Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
748/13.0PFCSC.L2-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: PEDRO BRANQUINHO DIAS
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 01/17/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, previsto no art. 437.º e ss., do C.P.P., tem como finalidade específica evitar contradições entre acórdãos dos tribunais superiores, assegurando, assim, a uniformização da jurisprudência e, reflexamente, os princípios da segurança, da previsibilidade das decisões judiciais e da igualdade dos cidadãos perante a lei.

II. Os antecedentes históricos deste recurso parece, segundo a doutrina mais abalizada, encontrarem-se nas façanhas medievais e, mais modernamente, nos Assentos da Casa da Suplicação.

III. O Decreto n.º 12 353, de 22/09/1926, criou um recurso destinado à uniformização da jurisprudência, com um regime análogo ao recurso para o tribunal pleno, que viria a ser consagrado nos C.P.C. de 1939 e 1961.

IV. Integrados no mesmo Capítulo, encontram-se 3 espécies deste recurso, cada um com as suas especificidades: recurso de fixação de jurisprudência próprio sensu (arts. 437.º a 445.º), recurso de decisões proferidas contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça (art. 446.º) e recursos interpostos no interesse da unidade do direito (art. 447.º).

V. Focando-nos na primeira modalidade, que é a que agora interessa ao caso, são requisitos formais de admissibilidade deste tipo de recurso: a legitimidade e o interesse em agir do recorrente; a interposição do mesmo, no prazo de 30 dias, a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar; a invocação, no recurso, do acórdão fundamento, com junção de cópia deste ou do lugar da sua publicação; o trânsito em julgado dos dois acórdãos; e justificação da oposição que origina o conflito de jurisprudência. Por seu turno, são requisitos substanciais de admissibilidade: existência de julgamentos da mesma questão de direito entre dois acórdãos do STJ, dois acórdãos da Relação ou entre um acórdão do STJ e outro da Relação – o acórdão recorrido e o acórdão fundamento; os acórdãos em causa assentem em soluções opostas, de forma expressa e a partir de situações de facto idênticas; e serem ambos proferidos no domínio da mesma legislação, ou seja, quando durante o intervalo da sua prolação não tiver ocorrido alteração legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão controvertida.

VI. Saliente-se ainda que a jurisprudência dominante do Supremo vai no sentido de que a expressão soluções opostas diz respeito às decisões e não aos fundamentos.

VII. Ora, na situação sub judice, não obstante se verificarem todos os requisitos formais, o certo é que, embora se possa admitir alguma afinidade entre as situações de facto subjacentes aos dois acórdãos – recorrido e fundamento - e ambos terem apreciado as consequências à distância de uma prova nula, no acórdão recorrido, as consequências da nulidade da transcrição das gravações de conversas efetuadas por um particular (os reconhecimentos fotográficos não foram declarados nulos), no acórdão fundamento, as consequências da nulidade das escutas telefónicas, os dois convergem, porém, quanto à solução a adotar e no entendimento de que a nulidade de uma prova não se comunica às demais provas que dela sejam independentes e autónomas, ainda que tenham sido produzidas e obtidas posteriormente, pelo que inexiste qualquer divergência de fundo entre os mesmos relativamente à questão de direito eleita como objeto deste recurso.

VIII. Além do mais, a criminalidade em causa constante dos mencionados acórdãos são diferentes, uma vez que, no acórdão recorrido, os arguidos, ora recorrentes, todos militares da GNR, foram condenados pela prática de um crime de corrupção passiva p. e p. pelo art. 373.º n.º 1, do Cód. Penal, em conjugação com o art. 386.º n.º 1 d), do mesmo diploma legal, e, por seu turno, no acórdão fundamento, o arguido recorrente foi condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21.º n.º 1 do DL n.º 15/93, de 22/01.

IX. Nestes termos, ter-se-á, pois, de concluir pela não oposição de julgados, que, como vimos, é um dos requisitos substanciais da admissão do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.

X. Em face do exposto, acorda-se em rejeitar, por não se verificar o requisito da oposição de julgados, o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção criminal, do Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. Os arguidos AA, BB, CC e DD, vieram, em 11/05/2023, interpor, nos termos do artigo 437.º n.º 2, do C.P.P., recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28/03/2023, e transitado em julgado em 20/04/2023, que negou provimento ao recurso dos mesmos e manteve a condenação proferida pelo Juízo Central Criminal de ... -J3, de cada um deles, pela prática de um crime de corrupção passiva p. e p. pelo art. 373.º n.º 1, do Cód. Penal, nas penas, respetivamente, de 2 anos e 6 meses de prisão, 2 anos de prisão, 2 anos de prisão e 2 anos de prisão, todas suspensas na sua execução, pelo período de 2 anos e 6 meses de prisão (a primeira) e as restantes pelo período de 2 anos, concluindo a sua Motivação nos seguintes termos (Transcrição):

1. Pretende-se com o presente recurso que seja fixada jurisprudência no sentido seguido no Acórdão fundamento, prolatado pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 31 de janeiro de 2008, no âmbito do processo n.º 06p4805 e, consequentemente, a anulação do Acórdão recorrido.

Acórdão fundamento acessível em: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/fdaf cfff453ea458802573e900367967?OpenDocument

2. O processo teve origem na denúncia apresentada por EE, em 26/09/2013. Esta testemunha prestou depoimento no dia seguinte, às 12H00, fazendo aí referência, pela primeira vez, a FF e a GG.

3. FF foi ouvido nesse mesmo dia, às 11H45, ou seja, antes de ter sido referido pelo EE no depoimento das 12H00.

4. Esta sucessão ilógica de depoimentos e referências torna evidentes as dúvidas que existem acerca do modo como foi obtida a prova que fundamentou as condenações.

5. Entendem os recorrentes que o douto Acórdão recorrido contraria a jurisprudência vertida no ponto 6 do Acórdão fundamento, acerca do efeito à distância da nulidade das escutas, ponto 6 que se encontra transcrito supra.

6. Quanto à valoração da gravação áudio efetuada pela testemunha GG, está provado nos autos que a PSP, só depois de ter acesso a esta gravação ilícita, deu início às diligências investigatórias de vigilância e com vista à solicitação ao JIC a instalação de uma câmara no interior do estabelecimento comercial do GG, para gravar as imagens e som quando os arguidos ali se deslocavam, diligência que mereceu deferimento por parte do JIC.

7. Sobre esta questão concluiu o douto acórdão, ora recorrido, a fls. 85 e 86 “que assiste razão aos recorrentes quando invocam que tal meio de prova não poderia ser valorado pelo tribunal a quo, como este o fez, no acórdão recorrido” concluindo “não ser de valorar tal transcrição.”

8. Não obstante, também conclui que tal “gravação fictícia revela-se inócua”, nomeadamente, no que se refere à alegação de que “se não tivesse sido utilizada uma gravação ilícita não teria sido realizada a captação de som e imagem na oficina de GG, o que, de acordo com a teoria dos frutos da árvore envenenada ou da proibição em cascata resultante do recurso à prova proibida, torna ilegal esta captação de som e imagem.”

9. Esta contradição do Acórdão recorrido resulta de erro na indicação da data que a gravação ilícita foi realizada. Esta não pode ter sido realizada em 16-10-2013, como indica o douto Acórdão recorrido. Se tivermos em conta que a recolha de som e imagem foi autorizada pela Sra. JIC em 11-10-2013 (cfr. fls. 140 dos autos), na sequência de promoção do MP, datada de 09-10-2013 (cfr. fls. 125 dos autos) e que existem registos de vigilâncias efetuadas a partir de 01-10-2013 (cfr. fls. 109 dos autos), a gravação ilícita teve de ser realizada necessariamente antes desta última data. Portanto, pelo menos em setembro de 2013. Nunca podendo ter acontecido em 16-10-2013, como é afirmado no douto Acórdão recorrido.

10. A retificação da errada indicação da data da ocorrência da gravação ilícita torna evidente que antes da sua realização não haviam sido produzidas quaisquer diligências de investigação.

11. Se não tivesse sido utilizada uma gravação ilícita não teriam sido realizadas as vigilâncias ocorridas em outubro de 2013 nem a captação de som e imagem na oficina de GG ocorrida em 16-10-2013 (cfr. fls. 155 e seguintes dos autos), o que, de acordo com a teoria dos frutos da árvore envenenada ou da proibição em cascata resultante do recurso à prova proibida, torna ilegal esta captação de som e imagem.

12. Quanto aos reconhecimentos fotográficos efetuados nos autos, o douto Acórdão recorrido conclui que “improcede a requerida declaração de nulidade e inerente ineficácia da prova alcançada após os ditos reconhecimentos fotográficos”, nomeadamente porque “numa simples leitura da fundamentação da matéria de facto do acórdão recorrido permite perceber que o ilícito pelos quais os ora recorrentes se mostram condenados fundou-se em meios de prova autónomos, sem qualquer correlação ou interdependência lógica, funcional ou valorativa”. Contudo, este Acórdão não indica quais as provas ou meios de prova utilizados que reputa de “… autónomos, sem qualquer correlação ou interdependência lógica, funcional ou valorativa”. Mas tinha a obrigação de os indicar, pelo simples facto de todos eles, sem exceção, terem sido obtidos após o reconhecimento e sem qualquer indicação de qualquer outra linha de investigação criminal que não fosse a que decorreu dos reconhecimentos.

13. A doutrina dos frutos da árvore envenenada ou da proibição de provas ilícitas por derivação proíbe a utilização da prova que, embora tenha sido obtida com escrupuloso respeito da Lei, foi antecedida por atos ilegais, fundamentais para se obter a prova lícita, que jamais seria recolhida sem a sua existência. A jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores e a doutrina são unânimes em considerar que a prova lícita assim obtida é proibida, por ilicitude derivada do ato que lhe deu origem.

14. A gravação ilícita realizada por GG foi a causa direta e necessária da captação de som e imagem na sua oficina e os reconhecimentos efetuados nos autos permitiram constituir como arguidos os reconhecidos e prosseguir os autos contra eles. Por isso, deverá ser declarada nula e sem nenhum efeito a prova alcançada através da captação de som e imagem na oficina de GG, e dos reconhecimentos efetuados nos autos, por se encontrar contaminada com o vício que inquina a gravação ilícita que lhes deu origem.

15. Tendo em conta a jurisprudência do Acórdão fundamento, acima transcrita, a solução que consta no Acórdão recorrido não é a que faz a melhor aplicação da lei, nomeadamente o artigo 122.º, n.º 1, do CPP.

Daqui se conclui que a árvore envenenada – a gravação ilícita de GG e os reconhecimentos realizados – só não terá efeitos na restante prova se o tribunal fundamentar a “decisão de forma lógica e conforme as regras da experiência comum”. O Acórdão recorrido, embora siga a jurisprudência do Acórdão fundamento, não respeita os pressupostos fixados pelo referido Acórdão fundamento. Neste são referidos os meios de prova que permitiram ao Tribunal da Relação concluir pela validação da prova obtida no seguimento da prova considerada nula.

16. Já o Acórdão recorrido limita-se a referir que “numa simples leitura da fundamentação da matéria de facto do acórdão recorrido permite perceber que o ilícito pelo qual os ora recorrentes se mostram condenados fundou-se em meios de prova autónomos, sem qualquer correlação ou interdependência lógica, funcional ou valorativa”, sem referir em concreto quais são os referidos meios de prova autónomos.

17. Se fizermos uma comparação direta podemos, desde logo, referir que não foram apreendidos aos arguidos quaisquer objetos ou numerário, nem ficou provada ou indiciada a existência de sinais exteriores de riqueza que pudessem sugerir a atividade criminosa de que vieram acusados e injustamente condenados.

18. Deste modo, pretendem os recorrentes que seja fixada jurisprudência no sentido de considerar que a prova proibida só não contamina a prova obtida posteriormente quando em relação a esta fique demonstrada a autonomia na sua obtenção em relação àquela. Demonstração essa que deve ser fundamentada de forma lógica e conforme as regras da experiência comum. O que não se verifica no Acórdão recorrido que, por isso, deve ser anulado.

Por tudo o que aqui se expõe, deve ser fixada jurisprudência no sentido pedido pelos recorrentes e, consequentemente, deve ser anulado o douto Acórdão recorrido.

2. Por despacho da Senhora Juíza Desembargadora titular, de 17/5/2023, foi tal recurso admitido, sem efeito suspensivo.

3. O Ministério Público, junto do tribunal recorrido, respondeu ao recurso dos arguidos, sustentando que não se suscitavam objeções quanto à sua admissibilidade, tempestividade, legitimidade e espécie, estando, assim, reunidos os respetivos pressupostos.

4. Por sua vez, o Senhor Procurador-Geral Adjunto, neste Supremo Tribunal, emitiu, em 24/06/2023, douto e muito desenvolvido parecer, nos termos do qual defende a rejeição do recurso em causa, nos termos dos arts. 440.º n.º 3 e 441.º n.º 1, 1.ª parte, do C.P.P., por não se verificar o pressuposto substancial da oposição de julgados.

Observado o contraditório, os recorrentes não responderam ao parecer do Ministério Público.

5. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

1. O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, previsto no art. 437.º e ss., do C.P.P., tem como finalidade específica evitar contradições entre acórdãos dos tribunais superiores, assegurando, assim, a uniformização da jurisprudência e, reflexamente, os princípios da segurança, da previsibilidade das decisões judiciais e da igualdade dos cidadãos perante a lei1.

Os antecedentes deste recurso parece, segundo Germano Marques da Silva2, citando os Professores Mário Júlio de Almeida Costa e Alberto dos Reis, encontrarem-se nas façanhas medievais e, mais modernamente, nos Assentos da Casa da Suplicação.

O Decreto n.º 12 353, de 22/09/1926, criou um recurso destinado à uniformização da jurisprudência, com um regime análogo ao recurso para o tribunal pleno, que viria a ser consagrado nos Códigos de Processo Civil de 1939 e 1961.

Integrados no mesmo Capítulo, encontram-se três espécies deste recurso, cada uma com as suas especificidades: recurso de fixação de jurisprudência próprio sensu (arts. 437.º a 445.º), recurso de decisões proferidas contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça (art. 446.º) e recursos interpostos no interesse da unidade do direito (art. 447.º).

Iremos, por razões óbvias, apenas nos focar no primeiro.

Ora, de acordo com a doutrina3 e jurisprudência4 dominantes, constituem requisitos formais de admissibilidade deste recurso para o Supremo Tribunal de Justiça:

a. a legitimidade e interesse em agir do recorrente;

b. a interposição do mesmo no prazo de 30 dias, a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar;

c. a invocação, no recurso, do acórdão fundamento, com junção de cópia deste ou do lugar da sua publicação;

d. o trânsito em julgado dos dois acórdãos; e

e. justificação da oposição que origina o conflito de jurisprudência.

Por seu turno, são requisitos substanciais de admissibilidade:

a. existência de julgamentos da mesma questão de direito entre dois acórdãos do STJ, dois acórdãos da Relação ou entre um acórdão do STJ e outro da Relação – o acórdão recorrido e o acórdão fundamento;

b. os acórdãos em causa assentem em soluções opostas, de forma expressa e a partir de situações de facto idênticas; e

c. serem ambos proferidos no domínio da mesma legislação, ou seja, quando durante o intervalo da sua prolação não tiver ocorrido alteração legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão controvertida.

Saliente-se ainda que a jurisprudência do Supremo vai no sentido de que a expressão soluções opostas diz respeito às decisões e não aos fundamentos.

2. Ora, voltando-se, agora, para o caso sub judice, da análise dos elementos e peças processuais que constam dos autos, constata-se que os recorrentes têm legitimidade e interesse em recorrer, identificaram e localizaram o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça com o qual o acórdão recorrido se encontra alegadamente em oposição – acórdão fundamento5 - e expuseram as razões que, na perspetiva dos próprios, demonstram a contradição de julgados relativamente à questão de direito do efeito à distância das provas nulas6.

Quer o acórdão recorrido quer o acórdão fundamento transitaram em julgado, tendo o primeiro transitado em 20/04/2023, pelo que o recurso em questão, interposto em 11/05/2023, é tempestivo.

Cumpridos que foram os pressupostos formais e passando, de seguida, aos pressupostos substanciais, desde já se adianta que os factos e a criminalidade em causa constantes dos mencionados acórdãos são diferentes, uma vez que no acórdão recorrido os arguidos, ora recorrentes, todos militares da GNR, foram condenados pela prática de um crime de corrupção passiva p. e p. pelo art. 373.º n.º 1, do Cód. Penal, em conjugação com o art. 386.º n.º 1 d), do mesmo diploma legal, e, por seu turno, no acórdão fundamento o arguido recorrente foi condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21.º n.º 1 do DL n.º 15/93, de 22/01.

Por outro lado, nos termos do acórdão recorrido, a prova que os recorrentes colocavam em questão, suscetível de, na sua opinião, inquinar a prova subsequente consiste nos autos de reconhecimento fotográfico dos arguidos, sendo certo que estes não foram sequer tidos em conta pelo tribunal a quo na fundamentação da matéria de facto provada, que não os valorou, o que decorre, não só, a contrario, dos meios de prova que foram elencados para sustentar a sua convicção, do qual os reconhecimentos fotográficos não fazem parte, como também pelo facto de o tribunal a quo o ter referido expressamente.

Acresce que não se descortina de que forma se possa extrair que todos os atos subsequentes aos reconhecimentos fotográficos só tenham sido possíveis por terem sido utilizadas estas provas proibidas, ou que estes reconhecimentos foram a causa direta e necessária do prosseguimento do inquérito, tanto mais que os próprios recorrentes não o concretizam, seguramente porque tal relação causa-efeito não existe.

Concluiu-se, assim, no acórdão recorrido, não existir qualquer comunicabilidade da proibição de prova para os meios de prova usados e valorados pelo tribunal a quo que o levou a fixar os factos que considerou provados, apresentando-se a prova tida em atenção bastante para convencer e fundamentar a condenação imposta.

Nesta conformidade, foi julgada improcedente a requerida declaração de nulidade e a inerente ineficácia da prova alcançada após os ditos reconhecimentos fotográficos.

Já no âmbito do acórdão fundamento, dá-se conta que o arguido recorrente insistiu, uma vez mais, que as buscas e revista realizadas tiveram como base escutas telefónicas declaradas nulas.

Acontece que, o Supremo, sufragando a posição do Tribunal da Relação de Lisboa, entendeu igualmente que a nulidade das escutas telefónicas não contaminava a validade das buscas, revista e apreensões efetuadas ao arguido, em virtude de existirem outras fontes probatórias que, por si só, justificavam a realização daquelas diligências.

Ora, como bem refere o Senhor Procurador-Geral Adjunto, no seu proficiente e muito completo parecer, muito embora se possa admitir alguma afinidade entre as situações de facto subjacentes aos dois acórdãos e ambos terem apreciado as consequências à distância de uma prova nula, no acórdão recorrido, as consequências da nulidade da transcrição das gravações de conversas efetuadas por um particular (os reconhecimentos fotográficos não foram declarados nulos), no acórdão fundamento, as consequências da nulidade das escutas telefónicas, os dois convergem, porém, quanto à solução a adotar e no entendimento de que a nulidade de uma prova não se comunica às demais provas que dela sejam independentes e autónomas, ainda que tenham sido produzidas e obtidas posteriormente, pelo que inexiste qualquer divergência de fundo entre os mesmos relativamente à questão de direito eleita como objeto deste recurso.

Na verdade, no acórdão recorrido foi entendido que a utilização no segundo julgamento da transcrição das gravações áudio efetuadas por uma outra testemunha (GG), anteriormente declaradas nulas, desta vez como prova documental, não era admissível nem podia ser valorada, sob pena de se fazer entrar pela janela o que não se permitiu entrar pela porta, mas considerou que essa transcrição era inócua e não se refletia na prova em que assentou a condenação dos arguidos, porquanto nem respeitava ao ofendido FF nem se demonstrou que sem ela os OPC não teriam iniciado as investigações e recolhido as demais provas.

Quanto aos reconhecimentos fotográficos, depois de ter constatado que não foram usados para formar a convicção do tribunal da 1.ª instância, julgou improcedente a sua nulidade e inerente ineficácia da prova alcançada após os mesmos terem sido realizados.

Por sua vez, o acórdão fundamento sublinha que, no caso em apreço, não se afiguram desproporcionados os limitados efeitos sequenciais que as instâncias possam ter retirado das escutas anuladas, tendo em consideração, por um lado, a própria limitação – em função dos interesses conflituantes – do efeito à distância da inutilização das provas imediatamente obtidas através dos meios proibidos de obtenção de provas previstos no art. 3.º do art. 126.º, do C.P.P. (já que ofensivos não da valor absoluto da dignidade da pessoa humana, mas de interesses individuais não diretamente contendentes com a garantia da dignidade da pessoa) e, por outro, a necessidade de otimização da concordância prática dos interesses em conflito (“inviolabilidade das comunicações telefónicas” versus “verdade material” e “punição dos culpados”).

Saliente-se, a propósito, que esta última situação nem sequer foi abordada, expressa ou implicitamente, no acórdão recorrido.

Nestes termos, em sintonia total com a posição expressa pelo Ministério Público junto deste Supremo Tribunal, ter-se-á de inferir que falece, in casu, o requisito substancial da oposição de julgados entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, não podendo, por conseguinte, o recurso prosseguir.

III. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em rejeitar o presente recurso extraordinário, por não se verificar o pressuposto substancial da oposição de julgados (arts. 440.º n.º 3 e 441.º n.º 1, 1.ª parte, do C.P.P.).

Custas a cargo dos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça, para cada um deles, em 2 UC.

Lisboa, 17 de janeiro de 2024

(Processado e revisto pelo Relator)

Pedro Branquinho Dias (Relator)

Maria do Carmo Silva Dias (Adjunta)

Lopes da Mota (Adjunto)

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1. Vide Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, Verbo, 1994, pg. 353., e ac.do STJ de 16/3/2022, relator o Senhor Conselheiro Nuno Gonçalves, in www.dgsi.pt.

2. Curso de Processo Penal cit., pg. 355.

3. Por todos, José Damião da Cunha e Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, Vol. II, 5.ª edição atualizada, Universidade Católica Portuguesa, anotação aos arts. 437.º e 438.º, e Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª edição, Rei dos Livros, pg. 169 e ss.

4. Cfr., entre outos, os acórdãos do STJ de 8/11/2023, Proc. n.º 204/22.5YUSTR.L1-A.S1, 28/9/2023, Proc n.º 919/20.2PWPRT-A.P1-A.S1, 16/3/2022, Proc. n.º 5784/18.7T9LSB.L1-A-A.S1, 10/3/2022, Proc. n.º 218/20.0GCACB-A.C1.S1, 2/12/2021, Proc. n.º 344/19.8JABRG-C.S1, e 2/12/2021, Proc. n.º 17648/08.8TDPRT-J.P1-A.S1, cujos relatores são, respetivamente, os Senhores Conselheiros Lopes da Mota, Orlando Gonçalves, Nuno Gonçalves, M. Carmo Silva Dias, Adelaide Magalhães Sequeira e Ana Barata Brito, todos disponíveis no indicado sítio.

5. Acórdão do STJ de 31/1/2008, Proc. n.º 06P4805, do qual foi relator o Senhor Conselheiro Carmona da Mota, pub. no sítio referenciado.

6. Tem a ver com a denominada teoria dos frutos da árvore envenenada, (fruits of the poisonous tree) que teve origem na Suprema Corte dos Estados Unidos e, na versão germânica, teoria da nódoa (Fleckentheorie). Cfr. Manuel da Costa Andrade, Sobre as proibições da Prova em Processo Penal, Coimbra Editora, 2006, pg. 175.