora ou sequer impedido o acesso ao seu posto de trabalho, pelo que a autora não poderia interpretar o apurado comportamento da ré como revelador da vontade de a despedir.

É certo que, no dia 26 de Maio de 2004, a ré e o seu marido colocaram todos os bens e haveres da autora e do seu marido fora do anexo onde habitavam, mudaram as chaves do portão de entrada da quinta e do anexo e impediram o marido da autora de entrar na quinta, não tendo a ré entregue à autora as novas chaves do portão de entrada da quinta nem do anexo.

Porém, essa conduta só pode ser interpretada como manifestação da vontade da ré de que a autora e o seu marido cessassem a ocupação do anexo onde habitavam.

Tudo para concluir que a autora não fez prova, como lhe competia (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil), dos factos demonstrativos do despedimento.

Não há, portanto, motivo para alterar o julgado, pelo que improcedem as conclusões 1) a 7) da alegação do recurso de revista.

3. A recorrente sustenta, ainda, que tem direito à indemnização prevista no artigo 31.º do Decreto-Lei n.º 235/92, de 24 de Outubro, que a dita indemnização terá de ser elevada ao dobro, face ao preceituado no n.º 8 do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 4/84, de 5 de Abril, aplicável ao contrato de serviço doméstico por via do artigo 9.º deste diploma legal, e que ao contrato de trabalho doméstico se aplica o disposto no artigo 437.º do Código do Trabalho, pelo que tem direito aos salários intercalares vencidos desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da decisão.

O n.º 2 do artigo 660.º do Código de Processo Civil, aplicável aos acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do disposto nos conjugados artigos 713.º, n.º 2, e 726.º do mesmo Código, estabelece que o tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.

Ora, tendo-se concluído que a autora não provou o alegado despedimento ilícito, fica prejudicada a apreciação das questões suscitadas nas conclusões 8) a 16) e 19) da alegação do recurso de revista.

4. Finalmente, a recorrente defende que os salários vencidos após a alegada data de despedimento sempre seriam devidos, mesmo que se viesse a concluir, como concluiu o Tribunal recorrido, que não se configurava um despedimento, porquanto, «tendo transitado em julgado a decisão do Tribunal recorrido que concluiu que a relação laboral não cessou por abandono do trabalho, então, a não haver despedimento, a relação laboral mantém-se plenamente válida».

Trata-se de questão que só agora, no recurso de revista, foi suscitada, não tendo sido invocada na alegação do recurso (subordinado) de apelação, e que, em consequência, não foi examinada no acórdão recorrido.

Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais (artigos 676.º, n.º 1, e 690.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), através dos quais se visa reapreciar e modificar decisões e não criá-las sobre matéria nova, salvo quanto às questões de conhecimento oficioso, o que não é o caso.

Aliás, tal pretensão constituiria uma alteração da causa de pedir, o que está vedado nesta fase processual (cf. artigo 28.º do Código de Processo do Trabalho).

Assim, não se pode tomar conhecimento da temática versada nas conclusões 17) e 18) da alegação do recurso de revista.

III

Pelo exposto, decide-se negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário com que litiga.

Lisboa, 27 de Fevereiro de 2008

Pinto Hespanhol (relator)

Vasques Dinis

Bravo Serra