Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
13/09.7GTPNF.P2.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: SOUSA FONTE
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACORDÃO DA RELAÇÃO
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
PRINCÍPIO DA ADESÃO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
VALOR DA CAUSA
ALÇADA DO TRIBUNAL
SUCUMBÊNCIA
DUPLA CONFORME
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
INDEMNIZAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Data do Acordão: 09/19/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
DIREITO ESTRADAL
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - RECURSOS
DIREITO PROCESSUAL PENAL - RECURSOS.
Doutrina:
- Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, “Código de Processo Penal”, Comentários e Notas Práticas, p. 1023.
- Pereira da Silva, intervenção de 27.05.2010, Colóquio Sobre Processo Civil, sobre “Recursos em Processo Civil: Abordagem Crítica da Última Reforma”.
- Teixeira de Sousa, “Dupla Conforme: Critério e âmbito da conformidade”, em “Cadernos de Direito Privado”, 21, p. 21 e segs.
- Teixeira de Sousa, “Dupla Conforme: Critério e âmbito da conformidade”, in Cadernos de Direito Privado, 21, p. 21 e ss.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 487.º, N.º2, 570.º, N.º1, 2139.º, 1724.º AL. A), 1724.º, AL. A), 2139.º.
CÓDIGO DA ESTRADA (CE): - ARTIGOS 7.º, 32.º, N.º4, 61.º, N.º1, 93.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 678.º, N.º1, 721.º, N.º3, 722.º.
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 400.º, N.ºS 2 E 3, 432.°, N.º 1, AL. B), 434.º,
DL N.º 303/2007: - ARTIGOS 11.º, N.º 1, E 12.°, N.º 1.
LEI N.º 3/99, DE 13-01: - ARTIGO 24.°, N.° 1.
LEI N.º 48/2007, DE 29-08: - ARTIGO 7.º.
LEI N.º 52/2008, DE 28-08: - ARTIGO 31.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 12.07.2011, Pº Nº 203/08.0YYPRT-A. P1.S1, DA 2ª SECÇÃO;
-DE 10.05.2012, Pº Nº 645/08.0TBALB.C1.S1-7ª SECÇÃO;
-DE 16.11.2011, Pº Nº 808/08.9TTVCT.P1.S1, DA 4.ª SECÇÃO;
-DE 05.07.2012, Pº Nº 696/03.1PAVCD.P1.S1-5ª SECÇÃO;
-DE 01.02.2000, PUBLICADO NO BMJ, 494,281 E NA CJSTJ;
-DE 03.11.2010, Pº Nº 55/06.4PTFAR.E1.S1;
-DE 25.09.2008, Pº Nº 2860/08, DESTA SECÇÃO;
-DE 29.01.2008, Pº Nº 3014//07-6ª SECÇÃO;
-DE 24.02.2010, Pº Nº 151/99.2PBCLD.L1.S1-3ª SECÇÃO, DE 29.09.2010, Pº Nº 343/05.7TAVNF.P1.S1, DE 07.04.2011, Pº Nº 4068/07.0TDPRT.G1.S1-5ª SECÇÃO, DE 24.03.2011, Pº Nº 2436/06.4TAVNG.P1.S1, DE 22.06.2011, Pº Nº 444/06.4TASEI.C1.S1-5ª SECÇÃO; DE 30.11.2011, Pº 401/06.0GTSTR.E1.S1, DE 15.12.2011, Pº Nº 53/04.2IDAVR.P1.S1-5ª SECÇÃO; DE 25.01.2012, Pº Nº 360/06.0PTSTB-3ª SECÇÃO, DE 21.03.2012, Pº Nº 390/04.TASTS.P2.S1-3ª SECÇÃO, DE 11.04.2012, Pº 3989/07.5TDLSB.L1.S1, DE 15.03.2012, Pº Nº 870/07.1GTABF.E1.S1, 3ª SECÇÃO E DE 20.06.2012, Pº Nº 4022/02.9TDLSB.L1.S1-3ª SECÇÃO E OUTRA JURISPRUDÊNCIA NELES REFERIDA.
-DE 08.09.2011, Pº Nº 880/1.TBVRS.E1.S1, DE 24.05.2007, Pº Nº 07A1655 E O PROFERIDO NO Pº Nº 2435/08.1TBSTS; DE 08.03.2011, Pº Nº 26/09.9PTEVR.E1.S1-3ª SECÇÃO; DE 14.10.2011, Pº Nº 3563/08.9TBVIS.C1.S1.
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AUJ N.º 1/2002, DE 14-03-2002, PUBLICADO NO DR, I SÉRIE-A.
Sumário :
I - O n.º 3 do art. 400.° foi introduzido pela Reforma do CPP de 2007 e fez caducar a interpretação fixada pelo AUJ n.º 1/2002, de 14-03-2002, publicado no DR, I Série-A. O legislador quis com esta norma, quebrar, de modo inequívoco, a continuidade do modelo de processo adoptado até à fase do recurso – o modelo de adesão, como decorre dos arts. 71.° e ss. do CPP – e, consequentemente, subtrair ao regime de recursos da lei adjectiva penal as decisões relativas à indemnização civil, submetendo-as ao regime da lei adjectiva civil. E justificou essa opção com a invocação do princípio da igualdade.

II - A partir daqui, alterou-se o paradigma do modelo de recurso, estabelecendo-se a recorribilidade autónoma da decisão cível, independentemente da sorte da decisão no segmento penal. Alcançada essa fase do processo, os caminhos separaram-se: o recurso da questão cível passou a ser autónomo em relação ao da questão penal e as possibilidades da sua recorribilidade, pela remissão para os pressupostos do recurso em processo civil (valor, alçada e sucumbência – cf. n.º 2 do referido art. 400.°), passaram a ser as mesmas, independentemente de a acção civil aderir ao processo penal ou de ser proposta em separado, como processo civil.

III - A adopção de um tal novo modelo impõe que dele se extraiam todas as consequências que lhe devam ser associadas, submetendo-o também às regras que, no CPC, condicionam a possibilidade de recorrer de acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações, como é o caso, por exemplo, da do n.º 3 do art. 721.°, criada pelo DL 303/2007, de 24-08, que já existia quando o legislador estabeleceu, no processo penal, aquele novo paradigma e aquela igualdade de possibilidades.

IV -Tendo o presente processo tido inicio já em 2009 e os pedidos civis sido deduzidos em 03-12-2009, são-lhe aplicáveis as normas em questão – o n.º 3 do art. 400.° do CPP, porque em vigor desde 15-09-2007 (art. 7.° da Lei 48/2007, de 29-08), o n.º 3 do art. 721.° do CPC, porque aplicável aos processos iniciados depois de 01-01-2008 (arts. 11.º, n.º 1, e 12.°, n.º 1, do citado DL 303/2007).

V -A «conformidade» ou «desconformidade» das decisões das instâncias não pode ser aferida pelo critério puramente formal da coincidência ou não coincidência do conteúdo decisório da sentença. Haverá dupla conforme e, portanto, inadmissibilidade da revista, quando o apelante é beneficiado pelo Tribunal da Relação – isto é, quando o réu é condenado em “menos” do que o imposto pela 1.ª instância ou quando o autor “obtém” mais do que havia ali conseguido –, porquanto também não poderia ter recorrido se o acórdão do Tribunal da Relação tivesse mantido a decisão da 1.ª instância, para ele menos favorável.

VI -No caso em apreço, apesar de os recorrentes terem visto as indemnizações arbitradas a seu favor majoradas pelo acórdão do Tribunal da Relação, não ocorre a dupla conforme impeditiva da revista. Com efeito, não só o valor de qualquer dos pedidos dos recorrentes é superior à alçada do Tribunal da Relação (fixada como está em € 30 000 – cf. arts. 24.°, n.° 1, da Lei 3/99, de 13-01, e 31.° da Lei 52/2008, de 28-08), como a decisão recorrida é desfavorável para cada um deles em valor superior a metade dessa alçada, quando reportada ao pedido agora formulado em primeira linha. Por isso, estão preenchidos os requisitos do n.º 2 do art. 400.° do CPP (ou do n.º 1 do art. 678.° do CPC).

VII - Sendo o recurso permitido ao abrigo desta norma de carácter geral, a inadmissibilidade da revista só poderia resultar da doutrina do n.º 3 do art. 721° do CPC. Todavia, não obstante a nossa adesão à tese da conformidade parcial, constatamos que o Tribunal da Relação não se pronunciou apenas sobre os pedidos indemnizatórios, favorecendo cada um dos demandantes/recorrentes. Divergiu ainda do acórdão da 1.ª instância quanto à matéria de facto, alterando-a, com reflexos directos e imediatos na fixação da indemnização. E essa alteração não se traduz em mero “diferente fundamento” da decisão sobre a indemnização, mas antes em modificação dos próprios pressupostos da obrigação de indemnizar quando referida aos danos não patrimoniais.

VIII - Na verdade, um dos segmentos em que se desdobra a decisão recorrida não confirmou, antes revogou, o correspondente segmento da decisão da 1.ª instância. Por isso, não podemos dizer que o acórdão do Tribunal da Relação, globalmente considerado, confirmou a sentença proferida pela 1.ª instância.

IX - Não se acompanha a doutrina que defende que para comparação das decisões das instâncias, só podem ser utilizados elementos sobre os quais o STJ se possa vir a pronunciar, não fazendo sentido concluir que as decisões das instâncias são “desconformes” – e que, por isso, a revista deve ser admissível – quando essa “desconformidade” se verificar quanto a matérias sobre as quais o STJ não se possa pronunciar (Teixeira de Sousa, “Dupla Conforme: Critério e âmbito da conformidade”, in Cadernos de Direito Privado, 21, p. 21 e ss.).

X -E não acompanhamos porque a recorribilidade das decisões proferidas, em recurso, pelos Tribunais da Relação é, em processo penal, aferida pelos arts. 432.°, n.º 1, al. b), e 400.°, n.ºs 2 e 3, do CPP, e, no que para aqui releva, também pelo art. 721.°, n.º 3, do CPC, e não em função do concreto objecto do recurso e dos seus fundamentos. É em função do valor do pedido e da sucumbência e da conformidade ou não conformidade das decisões das instâncias, e só em função destes requisitos, que o recurso é ou não admitido.

XI -Assim, para efeitos de aplicação do n.º 3 do art. 721.° do CPC, entendemos que a conformidade da decisão do Tribunal da Relação com a decisão da 1.ª instância terá de começar pela comparação entre aquela e a parte desta que foi objecto de recurso, não podendo afastar-se dessa consideração os segmentos decisórios do acórdão da Relação que eventualmente tenham recaído sobre matérias que, por escaparem aos poderes de cognição do STJ, não podem ser objecto do recurso para si interposto.

XII - Nas circunstâncias concretas do caso, a responsabilidade pela produção do acidente e das suas nefastas consequências terá de ser quase exclusivamente assacada ao arguido: a sua conduta negligente (o desrespeito do sinal «Stop» e a desatenção) conduziria seguramente ao mesmo resultado, mesmo que a vítima tripulasse um velocípede dotado de luz ou caminhasse com a bicicleta pela mão. A desatenção, nos termos e circunstâncias referidos, não lhe teria certamente possibilitado aperceber-se da presença do ciclista ou do peão, mesmo que este estivesse a cumprir zelosamente as regras que lhe impunha a lei estradal. A responsabilidade da vítima na produção do acidente e suas consequências, em virtude da sua conduta transgressora, imprudente, terá de ser sempre considerada residual, razão por que para efeitos de repartição de culpas (art. 570.°, n.º 1, do CC), lhe atribuímos 15% de responsabilidade e ao arguido 85%.

XIII - Em função da decisão sobre a matéria de facto e seguindo os cálculos efectuados pelas instâncias, a propósito da indemnização atribuída à demandante por danos não patrimoniais, de que os recorrentes não divergem significativamente, o capital a ter em consideração em termos de longevidade média, já deduzido de 1/3, correspondente àquilo que a própria vítima gastaria consigo, atinge € 432 008 {< 1458,94 - 234,33 (descontos) x 14 meses + 1914,66 (638,22 x 3, do FET) x 2/3 x 34 anos de esperança de vida}.

XIV - Os recorrentes entendem, nos cálculos que apresentam, que àquele montante seja deduzida a percentagem de 20% por receberem todo o capital de uma só vez e antecipadamente, o que aceitamos, e reduz aquele valor para € 345 606,82.

XV - Se entramos em linha de conta com a percentagem de culpa atribuída à própria vítima (15%), resta, para distribuir pelos demandantes, a quantia de € 293 765 que arredondamos para € 294 000.

XVI - Sendo a demandante meeira e herdeira, deveria receber 2/3 dessa quantia (1/2 + 1/3 x 1/2) e os demandantes 1/6 (1/3 x 1/2) cada um, como decorre do disposto no art. 2139.° do CC. Acontece que, na sua motivação, a própria demandante alega que, do montante do capital a distribuir pelos três, lhe seja atribuído metade e que a outra metade seja distribuída, em partes iguais, pelos dois demandantes. Isto é, ao fim e ao cabo, renuncia a 1/3 da herança (a metade para além da sua meação). Nada obsta a que aceitemos essa renúncia. Como assim, daquele montante de € 294 000, metade, isto é, € 147 000 serão atribuídos à demandante e a outra metade repartida, em partes iguais, pelo PA e pelo BA, recebendo por isso, cada um, a este título, € 73 500.
Decisão Texto Integral:

                Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

               

                1. No 1º Juízo Criminal de Paredes (tribunal singular), respondeu o arguido AA sob a acusação de ter praticado contra-ordenações várias, p. e p. por diversas disposições do CEstrada e, por causa delas, um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artº 137º, nº 1, do CPenal.

                1.1. BB, filho da vítima, CC, e DD, viúva da Vítima, por si e em representação do filho EE, demandaram civilmente ZZ, Companhia de Seguros, S.A. pedindo:

                - o primeiro, a quantia global de €132.583.75, a título de dano «pela perda do direito à vida», pelo «desgosto com a morte do pai» e danos patrimoniais (lucros cessantes, perda do velocípede e destruição da roupa vestida pelo Ofendido) – cfr. fls. 188;

                - a segunda,

                               - para si,  a quantia global de €225.167,50, por danos repartidos pelas mesmas rubricas (mas, em vez de desgosto pela perda do pai, agora desgosto pela perda do marido – cfr. fls. 199);

                               - para o filho, a quantia global de €132.583.75, pelo conjunto de danos também repartidos pelas mesma rubricas – cfr. fls. 199, já referidas.

                A Demandada contestou, imputando a causa do acidente ao infeliz CC, por circular sem luz em local sem iluminação e vestir roupa escura, e impugnou as quantias peticionadas, por entender serem excessivas.

                1.2. No decurso da audiência, os Demandantes requereram a fls. 364 e segs. a ampliação dos pedidos – €5.000,00 para cada um dos Demandantes, pelo sofrimento da vítima entre o acidente e a morte, mais €23.400,00 para a Demandante e €5.800,00 para cada um dos filhos, a título de danos patrimoniais, decorrentes de um acréscimo salarial da vítima entretanto comprovado –, o que foi indeferido pela Mma. Juíza, por ter entendido não estarem verificados os respectivos pressupostos (cfr. despacho ditado para a acta, fls. 385).

                E, no final, proferiu decisão que, além do mais, julgou parcialmente procedentes os pedidos.

                Inconformados, Demandantes e Demandada interpuseram recurso destas decisões para o Tribunal da Relação do Porto que, pelo acórdão de 09.03.2011, fls. 624 e segs., revogou o despacho que havia indeferido a ampliação dos pedidos e anulou «os termos do processo dependentes e subsequentes ao despacho recorrido, com a consequente reabertura da audiência … para a produção das diligências necessárias à tramitação da ampliação do pedido admitida» e julgou prejudicado o conhecimento dos recursos da sentença.

                Reaberta a audiência e realizadas as pertinentes diligências – cfr. fls. 683 –, foi proferida nova sentença, fls. 685 a 721, em que, além da condenação do Arguido pela autoria do referido crime na pena de 8 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano,

                                                                                                                        foi a Demandada condenada a pagar :
                a) à demandante DD, «a quantia de €7.500 (sete mil e quinhentos euros), a título de perda do direito à vida; €10.000 (dez mil euros), a título de danos não patrimoniais sofridos pela perda do marido; €63.000 (sessenta e três mil euros), a título de danos patrimoniais (lucros cessantes), num total de €80.500 (oitenta mil e quinhentos euros), acrescida de juros à taxa legal a contar da decisão até efectivo e integral pagamento»;
                b) ao demandante EE, «a quantia de €7.500 (sete mil e quinhentos euros), a título de perda do direito à vida; €10.000 (dez mil euros), a título de danos não patrimoniais sofridos pela perda do pai; €20.000 (vinte mil euros) a título de danos patrimoniais (lucros cessantes), num total de €37. 500 (trinta e sete mil e quinhentos euros), acrescida de juros à taxa legal a contar da decisão até efectivo e integral pagamento»;

                c) ao demandante BB, «a quantia de €7.500 (sete mil e quinhentos euros), a título de perda do direito à vida e €10.000 (dez mil euros), a título de danos não patrimoniais sofridos pela perda do pai, num total de €17.500 (dezassete mil e quinhentos euros), acrescida de juros à taxa legal a contar da decisão até efectivo e integral pagamento».

                1.3. Mais uma vez inconformados, recorreram para o Tribunal da Relação a Demandada e os três Demandantes, impugnando estes, no que para aqui interessa, as quantias que lhes foram atribuídas a título de indemnização.

                Pelo acórdão de 18.01.2012, fls. 915 a 937, o Tribunal da Relação do Porto,

                a) considerou não provada a matéria constante do facto provado nº 40;

                b) julgou provado que “Entre o acidente e a morte a vítima sentiu dores e teve padecimentos.”;

                c) alterou para €94.633,50 (noventa e quatro mil, seiscentos e trinta e três euros e cinquenta cêntimos) o montante indemnizatório a pagar pela “ZZ” à demandante DD (<€20.000,00 pela «perda do direito à vida»; €1.667,00, pelo sofrimento da vítima entre o acidente e a morte; €20.000,00 pela perda do marido; €147.600,00, por danos futuros, com o total destas verbas reduzido a metade, em virtude de ter sido atribuída à vítima 50% de responsabilidade na produção do acidente);

                d) Alterou para €40.833,50 (quarenta mil, oitocentos e trinta e três euros e cinquenta cêntimos) o montante indemnizatório a pagar pela “ZZ” ao demandante EE (<€20.000,00+€1.667,00, relativos àquelas duas primeiras verbas; €20.000,00, pela perda do pai; €40.000,00, pela perda de alimentos, com o total reduzido nos mesmos termos e pelas mesmas razões);

                e) Alterou para €20.833,50 (vinte mil, oitocentos e trinta e três euros e cinquenta cêntimos) o montante indemnizatório a pagar pela “ZZ” ao demandante BB (< €20.000,00+€1.667,00+€20.000,00, correspondentes às três primeiras verbas referidas relativamente ao irmão, com o total reduzido nos mesmos termos e pelas mesmas razões;

                                                                         acrescendo a estes montantes «juros de mora, à taxa supletiva legal, desde a data da decisão de 1ª instância até efectivo pagamento»;

                g) Confirmar, no mais, a decisão recorrida.

                1.4. Deste acórdão, interpuseram recurso, mais uma vez, os Demandantes, agora para o Supremo Tribunal de Justiça.

                1.4.1. A demandante DD, por si e em representação de seu filho EE culminou a sua motivação com as seguintes conclusões (fls. 959):

                1ª.) O acidente deveu-se exclusivamente a conduta descuidada do arguido e à violação do sinal B2 constante do            Regulamento de Sinalização de Trânsito.

                2ª.) A conduta do falecido não é causal do acidente porque este não se deu porque o arguido não viu o falecido por       falta de luz de presença mas porque circulava distraído, não parou e, por isso, não pode antecipadamente aperceber-    -se do trânsito que se verificava na E.N. nº 15, causando assim a morte do marido e pai dos recorrentes.

                3ª.) Face aos factos apurados conclui-se que o acidente sempre se verificaria mesmo que a vítima circulasse com a          luz de presença à frente ou com o velocípede pela mão.

                4ª.) A conduta do falecido não é culposa porque não lhe era possível prever a imprevidência do arguido ao não parar      ao sinal de "STOP" e ao não tomar o cuidado de se aperceber do trânsito que circulava na E.N. nº 15 onde irrompeu      inopinadamente, indo "cortar" a trajectória do falecido.

                5ª.) Não pode, assim, o Tribunal arbitrar qualquer grau de culpa à vítima.

                6ª.) Mas mesmo que assim se não entenda, o que se não concede, então o grau de culpa da vítima terá de ser               graduado em proporção muito inferior, no máximo, de 10%, comparativamente a 90% de culpa do arguido, sendo    manifestamente menor o risco causado por um velocípede sem motor do que por um veículo automóvel.

                7ª.) Caso a morte não tivesse ocorrido é previsível que a viúva e os filhos viessem a beneficiar da capacidade   aquisitiva do falecido, no fim da vida deste o que expressa a injustiça da indemnização dos recorrentes ser fixada por                 direito próprio, em sede de alimentos e não a título de lucros cessantes da vítima pela privação total de rendimentos.

                8ª.) Assim, a título de danos patrimoniais futuros por lucros cessantes, considerando o rendimento líquido mensal de        1.500.00€ x 14 meses, a idade de 75 anos, como (limite provável de vida do falecido e a idade deste à data do        acidente, deduzida a quantia pelo recebimento antecipado e sem contar com a progressão salarial do falecido, deverá             ser fixada a quantia de 380.000,00€, sendo 190.000,00€ destinados à viúva e 95.000,00€ a cada um dos filhos do      falecido.

                9ª.) Caso se entenda que os recorrentes gozam do direito a alimentos, deverá ser atribuída à viúva a quantia de              290.000,00€ e a quantia de 50.000,00€ para o recorrente EE até este alcançar a idade núbil, tudo acrescido                de juros de mora, a contar da citação.

                Decidindo como decidiu, violou o Tribunal "a quo", entre outros, o comando dos arts°. 483°, 562°, 564° e 566° do           Código Civil, Sinal B2 do Regulamento da      Sinalização de Trânsito e art°. 32° n° 4 do Código da Estrada».

                1.4.2. Por sua vez, o demandante BB, extraiu as seguintes conclusões da sua motivação (fls. 970):

                1ª.) O acidente deveu-se exclusivamente à conduta descuidada do arguido e à violação do sinal B2 constante do            Regulamento de Sinalização de Trânsito.

                2ª.) A conduta do falecido não é causal do acidente porque este não se deu porque o arguido não viu o falecido por       falta de luz de presença mas porque circulava distraído, não parou e, por isso, não pode antecipadamente aperceber-    -se do trânsito que se verificava na E.N. nº 15, causando assim a morte do pai do recorrente.

                3ª.) Face aos factos apurados conclui-se que o acidente sempre se verificaria mesmo que a vítima circulasse com a          luz de presença à frente ou com o velocípede sem motor pela mão.

                4ª.) A conduta do falecido não é culposa porque não lhe era possível prever a imprevidência do arguido ao não parar      ao sinal de "STOP" e ao não tomar o cuidado de se aperceber do trânsito que circulava na E.N. nº 15 onde irrompeu      inopinadamente, indo "cortar" a trajectória do falecido.

                5ª.) Não pode, assim, o Tribunal arbitrar qualquer grau de culpa à vítima.

                6ª.) Mas mesmo que assim se não entenda, o que se não concede, então o grau de culpa da vítima terá de ser               graduado em proporção muito inferior, no máximo, de 10%, comparativamente a 90% de culpa do arguido.

                7ª.) O direito a alimentos é restritivo e deixa intocada a vertente de lucros cessantes que ocorre com a cessação               definitiva da capacidade de ganho ocorrida com a morte da vítima.

                8ª.) Caso a morte não tivesse ocorrido é previsível que a viúva e os filhos viessem a beneficiar da capacidade   aquisitiva do falecido, no fim da vida deste o que expressa a injustiça da indemnização dos recorrentes ser fixada por                 direito próprio, em sede de alimentos e não a título de lucros cessantes da vítima pela privação total de rendimentos.

                9ª.) Assim, a título de danos patrimoniais futuros por lucros cessantes, considerando o rendimento líquido mensal de        1,500,00€ x 14 meses, a idade de 75 anos, como limite provável de vida do falecido e a idade deste à data do         acidente, deduzida a quantia pelo recebimento antecipado e sem contar com a progressão salarial do falecido, deverá             ser fixada a quantia de 380.000,00€, sendo 190.000,00€ destinados à viúva e 95.000,00€ a cada um dos filhos do      falecido.

                10ª.) Consta expressamente dos autos que o recorrente é estudante e não exerce qualquer actividade remunerada.

                11ª.) Caso se entenda que o dano patrimonial futuro não se transmite ao recorrente por via sucessória, sendo um            direito próprio, é o recorrente titular do direito a alimentos, até completar a sua formação académica que se prevê            manter-se até aos 25 anos, não lhe cabendo provar qualquer outra matéria.

                12ª.) Tal montante calcula-se em €40.000,00, acrescido dos juros de mora, à taxa legal, a contar da citação;

                13ª.) A não ser assim entendido, verifica-se violação do princípio da igualdade, estando a tratar-se desigualmente os       dois filhos do falecido que merecem igual tratamento.

                Decidindo como decidiu, violou o Tribunal "a quo", entre outros, o comando dos arts° 483°, 562°, 564° e 566° do            Código Civil, Sinal B2 do Regulamento da Sinalização de Trânsito, art°. 32° n° 4 do Código da Estrada e art°. 13° da              Constituição da República Portuguesa».

            1.4.3. A demandada “ZZ” respondeu e concluiu pela improcedência dos recursos.

                1.4.4. O Ministério Público teve vista no processo.

               

                Tudo visto, cumpre decidir.

                2. É do seguinte teor a decisão sobre a matéria de facto, tal como fixada pelo Tribunal da Relação:

                «A. Resultou provado com interesse para a decisão da causa que:

                1. No dia 20 de Março de 2009, cerca das 0.50 horas, o arguido conduzia o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula “-TN”, de marca “Ford”, modelo “...”, no fim da Rua …, em ..., área desta comarca de Paredes, e pretendia aceder à Estrada Nacional Nº 15, deparando-se-lhe um sinal de paragem obrigatória – stop - no entroncamento.

                2. Nesse local a Estrada Nacional nº 15 desenvolve-se em linha recta, com boa visibilidade, sendo o piso asfaltado e encontrando-se em bom estado de conservação, sendo a via dotada de razoável iluminação pública.

                3. O tempo apresentava-se seco e bom.

                4. Na já aludida ocasião e local, circulava na Estrada Nacional nº 15, no sentido Valongo – Paredes, conduzia o seu velocípede sem motor CC;

                5. Este conduzia o aludido veículo sem o mesmo dispor de iluminação, apenas possuindo reflectores nas rodas.

                6. O arguido pretendia virar para a esquerda no aludido entroncamento e, por isso, aí chegado, abrandou a marcha do veículo que conduzia, mas não o imobilizou, tentando aceder inopinadamente à Estrada Nacional Nº15, no sentido Paredes – Valongo.

                7. O arguido realizou a manobra de acesso à via ora mencionada sem imobilizar a marcha do seu veículo e sem previamente se certificar que podia realizar tal manobra em segurança e sem colocar em causa a integridade física ou a vida de outros utentes da via, não tomando todo o cuidado que devia relativamente à presença na via de outros seus utilizadores.

                8. Assim, porque circulava desatento e sem o devido cuidado ao trânsito que se fazia sentir na via, o arguido não se apercebeu da presença na E. N. nº 15 no sentido Valongo – Paredes e interceptou a sua utilização da via tendo então ocorrido o embate do velocípede sem motor na zona entre o lado esquerdo do capot do “-TN” e o farol dianteiro esquerdo.

                9. Por força do embate, EE caiu prostrado no solo, resultando para este as seguintes lesões: fractura do temporal e parietal à direita, infiltrações hemorrágicas das partes moles da cabeça, fractura dos ossos da base do crânio, edema cerebral difuso do encéfalo, infiltração hemorrágica do esterno;

                10. Estas lesões crânio-encefálicas provocaram de forma directa, adequada e necessária a morte de EE, a qual foi declarada de imediato e no próprio local da colisão descrita;

                11. E ficou a dever-se em parte à conduta descuidada empreendida pelo arguido, que não se certificou previamente da presença de outros veículos a circular quando tentou aceder à Estrada Nacional Nº 15 sem imobilizar completamente a sua viatura, tal como estava obrigado, resultando para a vítima os ferimentos e as lesões corporais supra aludidas, que de forma directa, adequada e necessária lhe provocaram a morte.

                12. Os condutores que atingem o referido entroncamento vindos de ..., como foi o caso do arguido, podem mudar de direcção para a direita no sentido de Paredes, ou para a esquerda, no sentido do Porto.

                13. A E.N. 15 configura no local uma recta com mais de 50 metros de extensão, e atento o sentido Porto – Paredes é interceptada do lado direito pela via de onde provinha o “TN”;

                14. E apenas na fila de trânsito Porto – Paredes mede 4 metros de largura e o seu piso em alcatrão betuminoso encontrava-se em bom estado de conservação.

                15. Este entroncamento situa-se na parte final de uma descida acentuada para quem vem dos lados do Porto e que termina a seguir ao aludido entroncamento;

                16. Este dispõe de uma faixa central ajardinada e duas filas de trânsito no sentido Paredes – Porto;

                17. E é formado em ângulo recto de 90 graus.

                18. O ponto de embate entre os veículos ocorreu próximo do limite esquerdo da fila de trânsito, atento o sentido Porto – Paredes.

                19. A vítima não levava consigo qualquer material reflector (para além dos referidos reflectores laterais do velocípede);

                20. Não levava colete reflector;

                21. Não utilizava qualquer objecto luminoso;

                22. Levava vestido, cueca branca, calças de tecido azul, camisa azul, casaco vermelho e sapatos de tonalidade rosa;

                23. A bicicleta conduzida pela vítima era de cor escura.

                24. O veículo TN era visível para o condutor do velocípede.

                Mais se provou:

                25. A vítima e condutor do velocípede não abrandou ou diligenciou por ceder de qualquer forma a passagem ao condutor do TN.

                26. O arguido exerce a profissão de recepcionista auferindo a quantia mensal líquida de €422 (quatrocentos e vinte e dois euros);

                27. Vive com os pais;

                28. E encontra-se a frequentar o 12º ano de escolaridade.

                29. Nada consta no CRC e RIC do arguido.

                Do pedido Cível

                30. O falecido EE nasceu em … de … de 19…;

                31. E sucederam-lhe como únicos e universais herdeiros GG, com quem era casado desde … de … de 19…; EE, seu filho, fruto do casamento com aquela, nascido em … de … de 19… e BB, filho do falecido (mas não de DD), nascido a … de … de 19….

                32. EE era saudável e vivia intensamente a vida;

                33. Era estimado pela família e pelos amigos, não só pelas suas capacidades de trabalho, mas pela disponibilidade e espírito de ajuda que demonstrava perante as pessoas que o rodeavam;

                34. Era uma pessoa bem disposta, positiva, educada e generosa.

                35. O demandante BB sofreu um rude golpe com a partida prematura e inesperada do pai que lhe votava um enorme carinho;

                36. O falecido era um companheiro do demandante BB.

                37. Este partilhava com o pai as alegrias e angústias do seu dia-a-dia.

                38. O falecido foi um marido e pai extremoso, tendo um enorme carinho e afeição pela mulher e pelos filhos;

                39. Os demandantes DD e EE sofreram assim também eles um choque com a morte do marido e pai, respectivamente, vendo-se prematuramente privados da sua vivacidade, apoio e afectividade.

                40. FACTO JULGADO NÂO PROVADO PELO TRIBUNAL DA RELAÇÂO [A 1ª Instância havia julgado provado, contra o que ficou provado no nº 42 seguinte, que «à data do acidente, o falecido era técnico Tributário, desempenhando funções no Serviço de Finanças de Paredes e auferia mensalmente €1.005,04 (mil e cinco euros e quatro cêntimos), ao qual acrescia o subsídio de férias e de Natal].

                41. À data do evento a responsabilidade civil emergente de danos causados a terceiros pelo veículo -TN, encontrava-se transferida para a demandada seguradora por contrato de seguro de responsabilidade automóvel titulado pela apólice nº....

            Dos factos provados relativos à ampliação do pedido com interesse para a decisão da causa.

            42. Com efeitos a partir de 11 de Fevereiro de 2009, o falecido EE foi promovido para o nível 2 da categoria de técnico tributário adjunto passando a auferir mensalmente a quantia de pelo menos €1.458, 94 ilíquida, sobre a qual incidiriam os correspectivos descontos respeitantes ADSE, IRS e Caixa Geral de aposentações de pelo menos 234,33€.

            43. O Falecido recebia ainda quadrimestralmente uma verba designada por FET (Fundo de Estabilização Tributário) de €638,22 líquidos com respeito à classificação do serviço prestado no ano anterior.
B – Não resultou provado com interesse para a decisão da causa que:
42. [Numeração repetida, a partir daqui, como no original] O embate ocorreu no lado direito da faixa de rodagem, atento o sentido seguido pela vítima, a meio da hemi-faixa de rodagem àquela destinado e deu-se e deu-se na zona da porta esquerda do “-TN”.
43. O arguido/demandado ao atingir o entroncamento imobilizou o veículo antes da intersecção de vias, ligou o sinal indicativo de mudança de direcção à esquerda e então olhou para a sua esquerda e de seguida para a sua direita, verificando que a via se encontrava livre iniciou a marcha.
44. O velocípede circulava a uma velocidade superior a 50 km/hora.
45. O Falecido CC acompanhava o filho BB às discotecas e privava com os seus amigos.
46. Em consequência do acidente o velocípede sem motor do falecido ficou muito estragado e a respectiva reparação foi considerada inviável;
47. Valendo€60 (sessenta euros) já deduzidos os respectivos salvados.
48. O vestuário que a vítima envergava à data do evento valia no seu conjunto €275 (duzentos e setenta e cinco euros).
49. [Alterado pela Relação] Entre o acidente e a morte a vitima sentiu dores e teve padecimentos [a 1ª instância havia julgado o facto não provado]».

                3. Antes de nos debruçarmos sobre o objecto do recurso, importa averiguar se a decisão proferida pelo Tribunal da Relação admite recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o que implica que determinemos qual a lei que lhe é aplicável.

                As normas do Código de Processo Penal que directa e autonomamente se referem ao recurso da decisão sobre o pedido civil deduzido em processo penal são as dos nºs 2 e 3 do seu artº 400º.

                Destas, interessa-nos, para já, a segunda, do seguinte teor: «mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil».

                O nº 3 do artº 400º foi introduzido pela Reforma do CPP de 2007 e fez caducar a interpretação fixada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2002, de 14.03.2002, publicado no DR, Iª Série-A, de 21 de Maio de 2002, nos termos da qual, «no domínio do Código de Processo Penal vigente – nº 2 do artº 400º, na versão da Lei nº 59/98, de 25 de Agosto – não cabe recurso ordinário da decisão final do tribunal da Relação, relativa à indemnização civil, se for irrecorrível a correspondente decisão penal».

                O legislador quis, assim, com esta norma, quebrar, de modo inequívoco, a continuidade do modelo de processo adoptado até à fase do recurso – o modelo de adesão, como decorre dos arts. 71º e segs., do CPP – e, consequentemente, subtrair ao regime de recursos da lei adjectiva penal as decisões relativas à indemnização civil, submetendo-as ao regime da lei adjectiva civil. E justificou essa opção com a invocação do princípio da igualdade ao dizer, na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 109/X que está na origem da Reforma, que, «para garantir o respeito pela igualdade, admite-se a interposição de recurso da sentença relativa à indemnização civil, mesmo nas situações em que não caiba recurso da matéria penal». A partir daqui, alterou-se o paradigma do modelo de recurso, estabelecendo-se a recorribilidade autónoma da decisão cível, independentemente da sorte da decisão no segmento penal[1]. Alcançada essa fase do processo, «os caminhos separaram-se»[2]: o recurso da questão cível passou a ser autónomo em relação ao da questão penal e as possibilidades da sua recorribilidade, pela remissão para os pressupostos do recurso em processo civil (valor, alçada e sucumbência – cfr. nº 2 do referido artº 400º), passaram a ser as mesmas, independentemente de a acção civil aderir ao processo penal ou de ser proposta em separado, como processo civil.

                Trata-se, pois, de uma norma, a do nº 3 do artº 400º, que essencialmente incide sobre a estrutura e o modelo de uma fase do processo penal, a dos recursos.

                A adopção de um tal novo modelo impõe que dele se extraiam todas as consequências que lhe devam ser associadas, submetendo-o também às regras que, no Código de Processo Civil, condicionam a possibilidade de recorrer de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, como é o caso, por exemplo, e no que para aqui interessa, da do nº 3 do artº 721º, criada pelo DL 303/2007, de 24 de Agosto que, frise-se, já existia quando o legislador estabeleceu, no processo penal, aquele novo paradigma e aquela igualdade de possibilidades.

                Tendo o presente processo tido início já em 2009 e os pedidos civis sido deduzidos em 3 de Dezembro desse ano (fls. 188, o do demandante BB; fls. 199, os da demandante DD, por si e pelo filho EE), são-lhe aplicáveis as normas em questão – o nº 3 do artº 400º do CPP, porque em vigor desde 15.09.2007 (artº 7º da Lei 48/2007, de 29 de Agosto); o nº 3 do artº 721º do CPC, porque aplicável aos processos iniciados depois de 01.01.2008 (artº 11º, nº 1 e 12º, nº 1, do citado DL 303/2007).

                Nos termos do nº 3 deste artº 721º, «não é admitida revista do acórdão da relação que confirme, sem voto de vencido, ainda que por diferente fundamento, a decisão proferida na 1ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte».

                A questão que imediatamente se tem de colocar é, assim e desde logo, a de saber se o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou ou não a decisão da 1ª instância.

                Sobre o significado e extensão do conceito, não é unânime a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça.

                Se a “Formação” para apreciação preliminar dos pressupostos da revista excepcional, prevista no nº 3 do artº 721º-A do CPC, entende que a confirmação terá de ser «unânime e irrestrita, apenas admitindo a lei como excepção a essa conformidade discordância dos fundamentos (motivação) …; [que] o ponto nuclear – conhecimento e decisão do(s) pedido(s) – tem de ser perfeitamente coincidente (sobreponível), não havendo dupla conforme se ocorrerem diferentes decisões quanto a alguns pedidos, já que o aresto recorrido tem de ser apreciado no seu todo decisório final e não visto parcelarmente» (sublinhado nosso); que o legislador, com o nº 3 do artº 721º, quis que a intervenção do Supremo Tribunal só se justificasse para ‘”arbitrar” diferentes julgamentos do pedido ou, então, nas situações excepcionais do nº 1 do citado artigo 721º-A… [pelo que] só se a sobreposição integral do julgado – independentemente da diversa motivação – se verificar, é que não pode lançar-se mão da revista-regral» (sublinhado nosso)[3],

                               já o Ac. de 12.07.2011, Pº nº 203/08.0YYPRT-A. P1.S1, da 2ª Secção, invoca a doutrina de Teixeira de Sousa,[4] de que a “Formação” declara ter-se afastado e o pensamento do Juiz Conselheiro Pereira da Silva[5], que também cita Abrantes Geraldes, quando o primeiro, reportando-se às decisões relativas a obrigações pecuniárias (respeitantes, por exemplo, a indemnizações resultantes de responsabilidade extracontratual – a hipótese que para aqui nos interessa), em que o tribunal da relação condena em montante diferente do arbitrado pela 1ª instância, afirma que a “conformidade” ou “desconformidade” das decisões das instâncias não pode ser aferida pelo critério puramente formal da coincidência ou não coincidência do conteúdo decisório da sentença e que haverá dupla conforme e, portanto, inadmissibilidade da revista, quando o apelante é beneficiado pelo tribunal da relação – isto é, quando o réu é condenado em “menos” do que o imposto pela 1ª instância ou quando o autor “obtém” mais do que havia ali conseguido –, porquanto também não poderia ter recorrido se o acórdão do tribunal da relação tivesse mantido a decisão da 1ª instância, para ele menos favorável. No mesmo sentido podem referir-se ainda os Acs. de 10.05.2012, Pº nº 645/08.0TBALB.C1.S1-7ª Secção, de 16.11. 2011, Pº nº 808/08.9TTVCT.P1.S1, da Secção Social e de 05.07.2012, Pº nº 696/03.1PAVCD.P1.S1-5ª Secção.

                3.2. Independentemente da polémica e sem embargo de declararmos o nosso alinhamento com a tese da conformidade parcial, nos termos enunciados por Teixeira de Sousa, temos para nós que, no nosso caso, apesar de os Recorrentes terem visto as indemnizações arbitradas a seu favor majoradas pelo acórdão do Tribunal da Relação, não ocorre a dupla conforme impeditiva da revista.

                Com efeito, não só o valor de qualquer dos pedidos dos Recorrentes é superior à alçada do tribunal da Relação (fixada como está em €30,000,00 – cfr. arts. 24º, nº 1, da Lei 3/99, de 13 de Janeiro e 31º da Lei 52/2008, de 28 de Agosto), como a decisão recorrida é desfavorável para cada um deles em valor superior a metade dessa alçada, quando reportada ao pedido agora formulado em primeira linha (Cfr. a conclusão 8ª da motivação conjunta da Demandante e do seu filho EE e a conclusão 9ª da motivação do demandante BB). Por isso que estão preenchidos os requisitos do nº 2 do artº 400º do CPP (ou do nº 1 do artº 678º, nº 1, do CPC).

                Sendo o recurso permitido ao abrigo desta norma de carácter geral, a inadmissibilidade da revista só poderia resultar da doutrina do nº 3 do artº 721º do CPC.

                Todavia, não obstante, repetimos, a nossa adesão à tese da conformidade parcial, nos termos que enunciamos, constatamos que o Tribunal da Relação do Porto não se pronunciou apenas sobre os pedidos indemnizatórios, favorecendo cada um dos Demandantes/recorrentes. Divergiu ainda do acórdão da 1ª instância quanto à matéria de facto, alterando-a, com reflexos directos e imediatos na fixação da indemnização. E, em nossa opinião, essa alteração não se traduz em mero “diferente fundamento” da decisão sobre a indemnização, mas antes em modificação dos próprios pressupostos da obrigação de indemnizar quando referida aos danos não patrimoniais.

                Quer dizer: um dos segmentos em que se desdobra a decisão recorrida não confirmou, antes revogou, o correspondente segmento da decisão da 1ª instância. Por isso, não podemos dizer que o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, globalmente considerado, confirmou a sentença proferida pelo 1º Juízo Criminal de Paredes.

                Objectar-se-á, na esteira de Teixeira de Sousa, ob. cit., que «… dado que o que se procura saber é se é admissível a interposição de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, parece claro que, para comparação das decisões das instâncias, só podem ser utilizados elementos sobre os quais o Supremo se possa vir a pronunciar. Não faz sentido concluir que as decisões das instâncias são “desconformes” – e que, por isso, a revista deve ser admissível – quando essa “desconformidade” se verificar quanto a matérias sobre as quais o Supremo não se possa pronunciar. Dito de outro modo: a divergência entre as decisões das instâncias há-de recair sobre elementos que caibam na competência decisória do Supremo Tribunal de Justiça»[6].

                Mas, salvo o devido respeito, não acompanhamos, nesse ponto, a sua doutrina.

                E não acompanhamos porque a recorribilidade das decisões proferidas, em recurso, pelos tribunais da relação é, em processo penal, aferida pelos arts. 432º, nº 1, alínea b) e 400º, nºs 2 e 3, do CPP e, no que para aqui releva, também pelo artº 721º, nº 3, do CPC, e não em função do concreto objecto do recurso e dos seus fundamentos. É em função do valor do pedido e da sucumbência e da conformidade ou não conformidade das decisões das instâncias, e só em função destes requisitos, que o recurso é ou não admitido.

                Ora, no nosso caso, cotejando as decisões das instâncias – e só a elas devemos atender para efeitos do nº 3 daquele artº 721º – temos de concluir, como concluímos, que não está preenchida a hipótese deste preceito, mesmo nos quadros da doutrina da conformidade parcial.

                Aliás, cremos que o problema da fundamentação do recurso, o de saber se as concretas questões suscitadas pelo recorrente se situam dentro dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça ou os extravasam (cfr. arts. 434º do CPP e 722º do CPC) só se coloca em momento posterior, já depois da decisão sobre a admissibilidade do recurso, razão por que o eventual desrespeito do recorrente por esse poderes não se reflecte, já não se pode reflectir, naquela questão.

                Em suma: para efeitos de aplicação do nº 3 do artº 721º do CPC entendemos que a conformidade da decisão do tribunal da relação com a decisão da 1ª instância terá de começar pela comparação entre aquela e a parte desta que foi objecto de recurso, não podendo afastar-se dessa consideração os segmentos decisórios do acórdão da relação que eventualmente tenham recaído sobre matérias que, por escaparem aos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, não podem ser objecto do recurso para si interposto.           

                Deste modo, julgamos que a circunstância de não nos podermos debruçar sobre a decisão do acórdão recorrido que recaiu sobre a matéria de facto, não autoriza que concluamos que, face à divergência das decisões sobre essa matéria, estamos perante um caso de dupla conforme.

                Nestes termos, os recursos dos Demandantes são admitidos, apesar de sobre os seus concretos objectos, haver conformidade parcial das decisões das instâncias.

               

                4. Posto isto vejamos e apreciemos o objecto dos recursos

                Como emerge das conclusões das motivações dos recursos, são as seguintes as questões suscitadas pelos Recorrentes/demandantes:

                - a culpa na produção do acidente deve ser assacada em exclusivo ao Arguido ou, a entender-se ter havido co-responsabilidade da Vítima, a proporção da sua participação no resultado não deverá ir além dos 10%, contra os 90% a imputar ao primeiro.

                - a indemnização por danos patrimoniais futuros deve ser fixada em €190.000,00, a favor da Demandante e em €95.000,00, a favor de cada um Demandantes, filhos da Vítima.

                4.1. Quanto à concorrência de culpas

                A sentença da 1ª instância considerou a este propósito o seguinte:

                «…resulta assente que o falecido conduzia um velocípede sem motor, numa estrada nacional, de noite, sem que este     estivesse munido de qualquer luz (apenas reflectores laterais) veículo esse de cor escura, sendo que ele mesmo               envergava vestuário no essencial percepcionado como escuro.

                De acordo com o disposto no art. 32º, nº4 do C. E. e para o que agora nos interessa o condutor de um velocípede          deve ceder a passagem aos veículos a motor, a não ser que estes saiam de um parque de estacionamento, de uma      zona de abastecimento de combustível ou de qualquer prédio ou caminho particular. E bem se compreende a          precedente disposição legal…

                In casu é manifesto que a vítima e condutor do veículo sem motor não cedeu a passagem ao veículo com motor              conduzido pelo arguido/demandado, o que se lhe impunha (tanto mais que circulando o TN conduzido pelo               arguido/demandado com luzes a vítima teve necessariamente que o ver), mesmo que este estivesse obrigado a      obedecer a um sinal de paragem obrigatória (e independentemente da hierarquia estabelecida no art. 7º do C. da             Estrada). Por outro lado, de acordo com o disposto no art. 93º e 61º, nº1, ambos do CE, e uma vez que era noite                 impunha-se ao condutor do velocípede o uso de dispositivos de sinalização luminosa e de iluminação, o que este não     possuía (apresentando-se inócuos os reflectores laterais já que apenas lateralmente visíveis, o que não era o caso),   infracção que constitui também contra-ordenação, esta de hierarquia superior (art. 7º do C. estada) e contribui                fortemente para o sucedido.

                Dispõe o art. 570º, nº1 do C. Civil que quando um facto culposo tiver concorrido para a produção e agravamento dos       danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que            delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida, ou mesmo excluída. E para que o        tribunal goze de tal faculdade é necessário que o acto do lesado tenha sido uma das causas do dano, consoante os                mesmos princípios de causalidade aplicáveis ao agente, devendo para além disso o lesado ter contribuído com a sua      culpa para o dano.

                ….

A violação pela vítima EE, condutor do velocípede, das sobreditas regras estradais constituem manifesta          imprevidência, falta de cuidado em prejuízo próprio, já que aquelas se destinam exactamente a prevenir eventos como            o em apreço.

                Isto posto tem-se por evidente a contribuição da vítima quer para o acidente, a qual não agiu com a prudência de um      homem médio colocado na mesma situação e com o mesmo grau de conhecimentos – art. 487º, nº2 do C.E. – quer     para produção dos danos, que não foi menor, antes idêntica à do arguido/demandado.

                Pelo que em face da factualidade enunciada se considera justo e adequado fixar a contribuição causal do facto        da vítima, não só para a produção, mas para as consequências do acidente, em 50% (cinquenta por cento)»     (negrito nosso).

               
O Tribunal da Relação, tendo embora esclarecido e até corrigido aqueles considerandos, enquanto podem «criar a ideia de que [a 1ª instância] considerou que a vítima contribuiu para o acidente por não ter cedido a prioridade ao veículo do Arguido», visto que «as prescrições resultantes da sinalização prevalecem sobre as resultantes das regras gerais de trânsito (art.º 7º/1 do CE) e a regra de que os velocípedes devem ceder passagem aos veículos a motor (art.º 32º/4 do CE) é, sem dúvida, uma regra geral de trânsito, pelo que, no caso concreto, existindo para o Arg. um sinal de “Stop”, não tinha a vítima que lhe ceder a passagem», concluiu que «isso não altera o resultado final relativamente a esta questão».
E justificou:
«…a vítima circulava de noite no seu velocípede sem fazer uso [de] qualquer dispositivo de iluminação, de que aliás        não dispunha, assim violando o disposto nos art.ºs 61º e 93º/3 do CE, em conjugação com o disposto nos art.ºs 2º e         4º da Portaria 311-B/2005, de 24/03.
Ora, não tendo o velocípede dispositivos de iluminação, durante a noite, como era o caso, só podia ser conduzido à        mão (art.º 94º/2 do CE), isto é, não podia circular naquela via, àquela hora, nas condições em que fazia.
Se o desrespeito pelas normas estradais faz presumir a culpa na produção dos danos daí decorrentes e a        causalidade, é lógico concluir que, se o Arg. tivesse parado no sinal de “Stop”, muito provavelmente o embate no            velocípede não teria ocorrido, como é igualmente lógico concluir que, se a vítima conduzisse o seu velocípede à mão,            também se teria evitado o embate.
Por isso, tendo em conta que o Arg. abrandou, mas não parou, não se tendo apercebido da presença da vítima,             também porque circulava desatento, e a vítima circulava sem luzes, entendemos que o desrespeito da normas do CE               foi de gravidade equiparável, não havendo elementos que permitam atribuir maior contribuição para o acidente a           qualquer deles, pelo que estamos inteiramente de acordo com a decisão recorrida na parte em que graduou as      culpas em 50% para cada um dos intervenientes no acidente» (negrito nosso),

                                                                                                          citando, em seu apoio, porque entendeu proferido em caso similar, o acórdão do STJ de 01/02/2000, publicado no BMJ, 494,281 e na CJSTJ.

               

                 Como vimos, os Recorrentes continuam a pugnar pela responsabilidade exclusiva do Arguido na produção do acidente e suas consequências. Quando muito aceitam que à Vítima seja atribuído um grau de culpa nunca superior a 10%, contra os 90% a assacar ao Arguido.

                Os factos especialmente relevantes para o julgamento desta parte do objecto do recurso são essencialmente os que foram arrolados sob os nºs 1 a 8 e 11 a 25.

                Pois bem.

                Ninguém põe em dúvida que o Arguido, ao desrespeitar o sinal “Stop” com que deparou no fim da Rua ..., para entrar na EN nº 15, com vista a nela circular no sentido Paredes/Valongo, não imobilizando a marcha do seu veículo e, ainda por cima, circulando desatento ao tráfego que por ali se processava, sem se ter apercebido concretamente da presença da bicicleta tripulada pelo infeliz CC, tem culpa na produção do acidente e nas respectivas consequências.

                E a Vítima também a teve? Se sim, em que medida?

                As instâncias, para concluírem pela afirmativa, relevaram, como acabamos de ver, as circunstâncias de o CC tripular uma bicicleta de cor escura que não tinha luz, mas apenas reflectores nas rodas – considerados inócuos pela 1ª instância, sem reparo da Relação – e de ele envergar «vestuário no essencial percepcionado como escuro».

                A falta de dispositivo de iluminação no velocípede é incontestável.

                Mas não cremos que essa falta tivesse sido, no contexto das circunstâncias envolventes, determinante do acidente. Com efeito, circulando este veículo por uma recta de cerca de 50 metros, em local da EN15 «dotado de razoável iluminação pública» (Cfr. facto nº 2), não nos parece que a falta de luz na frente do velocípede pudesse impedir o seu visionamento por quem, como o Arguido, tripulando um veículo automóvel com faróis acessos, surgia do lado direito. A iluminação do local e a incidência do feixe luminoso dos faróis do veículo automóvel sobre os reflectores laterais da bicicleta eram suficientes, em condições normais, para revelar a sua presença e a do seu condutor naquele local da EN[7]  

                Tal não sucedeu porque o Arguido, como nos diz a decisão sobre a matéria de facto, sobre não ter imobilizado o seu veículo à entrada do cruzamento, como lhe exigia o sinal de “Stop”, ainda circulava desatento, sem atenção ao trânsito que se fazia pela EN e sem se certificar previamente da eventual presença de outros veículos que por aí circulassem. De tal modo que, mesmo tendo abrandado a velocidade a que seguia à entrada do cruzamento, galgou transversalmente toda a faixa de rodagem por onde circulava a Vítima – 4 metros – sem dela se ter apercebido, colhendo o velocípede «próximo do limite esquerdo da fila de trânsito, atento o sentido Porto/Paredes» (cfr. factos dos nº 14 e 18). Foi, pois, essencialmente por causa esta desatenção e falta de cuidado que se deu o acidente e se verificaram as suas consequências fatais. (cfr. factos nºs 8 e 9). Com efeito, também não comungamos da conclusão de que a cor do vestuário que a Vítima envergava fosse «no essencial percepcionado como escuro» e, como tal, tivesse sido significativamente responsável por não ter sido avistada pelo Arguido. O que vem provado é que, para além das cuecas cuja cor não é obviamente relevante, vestia calças de tecido azul, camisa azul – escuro ou claro, não sabemos –, casaco vermelho e sapatos de tonalidade rosa (Cfr. facto nº 22), cores bem visíveis e contrastantes num local «dotado de razoável iluminação pública».

                Nestas circunstâncias concretas, a responsabilidade pela produção do acidente e das suas nefastas consequências terá de ser quase exclusivamente assacada ao Arguido. Aquela sua conduta negligente (o desrespeito do “Stop” e a desatenção) conduziria seguramente ao mesmo resultado, mesmo que a Vítima tripulasse um velocípede dotado de luz ou caminhasse com a bicicleta pela mão. A desatenção, nos termos e circunstâncias referidos, não lhe teria certamente possibilitado aperceber-se da presença do ciclista ou do peão, mesmo que este estivesse a cumprir zelosamente as regras que lhe impunha a lei estradal.

                A responsabilidade da Vítima na produção do acidente e suas consequências, em virtude da sua conduta transgressora, imprudente, sem dúvida, terá de ser sempre considerada residual, razão por que para efeitos de repartição de culpas (artº 570º, nº 1, do CCivil), lhe atribuímos 15% de responsabilidade e ao Arguido 85%.

                Nesta parte o recurso é, pois, julgado parcialmente procedente.  

               

                4.2. Quanto ao montante das indemnizações por danos patrimoniais futuros.

                Se não houvesse outras razões para alterar o decidido, a decisão anterior só por si determinaria o aumento dos quantitativos atribuídos aos Demandantes.

                Mas, como veremos, ocorrem outras razões que concorrem no mesmo sentido.

               

                Assim,

            4.2. Sobre a matéria, o acórdão recorrido, contra o decidido pela 1ª instância, e julgando procedentes as pretensões do Demandantes, seguiu a orientação do acórdão do STJ de 20/05/2010, Pº nº 103/2002, L1.S1., nos termos do qual «a indemnização a arbitrar por tais danos futuros deve corresponder a um capital produtor do rendimento de que a vítima ficou privada e que se extinguirá no termo do período provável da sua vida, determinado com base na esperança média de vida (e não apenas em função da duração da vida profissional activa do lesado, até este atingir a idade normal da reforma [como entendeu, no nosso caso, a 1ª instância]), já que as necessidades básicas do lesado não cessam obviamente no dia em que deixa de trabalhar por virtude da reforma, sendo manifesto que será nesse período temporal da sua vida que as suas limitações e situações de dependência, ligadas às sequelas permanentes das lesões sofridas, com toda a probabilidade mais se acentuarão».
Por isso, disse que iria calcular a indemnização por danos futuros da Demandante, e só a dela, «por referência à esperança média de vida que, para os homens portugueses, é actualmente, segundo as Tábuas de Mortalidade para o triénio 2006/2008 divulgadas pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), de 75,49 anos».
Do mesmo passo, entendeu que essa «extensão só se aplica aos danos futuros da viúva, uma vez que os filhos sempre deixariam de ter direito a alimentos após atingirem a maioridade e no fim da sua formação».
E, assim, quanto a eles, confirmou o decidido pela 1ª instância:

a) que atribuíra a este título ao demandante EE a quantia de €40.000, com a justificação de que «…actualmente com 12 anos de idade, está em idade escolar e por imposição legal beneficiaria dos alimentos do pai até à conclusão da sua formação e inclusão na vida profissional, de acordo com o disposto no art. 1880º do C. Civil, que se apresenta razoável fixar nos dias de hoje nos 25 anos de idade…»; e

b) que negara qualquer indemnização deste tipo ao demandante BB, porque, sendo maior, «nada se provou, porquanto não foi sequer alegado qual a respectiva actividade, rendimentos (se é que já deles goza) ou se beneficiava antes da morte do pai de qualquer ajuda pecuniária regular dele proveniente e de que ficou privado…».
Invocou, a este propósito, o Acórdão da mesma Relação, de 04/05/2010, Pº nº 105/08.0TBVCD.P1, nos termos do qual, e no que de essencial nos interessa, o artº 495º, nº 3, do CCivil «…consagra…uma excepção à regra (no âmbito da responsabilidade civil extracontratual), estabelecida no art. 483º nº 1, de que só o titular do direito violado tem direito à indemnização e de que o mesmo já não acontece relativamente a terceiros, ainda que reflexamente prejudicados pela actuação do lesante – … [prevendo-se] nele aquilo que vem sendo designado por “dano da perda de alimentos” e que abarca duas situações em que o terceiro (ou terceiros) reflexamente prejudicado tem direito a ser indemnizado pelo lesante (ou por quem legalmente o substitui): quando pudesse exigir alimentos ao lesado e quando este lhos prestasse no cumprimento de uma obrigação natural… [vindo a Jurisprudência a entender maioritariamente] que “para que nasça o direito à indemnização pelo denominado dano da perda de alimentos, basta a verificação da qualidade de que depende a possibilidade do exercício de alimentos, não relevando a efectiva necessidade dos mesmos”…».
E, assim, concluiu, que «este Recorrente tinha que provar, …, nos termos das disposições conjugadas dos art.º 495º/3, 1874º, 1880º e 2009º/1-c) do CC, [que] era filho da vítima, que não havia completado a sua formação e que a vítima podia prestar-lhe alimentos», pois que «esta obrigação de contribuir para as despesas de formação só existiria se esta não se tivesse completado ao atingir a maioridade e durante o tempo normalmente necessário para a completar. Isto é, se o Recorrente já tivesse completado a sua formação não teria a possibilidade de exigir alimentos do falecido pai»
Ora, remata, «como se afirma na sentença recorrida nada foi alegado nem se provou quanto à formação deste Recorrente, pelo que manteremos a decisão de não lhe arbitrar indemnização pela perda de alimentos».

Como consta da conclusão 8ª, do recurso da Demandante e de seu filho EE, e da conclusão 9ª, do recurso do BB, os Recorrentes contestam, em primeira linha, que as suas indemnizações tenham sido fixadas «por direito próprio, em sede de alimentos, e não a título de lucros cessantes da vítima pela privação total de rendimentos.

Pois bem.
A correcção feita pela Relação no sentido de se atender à esperança média de vida e não à duração da vida profissional activa do lesado, além de não contestada pelos Recorrentes e pela própria Recorrida, merece a nossa inteira concordância.

Quanto à natureza do direito à indemnização limitar-nos-emos a seguir o que sobre a mesma questão dissemos no Ac. de 03.11.2010, Pº nº 55/06.4PTFAR.E1.S1, onde a aí Recorrente, a Seguradora demandada, invocava justamente «a contradição das instâncias – “… os recorridos, apesar de nenhuma prova ter sido feita sobre se usufruíam directa ou indirectamente da pensão da vítima, com a sua morte, passariam a beneficiar grandemente daquela…» – e concluía, em primeira linha, que, «por tudo o que consta da própria sentença e pela completa ausência de factos que permitam concluir pela existência de tais danos, … não têm os recorridos direito a qualquer indemnização por danos patrimoniais próprios por morte da vítima».

A aí Recorrente não questionava que os Demandantes, considerando o disposto no artº 2009º do CCivil, tivessem direito a indemnização pelos danos que eles próprios tivessem realmente sofrido em consequência do óbito de seu Marido e Pai. O que não aceitava é que «tendo as instâncias reconhecido que os Demandantes se limitaram a indicar o valor da reforma auferida pela vítima, omitindo qualquer indicação sobre a sua contribuição para a globalidade dos rendimentos patrimoniais comuns bem como qualquer indicação sobre despesas e encargos a incidir sobre aquela pensão, isto é, que os Demandantes nada tenham alegado e provado sobre a existência daquele dano concreto e, logo a seguir, afirmado que isso significava a exclusão de qualquer tutela indemnizatória, quando colocada a questão sob a tutela do artigo 495º do Código Civil numa interpretação restritiva», tivessem acabado por «reconduzir a questão do dano patrimonial que atingiu os demandantes num outro plano como, em situação similar, reconheceu o Acórdão do STJ de 27 de Janeiro de 2005…».

Efectivamente, o invocado Acórdão de 2005, que recaiu sobre um acidente que vitimou o marido e pai dos autores e confirmou as indemnizações que lhes haviam sido arbitradas a título de danos patrimoniais resultantes daquela morte, considerou que, sendo o falecido casado com a autora em regime de comunhão de adquiridos – como no caso agora em apreciação[8] – o produto do trabalho dos cônjuges é bem comum (artº 1724º-a), do CCivil), por isso que, falecido o marido, a viúva e os herdeiros daquele perdem um bem comum que tinha expressão patrimonial pura e que como tal pode e deve ser quantificado monetariamente porque aquela perda acarreta um dano patrimonial. E acrescentou: o ressarcimento desse dano jamais se pode fazer pela medida da obrigação de alimentos; tem que se fazer pela medida do seu valor de mercado tal como sucede com os restantes bens comuns do casal atingidos pela lesão. Daqui tirou duas conclusões: por um lado, que a indemnização patrimonial pela perda do salário do falecido marido cabe à viúva e aos filhos: àquela como meeira e herdeira; a estes como herdeiros do meeiro falecido; por outro, que o artº 495º não tem aplicação neste caso por regular a indemnização a terceiros, e os autores, como meeiro e herdeiros, não são terceiros na relação lesante-lesado.

No mesmo sentido se moveu o Acórdão de 25.09.08, Pº nº 2860/08, desta Secção, relatado pelo segundo Subscritor do presente e, em sentido próximo, o Acórdão de 29.01.08, Pº nº 3014//07-6ª Secção.

Continuamos, assim, a sufragar esta jurisprudência.

Por isso que o acórdão recorrido não se possa manter nesta parte, designadamente em relação aos Demandantes, filhos da vítima.

Posto isto, calculemos o valor das indemnizações:

Em função dos nºs 42º e 43º da decisão sobre a matéria de facto e seguindo os cálculos efectuados pelas instâncias, a propósito da indemnização atribuída à Demandante, de que os Recorrentes não divergem significativamente, o capital a ter em consideração em termos de longevidade média, já deduzido de 1/3, correspondente àquilo que a própria vítima gastaria consigo, atinge €432.008,00 {<1.458,94-234,33(descontos)x14 meses+ 1.914,66(<:638,22x3, do FET)] x 2/3 x 34 anos de esperança de vida}.

Os Recorrentes entendem, nos cálculos que apresentam, que àquele montante seja deduzida a percentagem de 20% (superior, note-se, aos 10% utilizados pelas instâncias) por receberem todo o capital de uma só vez e antecipadamente, o que aceitamos, e reduz aquele valor para €345,606,82.

Se entramos em linha de conta com a percentagem de culpa atribuída à própria vítima (15%), resta, para distribuir pelos Demandantes, a quantia de €293.765,00 que arredondamos para €294.000,00.

Sendo a Demandante meeira e herdeira, deveria receber 2/3 dessa quantia (<1/2+1/3x1/2) e os demandantes 1/6 (<1/3x1/2) cada um, como decorre do disposto no artº 2139º do CCivil.

Acontece que na sua motivação a própria Demandante alega que, do montante do capital a distribuir pelos três, lhe seja atribuído metade e que a outra metade seja distribuída, em partes iguais pelos dois Demandantes, Isto é, ao fim e ao cabo, renuncia a 1/3 da herança (a metade para além da sua meação).

Nada obsta a que aceitemos essa renúncia.

Como assim, daquele montante de €294.000,00, metade, isto é, €147.000,00 serão atribuídos à Demandante e a outra metade repartida, em partes iguais, pelo EE e pelo BB, recebendo por isso, cada um, a este título, €73.500,00.     

Procede, assim, nos termos exposto, isto é, parcialmente, este segmento dos recursos.

5. Em conformidade com o exposto, acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, na procedência parcial dos recursos interpostos pelos Demandantes, em:

5.1. Fixar em 15% a responsabilidade da Vítima e em 85% a do Arguido na produção do acidente e suas consequências;

5.2. Alterar correspondentemente, de acordo com esta proporção, as indemnizações atribuídas pelo acórdão recorrido a título de “perda do direito à vida”, “ sofrimento da Vítima” e “desgosto com a morte do pai e marido”, que passam respectivamente para € 17.000, 00, €1.416,95 e € 17.000,00, a favor de cada um dos Demandantes;

5.3. Em atribuir aos Demandantes as seguintes indemnizações a título de danos patrimoniais:

5.3.1. a favor da demandante DD, viúva da Vítima, a quantia de €147.000,00 (cento e quarenta e sete mil euros);

5.3.2, a favor de cada um dos demandantes, EE e BB André, a quantia de €73.500,00 (setenta e três mil e quinhentos euros),

                                                                      revogando correspondentemente o decidido no acórdão recorrido;

5.4. Confirmar no mais o acórdão recorrido.

Custas pelos Recorrentes na proporção do decaimento.

Lisboa, 19 de Setembro de 2012

Processado e revisto pelo Relator

Sousa Fonte (Relator)

Santos Cabral

____________________________________
[1] Cfr., entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.02.2010, Pº nº 151/99.2PBCLD.L1.S1-3ª Secção, de 29.09.2010, Pº nº 343/05.7TAVNF.P1.S1, de 07.04.2011, Pº nº 4068/07.0TDPRT.G1.S1-5ª Secção, de 24.03.2011, Pº nº 2436/06.4TAVNG.P1.S1, de 22.06.2011, Pº nº 444/06.4TASEI.C1.S1-5ª Secção; de 30.11.2011, Pº 401/06.0GTSTR.E1.S1, de 15.12.2011, Pº nº 53/04.2IDAVR.P1.S1-5ª Secção; de 25.01.2012, Pº nº 360/06.0PTSTB-3ª Secção, de 21.03.2012, Pº nº 390/04.TASTS.P2.S1-3ª Secção, de 11.04.2012, Pº 3989/07.5TDLSB.L1.S1, de 15.03.2012, Pº nº 870/07.1GTABF.E1.S1 -3ª Secção e de 20.06.2012, Pº nº 4022/02.9TDLSB.L1.S1-3ª Secção e outra jurisprudência neles referida.
[2] Expressão usada pelos Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, no seu “Código de Processo Penal, Comentários e Notas Práticas”, pág. 1023.
[3] Cfr., entre outros, os Acs. de 08.09.2011, Pº nº 880/1.TBVRS.E1.S1, de 24.05.2007, Pº nº 07A1655 e o proferido no Pº nº 2435/08.1TBSTS; com fundamentação idêntica, o Ac. de 08.03.2011, Pº nº 26/09.9PTEVR.E1.S1-3ª Secção que invoca o Ac. do Ac. de 14.10.2011, Pº nº 3563/08.9TBVIS.C1.S1, também, da “Formação.
[4] No seu “Dupla Conforme: Critério e âmbito da conformidade”, em “Cadernos de Direito Privado”, 21, págs. 21 e segs.
[5] Na sua intervenção de 27.05.2010 no Colóquio Sobre Processo Civil, sobre “Recursos em Processo Civil: Abordagem Crítica da Última Reforma.” 
[6] Citação extraída do Ac. de 5.07.2012 da 5ª Secção, referido no texto

[7] Diferente poderia ser a conclusão, isso sim, se os dois veículos circulassem na mesma via, em sentidos opostos, como parece ser o caso julgado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça invocado pela Relação.
[8] Embora a decisão sobre a matéria de facto seja omissa quanto a esse regime de bens, ele é comprovado pela certidão de fls. 204 e segs, razão por que se trata de facto necessariamente atendível por parte do Supremo Tribunal de Justiça, atento o disposto nos arts. 729º, nº 2 e 722º, nº 3, do CPC.