Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5357/11.5YYLSB-A.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
ESCRITURA PÚBLICA
CONTRATO DE MÚTUO
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
COMPENSAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
ACÇÃO EXECUTIVA
AÇÃO EXECUTIVA
Data do Acordão: 03/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / PROVAS / ÓNUS DA PROVA – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CAUSAS DE EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES ALÉM DO CUMPRIMENTO / COMPENSAÇÃO / CONTRATOS EM ESPECIAL / MÚTUO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL.
Doutrina:
-Almeida Costa, Direito das Obrigações, Almedina, Coimbra 1979, p. 797;
-Menezes Cordeiro, Direito Bancário, 6.ª Edição, Revista e Actualizada, Almedina, p. 596 e 602;
-P. Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, Volume II, 4.ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, p.133.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, N.º 1, 848.º E 1142.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 6.º, N.º 3, 46.º, N.º 1, ALÍNEA B).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 18-12-2008, PROCESSO N.º 08B2688, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 16-09-2014, PROCESSO N.º 333/09.0TVLSB.L2.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA N.º 2/2016, DE 13-11-2015, IN DR I SÉRIE DE 07-01-2016.
Sumário :
I - Por força da norma de direito transitório constante do art. 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26-06, as disposições do Novo CPC relativas aos títulos executivos só se aplicam às execuções iniciadas após a sua entrada em vigor, mantendo, por conseguinte, aplicação as regras atinentes ao elenco de títulos executivos traçadas na versão anterior do mesmo Código, dada pelo DL n.º 303/2007, de 24-08.

II - Tendo sido dada à execução uma escritura que corporiza um contrato de mútuo, tal como se encontra definido no art. 1142.º do CC, concretizado com a transferência do capital mutuado para a conta da titularidade da mutuária, e sendo o capital destinado ao financiamento da aquisição de uma fracção autónoma, a mesma constitui um título executivo nos termos do art. 46.º, n.º 1, al. b), do anterior CPC.

III - Provando-se, contudo, que o valor depositado na conta da executada e oponente, foi dele transferido e utilizado pelo banco exequente para regularização de obrigações vencidas de empresas familiares das quais a executada é sócia, sem qualquer comunicação prévia ou acordo desta, em vez de ser destinado à compra da referida fracção, como previsto na escritura outorgada, deve ser julgada procedente a oposição à execução por o banco exequente não ter cumprido a obrigação de colocar à disposição da executada a quantia mutuada para aquisição do imóvel, impedindo a concretização da finalidade do contrato, viste tratar-se de um contrato de mútuo de escopo.

IV - Os bancos podem proceder à compensação do seu crédito sobre um cliente com o crédito que este tenha sobre o mesmo banco desde que tenha sido autorizada, isto é, desde que a compensação resulte de um acordo, ainda que implícito, dos interessados, a não ser que se trate de um caso de compensação legal e tenha havido a declaração a que alude o art. 848.º do CC.

V - Só mediante a demonstração pelo banco exequente de que existia acordo da sua cliente para proceder à compensação de créditos nos termos em que os realizou, como era seu ónus (art. 342.º, n.º 1, do CC), poderia o banco instaurar a execução tendo por título executivo a mencionada escritura pública de mútuo com hipoteca e fiança para aquisição de imóvel.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I. Relatório:


      AA, BB e CC, executados nos autos de execução para pagamento de quantia certa em que é exequente o Banco DD, S.A., deduziram a presente oposição à execução, alegando, em síntese, que o exequente nunca entregou à executada/oponente CC a quantia de € 250.000,00 respeitante à escritura pública de compra e venda com mútuo garantido por hipoteca dada à execução, nem os opoentes, de resto, autorizaram ou consentiram na afectação diversa daquela verba, constituindo a reclamação de pagamento um abuso de direito, pois o exequente tem cabal conhecimento que nunca emprestou à opoente CC a quantia reclamada e a que a mesma a afectava ao pagamento do preço de venda da fracção do imóvel constante da referida escritura.


A oposição de BB foi liminarmente indeferida por intempestiva, tendo sido liminarmente admitida quanto aos demais.

Contestou o exequente, alegando que concedeu um empréstimo no montante de € 250.000,00 para a aquisição constante da escritura, tendo-se os executados BB e AA assumido como fiadores, mútuo que teve como finalidade a liquidação de responsabilidades anteriormente assumidas por sociedades com as quais a mutuária mantinha uma relação de grupo, sendo falso que os executados não tivessem consentido nem autorizado aquela afectação da quantia mutuada, a qual foi entregue à oponente CC no próprio dia da celebração da escritura e permitiu a liquidação de diversos efeitos vencidos e respectivas livranças.

Mais alegou terem os oponentes deduzido pretensão cuja falta de fundamento não ignoravam e omitido factos essenciais para a decisão da causa, litigando de má-fé.

Concluiu a exequente pela improcedência da oposição e pela condenação da executada como litigante de má-fé.

Responderam os oponentes à litigância de má-fé, negando-a e pedindo, por sua vez, a condenação da exequente como litigante de má-fé.


Fixado à causa o valor em € 283.762,59 e saneado o processo, proferiu-se despacho saneador tabelar, fixaram-se os factos assentes e organizou-se a base instrutória, sem reclamações.

      Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença de cuja parte dispositiva consta:

"Em face da argumentação expendida e das disposições legais citadas, decide o Tribunal julgar a presente oposição à execução improcedente e, em consequência, ordena-se o prosseguimento da instância executiva, em conformidade. Custas a cargo dos opoentes".

       Apelou o executado e oponente AA.

    O Tribunal da Relação de ..., com voto de vencida, proferiu acórdão, em 12 de Janeiro de 2017, a conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogou a sentença recorrida, julgando a oposição deduzida por AA e CC procedente e em consequência julga extinta a execução contra os mesmos.


    Inconformado, recorreu de revista o exequente Banco DD, SA, aduzindo na respectiva alegação a seguinte síntese conclusiva (sic):

«I. O Douto Acórdão Recorrido com Declaração de Voto Vencido, acorda conceder provimento ao recurso, revogando a Douta Sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância, substituindo-a pelo douto Acórdão ora recorrido que julga a oposição deduzida por AA e CC procedente e em consequência julgou extinta a execução contra os mesmos.

II. A decisão vertida no Acórdão Recorrido fundamenta-se, em súmula, pelo facto resultante da modificação do ponto nº. 4 da base instrutória de não provado para provado.

III. Tal modificação na decisão sobre a matéria de facto determinou o seguinte entendimento pelo Acórdão Recorrido: "Tendo o capital comprovadamente transferido para a conta da executada e opoente CC, sido aplicado, por motivos da iniciativa do exequente, e com a mesma data da transferência, à liquidação de dívidas de empresas familiares, não pode dizer-se que esse mesmo capital corresponde ao que consta do título executivo, com os fins determinados, não tendo sido pois colocado à disposição da executada para estes fins, o que implica também dizer que o contrato de mútuo com hipoteca destinado à aquisição do imóvel não foi cumprido."

IV. Concluindo que "para o empréstimo de € 250.000,00 destinado à satisfação de responsabilidades de empresas familiares, não há título executivo que possa legitimar a execução e autorizar o seu prosseguimento, pois que "Nos termos do art. 45.º, nº. 1, do Cód. Proc. Civil. "Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva"

V. Do Acórdão recorrido resulta a declaração de voto vencido, que em súmula, negaria provimento ao recurso e confirmaria a Sentença recorrida, porquanto "estando a dissidência limitada ao contrato de mútuo e respectivas garantias" e "provado que a quantia emprestada/exequenda foi depositada/entregue à executada (cfr. ponto 6 dos factos provados) e que esta não restituiu ao exequente o correspondente, sendo que a prova desse pagamento cabia à primeira."

VI. Ainda que "admitindo que o exequente lhe possa, posteriormente, ter dado destino diverso, caberia sempre à Executada a prova da falta do seu conhecimento ou consentimento, o que nem aquela nem o outro embargante lograram fazer.

VII. Não pode o Recorrente concordar com o douto Acórdão, nos termos por estes aduzidos, porquanto configuram violação de lei substantiva, mormente o art. 1142.º do C.C., violação do  art.   703.º  nº. 1 b) do NCPC, anterior art. 46.º nº. 1 b) do CPC e violação do art. 342.º do C.C., quanto ao ónus da prova a qual caberia aos Executados, quer na prova da restituição do valor mutuado quer na prova quanto à falta de conhecimento ou consentimento para aplicação do valor em finalidade diversa, bem como se encontra em contradição com outro Acórdão daquela Relação cujo objecto do litígio é o mesmo.

VIII.   Estipula o art. 1142.º do Código Civil que "Mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade."

IX. Da factualidade considerada provada resulta que, em 13.07.2007, o montante de 250.000,00€ foi transferida para a conta da Opoente CC.

X. Ficou igualmente provado que, quando foi efectuada a transferência, a conta da Opoente CC apresentava um saldo negativo de - 235.051,37 €, em virtude de na mesma data terem sido efectuados dois débitos, no valor de 92.800,00 € e de 128.430,00 C, referentes à regularização de dívidas das empresas EE e FF respectivamente.

XI. Verifica-se que, embora o Recorrente tenha transferido o dinheiro para a conta da Opoente, esta, segundo o Acórdão Recorrido, não chegou a ter a disponibilidade efectiva do dinheiro, porém, não ficou provada (e era à Opoente CC e ao Opoente/Recorrido AA que cabia o ónus da  prova)  a  falta  de justificação  dos débitos ou que a Opoente não era devedora dos mesmos.

XII. Pelo que não obsta a que se considere validamente efectuada a entrega da quantia mutuada e o contrato de mútuo válido e eficaz.

XIII. O Recorrente tem direito ao reembolso da quantia mutuada e demais acréscimos nos termos acordados no respectivo clausulado.

XIV. O título dado à execução é válido e legitima a execução, nos termos do art. 703.º n.º 1 b) do CPC.

XV. O Acórdão recorrido viola o estipulado no art. 1142.º do CC e o art. 703.° n.º 1 b) do CPC, retirando força executiva ao título sem que qualquer causa extintiva da obrigação tenha sido provada.

XVI. O Acórdão Recorrido faz repercutir sobre o ora Recorrente o ónus da prova da falta de conhecimento ou consentimento do destino diverso da quantia mutuada

XVII. Dispõe o art. 342.º do Código Civil que "2. A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita. "

XVIII. A restituição do capital mutuado ou qualquer outra causa extintiva da dívida, tal como foi alegado pelo Opoente/Recorrido, consiste, num facto extintivo da obrigação que sobre os Opoentes recaia.

XIX. Segundo Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, em Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, pág. 453. "Assim, na acção de condenação destinada a obter o pagamento de uma dívida pecuniária, cabe ao autor alegar e provar a existência dos factos constitutivos do crédito, cuja titularidade se arroga e que afirma estar sendo violado, provando nomeadamente a realização do facto jurídico (...) donde o crédito nasceu. Ao réu competirá, por seu turno, provar os factos (...) extintivos (o pagamento, a remissão, etc.) do crédito do autor".

XX. Cabia aos Opoentes provar os factos relativos ao pagamento do mútuo de €250.000,00, bem como a prova da falta de conhecimento ou consentimento para alegado diverso destino dado à quantia mutuada.

XXI. O Acórdão Recorrido violou o disposto no n.º 2 do 342.º do CPC, com erro na apreciação das provas com ofensa de disposição expressa da lei, quando inverte o ónus da prova que caberia aos opoentes e ao recorrido, para o Recorrente.

Ainda,

XXII. No âmbito do processo de insolvência da Opoente Sónia Gonçalves, processo 11740/15.0T8LSB, os precisos factos e questões de direito ora discutidas foram alvo de Sentença no Tribunal de 1.ª Instância que decretou a sua insolvência e do Acórdão da Relação de Lisboa de 28.01.2016, com trânsito em julgado, que a confirmou.

XXIII. Resulta do Acórdão da Relação de Lisboa, de 28.01.2016, que "Ora, os factos apurados e considerados na sentença recorrida não permitem corroborar a tese da recorrente, quando esta alega que o valor alegadamente em dívida nunca foi disponibilizado à ora recorrente ou à sociedade GG de que a mesma se constituiu fiadora. "

XXIV. "Como resulta dos factos apurados (...) o empréstimo de € 250.000,00 foi transferido para a conta da recorrente, tendo-se apurado que, quando foi efectuada a transferência, a conta da recorrente apresentava um saldo negativo de - € 235.051,37, em virtude de na mesma data terem sido efectuados dois débitos, no valor de € 92.800,00 e de € 128.430,00, referentes à regularização de dívidas das empresas EE e FF respectivamente."

XXV. "Todavia, foram os mesmos utilizados para regularização, quer do saldo negativo da conta de que a recorrente era titular, quer para "liquidação de responsabilidades anteriormente assumidas", por parte da sociedade GG - Actividades Imobiliárias, Lda.”

XXVI. "Ora, o facto de os montantes mutuados terem regularizados as referidas responsabilidades financeiras não afasta a situação de incumprimento do respectivo pagamento por parte da recorrente, improcedendo a alegação da recorrente a este respeito, sendo que nada nos autos indicia a existência de falta de justificação de tais débitos, ou que a recorrente não era devedora dos mesmos, não tendo ficado provado que o recorrido não podia efectuar os referidos débitos, tal como se considerou na sentença recorrida."

XXVII. Discorda-se do decidido pelo Acórdão Recorrido, com violação porquanto configuram violação de lei substantiva, mormente o art. 1142.º do C.C., o art. 703.º nº. 1 b) do NCPC e violação do art. 342.º do C.C., bem como se encontra em contradição com outro Acórdão daquela Relação, devendo o mesmo ser revogado, mantendo-se a sentença proferido pelo Tribunal de 1ª. Instância».

Finalizou, pedindo a revogação do acórdão recorrido.

Na sua contra-alegação o executado AA pugnou pela inadmissibilidade do recurso de revista e, sendo admissível, pela sua improcedência.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


II. Fundamentos:

De facto:

Após decisão da impugnação fáctica pelo Tribunal da Relação, vêm provados os seguintes factos:

1. A exequente Banco DD, S.A.. intentou a acção executiva a que coube o n.º 5357/11.5YYLSB contra os executados CC e AA, ora opoentes, e BB, apresentando como título executivo uma escritura pública de Compra e Venda e Mútuo com Hipoteca e Fiança outorgada em 13.07.2007 no Cartório Notarial de HH, perante o Notário, inscrita no livro de notas para escrituras diversas número 177-A, de fls. 79 a 82, da qual consta, além do mais que aqui se dá por reproduzido, que a exequente concedeu à executada/opoente CC um empréstimo no valor de 250.000,00 €, destinado à aquisição da fracção autónoma designada pela letra "O" a que corresponde o quarto e quinto andares - lado direito - duplex, habitação e uma arrecadação no sótão, do prédio urbano sito na Rua …, n. 57, freguesia de …, concelho de Lisboa, descrito na 6.ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número 1…4 e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 1221.

2. Para garantia de quaisquer responsabilidades decorrentes do empréstimo referido em 1., o executado BB e o executado/opoente AA prestaram fiança a favor da exequente e, nesse sentido, constituíram-se principais pagadores e devedores, solidariamente entre si e com a afiançada, a executada/opoente CC.

3. Também como garantia do pontual pagamento da quantia mutuada, respectivos juros, cláusula penal, e despesas judiciais e extrajudiciais resultantes da execução do contrato referido em 1., a executada/opoente CC constituiu a favor da exequente uma hipoteca sobre a fracção autónoma designada pela letra "O" a que corresponde o quarto e quinto andares - lado direito - duplex, habitação e uma arrecadação no sótão, do prédio urbano sito na Rua …, nº 57, freguesia de …, concelho de Lisboa, descrito na 6.§ Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número 1…4, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 1221.

4. A hipoteca encontra-se registada, a favor da exequente, na 6.ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, com a Ap. 35 de 30.07.2007.

5. A executada/opoente remeteu à exequente a carta registada com aviso de recepção datada de 3 de Novembro de 2010, cuja cópia se encontra junta a fls. 48, da qual consta, além do mais que aqui se dá por reproduzido, o seguinte:

"(…)

Como é do vosso conhecimento, requeri em Julho do ano de 2007, na vossa instituição o financiamento n.º 004…2, no valor total de 250.000,00€, cujo financiamento dizem os vossos serviços, serviu para pagamentos de várias letras, livranças e contas caucionadas, de várias sociedades.

Acontece porém, depois de algumas amortizações efectuadas por mim, e ignorância do assunto, constatei que assumi indevidamente algumas operações, sem que haja justificação para que eu seja interveniente nas mesmas operações. Tenho consciência dos meus compromissos, em que os valores presumíveis da minha responsabilidade, rondam os 114.000,00€, esta proveniente de uma livrança e Leasing em nome de II, Lda., requerida à vossa instituição.

Ao valor acima referido, gostaríamos em conjunto com os vossos serviços competentes, estudar a melhor forma de liquidação do referido valor, num prazo acessível e compreensível para solução e desfecho do referido processo. Pelo exposto atrás referido, aguardamos da parte de V.s Ex.s, uma solução credível, que nos possibilite cumprir e honrar com compromissos que só a nós diz respeito."

6. A exequente efectuou a transferência da quantia de € 250.000,00 para a conta da executada/opoente CC no dia 13.07.2007.

7. Várias foram as vezes em que a exequente reuniu com os diversos responsáveis do Grupo de empresas, tendo daí resultado o contrato de mútuo com hipoteca e fiança dado à execução.

8. A transferência da quantia de €250.000,00 para a conta da executada/opoente CC serviu para regularizar obrigações vencidas de empresas familiares, das quais a executada/opoente é sócia.[1]


    De direito:

Da admissibilidade do recurso:

O presente recurso tem por objecto um acórdão do Tribunal da Relação proferido sobre decisão da 1ª instância que julgou procedente oposição à execução, determinando a extinção desta (artigos 813 e 817º do Código de Processo Civil na versão do DL nº 303/2007, de 24 de Agosto, aqui aplicável).  

Assim sendo e verificando-se os requisitos gerais de recorribilidade – valor da causa e sucumbência – exigidos pelo disposto no artigo 629º nº 1 do Código de Processo Civil vigente, é o recurso admissível, à luz do disposto no artigo 671º nº 1 do citado código, uma vez que não ocorre a causa impeditiva prevista no seu nº 3, ou seja, a dupla conformidade de decisões.

Com efeito, não só o acórdão impugnado não confirmou a decisão da 1ª instância, antes a tendo revogado, como o mesmo foi proferido com voto de vencido.

Não se vislumbra, em consequência, qualquer impedimento à admissibilidade da revista, pelo que dela se conhecerá, apreciando-se, se for caso disso, de eventual excesso relativamente aos poderes de cognição do Supremo tribunal de justiça traçados nos artigos 674º e 682º do mencionado Código de Processo Civil.


Do mérito do recurso:

   A apreciação e decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões da alegação (artigos 635º n.º 4 e 639º n.º 1, do Código de Processo Civil), centra- -se na análise e resolução da única questão jurídica colocada a este Supremo Tribunal e que consiste em determinar se a escritura pública de compra e venda com hipoteca e fiança dada à execução pode valer, no caso, como título executivo.

Sobre esta questão dissentiram as instâncias.

A 1ª instância julgou a oposição improcedente e determinou o prosseguimento da instância executiva, considerando que o banco exequente se encontrava munido de título executivo bastante, visto apenas ter julgado provado que os € 250.000,00 tinham sido, efectivamente, transferidos para a conta da executada Sónia, não tendo considerado provado que aquela importância tinha servido para liquidar responsabilidades de empresas familiares, das quais a mesma executada/opoente é sócia.

Por sua vez, o Tribunal da Relação de …, após modificação da decisão fáctica na sequência da impugnação deduzida, de que resultou provado que “a transferência da quantia de €250.000,00 para a conta da executada/opoente CC serviu para regularizar obrigações vencidas de empresas familiares, das quais a executada/opoente é sócia” (ponto 8 dos factos provados), julgou, por maioria, procedente a oposição e, em consequência, extinta a instância executiva.  

Na verdade, foi lavrado voto de vencida com base no entendimento de que, transferido o capital mutuado pelo banco exequente para a conta da titularidade daquela executada ficou perfeito o contrato de mútuo celebrado, fazendo recair sobre os executados a obrigação de restituir aquela quantia, independentemente das vicissitudes posteriormente ocorridas quanto ao seu destino, aos quais caberia o ónus de provar que o exequente actuou sem a sua autorização ao transferir tal montante da conta da titularidade da executada CC para solver responsabilidades vencidas de empresas familiares, das quais esta é sócia.

Vejamos.

Convém assinalar que a acção executiva a que respeita a presente oposição foi instaurada no ano de 2011, ou seja, antes da entrada em vigor, em 1 de Setembro de 2013, do Novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho (cfr. artigo 8.º da referida Lei).

Por força da norma de direito transitório constante do seu artigo 6.º n.º 3 as disposições do Novo Código de Processo Civil relativas aos títulos executivos só se aplicam às execuções iniciadas após a sua entrada em vigor, mantendo, por conseguinte, aplicação as regras atinentes ao elenco de títulos executivos traçadas na versão anterior do mesmo código, dada pelo DL nº 303/2007, de 24 de Agosto.

Donde, a resposta à questão de saber se a escritura pública apresentada constitui ou não título executivo passará pela densificação e interpretação do normativo contido no artigo 46.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Civil pré-vigente, ficando afastada, no caso, a aplicação do estatuído no actual artigo 703.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil.

Estabelecia o citado artigo 46.º, n.º 1, al. b), que à execução podem servir de base «Os documentos exarados ou autenticados por notário ou serviço com competência para a prática de actos de registo que importem a constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação». 

Esta redacção resultou da reforma do processo civil de 1995/1996, introduzida pelo DL n.º 329-A/95, de 12/12, de cujo diploma preambular se extrai ter sido intenção clara do legislador ampliar “significativamente” o elenco dos títulos executivos, «conferindo-se força executiva aos documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinável em face do título, da obrigação de entrega de quaisquer coisas móveis ou de prestação de facto determinado. (…)», na convicção de que  «este regime - que se adita ao processo de injunção já em vigor - irá contribuir significativamente para a diminuição do número das acções declaratórias de condenação propostas, evitando-se a desnecessária propositura de acções tendentes a reconhecer um direito do credor sobre o qual não recai verdadeira controvérsia, visando apenas facultar ao autor o, até agora, indispensável título executivo judicial».

Esta abertura do leque de documentos susceptíveis valer como título executivo fica bem patente se comparada a transcrita redacção do artigo 46º nº 1 al. c) com a do anterior artigo 46.º nº 4 (Código de Processo Civil de 1961, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 44129, de 28 de Dezembro de 1961), no qual se reconhecia força executiva às «letras, livranças, cheques, extractos de factura, vales, facturas conferidas e quaisquer outros escritos particulares, assinados pelo devedor, dos quais conste a obrigação de pagamento de quantias determinadas ou de entrega de coisas fungíveis».

Esta tendência sofreu, contudo, uma inflexão, restringindo-se no correspondente artigo 703.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil vigente a força executiva aos «títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo».

O sentido desta evolução legislativa, neste campo particular dos títulos executivos, ficou expresso na Exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII, antecedente da reforma do Código de Processo Civil de 2013, na qual se escreveu: «É conhecida a tendência verificada nas últimas décadas, com especial destaque para a reforma de 1995/1996, no sentido de reduzir os requisitos de exequibilidade dos documentos particulares e, com isso, permitir ao respectivo portador o imediato acesso à acção executiva. (…) Afigura-se incontroverso o nexo entre o progressivo aumento do elenco de títulos executivos e o aumento exponencial de execuções, a grande maioria das quais não antecedida de qualquer controlo sobre o crédito invocado, nem antecedida de contraditório. (…) Deste modo, relativamente ao regime que tem vigorado, opta-se por retirar exequibilidade aos documentos particulares, qualquer que seja a obrigação que titulem. Ressalvam-se os títulos de crédito, dotados de segurança e fiabilidade no comércio jurídico em termos de justificar a possibilidade de o respectivo credor poder aceder logo à via executiva. Ainda dentro dos títulos de crédito, consagra-se a sua exequibilidade como meros quirógrafos, desde que sejam alegados no requerimento executivo os factos constitutivos da relação subjacente».

A actual redacção deste preceito procurou ainda pôr cobro a divergências doutrinais e jurisprudências respeitantes à possibilidade (ou não) de os títulos de crédito, enquanto meros quirógrafos, servirem de base à execução desde que alegada no requerimento executivo a facticidade integradora da relação jurídica fundamental, apesar de, por efeito da reforma de 2003 (DL nº 38/2003, de 8 de Março), o artigo 810º nº 3 al. b) ter passado a consagrar a possibilidade de o requerimento executivo conter uma exposição sucinta dos factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo.

Veio também superar dúvidas relativamente à exequibilidade do cheque como documento particular assinado pelo devedor – quirógrafo –, ao suprimir a exigência do efeito confessório ou recognitivo da obrigação pelo devedor.

No caso em análise, o banco exequente fundou a execução em escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca e fiança outorgada no dia 13 de Julho de 2007, através da qual concedeu à executada/opoente CC um empréstimo no valor de € 250.000,00, destinado à aquisição da fracção autónoma designada pela letra "O", a que correspondem o quarto e quinto andares - lado direito - duplex, destinados a habitação e a arrecadação no sótão, do prédio urbano sito na Rua …, n.º …, sito em Lisboa, tendo o referido montante - sido transferido pelo banco exequente para a conta da executada CC no dia 13 de Julho de 2007.

Para garantia do pontual pagamento daquela quantia, respectivos juros, cláusula penal, e despesas judiciais e extrajudiciais resultantes da execução do contrato referido, a executada CC constituiu hipoteca sobre a dita fracção autónoma a favor daquele banco, tendo o executados BB e AA prestado fiança também a favor da exequente, constituindo-se principais pagadores e devedores, solidariamente entre si e com a afiançada, CC.

Desta facticidade decorre que a escritura dada à execução corporiza um contrato de mútuo, tal como se acha definido no artigo 1142º do Código Civil, concretizado com a transferência do capital mutuado para a conta da titularidade da mutuária, capital destinado ao financiamento da aquisição da fracção autónoma acima identificada.

O contrato de mútuo celebrado tinha, assim, um escopo, uma finalidade concreta para o mutuário expressamente consagrada na escritura que o banco exequente apresentou como título executivo.

Sucede, porém, que o valor de € 250.000,00 depositado na conta da executada CC foi dela transferido e utilizado pelo banco exequente para regularização de obrigações vencidas de empresas familiares das quais a mesma executada é sócia, em vez de ser destinado à compra da referida fracção “O” como previsto na escritura outorgada.

O que significa que o banco exequente procedeu à compensação de créditos já vencidos, que detinha sobre empresas familiares das quais a mutuária é sócia, com o crédito que esta última tinha sobre o mesmo banco em resultado do depósito na sua conta da quantia de € 250.000,00, correspondente ao capital mutuado.

Na verdade, a compensação, na definição de Almeida Costa (Direito das Obrigações, Almedina, Coimbra 1979, pág. 797), «traduz-se fundamentalmente na extinção de duas obrigações, sendo o credor de uma delas devedoras na outra, e o credor desta última devedor da primeira». Consubstancia aquilo que pode chamar-se um encontro de contas.

O artigo 847º do Código Civil consagra a compensação por declaração unilateral ou compensação legal, que pode ser imposta por uma das partes à outra desde que verificados os requisitos necessários naquele enunciados. A par desta, pode ter lugar a compensação voluntária ou contratual, que se rege pelo regime geral dos contratos, no qual impera a autonomia da vontade das partes (artigo 405º do código Civil).

Fundada no acordo dos interessados, a compensação convencional opera independentemente da verificação das exigências legais estabelecidas para a compensação legal. Fundamental é que, como referem P. Lima e A. Varela (Código Civil Anotado, vol. II, 4ª ed. Revista e Actualizada, Coimbra Editora, pág. 133), cada uma das partes possa dispor do crédito e que ambas acordem na extinção recíproca das obrigações.

No domínio da actividade bancária não suscita dúvidas a possibilidade de compensação, que permite ao banqueiro ajustar, livremente, com o seu cliente a realização de operações de compensação, salvo nos casos em que exista norma imperativa que a impeça (cfr. Menezes Cordeiro, Direito Bancário, 6ª ed. Revista e Actualizada, Almedina, pág. 596).

«Trata-se da compensação convencional, que, em regra, seria válida, quando negociada caso a caso, sem violar normas imperativas», como se escreveu no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 2/2016, de 13.11.2015, publicado no DR I Série de 07.01.2016.

Podem, assim, os bancos proceder à compensação do seu crédito sobre um cliente com o crédito que este tenha sobre o mesmo banco desde que tenha sido autorizada, isto é, desde que a compensação resulte de um acordo, ainda que implícito, dos interessados, a não ser que se trate de um caso de compensação legal e tenha havido a declaração a que alude o artigo 848º do Código Civil (cfr. Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 602, e, embora num enquadramento diferente, o citado Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 2/2016).

No caso vertente, apesar de o banco exequente ter alegado que o contrato de mútuo para aquisição de habitação tinha, afinal, por objecto a regularização de dívidas, o que os executados sabiam e concordaram, não resultou dos factos apurados que tivesse havido o acordo dos executados ou que existisse conhecimento, concretamente, da mutuária.

Provou-se, é certo, que várias foram as vezes em que a exequente reuniu com os diversos responsáveis do grupo de empresas, tendo daí resultado o contrato de mútuo com hipoteca e fiança dado à execução (ponto 7 dos factos provados), mas esta facticidade não permite um grau de concretização factual susceptível de evidenciar a existência de um acordo dos executados para a saída da quantia mutuada da conta da executada Sónia com a finalidade de solver as referidas obrigações em dívida.

O mesmo se diga da carta registada com aviso de recepção, datada de 3 de Novembro de 2010, remetida pela executada/opoente ao banco exequente da qual consta, além do mais, o seguinte: “Como é do vosso conhecimento, requeri em Julho do ano de 2007, na vossa instituição o financiamento n.º 004…2, no valor total de 250.000,00€, cujo financiamento dizem os vossos serviços, serviu para pagamentos de várias letras, livranças e contas caucionadas, de várias sociedades”.

Sobre o banco exequente recaía o ónus de provar que existia acordo da sua cliente para a proceder à compensação de créditos nos termos em que os realizou, conforme alegou (cfr. Acórdãos deste Supremo Tribunal de 16.09.2014, proc. nº 333/09.0TVLSB.L2.S1, e de 18.12.2008, proc. nº 08B2688, acessíveis em www.dgsi.pt/jstj).

Só mediante essa demonstração pelo exequente ficaria o mesmo habilitado a proceder à compensação convencional de créditos, por se tratar de facto constitutivo do direito de crédito invocado, e, consequentemente poderia instaurar a execução tendo por título executivo a escritura pública de mútuo com hipoteca e fiança para aquisição de imóvel (artigo 342º nº 1 do Código Civil).

Tendo o capital comprovadamente transferido para a conta da executada e oponente CC, sido aplicado, por movimentos da iniciativa do exequente, na liquidação de dívidas de empresas familiares de que aquela é sócia sem qualquer comunicação prévia ou o seu acordo, o banco exequente acabou por não cumprir a obrigação respectiva de colocar à disposição da executada a quantia mutuada para aquisição de imóvel, impedindo a concretização da finalidade do contrato, visto tratar-se de um contrato de mútuo com escopo.

Tal incumprimento, que se presume culposo (artigo 799º nº 1 do Código Civil), torna inexigível o reembolso do capital e, por conseguinte, inexigível a obrigação exequenda, nos termos do disposto no artigo 729º al. e) e 731º do Código de Processo Civil (anteriores artigos 814º nº 1 al. e) e 816º).

       Razão por que a execução não pode prosseguir.

Em face da solução dada ao presente litigio, fica prejudicada a apreciação da questão do abuso de direito, pelo que dela não se conhecerá (artigo 608º nº 2 do Código de Processo Civil vigente).

           

 III. Nesta conformidade, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.


Lisboa, 22 de Março de 2018


Fernanda Isabel Pereira (Relatora)

Olindo Geraldes

Maria do Rosário Morgado

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[1] Facto aditado pela Relação e que havia sido tido como não provado na 1ª instância.